CORREA, A. Pai norueguês para a pintura

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Alfredo Andersen: um pai norueguês para a pintura paranaense Amélia Siegel Corrêa [1] CORRÊA, Amélia Siegel. Alfredo Andersen: um pai norueguês para a pintura paranaense. 19&20 , Rio de Janeiro, v. IV, n.2, abr. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/andersen_asc.htm> * Apresentação 1. Esse texto pretende refletir sobre alguns aspectos de trajetória e da obra de Alfredo Emílio Andersen (Kristiansand, 1860 - Curitiba, 1935), um pintor norueguês que, por obra do acaso, aportou em Paranaguá nos anos 1890 e que, tendo permanecido, se tornou o “pai da pintura paranaense.” 2. Considerando que os trabalhos acadêmicos sobre Alfredo Andersen são poucos e que se trata de um pintor pouco conhecido na história da arte brasileira, optei por elaborar um panorama da sua trajetória brasileira, privilegiando algumas facetas da sua obra. A atenção às relações sociais e ao contexto que deram origem a algumas obras busca articular arte, sociedade e história afinal, ao contrário do que postula uma leitura romântica das trajetórias artísticas, e que vê a obra de arte como um produto que paira acima da sociedade, do bem e do mal. As obras de arte se realizam no mundo, dentro de uma configuração social que envolve a interação de atores, instituições, doutrinas, e que, portanto não é pura e nem livre de contaminações da realidade. Com isso, as experiências e as vivências dos artistas se tornam ainda mais instigantes e apreciáveis, pois dotadas de carne e osso, sonhos, contradições, ambigüidades e limites, parte da experiência social de todo e qualquer ser humano. 3. Esses elementos ajudam a compreender os motivos dessa adoção - “Andersen, pai da pintura paranaense” -, uma vez que a paternidade de Andersen não poderia ser biológica. Além disso, como veremos, outros artistas poderiam ter recebido essa alcunha. Para tanto, inicio com uma breve reconstituição do meio artístico paranaense no final do século XIX, para que

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Artigo de Correa sobre o pintor norueguês A.A.

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Alfredo Andersen: um pai noruegus para a pintura paranaense

AmliaSiegelCorra[1]

CORRA, AmliaSiegel. Alfredo Andersen: um pai noruegus para a pintura paranaense.19&20, Rio de Janeiro, v.IV, n.2, abr. 2009. Disponvel em:

*Apresentao1.Esse texto pretende refletir sobre alguns aspectos de trajetria e da obra deAlfredo Emlio Andersen(Kristiansand, 1860 - Curitiba, 1935), um pintor noruegus que, por obra do acaso, aportou em Paranagu nos anos 1890 e que, tendopermanecido,se tornou o pai da pintura paranaense.2.Considerando que os trabalhos acadmicos sobre Alfredo Andersen so poucos e que se trata de um pintor pouco conhecido na histria da arte brasileira, optei por elaborar um panorama da sua trajetria brasileira, privilegiando algumas facetas da sua obra. A ateno s relaes sociais e ao contexto que deram origem a algumas obras busca articular arte, sociedade e histria afinal, ao contrrio do que postula uma leitura romntica das trajetrias artsticas, e que v a obra de arte como um produto que paira acima da sociedade, do bem e do mal. As obras de arte se realizam no mundo, dentro de uma configurao social que envolve a interao de atores, instituies, doutrinas, e que, portanto no pura e nem livre de contaminaes da realidade. Com isso, as experincias e as vivncias dos artistas se tornam ainda mais instigantes e apreciveis, pois dotadas de carne e osso, sonhos, contradies, ambigidades e limites, parte da experincia social de todo e qualquer ser humano.3.Esses elementos ajudam a compreender os motivos dessa adoo - Andersen, pai da pintura paranaense -, uma vez que a paternidade de Andersen no poderia ser biolgica. Alm disso, como veremos, outros artistas poderiam ter recebido essa alcunha. Para tanto, inicio com uma breve reconstituio do meio artstico paranaense no final do sculo XIX, para que possamos compreender a posio que esse pintor ocupar no estado. Nosso caminho se inicia com as aventuras do pintor em Paranagu, no litoral paranaense, e depois sobe a serra, para tratar da sua produo artstica na Curitiba do incio do sculo XX e das suas relaes com o movimentoparanista. Desta forma, espero conseguir apresentar um pouco da fascinante trajetria desse pai noruegus da pintura paranaense, cuja obra no se encaixa na periodizao dos grandes centros, mas que no passou despercebida aos habitantes daterra das araucrias.

Arte e meio cultural paranaense no final do sculo XIX4.So poucos os estudos realizados sobre as artes no Paran at meados do sculo XIX, especialmente porque antes do estabelecimento do pintor portugus Mariano de Lima, em 1886 e de Andersen, alguns anos depois, poucos artistas fixaram-se no Paran e ali desenvolveram uma obra duradoura. Por isso, a arte paranaense desse perodo classificada como itinerante,[2]pelas primeiras imagens da regioteremsido elaboradas por viajantes. O valor dessas obras varia entre sua importncia documental e o seu valor pictrico.JeanBaptisteDebretsupostamente[3]esteve no Paran na dcada de 1820, quando colhia esboos para o seu livro, e deixou registros de Paranagu, da Lapa, de Guarapuava e de Curitiba. Em 1832 emigra para o Brasil o alemo Frederico GuilhermeVirmond, radicando-se na Lapa. Tambm mdico e naturalista, foi o primeiro artista a fixar-se no que ento era a 5a comarca de So Paulo (a emancipao da poltica do Paran ocorre apenas em 1853). Produziu miniaturas, retratos e algumas paisagens. Como no assinava suas obras, difcil ter uma idia do seu acervo. Um pouco mais tarde, passa pela provncia o cartgrafo John Henry Elliot, seguido pelo pintorJoo LeoPallire, Joseph eFransKeller(que realizam um importante trabalho iconogrfico sobre os indgenas) nos anos 1860 e o suo WilliamMichaud, que sefixano Paran, mais especificamente na colnia deSuperagui. Deixou um acervo considervel especialmente de aquarelas, que atualmente pode ser apreciado no Museu deVevey, na Sua. Sua trajetria e seus quadros merecem um estudo mais aprofundado.5.Cabe agora montar um cenrio para a chegada de Andersen em Paranagu, por volta do ano de 1893. L ocorreram as primeiras manifestaes artsticas de maior flego, pois at meados da dcada de 1870, foi o centro comercial e poltico da ento Provncia do Paran. Por se tratar de uma cidade porturia, recebia um grande influxo de estrangeiros, e contava com uma classe de senhores abastados que investiram num sistema educacional com vistas formao de seus filhos. A cidade recebeu artistas que aportaram para trabalhar nos colgios, como o francs NoelGuillet, que teria chegado por volta de 1846, depois as americanas Jessica James e sua filha, em 1849, seguidas pela famliaTaulois, que fundou um colgio parameninas.[4]Outros indcios do adensamento da vida cultural da cidade so a criao do Clube Literrio, em 1872, a presena de ncleos republicanos e abolicionistas, antes mesmo da capital, Curitiba, alm das construes religiosas e da arquitetura das casas dos personagens ilustres da cidade, que vivia os ltimos suspiros do seu perodo ureo, prestes a se expiar, com a consolidao poltica e econmica de Curitiba. No por acaso, parnanguaraa primeira pintora nascida na ento futura provncia do Paran, Iria Cndida Correia (1839-1887). Filha do coronel Joaquim Cndido Correia, teve uma educao aprimorada, e foi considerada por Francisco Negro, uma das mulheres mais instrudas de seu tempo.[5]Pintou retratos, paisagens e naturezas-mortas, mas infelizmente pouqussimas das suas obras chegaram at os dias de hoje.

Ao sabor das ondas: Andersen em Paranagu6.A chegada de Andersen no Porto de Paranagu, por volta de 1893, se deu devido a uma avaria no navio que tinha como destino o porto de Buenos Aires, na Argentina. A tripulao foi obrigada a permanecer na cidade durante o conserto, e quando este foi finalizado, Andersen opta por ficar. H muitas verses sobre os motivos da sua permanncia na cidade, e no creio que sejam excludentes. Penso, contudo, que o pintor no faz uma escolha consciente, num primeiro momento, de se estabelecer nessa nova terra. Tratava-se de um jovem pintor habilidoso, com esprito aventureiro, e que foi deixando-se ficar at que os laos que o ligavam ao Paran se tornaram fortes demais para que regressasse s terras escandinavas.7.Os retratos pintados por Andersen nesse perodo indicam que ele rapidamente se inseriu nas redes de relaes de personagens importantes da cidade. O acervo do atual Conselho de Cultura de Paranagu nos sugere que Andersen foi contratado pelo governo para retratar, certamente a partir de fotografias, os principais homens do novo governo republicano, como o Marechal Deodoro da Fonseca, o Presidente Prudente de Moraes e seu vice, ManoelVictorino, todos em 1897. Os demais retratos do acervo contam com personalidades da cidade, como o importante poltico Visconde de Ncar, membros do Clube Literrio, coronis etc. Tais encomendas mostram que havia um mercado para o seu trabalho. Somado a isso, sabe-se que o pintor tornou-se atrao na cidade, e que se apaixonou por uma moa bem mais jovem, descendente de ndios carijs, chamada Ana de Oliveira, com quem se casou e teve quatro filhos. Sua ligao com a terra e a gente do Paran se tornava cada vez mais forte e Andersen, de alguma forma, parecia vislumbrar o alcance que a sua obra poderia ter para o desenvolvimento das artes plsticas no estado.8.As imagens mais emblemticas desse perodo foram marinhas e paisagens de Paranagu, que atestam um olhar sensvel e pitoresco da cidade em que morou. Como emPorto de Paranagu[Figura 1], que ao contrrio do que o ttulo sugere, parece menos um local onde se atracam grandes embarcaes, e mais um ancoradouro para canoas, que se sucedem at onde mar e o cu se fundem, instigando uma sensao de sonho e vastido, que se refora pela tonalidade pastel das cores, que traz uma luminosidade quepulsa,sutil. esquerda a concretude, algumas construes e rvores, que se contrape outra (quase) metade do quadro, deixada em aberto, ao sabor da imaginao.9.Se os retratos se originam, quase sempre, de uma encomenda especfica, a paisagem nem sempre. H elementos mais subjetivos que informam o olhar do pintor, pois a paisagem , como lembra SimonSchama,[6]um produto da cultura, composta de camadas de lembrana. O Rocio de Paranagu outro tema constante em suas obras, e o pintor o explorou at o final da sua vida. Sabemos que Andersen e Ana casaram-se na Igreja do Rocio, e as telas declaram o seu afeto especial pelo lugar. possvel tambm pensar numa afinidade romntica do pintor com um lugar to belo e to primitivo, distante da civilizao e de seus desenganos. Se, como dizia o antroplogo Franz Boas, o olho que v o rgo da tradio, ento essa leitura pode ter vindo da Noruega, onde, por uma srie de motivos culturais e polticos, houve um forte movimento de rejeio do progresso material e dos valores citadinosfin-de-siecle, clima que direcionava o esprito nacionalista e a ateno s tradies nativas. De fato, tal corrente estava espalhada pela Europa na dcada de 1880, e teve proeminncia na arte nrdica: o desejo de dar arte uma instruo mais profunda nas condies primrias da experincia humana e da tradio, pelo contato do artista com sociedades primitivas ou rurais, preservadas da corrupo da crescentemente urbanizada e industrializada vidamoderna.[7]10.As escolhas temticas de Andersen envolvem o mar, a natureza, poucas construes humanas e, no caso deRocio,de 1896 [Figura 2], apenas uma pessoa integra o conjunto da composio, com pouca relevncia. Aqui o centro no o mar, mas as suas proximidades. Os tons verdes e ocres da vegetao predominam; a claridade da tela sutil, trata-se de um dia nublado. No primeiro plano vemos duas canoas e uma pequena construo, talvez para guard-las. A posio delas aponta para o lado esquerdo da tela, que fornece a referncia ao lugar, onde vemos a Igreja onde Andersen se casou com Ana, com telhado cor de tijolo e uma pequena cruz no topo. Um homem, talvez com um cesto vermelho sobre a cabea, caminha naquela direo.11.Como se sabe, a presena do mar na pintura brasileira do sculo XIX bastante representativa. Em muitos casos, difcil separar o que paisagem do que marinha. A classificao nossa, ao tentarmos distinguir subjetivamente o objetivo do pintor.Vista do Porto[Figura 3] , a meu ver, uma marinha. No primeiro plano vemos uma vegetao rasteira, diversificada, fruto de uma execuo rpida, pouco preocupada com detalhes, e mais com as sensaes. Um pouco acima vemos o trapiche, que termina onde se iniciam as embarcaes. A proa do navio negro est torta, talvez ele esteja naufragando e na sua seqncia, ao fundo, h um barco a velas, em tons claros. O cu tem uma luminosidade mais forte, comparada com as telas anteriores, e as pinceladas mais rsticas do amarelo e dos tons rosceos, que refletem na vegetao, so mais emotivas. H um componente romntico na representao do mar, por ser uma ligao com os povos, uma porta para o exotismo. Ele tambm foi uma temtica fundamental na pintura norueguesa, quem dir para Andersen, filho de marinheiro, amante das viagens e nascido numa importante cidade porturia,Kristiansand. interessante pensar queCastagnetoePancetti, os dois maiores pintores de marinha brasileiros, tambm possuam uma ligao com o mar para alm das pinturas, pois ambos foram marinheiros.

Subindo a serra12.Paranagu fica pequena para Andersen, e seus servios passam a ser requisitados pelas elites em fase de francoaburguesamentoda capital. O principal fator da mudana do eixo poltico no estado tem a ver com a fixao da cultura do mate no planalto, e sua produo em larga escala. Esteboomse refletiu na modernizao de Curitiba com a chegada dos bondes, do cinematgrafo, da luz eltrica, da fotografia etc. Outro aspecto central do perodo foiaintensa imigrao europia. neste contexto que Alfredo Andersen chega Curitiba, rapidamente cooptado pelas elites que queriam ser retratadas, mostrando que a concorrncia da fotografia no afetou o interesse pelas artes plsticas, pelo contrrio, fez com que caminhassem juntas na figurao curitibana. Seu primeiro ateli na cidade, onde tambm dava aulas de pintura, funcionou de 1902 a 1915 junto ao do fotgrafo alemoVolk.[8]H, no acervo do Museu Paranaense, lindas fotografias de camponesas coloridas mo por Andersen, assim como uma Vista Geral de Curitiba, de 1904, colorida aquarela pelo pintor.13.Mas a principal relao que considero importante apontar aqui com o movimentoparanistaque, em poucas palavras, tentou construir uma identidade cultural para o Estado a partir da idia de meio fsico e raa, e se valeu profundamente das artes para criar na populao local um sentimento de pertencimento aoParan.[9]Andersen desenvolveu uma relao bastante prxima com Romrio Martins, um dos lderes do movimento, assim como com outros artistas que comandaram a estilizao dos elementos simblicos que representariam o estado. Infelizmente, no poderei explorar essas redes nesse texto. O que procurarei evidenciar como a sua obra ajuda a construir esse imaginrio, participando do intercmbio de idias, sonhos e projetos para a construo de uma identidaderegional.[10]14.Uma obra comoQueimadaouLavadeiras[Figura 4] deve ser pensada dentro dessa chave analtica. No sabemos a data da sua execuo, e tampouco quem a encomendou, mas, considerando a sua dimenso e o exguo nmero de clientes que existiria para uma tela dessas propores, no seria arriscado dizer que se trata de uma demanda oficial. No primeiro plano vemos uma camponesa, que usa chapu e esta vestida de azul; ela tem uma espcie de cesto ou bacia nas mos, e esta voltada para as roupas que esto estendidas sobre o gramado. Logo atrs, um estreito caminho leva a uma proteo de madeira, onde h duas outras lavadeiras, uma delas reclinada sobre o tanque. Do lado esquerdo algumas vacas e bois, uma cerca delimitando a propriedade e pinheirais. Mais ao fundo, vemos uma faixa de campos abertos, depois uma vegetao e a fumaa da queimada. A distante fumaa se mistura luminosidade dourada do cu, criando uma atmosfera quase mstica, onde o elemento humano e a paisagem se integram, harmonicamente. A tela tambm pode ser pensada como um retrato da vida no campo, e, quem sabe, se considerarmos que Romrio Martins - principal mecenas das artes plsticas do incio do XX - foi o primeiro ambientalista paranaense, uma delao sobre a queima das florestas de pinheiros.15.Outro trabalho com uma temtica bastante significativa para o estado do Paran oSapeco da Erva-Mate[Figura 5] que retrata a extrao da planta que viabilizou a modernizao de Curitiba e oaburguesamentodas elites que elegeram Andersen seu artista. Tal como o caf, em So Paulo, a erva-mate foi responsvel por um dos mais longos ciclos econmicos do estado. O aumento das receitas impulsionou diversas atividades, como os transportes - desenvolveu-se a navegao fluvial no rio Iguau; construiu-se a Estrada da Graciosa e a Ferrovia Curitiba-Paranagu, concluda em tempo recorde de apenas cinco anos, e que trouxe para o Paran uma equipe composta por engenheiros, arquitetos e profissionais que contriburam para o processo de modernizao da cidade. Oboomda erva incitou tambm o surgimento das litografias, que imprimiam os rtulos para as barricas, assim como grficas e impressoras.16.A tela mostra um grupo de homens trabalhando num erval. A poda esta sendo concluda, como indica a pilhagem que vemos no lado esquerdo, diante dos quatro homens, e a ao dos outros dois, direita. O sapeco propriamente dito ocorre quando as folhas so passadas por uma fogueira, processo que est em fase de preparo pelos trabalhadores. O pintor utiliza vrias tonalidades de verde, que vo se definindo de acordo com a luz que filtrada pela floresta e que incide sobre a vegetao e os homens, gerando uma imagem viva e ao mesmo tempo sombreada. Nesse belo trabalho, Andersen retrata os trabalhadores lutando pela sua sobrevivncia, com uma imagem bem acabada do homem interagindo com a natureza, extraindo dela suas riquezas, ao mesmo tempo em que elabora um documento iconogrfico das benesses que a natureza proporcionou para o desenvolvimento de uma regio.

A guisade concluso:Auto-retratoe identidade17.Andersen foi um pintor incansvel da paisagem paranaense, e o primeiro grande intrprete da rvore smbolo do estado, o pinheiro. Tambm foi um grande retratista e consolidou, no plano simblico das artes plsticas, as elites que se afirmavam no poder do estado. Nas cenas de gnero, retratou a intimidade da sua famlia, com muita sensibilidade. O artista tambm, num exerccio constante dereflexividade, retratava o seu ateli, assim como seus alunos enquanto pintavam - Andersen foi um exmio professor, e ensinou toda uma gerao de pintores. Diante da impossibilidade de tratar de uma obra to rica num to breveensaio, opteipor finalizar analisando alguns de seus auto-retratos, pois os considero um documento valioso que comprova a via de mo dupla na construo desse pai da pintura paranaense, como ficar claro a seguir.18.NoAuto-retratode1926 [Figura 6], Andersenesta com o rosto voltado para a esquerda, usando camisa clara, gravata e terno marrom claro. O semblante do pintor possui cavanhaque e bigode, usaculos redondo, com armao fina e dourada,boina - que usava freqentemente - e entre os lbios levemente abertos segura um cigarro de palha. O fundo marrom e a luminosidade vem da esquerda e do alto, fazendo com que a aba da sua boina faa sombra sobre seus olhos. Essa tela pertenceu ao Sr. HaroldSigmond, noruegus que residiu no Rio de Janeiro e que era muito amigo de Alfredo Andersen, que provavelmente lhe presenteou com o quadro, um ano antes de partir em viagem rumo Noruega, graas ao auxlio financeiro prestado pelo Sr.Sigmond, ento o presidente da FiatLuxno Brasil. H outro auto-retrato, muito semelhante a esse, em que o pintor aparece com as mesmas insgnias, e vrios desenhos, que ele enviava para seus parentes na Noruega seguindo o mesmo esquema. A recorrncia desse modelo sugere uma auto-imagem relativamente estvel, em que ele se faz mostrar do pescoo para cima como um pintor noruegus, srio, afeito aos tons terra e pastis, com seu cigarro.19.H outras evidncias de que Andersen, sempre que possvel, marcava a sua identidade norueguesa, como na assinatura de diversos quadros comoAndersenSand;dos seus quatro filhos, trs tinham nomes noruegueses, mantinha contato com outros noruegueses que estivessem no Brasil, recebia jornais do seu pas, etc.20.Em 1927 o pintor viaja para a Noruega, e l permanece por um ano. Pelo que se sabe, recebeu propostas de trabalho, e foi incentivado pela famlia a voltar, pois sua situao financeira no Brasil era bastante precria. Andersen, que j contava com quase 70 anos, no vislumbrava mais a possibilidade de um retorno s suas origens. Foram34 anos longee, talvez, como num quadro impressionista, a distncia da sua ptria adotiva, o tenha feito sentir-se mais brasileiro.21.SeuAuto-retratode 1932 [Figura 7] difere totalmente dos anteriores. Andersen est de frente, podemos v-lo da cintura para cima. A luz to forte que quase cega o pintor, que para isso, ao invs da tradicional boina, usa um chapu de palha, tipicamente brasileiro. O brao direito estendido mostra o pincel, como se fosse uma cdula de identidade, seu instrumento para representar o mundo, o pas em que escolheu viver e a si prprio. Ao lado direito, o fundo de uma tela: o pintor encontra-se em seu ofcio, e parece mais altivo do que nunca nessa auto-imagem que nos mostra que Alfredo AndersenSand, tambm, um pintor brasileiro.22.Era o elemento que faltava no quebra cabeas da construo do pai da pintura paranaense. A noo de paternidade um artefato dessa construo regionalista, que identifica o estado e a sua arte com uma entidade familiar. A paternidade fruto de uma construo social, e ela no poderia ser pensada apenas da perspectiva dos filhos, ou nesse caso, dos paranaenses.Auto-retratode 1932 o outro lado da moeda, dessa via de mo dupla que constituiu as identidades.23.Evidentemente que outros elementos culturais, polticos e histricos foram fundamentais para que ele se tornasse pai da pintura paranaense, dos quais alguns foram mencionados aqui. Mas no s isso. Andersen era dotado de uma excepcional competncia artstica, e deixou na sua descendncia, com seus discpulos, um lastro que marcou profundamente o desenvolvimento das artes plsticas no Paran nas primeiras dcadas do sculo XX.

Referncias bibliogrficasARAJO,Adalice.Dicionrio das artes plsticas no Paran.Curitiba: Edio do Autor, 2006.CARNEIRO, Newton.A arte paranaense antes de Andersen.Boletim informativo da Casa Romrio Martins, ano VII, n. 43, set/1980.FERREIRA,EnnioMarques.2001 Andersenvolta Noruega.Curitiba: Sociedade Amigos de Alfredo Andersen: Secretaria de Estado da Cultura: Museu Alfredo Andersen, 2001.Pintores da Paisagem Paranaense.Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura: Solar do Rosrio, 2005KOSSOY, Boris.Origens e expanso da fotografia no Brasil - sculo XIX.Rio de Janeiro: FUNARTE, 1990, p. 120.PEREIRA, Lus Fernando Lopes.Paranismo:O Paran inventado. 2 ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998.SCHAMA, Simon.Paisagem e Memria.So Paulo: Companhia das Letras, 1996.VARNEDOE, Kirk.Northern Light:nordicart at the turn of the century.NewHavenandLondon: YaleUniversityPress, 1988.Revista de Histria da Biblioteca Nacional, Ano3, n. 28, janeiro de 2008,pgs. 70-75.

_________________________[1]Mestre em Sociologia pela UFPR, doutoranda em Sociologia da Arte e da Cultura pela USP e bolsista da FAPESP.E-mailpara contato:[email protected][2]Cf. ARAJO,Adalice.Dicionrio das artes plsticas no Paran.Curitiba: Edio do Autor, 2006.[3]Segundo o historiadorJaelsonBitranTrindade,Debretno conheceu vrias das paisagens e cenas que pintou; usava como base a obra do desenhista prussianoSellow. Cf.Revista de Histria da Biblioteca Nacional, Ano3, n. 28, janeiro de 2008,pgs. 70-75.[4]CARNEIRO, Newton.A arte paranaense antes de Andersen.Boletim informativo da Casa Romrio Martins, ano VII, n. 43, set/1980.[5]Apud ARAUJO, .op. cit., p. 34.[6]SCHAMA, Simon.Paisagem e Memria.So Paulo: Companhia das Letras, 1996.[7]VARNEDOE, Kirk.Northern Light:nordicart at the turn of the century. New Havenand London: YaleUniversityPress, 1988, p. 21.[8]Cf. KOSSOY, Boris.Origens e expanso da fotografia no Brasil - sculo XIX.Rio de Janeiro: FUNARTE, 1990, p. 120.[9]Cf. PEREIRA, Lus Fernando Lopes.Paranismo:O Paran inventado. 2 ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998.[10]Estes elementos foramabase da construo da particularidade local pelos artistas plsticosJooGhelfi,Lange deMorreteseJooTurin, que estilizaram a pinha, o pinheiro e o pinho.