CORREA, M. D. C. Os umbrais do humano. O homem como dispositivo biopolítico [PRISMA, 2010-2]
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De acordo com a deteco de Giorgio Agamben, o dispositivo an-tropolgico, atualmente em obra na cultura ocidental, opera, desdeAristteles, recortando uma forma de vida humanamente predicada
(bios) sobre a vida nua (zo). Essa operao, qualificada pelo paradoxoe pela exceo que engendra, anima, em larga medida, a crtica queAgamben enderea s cartas de Direitos Humanos em Al di l dei di-ritti deluomo. Nas trilhas de uma tradio que remonta a Nietzsche e legada a Foucault, Deleuze, e Derrida, esse ensaio objetiva demons-trar que a filosofia poltica de Agamben, e sua crtica ao conceito dehomem, poderia aproximar-se singularmente dessa tradio comum
e, ao mesmo tempo, serve de introduo ao pensamento de Agambenem tenso com alguns de seus principais intercessores.
Palavras-chave:Antropologia.Biopoltica. Devir. Dispositivo. Vida nua.
Os umbrais do humano:o homem como dispositivo biopoltico
e o animal contemporneo
Murilo Duarte Costa CorraDoutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito USP;
Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Ps-Graduao em Direito UFSC;Professor Titular de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito de Curitiba UNICURITIBA;
Professor Adjunto da Faculdade de Direito do Centro de Cincias Sociais e Aplicadas da Fundao deEstudos Sociais do Paran FD/CCSA/FESP-PR.
Curitiba PR [Brasil]
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Os umbrais do humano: o homem como dispositivo biopoltico e o animal contemporneo
1 Introduo
Esse ensaio foi articulado por meio de quatro segmentos expressi-
vos que desenvolvem progressivamente o conceito de homem como dispo-sitivo biopoltico com o objetivo de sistematizar a crtica endereada por
Agamben aos Direitos do Homem. Bios politikos apresenta a recepo do
conceito de Bios por Giorgio Agamben; Teodicias explicita suas relaes
com a exceo, a soberania e o sagrado; Dispositivo antropolgico anali-
sa o desenvolvimento do conceito de mquina antropolgica em Agamben,
segmento complementar compreenso do conceito de forma de vida (bios)
e, finalmente, em Direitos humanos: o homem no umbral e o animal con-temporneo, busca-se posicionar a crtica de Giorgio Agamben aos Direitos
Humanos em relao leitura do dispositivo antropolgico bem como s
tradies filosficas moderna e contempornea a respeito da morte do ho-
mem. Nesse segmento conceitual, busca-se verificar se Agamben poderia
ser alinhado a uma tradio filosfica do alm-do-homem.
Trata-se de uma hiptese que poderia sugerir novas possibilidades deleitura da filosofia poltica de Agamben, renovando-a pela aproximao a
filsofos como Nietzsche e Deleuze, especialmente, alm daqueles tradicio-
nalmente lidos com Agamben, como Heidegger, Foucault e Derrida. Uma
literatura do alm-do-homem a qual a crtica agambeniana antropologia
poderia filiar-se serviria, hoje, como auxiliar para interrogarmos os limia-
res das cises e articulaes entre homem e animal. Nos umbrais do huma-
no, preciso captar a penumbra do inumano no interior da forma-Homem,a fim de, a partir de suas indeterminaes, suscitar novos devires de que o
homem, como o conhecemos, parece j no ser capaz.
2 Bios politikos
Os gregos possuam duas palavras, semntica e morfologicamente,
distintas para designar aquilo que corresponde ao termo vida. Esse era
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o caso de bios politikos, que designava uma forma de vida humanamente
predicada, propriamente poltica. Zo designava, por sua vez, o mero fato
de viver, comum a deuses, homens e animais (AGAMBEN, 1996, p. 13)1.
Ainda na Poltica (1278b, 23-31), Aristteles diferenciava bios que serefere ordem dos modos de viver (kat tou bon), atribuda a uma benfazeja
existncia no interior da plis, pautada pelo viver conforme o bem como
sua causa final de zo, a doura natural de uma vida comum, qualquer,
impredicvel, confinada ao okos, como funo reprodutiva, mas excluda do
mbito poltico: [] nascida em vista do viver, mas existente essencialmen-
te em vista do viver bem (AGAMBEN, 2007, p. 10).Em A vontade de saber, Michel Foucault (2009) faz uma remisso
mesma passagem do texto de Aristteles em um lcus textualbastante
sensvel; no captulo V, Direito de morte e poder sobre a vida, Foucault
descreve os direitos tradicionalmente afetados ao exerccio do poder sobera-
no os direitos sobre a vida e a morte , passa pela deteco de sua origem
na patria potestas romana, indica sua transposio, a partir da teoria poltica
hobbesiana, e aponta um derradeiro deslocamento em direo a poderes
capazes de gerar e gerir a vida. Em complemento a isso, identifica a perma-
nncia do poder do soberano poltico de decidir sobre a vida e a morte.
A questo jurdico-poltica da soberania desloca-se ainda uma vez
mais; convertidos em biolgicos, os poderes governamentais exercem-se,
agora, sobre a populao2. A partir do sculo XVIII, o poder de matar no
desaparece, mas integra-se, como um complemento, a um poder de governoe direo da vida. Seus modos concretos de exerccio []so assumidos
mediante toda uma srie de intervenes e controles reguladores: uma bio-
poltica da populao (FOUCAULT, 2009, p. 152)3; os poderes, no entan-
to, no deixam, por isso, de serem aplicados conjuntamente tanto ao corpo
quanto ao indivduo; as normas disciplinares investem, agora, sobre a vida, a
fim de subtrair tempo e trabalho teis de corpos amestrados e docilizados;
o antigo poder de retirar a vida j no a subtrai por obra da morte, mas a ad-
ministra, calcula, gere. Do entrecruzamento entre uma economia dos cor-
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pos e outra das populaes encontraremos uma cifra essencial ao desenvol-
vimento do capitalismo4. Com ela, inserem-se controladamente os corpos
no aparelho de produo ao mesmo tempo em que fenmenos relacionados
s populaes podem ser ajustados a processos econmicos. Mais tarde, taismecanismos sero integrados a conhecimentos que recentraram a vida nos
domnios e clculos de poderes-saberes de maneira explcita. Precisamente
nesse ponto, Foucault faz meno a Aristteles; seu campo problemtico
parece servir de linha de fuga para a filosofia poltica de Agamben:
[] no que a vida tenha sido exaustivamente integrada emtcnicas que a dominem e gerem; ela lhes escapa continuamen-
te. Fora do mundo ocidental, [] a fome existe em uma escala
maior do que nunca; e os riscos biolgicos sofridos pela espcie
so talvez maiores e, em todo caso, mais graves do que antes
do nascimento da microbiologia. Mas, o que se poderia chamar
de limiar da Modernidade biolgica de uma sociedade se si-
tua no momento em que a espcie entra como algo em jogo em
suas prprias estratgias polticas. O homem, durante milnios,
permaneceu o que era para Aristteles: um animal vivo e, alm
disso, capaz de existncia poltica; o homem moderno um
animal, em cuja poltica, sua vida de ser vivo est em questo.
(FOUCAULT, 2007, p. 155-156)
A poltica diz respeito, pois, a uma dimenso propriamente humana,
na qual, mais do que a forma de vida meramente humana, est em jogo, em
seu terreno, sua vida de ser vivo, orgnica e qualquer, sobre a qual as for-
mas de vida variam e se tecem5. Na tradio do Ocidente, segundo a descri-
o de Agamben, Bios no designaria apenas uma diferena de grau quan-
do comparada a uma vida qualquer, desqualificada; ao contrrio, engendra
uma diferena ontolgica, que, todavia, comunga com o vivente qualquer,
ou com os deuses, o impredicvel fato de viver. Eis o que designaria a pol-
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tica como campo, por excelncia, do humano das ontologias do humano.
No entanto, a poltica constitui o campo no qual o mais prprio poder-ser
humano s pode derivar de um recorte operado sobre o canevs da vida ani-
mal, isto , da vida qualquer.. Entre o humano e o conceito de vida articula-se, pois, algo de essencial.
nesse sentido que Giorgio Agamben advertia que toda empresa ge-
nealgica sobre o conceito de vida na cultura ocidental deveria atentar para
o fato de que a vida nunca vem definida como tal, mas, sem cessar, encarna
um conceito sempre articulado e dividido (AGAMBEN, 2002). Desde o
De Anima, Aristteles ocupava-se das diversas formas sob as quais se dizque algo vivente, decompondo e isolando a vida em funo nutritiva para
depois rearticul-la em funes correlatas (nutrio, sensao, pensamento
etc.). J no se trata de uma ontologia do vivente, mas de converter a questo
o que ? em [] atravs de que uma coisa qualquer pertence a outra coisa
qualquer? (AGAMBEN, 2005, p. 392).
Ao retornar s Recherches physiologiques sur la vie et la mort, de
Bichat (1822), Agamben reencontra uma ressonncia dessa diviso na
distino operada entre os conceitos de vida animal (correspondente a
uma relao com o mundo exterior) e uma vida orgnica (a habitual su-
cesso de assimilao e excreo)6. A partir disso, Bichat afirmou que em
todo organismo superior encontraramos a convivncia entre o animal
de dentro (vida orgnica) e o animal de fora (vida animal) (AGAMBEN,
2002, p. 23).Se h uma vida animal separada a habitar a vida interior do homem,
para Agamben, ser precisamente essa vida animal separada, e no entanto
ntima e nem sempre edificante, aquela que permitir divisar humano do
animal. Ao mesmo tempo, essa vida animal a prpria cesura entre homem
e animal passar ao interior do homem, sugerindo uma nova forma de
propor a questo do homem e do humanismo7. Tradicionalmente pensa-
do como a conjuno metafsica entre corpo e alma, organismo e logos, o
homem teria sido, diversamente, o resultado de uma desconexo prtica e
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poltica entre humano e inumano a besta interior, nada divina, mas nem
por isso menos sacra.
3 Teodiceias: a soberania e o sacro
Ainda que me tire a vida, nEle confiarei.
J, XIII, 15.
Desde a teologia poltica schmittiana, h um paradoxo que o sobe-rano experimenta em relao ao ordenamento jurdico, e que se assemelha
ao que a vida padece em relao aos campos humano e poltico. A simetria
descoberta por Agamben que h entre o homo sacer e o soberano poltico
fundamental para compreender as relaes entre a produo do homem,
como forma de vida, a sacralidade da vida nua, a biopoltica, e o exerccio da
soberania. Agamben deduzira o contedo poltico de tal paradoxo como re-
lao de exceo; exceptio, palavra latina, significa etimologicamente aquilo
que capturado fora. A relao de exceo designa, ainda, uma intensa
indeterminao entre interior e exterior, dentro e fora.
Se retornssemos aos textos schmittianos, que Agamben utiliza como
ponto de apoio crtico em sua filosofia poltica, encontraramos na abertu-
ra de Teologia Poltica, a afirmao de que Soberano quem decide sobre
o estado de exceo (SCHMITT, 2006, p. 7). Ao radicalizar o brocardohobbesiano Auctoritas, non veritas, facit legem, Schmitt mostra-se um cr-
tico das pretenses normativistas imanncia. Ao detectar a incapacidade
dos tericos do Estado para apresentar uma soluo questo do estado de
exceo que no deixa de ser tambm a questo da soberania , Schmitt
(2006) afirma que todas as noes de teoria do Estado que conhecemos no
passariam de conceitos teolgicos secularizados. A transferncia de concei-
tos da disciplina teolgica teoria do Estado implicaria uma necessidade de
repensar a problemtica relao entre soberano e ordem jurdica. Se, para
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Schmitt, o soberano quem decide sobre o estado de exceo, este deve
encontrar-se em uma posio paradoxal em relao ordem jurdica, a um
s tempo interior e exterior.
Entre os sculos XVII e XVIII, tinha-se o Deus transcendente dian-te do mundo, de forma anloga ao soberano transcendente em relao ao
Estado; a partir do sculo XIX, no entanto, Schmitt admitia que tudo seria
dominado por ideias de imanncia, compreendidas como a insero hegelia-
na de Deus no interior do mundo e, pari passu, a identificao entre gover-
nantes e governados no seio da teoria do Estado. Dessa forma, mesmo a te-
oria do poder constituinte do povo representaria unicamente uma tentativade esconder o embarao gerado pela teoria do Estado ao explicar a posio
da exceo soberana, tendo como referencial o ordenamento jurdico.
Para explic-lo, Schmitt vale-se de duas ideias. A primeira diz respei-
to a um deslocamento de referencial, pois a norma geral, e o estado normal,
no seriam adequados para explicar a topologia da insero soberana no
ordenamento jurdico-poltico. A segunda, desdobra esse deslocamento ao
compreender a exceo como categoria estruturante das relaes entre so-
berania poltica e ordenamento jurdico. Resolver esse paradoxo importaria
reconhecer a existncia de um sentido jurdico no estado de exceo que no
condiz com uma situao de caos, mas com a aniquilao da norma geral
pela deciso, que se torna livre, absoluta. No entanto, isso no significaria
que, por excetuar-se norma geral, a exceo desertasse o campo do direi-
to. Segundo Schmitt (2006, p. 13), a deciso [] liberta-se de qualquervnculo normativo e torna-se absoluta em sentido real, mas no deixa, por
isso, de abandonar o ordenamento, tampouco se torna inacessvel cincia
do direito. O toque da deciso, na teoria do direito de Carl Schmitt, no
implica transitar do ordenamento aos puros fatos, tampouco converter seu
contedo soberano em sociologismo.
Nesse sentido, a interpretao que Agamben (2004, p. 131) prope
complexa, mas bastante fiel ao pensamento de Schmitt, pois qualifica a
exceo como uma zona de indistino entre fato e norma, em que o estado
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dico originrio do poder soberano, mas tambm a figura exemplar de uma
vida capturada fora (exceptio) da ordem poltica. Essa a razo da assusta-
dora simetria entre soberano poltico e Homo sacer,em que o soberano age,
para com seus sditos, como se todos fossem homines sacri. Nesse contexto,o homo sacer aquele perante cuja vida todo homem age como soberano
poltico (AGAMBEN, 2007, p. 92).
Nesse ponto, compreende-se a delimitao do espao propriamente
poltico; a sacralidade corresponde [] forma originria de implicao
da vida nua na ordem poltico-jurdica, e o sintagma homo sacer nomeia algo
como a relao poltica originria, ou seja, a vida enquanto, na excluso-inclusiva, serve como referente deciso soberana (AGAMBEN, 2007, p.
92). Desse modo, o estado de exceo constitui tambm um lcus privile-
giado em que direito e vida, em ntima relao, tornaram-se indiscernveis,
em que j no se pode decidir o que pertence deontologia ou ontologia;
precisamente nesse espao que a suspenso da aplicao da ordem jurdica
se torna possvel e, no obstante isso, permanece vigente; composta por for-
mas puras e vazias, gira em falso mas no em vo.
4 Dispositivo antropolgico
A partir de meados dos anos 1970 do sculo XX, Michel Foucault
descreveu as formas de exerccio de um poder positivo e fabril que seinauguram com os poderes disciplinares e vo desaguar nos dispositivos
de segurana e biopolticos, estendendo-se integradamente quilo que
Gilles Deleuze (2000) chamar sociedades de controle. No corpo a
corpo com elas, j no se pode conceber o exerccio de poder soberano
atrelado unicamente negatividade das injunes e represses. Mais re-
centemente, Deleuze e Agamben compreenderam o que, em Foucault,
um conceito organizador de seu procedimento filosfico, mas no uni-
versal: a noo de dispositivo.
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Deleuze e Agamben devotaram leituras relativamente heterog-
neas ao conceito foucaultiano de dispositivo. Deleuze (2003) lembra que
Foucault, por repudiar toda sorte de universais, concentrava-se na anlise
de dispositivos concretos. Agamben (2009b), por sua vez, procede a umaleitura disjuntiva do termo. Primeiro, esboa um conceito de dispositivo no
contexto da obra de Foucault, a partir da influncia exercida por Hegel e
por Jean Hyppolitte, reconhecendo, a exemplo de Deleuze, o rechao fou-
caultiano dos universais. No entanto, quando Agamben abandona o seio
conceitual de Foucault que se podem renovar as relaes entre governamen-
talidade e dispositivo.Agamben situa a ideia de dispositivo em um outro campo proble-
mtico: as relaes entre ontologia e oikonoma, nascidas da necessidade de
telogos como Tertuliano, Hiplito e Irineu de explicar como seria possvel
pensar Deus como ontologicamente Uno diante da Santssima Trindade
Pai, Filho, Esprito Santo. A explicao encontrada pelos telogos, segun-
do Agamben (2009b, p. 36), teria consistido em afirmar que embora Deus
fosse Uno quanto a seu ser e sua substncia (ontologia divina), a Trindade
constitua uma espcie de oikonoma divina a prxis por meio da qual
Deus-substncia administra ou governa sua casa (o Mundo). Dessa expli-
cao, que opera a disjuno entre ontologia e governo, ou prxis poltica:
[] derivam dois paradigmas polticos em sentido amplo, anti-
nmicos, mas funcionalmente conexos: a teologia poltica, quefunda no nico Deus a transcendncia do poder soberano, e a
teologia econmica, que substitui a esta a ideia de uma oikono-
ma, concebida como uma ordem imanente domstica, e no
poltica em sentido estrito tanto da vida divina como da hu-
mana. Do primeiro, derivam a filosofia poltica e a teoria mo-
derna da soberania. Do segundo, a biopoltica moderna at o
atual triunfo da economia e do governo sobre todo e qualquer
aspecto da vida social. (AGAMBEN, 2009a, p. 113)8.
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Na doutrina crist da oikonoma teolgica encontra-se, portanto, a
filiao comum tanto de um poder soberano e transcendente, do qual de-
rivam a filosofia poltica e a moderna teoria da soberania, quanto de uma
governamentalidade exercida segundo uma ordem imanente, domstica (oi-
kos), que se confunde com o governo dos viventes e da vida social, prpria
da biopoltica9. Essa diviso entre ontologia e prxis, Reino e Governo, ins-
tituda pela oikonoma trinitria, introduzira uma fratura no seio do divino
(AGAMBEN, 2009a), criando a impossibilidade de pensar qualquer ao
poltica com fundamento na ontologia.
Para Agamben, a desarticulao entre ontologia e ao, ou prxis,poltica, fundir-se-, a partir de Clemente de Alexandria, ideia de pro-
vidncia como [] governo salvfico do mundo e da histria dos homens
[]. (AGAMBEN, 2009b, p. 37-38). Por essa razo, os padres latinos te-
riam traduzido o termo oikonoma por dispositio; eis o dado fundamental
que permitiria proceder releitura do conceito de dispositivo.
Ao entrecruzar o conceito foucaultiano de dispositivo com a herana
teolgica, Agamben (2009b, p. 38) conceitua dispositivo como [] aquilo
em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem
nenhum fundamento no ser [] e, correlativamente, produz-se um sujeito.
Assim, o dispositivo fundamenta-se na ciso entre ontologia e poltica ao
mesmo tempo em que a reproduz, criando subjetivaes como efeito pr-
prio da sujeio a determinado poder governamental.
Definitivamente desertado o lcus de produo do conceito foucaul-tiano, Giorgio Agamben sugere que se situe a questo do dispositivo em um
novo contexto; recuperando a terminologia dos telogos, poder-se-ia sepa-
rar a realidade em duas classes: uma ontolgica, da substncia das criaturas,
dos seres viventes, e outra da oikonoma, dos dispositivos que os governam
para o bem. O dispositivo coincide, ento, sem resduos com [] qualquer
coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, deter-
minar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas,
as opinies e os discursos dos seres viventes (AGAMBEN, 2009b, p. 40).
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Eis o que nos permitiria partir de contextos de mais intensa e ime-
diata relao com o poder at chegarmos a descrever igualmente como dis-
positivos aparelhos mais frugais. Seu fundo de anlise passa a ser, portanto,
a identificao das relaes entre viventes e dispositivos que os capturam,subjetivando-os ou dessubjetivando-os, sendo que o mesmo indivduo pode
ser o lcus privilegiado de diversos processos de subjetivao e dessubjetiva-
o (AGAMBEN, 2009b).
O conceito de dispositivo, no entanto a exemplo do procedimento
filosfico foucaultiano , no vem desarticulado de certas funes prticas
e polticas. No entanto, no se trata de operar a destruio de todo dispo-sitivo do mais perverso ao mais ordinrio , cujo corpo a corpo com os
viventes favorecera, segundo Agamben, os prprios processos de hominiza-
o. Os dispositivos governamentais agem subjetivando e dessubjetivando,
operando a captura e a separao de um desejo demasiadamente humano de
felicidade, [] e a captura e a subjetivao deste desejo, numa esfera separa-
da, constituem a potncia especfica do dispositivo (AGAMBEN, 2009b,
p. 44). O dispositivo institui o governo dividido do mundo (oikonoma, que
cinde ontologia e poltica, seres viventes e governo da vida), pelo qual somos
subjetivados ao preo de constituirmos o n de imputao concreta de uma
mquina governamental que se confunde com o prprio dispositivo; o dis-
positivo encarna a pura atividade de governo que, sem qualquer relao com
a ontologia, visa, unicamente, sua prpria reproduo10.
Se, por um lado, o homem agambeniano um ser de potncia(AGAMBEN, 1996, p. 13-14), por outro, parece poder esgotar-se no re-
sultado prtico e poltico da diviso e da articulao entre homem e animal
que traz luz a doura despolitizada da vida nua como um dado natural
sobre o qual se arranjam as foras que constituem a forma do humano.
Cocco (2009) e Pelbart (2003) detectam o aparente vazio programtico a
que Agamben se lana ao conduzir sua crtica mquina antropolgica a
uma ontologia negativa, de matriz heideggeriana. Em LAperto, Agamben,
inspirado por Martin Heidegger, mas especialmente por Jean-Luc Nancy e
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seu conceito de desuvrement, interpretado como potncia de desativao,
afirma que:
Em nossa cultura, o homem [] sempre fora o resultado de uma
diviso e, tambm, de uma articulao do animal e do huma-
no, em que um dos dois termos da operao era, ainda, posto
em jogo. Tornar inoperosa a mquina que governa a nossa con-
cesso do homem significar, portanto, j, no procurar novas
mais eficazes ou mais autnticas, articulaes, mas exibir o
vazio central, o hiato que separa no homem o homem e oanimal, arriscar-se nesse vazio: suspenso da suspenso, shabbat
tanto do animal como do homem. (AGAMBEN, 2002, p. 94)11.
Agamben lana mais um desafio tico-poltico positivo que pro-
priamente um programa vazio; a projeo heideggeriana que, nas palavras
de Agamben, deixa ser o mundo e as coisas como tais, atrela-se entrega
tico-poltica prometida por outro conceito capital em Agamben, surgido
em sua bibliografia apenas entre 2004 e 2005, que o de profanao. A
potncia prpria da profanao relaciona-se com a desativao de um dis-
positivo capaz de cancelar as separaes entre esfera sacra e mundo humano
(AGAMBEN, 2008). Ao devolver ao uso comum dos homens aquilo que foi
capturado em uma esfera separada, uma poltica da profanao transforma
a aparente impotncia que marca a operao de desativao em uma possi-bilidade de uso completamente nova.
O conceito de potncia atravessa singularmente pelo interior da fi-
losofia poltica de Agamben; longe de constituir uma ontologia negativa,
toda potncia sustenta-se, por sua prpria suspenso, em uma potncia de
no; como em Aristteles, nunca se trata de um no poder, mas, sim, de
um poder no momento em que a suspenso se torna um ndice virtual
sem relao com o atual. Dessa forma, o conceito agambeniano das trevas
estende-se desde a descrio da operao das off-cells (AGAMBEN, 2005)
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at a explicao da relao de um contemporneo com as trevas de seu tem-
po (AGAMBEN, 2009b). Mesmo no interior dessa metfora, que atravessa
a produo conceitual de Agamben, as trevas nunca encarnam uma pura e
simples ausncia de luz, mas sempre uma potncia de no: ora uma potnciade no ver, ora a tenso entre um contemporneo que no se deixa cegar
pelas luzes do sculo e as trevas de um porvir que o afetam e concernem
como pura virtu. a partir dessa cintilncia de positividade porque o
no em Agamben corresponde a um ndice virtual potente e positivo ,
que se poderia, hoje, alinhar Agamben a uma literatura filosfica do fim do
homem, capaz de arriscar-se precipitar no vazio constitutivo das ontologiasdo humano.
5 Direitos humanos: o homem no umbrale o animal contemporneo
Senti, ao dizer aquelas palavras, quo irrisrio era interrogar
aquele homem antigo, para quem o presente era apenas um
indefinido rumor. (BORGES, 2008, p. 132).
Ao lado de uma literatura sobre a morte do homem, surgida na
Europa do sculo XIX, recentemente surgiram contraliteraturas idealistas
que, a exemplo de Renaut e Sosoe (1991), visam a restaurar a dignitas huma-na, acusando Foucault e Deleuze pela morte do sujeito e do homem con-
ceito sobre o qual se articulam os direitos do homem e do cidado.
Apoiado em We refugees e no captulo quinto do livro sobre o
Imperialismo, denominado O declnio do Estado-nao e o fim dos direi-
tos do homem, de Hannah Arendt, Agamben (1996) percebe que, uma vez
desnacionalizada e despida de toda e qualquer condio extrnseca, a figura
do refugiado sem qualquer tutela dos direitos universais e inalienveis
cujo titular, por excelncia, deveria encarnar marcaria a radical crise do
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conceito de direitos do homem e do cidado. Precisamente no ponto em
que o princpio da Nao soberana operado por meio da implcita inscri-
o da natividade da vida nua no interior da comunidade jurdico-poltica,
Agamben (1996, p. 24) identifica que os direitos do homem encontram-seirrevogavelmente imantados ao status de cidadania, de forma que os direitos
do homem constituiriam [] la figura originaria dellinscrizione della nuda
vita naturale nelle ordine giuridico-politico dello Stato-nazione [], sendo esta
sua ltima funo.
A misteriosa conexo entre mquina antropolgica e sua original cr-
tica funo biopoltica,desempenhada pelas declaraes de direitos dohomem e do cidado, permitiria aproximar os textos de Agamben a uma
heterognea srie de autores como Nietzsche (2008), Foucault (2001, p.
568-572), Deleuze (1998, p. 167-179) e Derrida (1972, p. 129-164), cuja
tradio parece pr em xeque a antropologia filosfica.
De Nietzsche a Deleuze, passando por Foucault, o humano no
seno uma forma, isto , [] um composto de relacionamentos de foras
[] (DELEUZE, 1998, p. 167); e As foras, no homem, supem apenas
lugares, pontos de aplicao, uma regio do existente (Id., Ibid., loc. cit.).
Agamben s pode provar a completa ausncia de dignitas do homem por-
que o arranjo muito especial que concede aos homens uma forma de vida
humanamente predicada [] no existiu sempre e no existir sempre
(DELEUZE, 1998, loc. cit.). O humano constitui o produto de seu rela-
cionamento, muito especial, com certas foras do fora, compostas em umbloco histrico de devires, arranjos, estratificaes e pequenas fugas. Toda
forma um composto de foras, juno e disjuno de foras e estratifica-
es; no h homem sem que o inumano suporte um devir antropomrfico,
tampouco sem relaes com o animal contemporneo que o habita e faz
fugir a um alm-do-homem. Aps abandonar a operao da forma-Deus e
suas relaes com foras do infinito, novas foras do fora foras de finitude
atravessam, historicamente, a forma-Homem, inscrevendo no corao do
arranjo a morte do homem. Tais foras finitas atravessam a forma-Homem
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de Heidegger (2009) em cuja ontologia negativa o Dasein constitui-se nos
limites cronolgicos de uma temporalidade circunscrita pela morte como
evento que absorve a existncia a Foucault, que diante da morte do ho-
mem diz [] retenhamos as nossas lgrimas (2001, p. 817-849), passandopor Nietzsche (2008, p. 38), para quem o homem no mais que [] uma
corda estendida entre o animal e o super-homem []. O super-homem
nietzschiano nada mais do que a forma [] que decorre de um novo re-
lacionamento de foras (DELEUZE, 1998, p. 179) que seria preciso, ainda
hoje, detectar e fazer fugir.
A mquina antropolgica de Agamben, longe de constituir em seufundo uma pura ontologia negativa, leva a novos extremos a tarefa a um
s tempo ontolgica, tica e poltica de, como quisera Rimbaud, de []
encarregarmo-nos de nossos animais [] (apud DELEUZE, 1998, p. 179),
mas tambm como quisera Deleuze , das prprias rochas e do inorg-
nico. Isso quer dizer que os direitos humanos essas doces promessas de
amor em meio guerra e ao exlio do homem no interior de sua dignitas va-
zia j no podem ser pensados seno em tenso com as foras do fora,que
forjam as estases do homem, e tambm com os fluxos de desejo, linguagem,
trabalho, animalidade, vida e inorgnico capazes de suspender a mquina
antropolgica e dissolver a atual forma-Homem, liberando os devires para
forjar uma nova forma, da qual, dizia Deleuze (1998)[] legtimo espe-
rar que no venha a ser pior que as [] precedentes.
Human thresholds: man as biopolitical gadget and
the contemporary animalAccording to Agambens detection, the anthropological machinecurrently under construction in the Western culture, operates,since Aristotle, cutting a human way of life (bios) over a barelife (zo). This operation, described by the paradox and the ex-ception it generates, encourages the criticism that Agamben
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Notas1. Cf., ainda, AGAMBEN, 2007, p. 09.
2. A biopoltica vai se dirigir [] aos acontecimentos aleatrios que ocorrem numa popu-lao considerada em sua durao. FOUCAULT, 2002, p. 293. J no se tem mais umadisciplina que se aplica, pura e simplesmente, aos corpos dos indivduos, tampouco umtreinamento individual; a biopoltica, diz Foucault, apela a mecanismos globais, a f imde obter estgios globais de equilbrio, de regularidade, assegurando sobre os processosbiolgicos do homem-espcie no mais uma disciplina, mas uma regulamentao. essepoder de regulamentao que, aplicado sobre o vivente e os corpos orgnicos, faz viver edeixa morrer, segundo uma clebre formulao foucaultiana. Cf., ainda, FOUCAULT,2002, p. 293-294.
3. Segundo Foucault, A populao um conjunto de elementos, no interior do qual sepodem notar constantes e regularidades at nos acidentes, no interior do qual pode-se identificar o universal do desejo produzindo regularmente o benefcio de todos e apropsito do qual pode-se identificar o universal do desejo produzindo regularmente obenefcio de todos e a propsito do qual pode-se identificar certo nmero de variveis deque ele depende e que so capazes de modific-lo. (2008b, p. 97-98).
4. Mesmo as observaes econmicas e a estatstica (Statistik) surgem nesse perodo.(FOUCAULT, 2008b, p. 365).
5. Nesse ponto que parece haver as marcas de uma inf luncia heideggeriana na reflexode Michel Foucault sobre as formas de vida; no interior da fi losofia foucaultiana, elaparece desaguar, mais tarde, nos conceitos de amizade como modo de vida e em umaesttica da existncia. Para uma leitura dessas relaes, sugere-se consultar: ORTEGA,1999.
6. A primeira parte das Recherches, de Bichat, tem por ttulo de abertura Division gnralede la vie. BICHAT, (1822), p. 01-07.
7. Precisamente nesse ponto Agamben integra a tese foucaultiana sobre o biopoder ao afir-mar que [] o que caracteriza a poltica moderna [] o fato de que, lado a lado com oprocesso pelo qual a exceo se torna em todos os lugares a regra, o espao da vida nua,
addresses to the Declarations of Human Rights. On the trailof a tradition that goes back to Nietzsche and is inherited byFoucault, Deleuze and Derrida, this essay aims to demonstratethat Agambens political philosophy could be approached tothis tradition and, meanwhile, it aims to introduce Agambensthought and some of his keys intercessors.
Keywords:Anthropology. Bare life. Biopolitics. Gadget. Upcoming.
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situado originariamente s margens do ordenamento, vem progressivamente coincidircom o espao poltico e excluso e incluso, externo e interno, bios e zo, direito e fatoentram em uma zona de irredutvel indistino (AGAMBEN, 2007, p. 16).
8. Traduo livre do original, [] derivano due paradigmi politici in senso lato, antinomici
ma funzionalmente connessi: la teologia politica, che fonda nell nico Dio la transcendenzadel potere sovrano, e la teologia economica, che sostituisce a questa l idea di unoikonoma,concepita come un ordine immanente domestico e non poltico in senso stretto tanto dellavita divina che di quella umana. Dal primo, derivano la filosofia politica e la teoria modernadella sovranit. Dal seccondo, la biopolitica moderna fino allattuale trionfo delleconomia edel governo su ogni altro aspetto della vita sociale.
9. Cf., ainda, a respeito: AGAMBEN, Giorgio; SACCO, Gianlucca, 2005, p. 03.
10. Em TIQQUN, 2009, p. 120, l-se que [] une thorie du sujet nest plus possibleque comme thorie des dispositifs. Tiqqun promove a coincidncia sem reservas das
duas estratgias que em Michel Foucault encontram-se, aparentemente, cindidas:anlise governamental e processos de subjetivao.
11. Traduo livre do original: Nella nostra cultura luomo [] stato sempre il resultatodi una divisione, e, insieme di una articolazione dellanimale e dellumano, in cui une deidue termini delloperazione era anche la posta in gioco. Rendere inoperosa la macchinaque governa la nostra concezione delluomo significher pertanto non gi cercare nuo-ve pi efficaci o pi autentiche articolazioni, quanto esibire il vuoto centrale, lo iatoche separa nelluomo luomo e lanimale, rischiarsi in questo vuoto: sospensione dellasospensione, shabbat tanto dellanimale che delluomo.
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recebido em 29 set. 2010 / aprovado em 1 nov. 2010
Para referenciar este texto:
CORRA, M. D. C. Os umbrais do humano: o homem como dispositivobiopoltico e o animal contemporneo. Prisma Jurdico, So Paulo, v. 9, n. 2,p. 307-326, jul./dez. 2010.