CORPO E SINGULARIDADE NÃO BINÁRIA: UMA EXISTÊNCIA NÔMADE

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CORPO E SINGULARIDADE NÃO BINÁRIA: UMA EXISTÊNCIA NÔMADE Bárbara da Paz Ferraz Santos O corpo é onde a existência toma forma. É através dele que se dá a vida; é o meio pelo qual o ser abraça o mundo. Ele é a própria existência e dá ao ser o poder perceptivo através dos sentidos do tato, visão, audição, olfato e paladar; portanto “o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída” (LE BRETON p.7, 2007). O ser experimenta o mundo através do corpo e, através de sua existência individual, traduz para si seus gostos, preferências, desejos, significados etc. Porém, a existência sempre se dá em um determinado tempo e espaço, sendo então, este corpo, submetido às influências externas, de normatizações e biopotência, deste espaço social e cultural no qual está inserido. Desta maneira, a expressão corporal é moldada pelo meio que participa, contendo em sua manifestação uma significação aos olhos dos parceiros. Então, de acordo com David Le Breton “não há nada natural no gesto ou na sensação” (p.9, 2007). Para uma aceitação, o corpo deve seguir às normatizações, em geral binárias, fruto de uma ficção historicamente formada que mapeia a realidade corporal e social de cada uma das mais diversas sociedades, sofrendo o risco de consequências desagradáveis em uma não conformidade com aquilo que foi pré-estabelecido. Um exemplo evidente de binarismo é a questão do gênero, que agrupa os seres em uma dualidade existencial entre homens e mulheres, decididos no momento de seu nascimento, baseado em uma análise puramente biológica, atribuído conforme seu aparelho reprodutor. Sendo assim, a pessoa deve seguir códigos de vestimenta, comportamentos, sentimentos, devires, práticas sexuais, entre outros, de acordo com o que é decidido como coerente para o gênero a que lhe foi determinado. Ainda de acordo com David Le Breton “as qualidades morais e físicas atribuídas ao homem ou à mulher não são inerentes a atributos corporais, mas são inerentes à

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Bárbara da Paz aborda a corporalidade humana, e afirma se tratar de uma teia complexa, com múltiplas opções de subjetivação, que transborda às definições binárias, que são frutos de uma ficção historicamente construída.

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CORPO E SINGULARIDADE NÃO BINÁRIA: UMA EXISTÊNCIA NÔMADE

Bárbara da Paz Ferraz Santos

O corpo é onde a existência toma forma. É através dele que se dá a vida; é o meio pelo

qual o ser abraça o mundo. Ele é a própria existência e dá ao ser o poder perceptivo

através dos sentidos do tato, visão, audição, olfato e paladar; portanto “o corpo é o

vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída” (LE

BRETON p.7, 2007).

O ser experimenta o mundo através do corpo e, através de sua existência individual,

traduz para si seus gostos, preferências, desejos, significados etc. Porém, a existência

sempre se dá em um determinado tempo e espaço, sendo então, este corpo,

submetido às influências externas, de normatizações e biopotência, deste espaço

social e cultural no qual está inserido.

Desta maneira, a expressão corporal é moldada pelo meio que participa, contendo em

sua manifestação uma significação aos olhos dos parceiros. Então, de acordo com

David Le Breton “não há nada natural no gesto ou na sensação” (p.9, 2007).

Para uma aceitação, o corpo deve seguir às normatizações, em geral binárias, fruto de

uma ficção historicamente formada que mapeia a realidade corporal e social de cada

uma das mais diversas sociedades, sofrendo o risco de consequências desagradáveis

em uma não conformidade com aquilo que foi pré-estabelecido.

Um exemplo evidente de binarismo é a questão do gênero, que agrupa os seres em

uma dualidade existencial entre homens e mulheres, decididos no momento de seu

nascimento, baseado em uma análise puramente biológica, atribuído conforme seu

aparelho reprodutor. Sendo assim, a pessoa deve seguir códigos de vestimenta,

comportamentos, sentimentos, devires, práticas sexuais, entre outros, de acordo com

o que é decidido como coerente para o gênero a que lhe foi determinado.

Ainda de acordo com David Le Breton “as qualidades morais e físicas atribuídas ao

homem ou à mulher não são inerentes a atributos corporais, mas são inerentes à

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significação social que lhes damos e às normas de comportamento implicadas” (p.68,

2007).

Contudo, a expectativa comportamental de um determinado gênero vem a frustrar

àqueles cujos desejos e práticas fujam ao que é pré-estabelecido e então lhes causam

consequências danosas como o preconceito, exclusão social e a não representação

política.

Há aquelas pessoas que se posicionam diante do mundo, assumindo com ousadia sua

singularidade, enfrentando as ações normatizadoras e violentas, quando se colocam

em oposição a este sistema de verdades ditas absolutas que prega uma cristalização

identitária binária e heterossexual.

Esse movimento de resistência ao biopoder é de uma subjetivação nômade, ou seja,

que não há um território estabelecido, mas sim transita entre os territórios

transformando-os, em uma constante desterritorialização e reterritorialização dos

espaços. Isto porque sua insubordinação é uma potência desestabilizante que, por

mais incômoda que seja, terá de ser levada em consideração, já que, mesmo que às

avessas das expectativas sociais, é vida, existe e está presente, pulsante, quer se

queira quer não.

Usando o mesmo exemplo de Peter Pál Pelbart, esses sujeitos são como os nômades

do Império Chinês, que sofreram uma tentativa de serem barrados através da

construção de uma grande muralha. Porém, por ser um empreendimento tão grande e

construído por partes, acarretou grandes lacunas; era uma obra descontínua.

Eis então que, apesar de todos os esforços mantidos contra eles, lá estavam os

nômades, “instalados no coração da capital enquanto o imperador todo poderoso é

um prisioneiro em seu próprio palácio” (PELBART p.1, 2006).

O efeito deste movimento de autoafirmação consegue afetar os sujeitos que estão em

seu entorno em um fluxo que carrega “cada um desses corpos para outros lugares,

inéditos *...+” (ROLNIK p.57, 2011).

O investimento dos desejos desses grupos que estão às margens das normas pré-

estabelecidas acaba por tornar-se o agente de atualização das práticas e discursos por

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eles questionados, ou seja, atualizando a sua própria sociedade. Desta forma, Wiliam

Siqueira Peres afirma que:

Os deslocamentos nômades designam um estilo criativo de transformação,

como metáforas performativas que permitem novos encontros e conexões que

ampliam os universos de referências sobre o humano, suas experimentações e

a aquisição de novos conhecimentos e práticas existenciais – novas

cartografias existenciais (p.543, 2012).

Através de uma observação sensível ao fluxo desses seres nômades, é possível traçar a

cartografia de seus desejos, capaz de promover o direito a uma singularidade não

binária e heterossexual, fundamental para que as mais diversas subjetivações ganhem

o direito da escolha de seu próprio gênero, da autonomia sobre seus sentimentos,

comportamentos, devires e suas práticas sexuais.

Portanto, é inegável que a corporalidade humana é uma teia complexa, rizomática,

com múltiplas opções de subjetivação. É então imprescindível dar espaço às mais

diversas singularidades, com o risco de amputar uma vida, condenar toda uma

existência à violenta e absurda exclusão social, simplesmente pelo fato deste, então,

ser o que se é.

Referências

LE BRETON, David. A sociologia do corpo. 2ª edição – tradução de Sonia M. S. Fuhrmann – Petrópolis, RJ

– Vozes, 2007

PELBART, Peter Pál. Exclusão e biopotência no coração do Império. http://www.cedest.info/Peter.pdf.

2006

ROLNIK, Sueli. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre. RS:

Editora Sulina, 2011.

SIQUEIRA PERES, Wiliam. Travestilidades nômades: a explosão dos binarismos e a emergência

queering. Revista Estudos Feministas, vol. 20, núm. 2, maio-agosto, 2012, ps. 539-547 – Universidade

Federal de Santa Catarina – Santa Catarina, Brasil