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293 CHAUD, E. (Orgs.). Anais do VII Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual Goiânia-GO: UFG, FAV, 2014 ISSN 2316-6479 CORRESIDÊNCIAS: POR UMA ABORDAGEM FABULATÓRIA DOS PROCESSOS CRIATIVOS Carolina Ferreira Fonseca FAV/UFG Pedro Britto FAV/UFG Resumo O artigo trata da abordagem do processo criativo deflagrado no projeto “Topografia aérea: uma fábula sobre poleiros e artistas”. Em princípio expomos uma conjuntura mais abrangente no que se refere às residências artísticas desdobradas em contextos rurais e remotos. A partir de dois conceitos pontualmente, as táticas de infiltração e a lógica das intensidades, problematizamos um conjunto de questões decorrentes do referido processo. Palavras chave: processo criativo, fábula, poleiro, artifício e natureza. Abstract This article deals with the approach of the creative process triggered the “Aerial Surveying: a fable about perches and artists’ project. In principle we expose a broader context in relation to artistic residencies deployed in rural and remote contexts. The two concepts from ad hoc, tactical infiltration and logic of intensities, we question a number of issues arising out of that process. Keywords: creative process, fable, perches, device and nature 1.1 Princípios criativos do projeto: aproximação panorâmica O processo criativo deflagrado no projeto “Topografia aérea: uma fábula sobre poleiros e artistas” compõe o substrato conceitual e estético das formulações propostas a seguir. O processo criativo articulou duas abordagens: a princípio instalou-se no quintal e nos pequenos galpões circundantes à casa- sede da Fazenda Fortaleza 1 , um atelier de enfoque construtivo e deste emergiram objetos, paisagens efêmeras, inscrições desde o tramado de cordas até grandes estruturas infiltradas nas suas distintas territorialidades, mais pontualmente nos 1 A fazenda Fortaleza localiza-se em Cumari (GO), no sudoeste do estado. Trata-se de uma construção de 70 anos, cuja arquitetura tem forte influência das fazendas de café de São Paulo e de leite de Minas Gerais, do ponto de vista das técnicas construtivas, volumetria, implantação e organização doméstica dos ambientes. Atualmente, é uma propriedade que se divide frente aos diferentes destinos decorrentes da transição geracional. Metade dela destina-se ao regime de arrendamento para a pecuária extensiva e a outra, foi destinada à formação de uma reserva ambiental, com proteção dos veios d´água, das nascentes de natureza perene e intermitentes. Nos últimos 6 anos vem se consolidando um intenso movimento de ocupação artístico-ambiental, que introduziu outra perspectiva para suas funções e destinos possíveis.

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6479CORRESIDÊNCIAS: POR UMA ABORDAGEM FABULATÓRIA

DOS PROCESSOS CRIATIVOS

Carolina Ferreira FonsecaFAV/UFG

Pedro Britto FAV/UFG

Resumo O artigo trata da abordagem do processo criativo deflagrado no projeto “Topografia aérea: uma fábula sobre poleiros e artistas”. Em princípio expomos uma conjuntura mais abrangente no que se refere às residências artísticas desdobradas em contextos rurais e remotos. A partir de dois conceitos pontualmente, as táticas de infiltração e a lógica das intensidades, problematizamos um conjunto de questões decorrentes do referido processo. Palavras chave: processo criativo, fábula, poleiro, artifício e natureza.

AbstractThis article deals with the approach of the creative process triggered the “Aerial Surveying: a fable about perches and artists’ project. In principle we expose a broader context in relation to artistic residencies deployed in rural and remote contexts. The two concepts from ad hoc, tactical infiltration and logic of intensities, we question a number of issues arising out of that process.Keywords: creative process, fable, perches, device and nature

1.1 Princípios criativos do projeto: aproximação panorâmica

O processo criativo deflagrado no projeto “Topografia aérea: uma fábula sobre poleiros e artistas” compõe o substrato conceitual e estético das formulações propostas a seguir. O processo criativo articulou duas abordagens: a princípio instalou-se no quintal e nos pequenos galpões circundantes à casa-sede da Fazenda Fortaleza1, um atelier de enfoque construtivo e deste emergiram objetos, paisagens efêmeras, inscrições desde o tramado de cordas até grandes estruturas infiltradas nas suas distintas territorialidades, mais pontualmente nos

1 A fazenda Fortaleza localiza-se em Cumari (GO), no sudoeste do estado. Trata-se de uma construção de 70 anos, cuja arquitetura tem forte influência das fazendas de café de São Paulo e de leite de Minas Gerais, do ponto de vista das técnicas construtivas, volumetria, implantação e organização doméstica dos ambientes. Atualmente, é uma propriedade que se divide frente aos diferentes destinos decorrentes da transição geracional. Metade dela destina-se ao regime de arrendamento para a pecuária extensiva e a outra, foi destinada à formação de uma reserva ambiental, com proteção dos veios d´água, das nascentes de natureza perene e intermitentes. Nos últimos 6 anos vem se consolidando um intenso movimento de ocupação artístico-ambiental, que introduziu outra perspectiva para suas funções e destinos possíveis.

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6479enclaves e nas sobreposições do campo sujo e do campo limpo2, delimitados

pela sedimentação histórica desse lugar. Esta primeira etapa foi batizada de “hasteamento de bandeiras”, ou pousos, dada a natureza dos objetos de expressiva característica escultórica.

Neste ínterim, instaurou-se uma residência artística, cujo modo de ocupação destes objetos/ estruturas e de outras territorialidades da fazenda, orientou-se pelo sentido do habitar e pelo confronto com a imanência da adversidade e do inóspito, absolutamente preponderantes nestas territorialidades. O atelier e a residência pousaram sobre as instalações da fazenda, que se encontravam num estado de indistinção entre a inoperância, o sucateamento, o arruinamento, o abandono e o envelhecimento. Em geral ocupadas por animais de pequeno e grande porte, seus ninhos, casas, poleiros e de resíduos doutros tempos onde tudo se definia de forma implacável pela utilidade hoje inexistente. As ações de habitar, pousar, repousar, permanecer agrupadas pelo artifício do poleiro mobilizaram diversas táticas de infiltração nestes estados; na imanente adversidade de tais instalações, das áreas degradadas pela pecuária extensiva, da mata resiliente, do insistente curso d´água, da mina de argila ora embargada, das esparsas e solitárias árvores do campo limpo.

Título: Díptico: campo sujo campo limpo (família Coletores)

Foto: Filipe Britto/ Performer: Glayson Arcanjo, 2013

2 Campo sujo e campo limpo são denominações clássicas que estruturam a classificação dos territórios nessa região do Brasil central, em que campo limpo é a área destinada à pastagem ou monocultura, ou seja, fonte de renda e lucro; enquanto campo sujo é a área onde a vegetação nativa (cerrado), natureza selvagem e sem função econômica operante.

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6479A experimentação cultivou o desejo de outros modos de ocupação, vinculados

à dimensão sensorial e afetiva, à possibilidade estética inerente à terra, explorando suas dimensões sonora, plástica, corporal, visual, arquitetônica e geográfica. O projeto constituiu uma mobilização integrada a um panorama mais abrangente, em que a ideia de residências artísticas atreladas a contextos rurais e remotos vem se afirmando de forma bastante central.

Pode-se citar, por exemplo, iniciativas correlatas, tais como as residências desenvolvidas na Ecovila Terra Una (desde 2007) e junto à iniciativa Nuvem: estação rural de arte e tecnologia (desde 2012), além da residência Labverde: experimentações artísticas na Amazônia (em 2013). Identifica-se nas correspondências entre tais iniciativas – resguardadas suas singularidades – um modo de acionamento de processos criativos a partir dos transbordamentos entre arte, ecologia, arquitetura, design, geografia, biologia, entre outros campos.

A noção de residir neste caso incorpora tanto um processo imersivo de contato com um contexto específico como também uma interação paradoxal entre isolamento e contato profundo:

Se o corpus geográfico originário da residência artística parece ser uma combinação da pesquisa de campo com a experiência da globalização, seu corpus antropológico poderia ser o exercício sistemático da sensibilidade e do desenraizamento. Percebemos hoje que as residências artísticas são pautadas, em maior ou em menor grua, pela proposta da percepção sensível como moto analítico do mundo. E a corresidência artística, que proponho aqui em assemblage com a transformação metodológica de Malinowsky, ofereceria então um estado que transforma objeto observado em sujeito interlocutor; isolamento em convivência; visita em frequentação profunda; eu em outros. (MARQUEZ, 2013, p. 22, 23)

A proposição de Marquez sobre corresidência coloca em relevo a dimensão antropológica subjacente aos deslocamentos desencadeados pela experiência predominantemente urbana dos sujeitos atuantes no campo da criação contemporânea. A incessante interação entre familiaridade e estranhamento circunscreve o referido moto analítico, num jogo de experimentações em que a própria experiência de viver as singularidades deste contexto constitui o disparador de outros sentidos estéticos e, portanto, outras poéticas.

1.2 Artifício – poleiro: táticas de infiltração

Em cada uma das iniciativas correlatas, observa-se que o modo de ativação do processo criativo explora diferentes ângulos dos potentes transbordamentos entre artes – nas suas mais múltiplas linguagens - ecologia, geografia, design, arquitetura, entre outras. Emergem daí formatos múltiplos de processos, que

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6479oscilam desde abordagens mais colaborativas a processos de criação de caráter

autoral. As ativações perpassam na maioria dos casos formatos mais alinhados à ideia de mostras coletivas, onde cada criador desenvolve seu trabalho, envolvido pelos deslocamentos contextuais inerentes aos territórios nos quais se inserem.

Nesse sentido, a proposta delineada pelo projeto, “Topografia aérea: uma fábula sobre poleiros e artistas”, oferece elementos relevantes para problematizar práticas de caráter colaborativo que se dão integralmente in situ (em campo); o território que poderia ser tomado apenas como objeto assume a condição de sujeito interlocutor. A Fazenda Fortaleza passa a instaurar - a partir de seu estado latente de abandono e ruína por um lado; e, por outro, intensa atividade econômica alinhada à postura capitalista na relação com a terra - processos atravessados pelo sentido de poleiro, pouso, topografias e fábulas, as pistas iniciais formuladas como pretexto do projeto.

Título: Balanço nas correias (família: Inventário de inoperâncias)

Foto: Filipe Britto, 2013

Ela mesma, a fazenda, passa a se constituir como o artifício- poleiro, em que criadores engajados no aprofundamento de táticas de infiltração nestes estados são instigados a submergirem nos múltiplos estratos históricos que lhe conferem sentido e existência. A noção de tática deriva das formulações propostas por De Certeau, na sua clássica distinção estabelecida com a ideia de estratégia. Para o autor, as táticas alinham-se à:

“ arte de ‘dar um golpe’, é o senso da ocasião. Sem lugar próprio, sem visão globalizante, cega e perspicaz como se fica no corpo a corpo sem distância, comandada pelos acasos do tempo, a tática é determinada pela ausência de poder assim como a estratégica é organizada pelo

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6479postulado de um poder. (...) As táticas são procedimentos que valem

pela pertinência que dão ao tempo – às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, à rapidez de movimentos que mudam a organização do espaço, às relações entre momentos sucessivos de um golpe, aos cruzamentos possíveis de durações e ritmos heterogêneos, etc. (DE CERTEAU, 1994, p. 101-102)

O pouso e a permanência figuram a abertura temporal atrelada à pertinência de se dar o tempo de apreender determinados ritmos, no caso tanto os ritmos da própria Fazenda, sujeito do processo criativo, como o ritmo dos pássaros nas suas relações com os poleiros, pretexto e também sujeitos do projeto. O pressuposto do fazer com a ocasião, integra-se ao princípio situacional apto a incorporar o ritmo presente nas articulações imanentes à historicidade da Fazenda, que por sua vez remonta à historicidade de um processo mais abrangente referente à sua condição geográfico-cultural.

Título: Poleiro Trapézio (Família: Pouso)

Foto: Filipe Britto/ Performers: Thiago Costa e Maicyra Leão, 2013

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6479Poleiro, neste caso, abarca desde o sentido da domesticidade, da casa, do

íntimo, até o sentido do pouso, do descanso, do sono. Afloramentos do espaço remetidos à pausa, à permanência duradoura, à estação intermediária de acolhimento das grandes travessias. O poleiro de quintal refere-se geralmente à presença de galináceos (galinhas, codornas, galos, angolas) e incorpora os modos de habitar de natureza sedentária, existências territorializadas em perímetro restrito, poleiro-quintal.

Por outro lado, o poleiro-estação conecta territórios distanciados, é esteio de travessias de aves de voos de longas distâncias, uma espécie de ilha entre áreas de pouca vegetação, onde qualquer elemento vertical, pontiagudo, apontando para o céu, converte-se em interrupção para as aves migratórias.

Estas existências, quintal e estação, construídas ou apropriadas para tal, fabuladas enquanto artifício-poleiro são mobilizadas por meio de tática de infiltração de estruturas, ações, gestos, registros em áreas enclaves da fazenda, denominadas de poleiros-artificiais.

O espaço como realidade da experiência do corpo – e não como metáfora ou representação – fez-se presente nas artes plásticas desde o minimalismo norte-americano dos anos de 1960; a partir daí, as suas sucessivas abordagens – land art, earth works, instalações, arte ecológica, arte urbana, web art – ampliam a noção do espaço concebido, percebido e vivido. Para além da contaminação na geografia do século XVIII por parte das artes pictóricas e literárias, hoje as questões que atormentam tanto a geografia como as artes deixaram de basear-se em morfologias ou localizações. Em vez de uma cartografia de caminhos e paisagens, a arte pretende cartografar processos e margens, trasladando da contemplação para a ação humana junto às paisagens que ela constantemente conforma. (MARQUEZ, 2006, p.20)

A cartografia apontada por Marquez, forjada pelas expansões do sentido de espaço, evidencia múltiplas articulações entre a dimensão concebida, percebida e vivida, ou seja, a sobreposição da prerrogativa da experiência do corpo em contraponto à representação pictórica. Esta cartografia sedimenta a abordagem do processo criativo em questão, numa tensão insistente entre ação e paisagem, processo e margem, contestando a noção de espaço enquanto morfologia ou localização, sua expressão estritamente formalista, para incorporá-lo também enquanto sujeito.

1.3 Por uma ecologia profunda da práxis artística

Posicionando-se de forma tangencial tanto à Land Art, à Arte Ecológica e à Arte Ambiental, perscruta-se no processo a noção de ecologia profunda, aferida a partir da proposição de Guattarri. O autor trata de três ecologias ou três dimensões ecológicas (a psique, o socius e o ambiente) fundantes da possibilidade de instaurar o que denomina de lógica das intensidades:

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6479Mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura e

preci samos aprender a pensar “transversalmente” as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referência sociais e individuais. (...) Essa lógica das intensidades, que se aplicam aos Agenciamentos existenciais auto-referentes e que engajam durações irreversíveis, não concerne apenas aos sujeitos humanos constituídos em corpos totalizados, mas também a todos os objetos parciais, no sentido psicanalítico, os objetos transicionais, no sentido de Winnicott, os objetos institucionais (os “grupos –sujeito”), os rostos, as paisagens etc. Enquanto que a lógica dos conjuntos discursivos se propõe limitar muito bem seus objetos, a lógica das intensidades, ou eco-lógica, leva apenas o movimento a intensidade dos processos evolutivos. (...) É aí que se encontra o coração de todas as práxis ecológicas: as rupturas a-significantes, os catalisadores existenciais estão ao alcance das mãos, mas na ausência de um Agenciamento de enunciação que lhes dê um suporte expressivo, eles permanecem passivos e correm o risco de perder sua consistência. (GUATTARRI, 2001, p. 25-28)

A fábula e o poleiro enquanto artifícios disparadores do processo criativo podem ser compreendidos como agenciamentos existenciais, nos termos de Guattarri. Vetores que mobilizam duração de intensidades, precipitação de estados latentes em objetos transicionais e movimento intensivo de processos tomados a princípio como evolutivos. Um tipo de práxis ecológica engajada de modo distinto da noção de ecologia hegemonicamente veiculada nos engendramentos mais reacionários do ponto de vista político, via de regra, assumido com sinônimo de sustentável, de cunho compensatório e preservacionista.

As topografias aéreas e a fabulação enquanto horizontes estéticos acionaram os testemunhos destes estados, o último vestido abandonado no mofo do armário, as serras e correias atracadas à ferrugem da serraria desativada, o mobiliário

Título: serra-corpo-moto-contínuo (Família: Inventário de Inoperâncias)

Foto: Filipe Britto/ Performer: Ana Reis, 2013

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6479manco, a argila em latência, a motosserra ociosa, a ruína de uma tapera, as rodas

de arado relegadas à solidão inerte do quintal; Ativaram campo sujo e campo limpo, bambuzal, rio, mina, pontilhão ferroviário, garagem, galpões; e imantaram a memória desta adversidade com outras territorialidades, outras paisagens, de intensidades estéticas aí infiltradas pela possibilidade do pouso e da permanência.

A dimensão fabulatória como um impulso no processo criativo, que se confrontou com uma espacialidade de contundente impacto da desertificação, do abandono, da inoperância e da expoliação. Este conjunto de relações em que se coimplicam contexto histórico e fabulação, pássaros e artistas, emerge a fábula como devir especulatório. Infiltrações experimentais na Fazenda e suas territorialidades, tomadas hegemonicamente apenas como propriedade, pousando aí um processo de ocupação e residência como ímpetos para a expansão dos sentidos ali possíveis e para a resistência frente às determinantes da terra como produto e valor de troca. Limiares entre o possível e o dado.

A perspectiva fabulatória tanto compôs o artifício disparador, quanto o olhar retrospectivo para os processos desenrolados ao longo dos vinte dias de residência que reuniu ao todo doze criadores. Os processos criativos por vezes consolidaram-se enquanto interferências sobrepostas entre o primeiro estágio, o atelier, e o segundo, a residência. Diversas frentes de exploração adentraram as historicidades da fazenda, traçando uma cartografia sensorial, eminentemente crítica, orientada pela lógica das intensidades.

1.4. Topografia de vizinha: ou sobre sedimentação de processos intensivos

A prerrogativa de instaurar-se um coletivo provisório associado ao imbricamento entre natureza e cultura e à suspensão da vertente autoral, vislumbra até mesmo coautorias entre pássaros e artistas (ainda que num plano fabulatório). Aponta-se nesse sentido para um horizonte de explícito interesse quanto ao descentramento do antropocentrismo ou emergência de uma espécie de mitologia intensiva para a fábula experimentada.

O olhar retrospectivo sobre o processo compõe uma nova topografia, agora, denominada de topografia de vizinhança a fim de dar corpo à etapa de itinerância, que percorreu quatro capitais brasileiras. A itinerância constitui-se como uma nova rota para o pouso deste agrupamento de criadores, uma possibilidade de dilatar o tempo-espaço da residência-atelier em um processo de formação e crítica expandida.

Migrações entre a geografia remota circunscrita à fazenda e suas microrredes de vizinhança e às múltiplas conexões deflagradas pela dimensão pública assumida pela itinerância. As indagações a seguir nortearam a sedimentação do processo de natureza intensiva e exploratória, em cujo cerne,

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6479deposita-se a tentativa de não converter processo em obras, descentramento

em autoria, apenas em função da demanda de tornar público e partilhar numa esfera mais abrangente as experiências desenroladas in situ.

Como transportar as paisagens pelos cruzamentos entre arte e geografia? Que linhas de fuga emergem no desvio do antropocentrismo, no processo de criação em artes? Que atravessamentos estéticos são potencializados no processo de infiltração de uma paisagem?

Diante dos impasses colocados entre experiência in situ, imersiva e intensiva, e abertura pública do processo, definimos um arranjo que toma as experiências a partir das vizinhanças, dos sentidos comuns e das transversalidades. Delimitou-se para tanto familiaridades conceituais latentes e potentes para o entendimento articulado dos referidos processos de criação:

Pouso3 ou tentativas de pouso. Repatriação sensível do território por meio de projeto, construção e hasteamento do que nos acostumamos a chamar de bandeiras – cinéticas e miméticas. Falsa conquista! Em vez disso, sinais de uma estrutura frágil e oferecida. Ponto de pouso para diálogo entre aves e nós.Inventário de inoperâncias ou máquinas de guerra. O silêncio de antigas sonoridades aflitivas que em outros tempos praticavam a assepsia ruidosa no campo sujo foram refuncionalizadas. Finalmente máquinas de fazer nada, em oposição recente à sua instrumentalização prático-mercantil, são agora máquinas que tudo podem. Memórias ambulantes transformadas em ensaios performáticos para novas prospeções. Coletores ou a prática de naturalistas contemporâneos. Se podemos apreender a atual ambiguidade entre natureza e cultura, somos capazes de criar novas historiografias baseadas em seres fugidios. Os objetos são coletados e, à maneira dos antigos botânicos, são isolados para análise, para classificação, para comparação. Mas esses objetos constituem novos sujeitos, eis o exercício artístico-antropológico. (MARQUEZ, 2013, p. 27)

Aliada a estas três primeiras famílias conceituais definidas por Marquez alinharam-se mais duas, propostas nos seguintes termos:

Diário ou registros do pormenor doméstico: montagem dos trabalhos lavrados na oficina, rabiscos, falatório do dia a dia, instantâneos do residir numa porção menor de fotografia, as polaroids transformadas em baralho. Uma fração do habitar, permanecer, residir, corresidir.

Pelos ares ou infiltrações fugazes: um pássaro decola hélio acima prenho de sementes, ruma o horizonte, dois mascarados no meio do caminho entre camposujoecampolimpo, explosões, voo, emergência de outra atmosfera, mais sutil e onírica que a plasmada no ermo espaço.

3 Em cada família classificamos um conjunto vasto de experimentações, as imagens expostas ao longo do artigo são apenas algumas, pontuais. Para conhecer cada família conceitual consultar www.topografiaaerea.wordpress.com

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Título: Pontilhão (família: Pelos ares)

Foto: Filipe Britto/ Performers: Ana Reis e Thiago Costa, 2013

Por fim, os artifícios compositivos delineados pelo poleiro e pela fábula, para além de qualquer dualidade artificial x natural, são pensados como intersecção entre a dimensão estética e a pulsão da vida, de modo que a sobreposição natureza x cultura, arte x vida e natureza x artifício incidem de forma coimplicadas e indistintas sobre o processo de criação proposto. Um tipo de topografia infiltrada, campo magnético por onde orbitam atratores da diversidade e da impulsão das intensidades históricas e territoriais a partir de uma militância sorrateira, infiltrante e mimética.

Referências bibliográficas

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano I: artes de fazer. Tradução de Epharim Ferreira Alves. 12ª Edição, Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

GUATTARRI, FÉLIX. As Três Ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. 11ª Edição, Campinas: Papirus, 2001.

MARQUEZ, Renata. Residências, corresidências e poleiros. In: FONSECA,

Carolina (Org.). Topografia aérea: uma fábula sobre poleiros e artistas. Belo Horizonte: Cidades Criativas, 2013. p. 20 - 27.

MARQUEZ, Renata. Arte e Geografia. In: FREIRE-MEDEIROS, Bianca e COSTA, Maria Helena Braga e Vaz (Org.). Imagens marginais. Natal> EdUFRN, 2006, p. 11 – 22.

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Carolina Ferreira Fonseca – Graduada em Design pela Universidade Federal de Uberlândia (2004), mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (2009) e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA (2010). Professora do curso de Design de Ambiente da UFG.

Pedro Britto – Arquiteto e Urbanista pela Universidade de São Paulo, mestre em Engenharia Civil pela Universidade Estadual de Campinas, doutor em Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Goiás. Áreas de interesse: urbanismo, projeto de arquitetura, pesquisa, planejamento, conservação, recuperação, saneamento, ensino, educação e arte.