Corporações de Ofício - Palestra Monica de Souza

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  • 7/23/2019 Corporaes de Ofcio - Palestra Monica de Souza

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    Entre a Cruz e o Capital: a decadncia das corporaes deofcios aps a chegada da famlia real (1808-1824)

    Palestra Arquivo Geral da Cidade do Rio de JaneiroProf. Dra. Mnica Martins

    O declnio das corporaes de ofcios no Brasil nos remete primeiramente

    pergunta: existiram corporaes de ofcios no Brasil? Baseando-se nas fontes

    primrias e em anlises historiogrficas j desenvolvidas sobre o tema

    podemos afirmar que sim, elas existiram desde o incio do perodo colonial. No

    entanto, apresentaram caractersticas diferentes das guildas portuguesas,

    apresentando peculiaridades em relao ao contexto da sociedade colonial. E

    ainda sobreviveram at o sculo XIX, mesmo quando j estavam sendo

    extintas em vrios pases europeus, sendo legalmente abolidas apenas na

    Constituio de 1824.

    Nascidas do processo de expanso comercial europeu do final da Idade

    Mdia, as corporaes de ofcios ou guildas sintetizaram os vnculos

    profissionais urbanos naquele momento. Ao longo do tempo, as obrigaes

    religiosas as vincularam de forma cada vez mais rgida s irmandades leigas,

    em algumas partes da Europa. Essas irmandades controlavam todo o processo

    de produo e de comercializao das obras artesanais, eram responsveis

    pela garantia da qualidade e originalidade das obras, bem como pelo

    cumprimento das normas estabelecidas pelos compromissos ou estatutos da

    corporao.

    Em Portugal se estruturou uma organizao peculiar dos ofcios: a Casa

    dos Vinte e Quatro, em 1383. Inaugurada em Lisboa, ela reunia vinte e quatro

    homens sendo dois mestres de cada ofcio e tinha a incumbncia de

    fiscalizar a administrao municipal, definindo os interesses do povo. Em

    todas as outras cidades portuguesas onde houve a organizao dessas casas,

    elas tiveram doze mestres, sendo cada ofcio representado por uma bandeira,

    totalizando as doze.

    A estruturao jurdica portuguesa, a partir de 1572, possibilitou que se

    regulamentasse a respeito da assemblia dos ofcios e das eleies, sendotambm estabelecidos os critrios para o fornecimento da carta de exame,

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    documento que daria ao mestre a aptido para o exerccio da arte e para o

    estabelecimento de seu ofcio, reconhecendo sua aptido para a formao de

    aprendizes e o emprego de oficiais em sua loja. Somente aps receber a carta

    de exame, o arteso poderia ser designado Mestre. Essa organizao dos

    ofcios perdurou at o sculo XVIII, quando o juiz do povo Lisboeta solicitou ao

    rei uma reforma da Casa dos Vinte e Quatro. Somente nesta ocasio as

    Bandeiras tiveram uma organizao definitiva, com a distribuio das

    corporaes pelas respectivas bandeiras de seus padroeiros, realizando uma

    melhor organizao da representao dos ofcios na Casa.

    A forte influncia religiosa junto s corporaes e as obrigaes religiosas

    que os oficiais mecnicos das diversas profisses passaram a exercer -

    especialmente pela representao desempenhada nas procisses, nas quais

    cada ofcio carregava a bandeira do respectivo santo protetor -, explica a

    designao que receberam de bandeiras.E, neste caso, as bandeiras dos

    ofciosfuncionavam com uma rigorosa hierarquia profissional, na qual alguns

    desempenhavam o papel de cabeas, enquanto outros ofcios eram

    considerados anexos.

    Em relao s bandeiras dos ofcios, foi estabelecida para os ofcios de

    pedreiros, carpinteiros e marceneiros a proteo da irmandade de So Jos;

    para os ferreiros e serralheiros, latoeiros, funileiros, seleiros e outros, a

    irmandade de So Jorge; para os alfaiates, a irmandade do Senhor Bom

    Homem; para os ourives de ouro e prata, a irmandade de Santo Eli; para os

    sapateiros, a irmandade de So Crispim e So Crispiniano; e assim por diante.

    Para cada ofcio havia uma irmandade correspondente, que carregava a

    insgnia de um santo padroeiro ao qual os membros do ofcio deviamobrigaes. Desta forma, os oficiais mecnicos de cada corporao se

    tornavam responsveis pelos rituais e obrigaes relacionadas Bandeira de

    sua irmandade, cuidando das procisses e festas do respectivo santo

    padroeiro, bem como se responsabilizando pela construo da igreja da

    irmandade. Os ofcios anexos sem bandeira, no entanto, podiam formar

    irmandades prprias distintas, desempenhando as mesmas obrigaes

    religiosas, mas no ocupavam lugar de destaque nas procisses.

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    As co r p o r aes d e o fc i o s n o B r as i l

    No Brasil uma entidade similar Casa dos Vinte e Quatro foi fundada

    ainda no sculo XVII, tendo doze mestres, como nas demais cidades

    portuguesas. A mais antiga referncia de 1641, com a eleio de doze

    mestres na Cmara Municipal de Salvador. Outra informao indica que em

    1624 houve um pedido da Cmara do Rio de Janeiro ao rei, atravs do seu

    ouvidor, solicitando que fossem eleitos dois mestres. H indicao de que a

    figura do juiz do povo foi extinta em 1713, devido sua intensa atuao junto

    aos interesses do povo, acerca dos preos, dos gneros e dos impostos.

    Eliminando o cargo de juiz do povo, restaram somente o juiz e o escrivo do

    ofcio.

    Os primeiros oficiais mecnicos na colnia portuguesa vieram com as

    primeiras expedies para auxiliar na montagem do aparato colonial, chegando

    em maior nmero a partir de 1549. Os oficiais mecnicos estavam neste

    primeiro momento vinculados Companhia de Jesus e os ofcios eram de

    responsabilidade dos jesutas. Portanto, os ofcios mecnicos comearam a se

    organizar na colnia vinculados ao aparato colonial portugus, visando a

    atender aos interesses da colonizao.

    No Rio de Janeiro, as artes mecnicas se organizaram em ofcios desde

    cedo, com eleio de juzes da mesa da irmandade correspondente. Entre os

    oficiais mecnicos e com loja aberta trabalhando na cidade, em 1792, foram

    identificados 103 mestres; e 1037 lojas e oficinas artesanais em

    funcionamento. Isso demonstra a importncia econmica que tinham na vida

    comercial da cidade.A participao poltica exercida pelos mestres e o poder de peticionar

    mostram um exerccio poltico no sentido de se organizarem atravs dos seus

    ofcios, a fim de defenderem seus interesses e de atuarem como porta-vozes

    polticos dos interesses dos artesos.

    Acima do poder dos artfices e dos mestres havia o controle por parte

    das irmandades leigas. Eram elas que fiscalizavam os juzes e cuidavam de

    todos os aspectos legais que envolviam a contratao da mo-de-obra,

    habilitao e licena dos artesos para o exerccio da atividade. Cobravam

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    mensalidades aos mestres de loja aberta e podiam impedir a habilitao dos

    artfices que no cumprissem as suas obrigaes junto irmandade. Elas

    representavam a referncia moral e profissional para os trabalhadores dos

    mais diversos ofcios mecnicos: tanto exerciam controle sobre a corporao

    como defendiam seus interesses, funcionando inclusive como bancos em favor

    dessas entidades. Alm disso, elas empregavam artfices de diversas

    categorias profissionais e a elas eram solicitados trabalhos e obras dos

    artesos.

    Outro aspecto de ordem econmico-social das irmandades era a funo

    de assistncia e auxlio mtuo que garantia a proteo e segurana dos

    artfices, mantendo a irmandade como a provedora de auxlio nos momentos

    de doena, morte ou de necessidades. Essas irmandades concediam

    emprstimos e crditos, exercendo a funo que mais tarde se consolidaria

    com as atividades financeiras dos bancos. Ofereciam ajuda material aos irmos

    necessitados, constituindo-se em uma das principais fontes creditcias em uma

    poca em que o sistema financeiro no havia se consolidado.

    Em uma cidade como o Rio de Janeiro, as irmandades leigas se tornaram

    fundamentais para a sustentao econmica dos ofcios mecnicos. O

    desenvolvimento do comrcio e o crescimento urbano eram acompanhados

    pelo progressivo aumento do poder e da influncia dessas entidades junto

    vida social e econmica local. Sua importncia nessas esferas despertou na

    realeza a necessidade de espiar de perto suas atividades, coibindo a extenso

    do seu poder alm do que fosse permitido pelo governo.

    Essas entidades exerciam especial papel em relao aos mecanismos de

    acesso ao trabalho e exerccio da vida profissional na cidade, preservando osinteresses prprios de cada um dos grupos profissionais por elas defendidos,

    reservando ainda os empregos e atividades disponveis para seus filiados.

    Exemplo disso foi o regimento do ofcio de 1764, que proibia a venda de

    sapatos pelas ruas da cidade. Em 1771 e 1772, a Irmandade de So Crispim e

    So Crispiniano recorreu justia a fim de que fosse cumprido o regimento,

    exigindo a fiscalizao sobre o nmero de aprendizes por mestre. Em 1813,

    outra representao da mesma irmandade ao rei criticava a venda em praa

    pblica de obras feitas por cativos, mulheres e pessoas imperitas dentro de

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    casa. A irmandade continuou criticando a persistncia de tais prticas nas ruas

    da cidade ao longo da dcada de 1820.

    De acordo com ofcios encontrados nos Autos de Apelao e Agravo de

    Oficiais de Sapateiro do ano de 1780, a Irmandade de So Crispim e So

    Crispiniano criticava que a venda de sapatos nas ruas fosse exercida por

    indivduos que no pertencessem irmandade do ofcio. Solicitavam que tais

    cidados fossem presos em cadeia, pagassem uma multa, que teria parte

    destinada para a irmandade e a outra deveria ser designada para as obras do

    Conselho, tendo ele a priso decretada por desobedincia ao Senado e

    Relao.1Em 1813, os mestres de loja aberta do ofcio de sapateiro e os

    mesrios da Irmandade de So Crispim e So Crispiniano fizeram um abaixo-

    assinado onde relatavam os inconvenientes, que se seguio mesma

    Irmandade, aos mais suplicantes, e athe ao Publico de se venderem pelas ruas

    obras feitas em cazas particulares por escravos captivos, mulheres e pessoas

    imperitas.2

    Totalizavam cento e uma assinaturas a favor de que fossem fixados

    novos editais pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro proibindo a venda de

    calados. A reivindicao dos mestres do ofcio e o poder de presso que

    exerciam sobre o Senado so demonstrativos de sua relativa organizao,

    assim como dos interesses comuns que defendiam. Permitir a venda de

    calados pelas ruas por artesos que no estivessem ligados irmandade

    atentava contra os interesses daqueles que contribuam regularmente para a

    entidade, que desempenhavam suas obrigaes junto aos irmos e oficiais,

    que obedeciam s regras do compromisso e das tradies dos artesos e,

    sobretudo, feria a prtica do controle sobre todas as esferas da produo,exercido pelas irmandades dos ofcios. Significava ainda prejuzo comercial na

    venda de suas obras, que sofriam naquele momento forte concorrncia

    tambm dos artigos estrangeiros que passaram a entrar na colnia aps a

    abertura dos portos de 1808.

    Ao longo do tempo, o forte apelo poltico desenvolvido pela organizao

    dos sapateiros influenciou a ao de outras corporaes na defesa de seus

    1 39-4-48,Auto de Apelao e Agravo de Manoel Francisco da Silva e outros do ofcio de sapateiro, novembro/1780,

    AGCRJ, fls.1-2.2 (2890) 50-1-12, Sapateiros, 08 de maio de 1813, AGCRJ, fls. 1-4.

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    interesses comerciais. Em abril de 1813, a Irmandade de So Jos, dos ofcios

    de marceneiro e carpinteiro, fazia petio ao rei para que, seguindo o exemplo

    da proibio da venda de calados pelas ruas da cidade, proibisse tambm que

    fossem vendidas as obras de marceneiro pelas ruas.3

    Alguns estudos apontaram para a crescente importncia econmica da

    atividade artesanal no meio urbano como importante fator de suprimento do

    mercado interno. Tais atividades eram predominantemente controladas pelas

    corporaes de ofcios, que tinham inclusive um sistema de crdito organizado

    pelas irmandades.

    Em centros urbanos como o Rio de Janeiro era difcil estabelecer uma

    clara distino entre mercadores varejistas e os mestres artesos, porquetodos os artesos que tinham carta de exame e autorizao para o exerccio do

    ofcio poderiam obter licena para ter loja aberta na cidade. Ali vendiam seus

    produtos que, freqentemente, eram fabricados em oficinas que funcionavam

    na prpria loja. Como foi demonstrado pelos dados do almanaque da cidade

    do Rio de Janeiro, havia uma enorme variedade de lojas artesanais no Rio de

    Janeiro, sendo a maior parte delas pertencente ao ofcio de sapateiro; para o

    ano de 1794 foram identificadas 111 somente deste ofcio, seguidas por 90

    lojas de alfaiates. Esses dados mostram um enorme crescimento das lojas

    existentes na cidade, visto que a relao dos oficiais examinados com lojas

    abertas na cidade indicou, para o ano de 1792, a existncia de 103 lojas,

    sendo 28 de sapateiros, 16 de ourives e 12 de alfaiates.4 Assim, as relaes e

    os interesses de comerciantes e de mestres muitas vezes entrelaavam-se e se

    confundiam, na medida em que distintas posies sociais eram encontradas

    entre os diversos artesos da cidade.

    O processo de formao de uma corporao estava relacionado aos

    vnculos profissionais estabelecidos entre o arteso-mestre e com o processo

    de ensino e aprendizagem, onde era garantido o desempenho do aprendizado

    no interior de uma oficina. Por outro lado, esse processo se manteve atravs

    dos elos religiosos estabelecidos com uma irmandade leiga - especialmente

    3 (1893) 46-2-22,Marceneiros e Carpinteiros, 1813, AGCRJ, fls. 3-3v.4 7,4,4.Artes Mecnicas. Relao Geral de todos os Officiais examinados, que se acho trabalhando ao Publico com

    Logeas abertas dos differentes officios mecnicos existentes nesta Cidade, te ao principio do prezente anno de 1792,fls. 2-4v. BN, Seo de Manuscritos.

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    nas regies de tradio ibrica e nas suas possesses- que a tornava uma

    protetora do ofcio, cujo santo representante era padroeiro daqueles artesos e

    de sua arte. O entendimento a respeito do corpo de trabalhadores

    denominado corporao de ofcios na colnia portuguesa no pode ser feito

    com a ausncia de um desses elementos: a) o compromisso mestre-aprendiz;

    b) relaes entre o ofcio e a irmandade correspondente (Bandeira do Ofcio);

    c) o controle rgio sobre a respectiva irmandade, atravs da aprovao dos

    seus compromissos.

    A e x t i n o leg a l n a Con s t i t u io d e 1 8 2 4

    A extino legal das corporaes de ofcios na Constituio de 1824 foi

    caracterizada em alguns trabalhos acadmicos como uma indicao do carter

    liberal da Carta outorgada por D. Pedro I. De fato, o pensamento liberal na

    poca havia desencadeado a proibio das guildas de trabalhadores nas

    legislaes de pases como Inglaterra e Frana. Uma verdadeira perseguio

    s corporaes de ofcios se instalou nesses pases, especialmente aps a

    publicao da obra de Adam Smith Investigao sobre as causas da riqueza

    das naes, em 1776, que reunia o conjunto de crticas mais elaborado contra

    o modelo de trabalho e produo representado pelas corporaes de ofcios.

    Uma discusso chegou a se abrir no Brasil na Assemblia Constituinte de

    1823, que pretendia promulgar a primeira Carta Magna do Brasil. A polmica

    girou em torno do artigo 17 que propunha a extino das corporaes de

    ofcios do Brasil. A nica voz contrria foi a de Jos da Silva Lisboa, o futuro

    Visconde de Cairu que, contrariando os pressupostos liberais neste quesito,

    defendeu a manuteno dessas corporaes como meio de assegurar a

    educao para o trabalho, especialmente daqueles mais pobres. De acordo

    com o seu argumento, os anos de aprendizado no ofcio garantiam que os

    jovens tivessem uma formao para o trabalho e que, sem ela, eles estariam

    fadados preguia e ociosidade, alm de no terem formao para o

    trabalho. Segundo ele, as corporaes no causavam tantos males aqui como

    causaram as guildas portuguesas que integravam a Casa dos Vinte e Quatro

    em Lisboa.

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    As cen so d os n eg oc i a n t e s e o f im d as c o r p o r aes d e o fc i o s

    A partir do sculo XIX, com a ampliao da esfera da ao econmica e

    poltica dos negociantes do Rio de Janeiro, novas redes comearam a ser

    tecidas e disputadas. O movimento desse setor econmico teve decisiva

    influncia no mercado de crditos - ampliando uma ao que j parecia estar

    em crescimento desde fins do sculo XVII -, quando os mecanismos de

    financiamento passaram a se constituir como a base da acumulao da alta

    hierarquia mercantil. Neste sentido, a forte presena das irmandades no setor

    de crdito e de financiamento representaria, a partir de ento, um significativo

    empecilho a esse processo de acumulao, que se ampliava medida que

    aumentavam tambm as atividades mercantis na cidade. To logo

    ascenderam economicamente os setores mercantis nas atividades de crdito

    na Praa do Rio de Janeiro, eles entenderam o quo lucrativa e vantajosa era

    essa atividade, superando at mesmo os ganhos obtidos com a atividadeagrcola.

    No incio do sculo XIX, a partir dos incentivos dados pela Coroa, houve

    um crescimento no setor de investimentos em seguros, propiciando o

    surgimento de condies favorveis aos negcios. Esses investimentos

    realizados pelos negociantes s foram possveis em decorrncia das

    mudanas ocorridas na economia aps o estabelecimento da famlia real no

    Brasil, uma vez que a riqueza dos grandes homens de negcios antes

    dirigida ao fisco lusitano comeou a ser aplicada na colnia. Com a chegada

    da Corte e a fixao da Coroa no Rio de Janeiro, houve uma poltica de

    incentivos fiscais praticada nas atividades produtivas e mercantis, garantindo-

    se maior estabilidade, dado que a maioria dos negociantes de grosso trato do

    Rio de Janeiro, com a entrada do capital ingls investido no comrcio, voltou-

    se ainda mais para o exerccio de outras atividades.

    Apesar da existncia e relativo desenvolvimento das atividades

    mecnicas nos primeiros sculos de colonizao mantidas especialmente em

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    instituies religiosas, onde se colaborava para o ensino e tambm para a

    produo de artigos para a manuteno institucional apenas com o acelerado

    processo de diversificao das atividades urbanas e maior complexidade da

    estrutura social, as artes mecnicas ganharam impulso e adquiriram maior

    importncia, surgindo novas linhas de produo de exportao, com estmulo

    produo interna, que adquiria uma dinmica prpria. Seguindo a trilha

    deixada pelos historiadores que mostraram um processo de acumulao e de

    fixao de comerciantes e negociantes portugueses na colnia mesmo antes

    da transferncia da Corte portuguesa, em 1808 podemos constatar que j

    existia uma estreita rede de relaes comerciais internamente e uma crescente

    dinamizao do comrcio, garantida, em grande parte, pela produo

    artesanal.

    No entanto, a autonomia dessas atividades foi possibilitada

    mediante o vnculo que estabeleceram com as irmandades leigas. Lembrando

    que elas representavam na colnia a principal mediao entre a sociedade e a

    Coroa, importante sublinhar que elas viabilizaram a sobrevivncia dos

    diferentes ofcios e dos oficiais mecnicos, atuando nas mais diversas esferas

    da produo artesanal nas reas urbanas e criando uma rede de amparo e

    proteo aos artesos no aspecto scio-econmico.

    Nota-se que as irmandades garantiam no mbito local a

    possibilidade de reproduo econmica atravs do financiamento e crdito,

    num perodo em que o sistema financeiro no estava consolidado. Por outro

    lado, os fundos dessas irmandades eram formados principalmente pelos

    recursos garantidos pelos proprietrios ou comerciantes dessas regies.

    Verifica-se que a ao dos homens de negcios se apresentava de formaexpressiva na primeira metade do sculo XVIII, tendo se consolidado de forma

    cada vez mais contundente ao longo do setecentos. A chegada da famlia real e

    a conseqente aprovao de decretos e alvars de abertura do comrcio

    colonial e de privilgios fiscais para a Inglaterra, tornavam a atuao desses

    negociantes um elemento cada vez mais vivo para a movimentao econmica

    da colnia. O aprofundamento dos interesses mercantis a partir da instalao

    da Corte consolidou definitivamente a atuao desses setores mercantis junto

    s demais esferas da sociedade, pleiteando em defesa dos seus interesses

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    junto ao poder real e convencendo os demais setores a respeito de sua

    importncia social. Neste contexto, a criao do Banco do Brasil, a formao

    de companhias de seguros e a forte presena no mercado de crditos foram

    importantes elementos para dinamitar as estruturas arcaicas da sociedade,

    vinculadas aos emprstimos e financiamentos de pequenos artesos ligados

    aos ofcios, garantindo a proteo local sobre determinados setores

    profissionais. Os negociantes, aos poucos, precisavam retirar de cena os

    credores menores, a fim de que pudessem definitivamente exercer o

    completo controle sobre a economia.

    Uma vez que essas irmandades desempenhavam funes importantes

    na esfera econmica e medida que os interesses mercantis se sobrepunham

    aos interesses agrrios - no sentido da reproduo econmica e das

    possibilidades de acumulao -, as irmandades tornaram-se um empecilho ao

    desenvolvimento dos negcios e atividades mercantis. No caso das

    irmandades dos ofcios, onde se vinculavam tambm os interesses e

    privilgios econmicos ligados a determinada categoria profissional, os

    emprstimos se faziam mediante a regulamentao e normas estabelecidas

    pelo prprio compromisso, no qual a elas era designada a funo de ajudar osirmos em casos de necessidade, agindo como credora e seguradora dos

    profissionais. Portanto, ao crescimento da ao dos negociantes em seu

    processo de acumulao de capital econmico e poltico correspondeu o

    necessrio declnio da ao das irmandades nesses mesmos setores.

    Importava aos negociantes que fossem rompidos os elos de dependncia

    econmica com as instituies religiosas vrias delas propulsoras das

    atividades artesanais urbanas -, a fim de que se ampliasse o leque de

    possibilidades de atuao dos homens de negcios na esfera financeira.

    Na passagem do sculo XVIII para o XIX, uma nova correlao de

    foras se estabelecia no cenrio poltico e econmico, tornando a organizao

    do trabalho pela via das corporaes e bandeiras dos ofcios um processo

    arcaico e insustentvel. A representao poltica que se fez sentir com fora

    pelos setores dominantes ligados monarquia, que se fortaleceram junto

    com o processo de independncia do Brasil, abraava vrias demandas dos

    setores urbanos. Apresentava-se como a porta-voz ou representante de

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    setores que se organizavam com particularidades ligadas aos interesses locais

    e profissionais que se diluam num amplo leque de interesses mercantis

    representados pelos homens de negcios.

    Podemos inferir que o fim das corporaes no Brasil, legalmente

    estabelecido a partir de 1824, respondeu a duas demandas significativas do

    perodo: por um lado, o apagamento do domnio religioso sobre os ofcios

    mecnicos e das relaes econmicas que exerciam no meio urbano,

    especialmente sua funo credora; por outro lado, o esvaziamento do poder

    poltico do juiz do ofcio nas Cmaras Municipais como representante das

    corporaes, uma vez que novos interlocutores dos setores urbanos

    emergiam na esfera poltica. No entanto, a extino das corporaes

    enquanto unidades profissionais vinculadas s irmandades leigas no

    significou o fim das relaes entre mestrana e aprendizado no interior das

    oficinas. Ao contrrio: os mestres, os aprendizes e oficiais continuaram

    sendo largamente requisitados nas manufaturas e fbricas do Rio de Janeiro,

    pelo menos at a dcada de 1840.

    Desta forma, o sculo XIX caracterizou-se pelo declnio das funes

    scio-econmicas e polticas das irmandades leigas junto aos ofcios. As suas

    funes na esfera econmica foram eficientemente substitudas por corpos

    organizados e afinados para levar frente outro projeto poltico, que passava

    a englobar os interesses mercantis ligados dinamizao da indstria, na

    mais ampla acepo do termo na poca, referindo-se a todas as esferas da

    produo. Abria-se espao para as disputas internas dos setores dominantes,

    ligados terra, escravido e s atividades mercantis. Expressavam tambm

    as diferentes vises a respeito do desenvolvimento manufatureiro no Brasil.