Coronel Nazareth Cerqueira Um Exemplo de Ascensão Negra Na Polícia Militar Do Rio de Janeiro

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Coronel Nazareth Cerqueira: um exemplo de ascens ão negra na Polícia Militar do Rio de Janeiro Carlos Nobre Universidade Candido Mendes – UCAM PUC-Rio Introdução Esta comunicação é um dos desdobramentos da pesquisa que estamos realizando no Centro de Estudos Afro-Asiáticos - CEAA, da Universidade Candido Mendes- UCAM, intitulada “O negro na Polícia Militar, relações raciais e ascensão profissional numa das principais empregadoras do Estado”, financiada pela Fundação Ford/Faperj, onde estamos estudando a inserção de praças e oficiais negros da corporação no mercado de trabalho da segurança pública e suas relações mais estreitas com a comunidade militar e a sociedade civil. As primeiras entrevistas com praças e oficiais do 19 o BPM, de Copacabana, 12 o .BPM, em Niterói e Bptur - Batalhão de Policiamento Turístico, de Botafogo, apontaram para diversas direções raciais-estratégicas, que ainda estão sendo analisadas por nós como indicadores dos primeiros passos da pesquisa. Uma delas foi a importância que os oficiais negros de diversas patentes deram a personalidade e ao trabalho do coronel negro Carlos Magno Nazareth Cerqueira, assassinado há um ano, no hall de um prédio, no centro do Rio, onde ficava o Instituto Carioca de Criminologia -ICC, uma ONG dirigida pelo ex-governador Nilo Batista. Nesta organização civil, Nazareth Cerqueira cooordenava a coleção de livros “Polícia Amanhã”, composta por 12 volumes, sendo três deles editados. Nas entrevistas preliminares, os oficiais não relutaram em dividir a PM antes e depois de Nazareth Cerqueira. Ou seja, para eles, as duas gestões de comando do coronel negro na corporação foram uma espécie de corte epistemológico nos termos adotados por Bachelard (1). Isto porque consideram que o ex-comandante da PM modernizou a instituição, tornando-a, por conseguinte, um exemplo de uma nova polícia, completamente distinta da instituição ligada à ideologia de segurança nacional da época da ditadura militar. Mais à frente, vamos nos deter nas principais mudanças promovidas por Nazareth Cerqueira no âmbito técnico, operacional e institucional que transformaram a forma de atuar da PM. Neste contexto, a visibilidade de um comandante negro da PM por oito anos na mídia acabou também influenciando o ingresso de muitos jovens negros na Academia Dom João VI, unidade da corporação que forma os oficiais. O comandante negro

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Racismo na instituição

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Coronel Nazareth Cerqueira: um exemplo de ascensão negra na Polícia Militardo Rio de Janeiro

Carlos Nobre

Universidade Candido Mendes – UCAMPUC-Rio

Introdução

Esta comunicação é um dos desdobramentos da pesquisa que estamos realizando no Centrode Estudos Afro-Asiáticos - CEAA, da Universidade Candido Mendes- UCAM, intitulada“O negro na Polícia Militar, relações raciais e ascensão profissional numa das principaisempregadoras do Estado”, financiada pela Fundação Ford/Faperj, onde estamos estudandoa inserção de praças e oficiais negros da corporação no mercado de trabalho da segurançapública e suas relações mais estreitas com a comunidade militar e a sociedade civil.

As primeiras entrevistas com praças e oficiais do 19oBPM, de Copacabana, 12o.BPM, emNiterói e Bptur - Batalhão de Policiamento Turístico, de Botafogo, apontaram para diversasdireções raciais-estratégicas, que ainda estão sendo analisadas por nós como indicadoresdos primeiros passos da pesquisa.

Uma delas foi a importância que os oficiais negros de diversas patentes deram apersonalidade e ao trabalho do coronel negro Carlos Magno Nazareth Cerqueira,assassinado há um ano, no hall de um prédio, no centro do Rio, onde ficava o InstitutoCarioca de Criminologia -ICC, uma ONG dirigida pelo ex-governador Nilo Batista. Nestaorganização civil, Nazareth Cerqueira cooordenava a coleção de livros “Polícia Amanhã”,composta por 12 volumes, sendo três deles editados.

Nas entrevistas preliminares, os oficiais não relutaram em dividir a PM antes e depois deNazareth Cerqueira. Ou seja, para eles, as duas gestões de comando do coronel negro nacorporação foram uma espécie de corte epistemológico nos termos adotados por Bachelard(1). Isto porque consideram que o ex-comandante da PM modernizou a instituição,tornando-a, por conseguinte, um exemplo de uma nova polícia, completamente distinta dainstituição ligada à ideologia de segurança nacional da época da ditadura militar.

Mais à frente, vamos nos deter nas principais mudanças promovidas por NazarethCerqueira no âmbito técnico, operacional e institucional que transformaram a forma deatuar da PM. Neste contexto, a visibilidade de um comandante negro da PM por oito anosna mídia acabou também influenciando o ingresso de muitos jovens negros na AcademiaDom João VI, unidade da corporação que forma os oficiais.

O comandante negro

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O coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira ingressou na Polícia Militar em 1954 e nelapermaneceu por quase 40 anos, sendo duas vezes comandante-geral da corporação, de 18de fevereiro de 1983 a 15 de março de 1987, e de 15 de março de 1991 a 01 de janeiro de1995. Segundo Sérgio da Cruz, ex-comandante da PM do governo Anthony Garotinho, ooficial negro exerceu como aspirante a diversas funções e recebeu vários elogios dossuperiores. Este talento profissional iria mais à frente tornar-se uma marca do trabalhoNazareth Cerqueira. Cruz conta que os primeiros chefes de Nazareth Cerqueira já anteviamque ele, num futuro próximo, poderia se tornar um chefe exemplar. Em sua carreira, alémde duas vezes comandante-geral da corporação, Nazareth Cerqueira comandou o

4o.Batalhão de Polícia Militar, em São Cristóvão, o 19o. BPM, em Copacabana. Ainda foiAjudante Geral, Diretor-Geral de Ensino, Subchefe do Estado-Maior e chefe do Estado-Maior da PM.

Era formado em Psicologia e Filosofia, tendo ainda cursos em Técnica de Ensino,Psicotécnica Militar e fez estágio na Gendarmerie francesa. Serviu na antiga Escola deFormação de Oficiais e no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Oficiais eAperfeiçoamento de Sargentos. Segundo Cruz, o ex-comandante-geral da PM foi umimportante ideólogo militar, que se batia pela novidade no ensino:

“Sempre esteve voltado para a área de ensino. Concebeu e implementou ocurrículo aberto nos cursos da Escola Superior de Polícia Militar eAperfeiçoamento de Oficiais que não poderiam ficar amarrados a velhos eultrapassados modelos. (...) para a Academia de Polícia Militar Dom JoãoVI, idealizou um curso voltado para a formação de profissionais desegurança pública, combatendo tenazmente a grade curricular centradaapenas em matérias militares e na abordagem excessivamente jurídica-acadêmica, em detrimento de outras matérias de interesse profissional”. (2)

Em 18 de fevereiro de 1983, Nazareth Cerqueira assumia o comando-geral da PolíciaMilitar do Estado do Rio de Janeiro - PMERJ, nomeado Secretário de Polícia Militar pelogovernador Leonel Brizola. Era o início de uma trajetória profissional de sucesso e depolêmica numa organização policial bicentenária.

A primeira controvérsia aconteceu porque a sociedade brasileira se deparara com um oficialnegro no comando de uma organização encarregada de policiamento ostensivo nas ruas.

A presença de Nazareth Cerqueira como comandante-geral da PM se tornara uma novidade até certo pontoconstrangedora, pois colocava em cena novos questionamentos sobre o papel da polícia e da marginalidadenum período ainda cheio de amarras, interdições e tensões vindas da regime militar, que ainda mantinha ocontrole da Polícia Militar em suas mãos(3).

A “surpresa” da sociedade civil em relação a Nazareth Cerqueira, em certo sentido, seoriginava pelo fato de as classes sociais em geral estarem acostumadas em visibilizaremnegros como policiais subalternos ou como criminosos. Neste sentido, a imagem deNazareth Cerqueira, apresentava novos elementos de discussão envolvendo algunsparâmetros, tais como: a violência da polícia contra os negros (4), prováveis modificações

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nas técnicas de ação policial e a discussão sobre o emprego dos direitos humanos comopolítica essencial para as ações policiais (5). As discussões sobre relações raciais, violênciae polícia ficaram mais visíveis – digamos assim – quando também o coronel negro Jorge daSilva, principal parceiro de Nazareth Cerqueira naquela ocasião, foi nomeado chefe doEstado-Maior da PM, uma espécie de segundo comandante da corporação. Silva expressavaas novas tendências, pois era defensor dos Direitos Humanos e estudava polícia e relaçõesraciais, tendo sido premiado com uma monografia sobre a questão racial pela OAB (6).

A “surpresa” atingiu a tropa, pois parte dos praças e oficiais não imaginaram que ocomandante-geral da PM do novo governo fosse negro. Até aquela data, nunca um oficialnegro comandara a mais antiga instituição policial, criada por Dom João VI, em 1809, como nome de Divisão Militar da Guarda Real de Polícia. Mesmo tendo tido um curriculumimpecável na carreira (7), naquela conjuntura, era quase que inimaginável dentro daestrutura de poder das organizações militares que um oficial negro pudesse comandá-la.Havia, segundo os oficiais negros, reprodução da discriminação racial na visão de mundode alguns setores da corporação. Um major negro ouvido nesta pesquisa sintetiza o impactoque estes setores da corporação tiveram quando Nazareth Cerqueira se tornou comandante-geral da Polícia Militar:

“Quando Nazareth Cerqueira assumiu o comando da Polícia Militar, noprimeiro governo Leonel Brizola, houve reação. Lá embaixo, nos recônditosmais distantes da tropa, comentava-se assim: porra, um crioulocomandando, isso não vai dar certo. Como pelo fato dele ser negro, a PMestaria fadada ao insucesso por não ter um comandante branco. Eu lembroque havia pessoas que diziam assim: olha, pode acreditar : se não fizer naentrada, vai fazer na saída. Quando o coronel Jorge da Silva assumiu oEstado-Maior, eles comentaram: porra, agora é dose dupla. (...) então, eraum comandante negro que nunca tinha havido na história da corporação.Não era como hoje, com muitos oficiais negros. (8)

“Houve rejeições pela presença de Nazareth Cerqueira no comando, mas depois elas setornaram quase nulas diante do trabalho que ele realizou na tropa” (Depoimento de um coronel negro). (9)

Essas tensões raciais internas nunca se tornaram públicas, mas demonstram que a ascensãode negros em setores estratégicos da vida pública brasileira sempre foi pontuada porrelações conflituosas quando se disputa poder, status, prestígio e bens econômicos (10). Nocaso de Nazareth Cerqueira, no entanto, havia oficiais brancos que o tinham como umgrande policial. Estes oficiais se empenharam para por em prática as novas idéias desegurança pública trazidas pelo primeiro comandante negro da corporação, que era filiado aum partido trabalhista, que chegava ao poder no redemoinho da luta pela redemocratizaçãodo país.

Ação de experimentação

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Chamamos, aqui, de “ação de experimentação”, o trabalho desenvolvido por NazarethCerqueira à frente da Polícia Militar na sua primeira gestão, de 1983/1986. Este conceitoimplica dizer que o oficial negro não aprofundou completamente as reformas que pensavaprocessar na instituição, pois ainda se defrontava com uma conjuntura completamenteadversa em relação à modernização do aparelho policial.

Neste sentido, poderíamos acrescentar que o aparelho policial, nos primeiros quatros anos da gestão deNazareth Cerqueira, ainda estava voltado para a repressão direta, usando a Doutrina de Segurança Nacionalcomo filosofia de trabalho e operando nas ruas em termos “efetivamente militares, isto é, encarando oscriminosos como “inimigos internos”. Em certo sentido, naquela conjuntura, era ainda uma heresia setrabalhar no aparelho policial com conceitos dissociados da visão belicista como prevenção, policiamentocomunitário, informática e inteligência.

A ação de Nazareth Cerqueira neste primeiro período, de certo modo, voltou-se para ensaiaros primeiros passos de transformação que só iriam se concretizar no segundo comando, de1991 a 1994, quando, efetivamente, diríamos, que o comandante da corporação resgatou asidéias, propostas e ações do primeiro comando, para torná-las mais concretas no novoperíodo, e enfrentou, inclusive, o poder da ideologia de segurança nacional das ForçasArmadas para impor suas novas idéias.

A ação de experimentação – que implica também uma certa cautela na condução detentativas de mudanças em setores profundamente hostis – era necessária naquelemomento. Isto porque o país passava por um momento de tensões políticas expressas emcerceamento de liberdades, caça de líderes comunistas, lutas sindicais e resistência dealguns setores militares ao processo de redemocratização do país chamado de “abertura”.

Nazareth Cerqueira estava liderando uma instituição de grande impacto político-estratégicopara a governabilidade do poder executivo, que se proclamava socialista, e portanto, eraalvo do controle da corporação pelos generais do Exército.(11)

A sociedade civil ainda questionava a presença do presidente-general João Batista deOliveira Figueiredo (1979-1984) no Palácio do Planalto – e a luta pela cidadania se tornaraproblema de segurança pública, pois constantemente a polícia tinha que intervir nas ruaspara acabar com as manifestações políticas, refluir a onda grevista e reprimir asreivindicações acentuadas dos movimentos sociais feminino, negro, periferia e deassociações de moradores. Estas, por sua vez, redescobriram outra vez a importância desociedade civil como atriz das transformações políticas. No entanto, a luta que maismobilizou a sociedade civil contra o establishment foi a campanha para eleições diretaspara presidente da República, chamada de Diretas Já, que produziu centenas de comíciospelo país, para que o Congresso Nacional e o presidente João Batista Figueiredodecretassem o retorno da legalidade eleitoral à nação.

Apesar deste quadro de tensões permanentes entre governo e sociedade civil, osmovimentos sociais avançavam. Este foi o caso do Movimento Negro fluminense. Algunsdos seus quadros, por sua vez, assumiram cargos do primeiro escalão no governo LeonelBrizola e emplacavam teses contrárias ao regime – como a transformação de Zumbi dosPalmares como herói nacional e a derrubada do mito da democracia racial (12). Nestesentido, Nazareth Cerqueira assumia a PM também respaldado pela política governamental

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de abrir espaços na administração pública para os negros bem-sucedidos em suasprofissões, atendendo assim, às reivindicações da militância negra, que apoiou abertamentea campanha brizolista rumo ao Palácio Guanabara, em 1982. Na época, o PDT criou suaSecretaria Especial de Negros, tendo à frente Abdias do Nascimento, que compartilhou oexílio político com Leonel Brizola. (13)

No lado policial, Nazareth Cerqueira se defrontava ainda com um aparelho policial avessoàs propostas dos Direitos Humanos fazerem parte da técnica policial, como frisamos maisatrás. Também parte deste aparelho policial estava envolvida com corrupção e grupos deextermínios, principalmente na Baixada Fluminense (14).

Neste contexto, Nazareth Cerqueira procurou tornar a PM permeável a participação (15) dasociedade civil em seus destinos e nas políticas de segurança.Uma das medidas que causou grande impacto na comunidade negra foi a eliminação debatidas desnecessárias nas ruas e morros do Rio de Janeiro. O negro, por exemplo, deixoude ser suspeito temporariamente para os policiais, que tinham que ter novos critérios paraabordar suspeitos nas ruas. Foram retrabalhados nas diretrizes de segurança conceitosmilitares empregados pela PM como “inimigo interno”, que, em geral, era empregadocontra os favelados, objetos das batidas. Através de seminários sobre violência e relaçõesraciais, Nazareth Cerqueira introduziu os primeiros estudos sobre a questão da violênciapolicial contra a comunidade negra, trazendo militantes para palestras. Além disso,procurou sistematizar algumas propostas, em estudos internos da corporação, que maistarde se tornaram elementos substanciais de ação para a nova polícia que a sociedadeexigia. Vejamos, por exemplo, algumas idéias de Nazareth Cerqueira, no primeirocomando, que mostram os primeiros ensaios de experimentação e mudança na corporação.Explica Cerqueira:

Prevenção – “A ação dissuasória do policiamento é uma medida preventiva em sentidoestrito, caracterizada pela simples presença do policial na manutenção da ordem pública”.

Fenômeno do crime – “Insistir na tese de que o aumento da criminalidade é função daineficiência da polícia é uma visão muita estreita do assunto. O crime é um fenômenosócio-político como observa Lopes-Rey, e como tal inerente a qualquer sociedade”

Repressão – “A repressão deve ser feita observando-se os limites impostos pela lei e semviolar os direitos humanos”.

Participação de todos – “Segurança não é só repressão e não é problema apenas dapolícia. É preciso que a questão da segurança seja discutida e assumida como tarefa eresponsabilidade de todos, do Estado e da população”.

Privilégios – “Que se evitem solicitações de policiamentos privilegiados para resolverapenas problemas específicos dos interessados, o quê sempre provoca prejuízos àcoletividade”. (16)

Nestas observações de Nazareth Cerqueira – há 15 anos – podemos perceber que os ensaiosde políticas de segurança pública buscavam atingir alvos específicos, tais como o respeito

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aos direitos humanos pelos policiais, a utilização da prevenção no combate ao crime, aparticipação da sociedade civil nos políticas de segurança da corporação e combate aosprivilégios de policiamentos específicos para determinados classes e bairros (17). Estesensaios foram feitos em cima da navalha, pois qualquer erro estratégico na condução danova política de segurança implicava no reaparecimento ao proscênio dos oficiais de linhadura. Estes poderiam, novamente, pregar pelo uso da força contra os criminosos de ummodo geral. Isto implicaria operações e escaramuças nas favelas contra o narcotráfico,revistas humilhantes a negros nas ruas, estímulo indireto à atuação de grupos deextermínios, debates acalorados sobre a pena de morte e a classe média em estado de pavordiante do crescimento da chamada violência urbana.

Ação de transformação

Quando Moreira Franco, ex-prefeito de Niterói, venceu as eleições para governador, em1986, prometendo acabar com a violência em seis meses, o Rio de Janeiro retornou – emcerto sentido – ao regime militar, onde a segurança pública significava o uso da força paraconter a criminalidade.

A experiência dos direitos humanos implantada pelo governo anterior havia fracassado, devido à resistênciados policiais e por causas das intervenções nesta política feita pelo próprio governador. Brizola passou partedo governo brigando com o governo federal e foi surpreendido pelo empobrecimento do país nos anos 80,que muitos estudiosos chamam de “década perdida”, e pelo surgimento da uma nova violência: o narcotráfico.(18)

Soares (1998: 105), afirma que o fracasso da segurança pública brizolista do primeirogoverno aconteceu em função das próprias contradições desta política e pelo envolvimentode policiais e autoridades brizolistas com o crime organizado ( 19).

Depois de quatro anos, no entanto, o pêndulo da segurança pública mudava de posição, poiso próprio Moreira Franco também fracassara na política de segurança pública: o uso daforça e da máquina repressiva para conter a criminalidade acabara também envolvendopoliciais e autoridades moreiristas com o crime organizado. Foi, neste governo, porexemplo, que as ONGs (Organizações não-Governamentais) de defesa da criança e doadolescente mais se fortaleceram por causa das denúncias do extermínio de menores e dasinvasões de favelas para combater o narcotráfico ( 20). No final do seu governo, MoreiraFranco se despede melancolicamente dos seus eleitores, recebendo um grupo de chefes dacontravenção no Palácio Guanabara.

Novamente, em 1991, o governo estadual voltava para as mãos de Leonel Brizola, quetinha sido acusado de ter permitido o crescimento do comércio ambulante, das invasões deterra, dos saques aos supermercados e das relações espúrias de autoridades e policiais como jogo do bicho.

Para comandar a PM, Brizola chamou novamente Nazareth Cerqueira, que estava nareserva da corporação, e que julgara que seu ciclo como destacado oficial negro haviaterminado. Nazareth Cerqueira pensava em se dedicar mais as atividades intelectuais.

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É, neste momento, em nossa visão, que Nazareth Cerqueira vai concretizar o quechamamos de “ação de transformação”, ou seja, a instalação concreta de políticas desegurança pública diferenciadas e mais qualificadas com a marca dos direitos humanos. Éneste momento que a admiração de diversas correntes na PM por Nazareth Cerqueirasecristaliza. É também neste comando que ele rompe definitivamente com a ideologia militarde segurança nacional e propõe uma polícia cidadã, sem os estereótipos tradicionais dacorporação. (21)

De 1991 a 1994, o ex-comandante da PM entroniza um conceito que vai perdurar einfluenciar mais à frente todos os projetos de segurança pública no Estado: a polícia é umorganismo prestador de serviços qualificados para todas classes e não uma instituiçãomonolítica voltada para a segurança do Estado. Ou seja, na visão cerqueirista, a políciaprecisa de reformas para atender novas demandas da sociedade civil. Ele, enxergava, aqui,o avanço mais aprofundado dos movimentos sociais que queriam exercer de fato os direitosbásicos de cidadania como ter acesso à proteção, ao consumo, andar por qualquer lugarsem ser perturbado, ter direito a manifestar seus direitos, fazer greves e protestos.

A ação de transformação, na verdade, ocorreu antes dele assumir o segundo comando.Nazareth Cerqueira e seus aliados ficaram quatro anos observando as tentativas frustradasde combater o aumento da criminalidade no governo Moreira Franco, que insistia noemprego da força e de esporádicas iniciativas de sucesso na ação contra o crime por partede alguns policiais. É claro que as razões para o fracasso do combate a criminalidadeenvolveram outros vetores que surpreenderam os policiais como o início da epidemia deseqüestros de empresários, que começou no último ano do governo Moreira Franco (1990)e continua desafiando a polícia até hoje. No entanto, os erros de estratégia da cúpula desegurança de Moreira Franco permitiram que Nazareth Cerqueira não os repetissem mais àfrente, quando, novamente, o Executivo voltara para as mãos de Brizola.

Um dos sintomas que as coisas começaria a tomar novos rumos pode ser expressa por duasfrases, ditas pelo coronel Celso Guimarães de Oliveira, chefe da Assessoria Técnica deAssuntos Especiais (Atae) na segunda gestão de Nazareth Cerqueira no comando geral.Segundo Guimarães,

“Acabou-se o tempo de burrice. Queremos hoje soldados que pensem a criminalidade comoum fenômeno global, respeitando os direitos do cidadão. Por outro lado, não nos interessauma associação de moradores frágil. Queremos uma entidade forte e questionativa”.“Quando a polícia chegava no morro, a impressão que se tinha era a de que ela vinha commandato dos moradores do asfalto. Ela não passava a imagem que era defensora de todos.Somos pagos e temos que defender todos. Enquanto a PM não dispuser de uma visãosociológica sobre a criminalidade, sua ação será nula”. (22)

Esta fala, de um colaborador íntimo do comandante-geral da PM, revelava que NazarethCerqueira buscava uma nova identidade para a corporação, trazendo novamente para atropa os direitos humanos como cartilha a ser consultada permanentemente pelos policiais.Quando o coronel Oliveira acentua o fato segundo o qual a PM subia o morro com omandato dos moradores do asfalto, retomou novamente a fala brizolista do primeirogoverno para criticar um estereótipo permanente de segurança pública fluminense, ou seja,

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na visão das alguns setores elitizados do Rio, favelas e morros são sempre locais decriminosos e, portanto, objetos permanentes de repressão.

Uma linha de pensamento antiga (mas difusa no primeiro governo) que, agora, seapresentava com mais evidência e determinação no discurso cerqueirista: os ricos nãopodem ter segurança privilegiada, pois todos os cidadãos são iguais perante à lei e merecemter o mesmo atendimento. No primeiro comando, Nazareth Cerqueira chamava atençãopara o privilégio, mas não batia frontalmente contra ele como aconteceu no segundocomando.

Este discurso de serviços igualitários também não implicava conflitos de distribuição desegurança sob o conflito de classes. Isto porque, foi na segunda administração de NazarethCerqueira que se implantou o Policiamento Comunitário em Copacabana – uma técnica depoliciamento de interação entre moradores e polícia – de grande sucesso na comunidade atéhoje, através de convênio entre a PM e o Movimento Viva Rio, organismo de empresários eprofissionais liberais que lutam contra o crescimento da violência na cidade.

Nesta relação polícia/comunidade, cabe ainda lembrar como o ex-comandante da PM foipioneiro num método de ação policial capaz de quebrar por algum tempo com as tensõesproduzidas pelas guerras entre quadrilhas de traficantes: a ocupação das comunidades porum grupamento especial durante um certo período. Em 1991, quase com seis meses decomando, Nazareth Cerqueira criou o Grupo Prático-Escola (Gape), responsável paraacabar com a função “pronto-socorro” da PM, isto é, os traficantes guerreavam entre si e apolícia vinha correndo para acabar com a guerra. Depois, descia o morro e voltavanovamente. A técnica de ocupação por tempo indeterminado – empregado por NazarethCerqueira – foi mantida/empregada nos governos Marcello Alencar (1995-1998) e peloatual governador Anthony Garotinho.

A partir de agora, passamos a elencar algumas medidas tomadas pelo Nazareth Cerqueira eseus colaboradores que tiverem impacto no aparelho de segurança pública do Rio deJaneiro. Ousamos afirmar que as mudanças que estão sendo realizadas no aparelho policial– que teve também a participação do sociólogo Luiz Eduardo Soares – ex-coordenadorsetorial de Segurança e Direitos Humanos – não teriam sentido se eles não tivessem comoponto de partida as iniciativas de Nazareth Cerqueira e do ex-governador Nilo Batista, umcriminalista de renome, e de outros colaboradores dos governos passados. Acreditamos, porexemplo, que a conjuntura hoje propiciou o aprofundamento das mudanças. Hoje, diríamos,que a sociedade carioca quer e exige estas mudanças. No entanto, no segundo governoLeonel Brizola, elas já vinham sendo realizadas apesar ainda de a conjuntura ser hostil.Entre estas mudanças, citamos:

A) Policiamento ComunitárioNazareth Cerqueira enviou um grupo de oficiais para os Estados Unidos, Europa e Japãopara analisar o policiamento comunitário adotado nestes países. Após o retorno dos oficiais,o comandante da PM fez novos estudos e implementou o policiamento comunitárioexperimentalmente em Copacabana. Hoje, depois de sete anos, o policiamento comunitárioacabou se tornando parte da vida dos moradores do bairro. Esta técnica chegou a serestendida para os bairros de Botafogo e Leblon.

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B) Grupo de Vigilância nos Estádios A guerra entre as torcidas dos diversos clubes vinha provocando mortes e feridos dentro efora dos estádios. Nazareth Cerqueira designou um grupo de oficiais que estudaram ocomportamento das torcidas sob o posto de vista psicanalítico. Depois desses estudos,nasceu o grupamento que iria controlar o comportamento das torcidas, composto por 120policiais. Para montar o grupo, a PM montou um curso com os soldados cujos professoreseram especialistas em violências coletivas. Uma das atrações do curso era entender acabeça dos chefes de torcida. O coronel Oliveira (nota) lembrava que, antes do Gepe, a PMutilizava um batalhão inteiro para controlar as torcidas em dias de grandes jogos. Até hoje ogrupamento existe com a mesma filosofia.

C) Programa de Educação de Resistência contra as Drogas – ProerdEste programa se destinava a preparar jovens do Ensino Fundamental contra o ataque dostraficantes nas escolas. Para se tornarem professores do programa, os soldados erampreparados também em cursos com especialistas em drogas e psicologia de massa. Nasescolas, os policiais, uniformizados, ensinavam as crianças a resistirem às tentativas detraficantes. O Proerd atuou inicialmente em escolas públicas e depois foi estendido para asescolas privadas, e se tornou um programa de excelência da PM fluminense. No governoMarcello Alencar, o programa foi desativado e retornou no governo Anthony Garotinho.

D) Núcleo de Atendimento a Crianças e AdolescentesO trabalho com meninos e meninas de rua surgiu também em função das denúncias contrao extermínio de menores feitas pelas OGNs e porque a corporação precisava lidar com estefenômeno em função até do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente – promulgado em1990, pelo então presidente Fernando Collor. Pelo ECA, o poder público é a peçafundamental para lidar com as crianças de uma forma em geral. Nazareth Cerqueira, atravésdeste núcleo, queria por dentro da corporação uma das grandes questões sociais do Brasil.Até aquele momento, as relações que a PM tinha com os meninos de rua eram conflituosas.Portanto, o núcleo era uma novidade para a corporação, pois impunha uma nova forma delidar com os meninos de rua. Não se podia prender meninos de qualquer maneira, masatravés da legalidade da nova lei.

E) Grupamento de Policiamento TurísticoHoje, este grupamento virou Batalhão de Policiamento Turístico – Bptur. Na época, o entãocomandante da PM atendeu aos reclamos dos turistas e da rede hoteleira para umpoliciamento mais especializado em áreas turísticas da cidade. Devido a seu poder derepercussão nacional, o Rio de Janeiro é uma cidade onde eventos positivos ou negativostendem a construir uma opinião pública nacional. A morte de turistas estrangeiros emassaltos repercutia internacionalmente e, por isso, o policiamento em áreas turísticas passoua ser uma prioridade diferenciada na corporação.

F) Crime OrganizadoAs P-2 (Serviço Reservado), um setor que trabalha à paisana nos quartéis e fazlevantamentos criminais em sigilo, durante a ditadura militar tinham sido empregadas comolinha auxiliar dos serviços de informações das três Forças Armadas. Na segunda gestão deNazareth Cerqueira, essas unidades foram orientadas para investigarem o crime organizado

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e deixarem de lado a espionagem de lideranças comunitárias. Era uma tentativa docomandante da PM de retirar as influências da ideologia de segurança nacional da polícia eatender às necessidades da sociedade civil em relação ao controle da criminalidade.

G) Aprofundamento dos estudos de segurança públicaForam estimulados também estudos de segurança pública nas escolas da corporação,principalmente nos cursos de formação e aperfeiçoamento de oficiais. Nazareth Cerqueiratambém fez mudanças profundas nas grades curriculares, centradas em cadeiras jurídico-penais. Foram introduzidas cadeiras voltadas para entender os mecanismos dacriminalidade a partir da realidade antropológica da população brasileira. Em decorrênciadisto, as monografias de oficiais na Escola Superior de Polícia Militar – ESPM, tiveramuma radical mudança com o surgimento de teses sobre o narcotráfico, favelas, justiça,direitos humanos, meninos de rua e seus impactos para a segurança pública fluminense.

H) A questão racial como problema para a segurança públicaDiversas lideranças negras fluminenses – ligadas ou não ao Partido DemocráticoTrabalhista-PDT – passaram pelas escolas da PM divulgando os problemas dos negros coma polícia e as políticas de segurança pública. Segundo estas lideranças, os negros são maisabordados que os brancos nas ruas e as favelas sistematicamente eram alvos de operaçõespoliciais que provocavam a morte de moradores inocentes. Jovens praças e oficiais tiveramoportunidades de assistirem a aulas que comumente não participavam dos curriculares dasacademias militares. As versões das lideranças negras para a perseguição dos negros pelapolícia acabaram dando frutos. Diversos oficiais passaram a estudar as relações raciais natropa, e alguns acabaram publicando ensaios críticos sobre a atuação da PM em relação ascomunidades negras.

I) Literatura técnicaAntes de Nazareth Cerqueira, a PM praticamente não tinha uma bibliografia sobrecriminalidade e técnicas policiais. O militar criou a chamada a coleção “Biblioteca daPolícia Militar”, onde obras importantes de criminalistas e estudiosos de violência foramtraduzidas e publicadas. Em relação aos oficiais acadêmicos, Nazareth Cerqueira estimuloua produção de ensaios e da atividade intelectual como forma de aperfeiçoamento dospoliciais. O coronel Cruz – mais atrás – já houvera dito que Nazareth Cerqueira fora quempraticamente criara uma literatura técnica de qualidade para a corporação.

J) Unificação das duas políciasA gestão de Moreira Franco ensejara também nos colaboradores de Nazareth Cerqueirauma análise do sistema policial brasileiro, dividido em duas polícias antagônicas. Oprimeiro debate sobre a unificação das duas polícias surgiu com o lançamento, em 1990, dolivro “Controle da criminalidade e da segurança pública na nova ordem constitucional”, deJorge da Silva, que fora chefe do Estado-Maior de Nazareth Cerqueira, na primeiraadministração Leonel Brizola. Silva defendia sua proposta dando exemplos internacionaisde polícias unificadas eficientes. Na tese de Silva, já havia até o organograma da novapolícia. Outro estudo de outro colaborador de Nazareth Cerqueira – o coronel JoséBrandino de Mello, ex-chefe das Relações Públicas – se detém somente em analisar aimportância da unificação policial. Neste estudo – uma tese de Mestrado em Ciências

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Jurídicas, Brandino mostrava que a nova polícia deveria ser controlada pelo MinistérioPúblico como acontece em países das Américas e da Europa.

L) Estudos de corrupção e de criminalidadeA corrupção policial não acontece pelos baixos salários. Esta foi uma das teses maisdefendidas pelo Nazareth Cerqueira na tropa. Segundo ele, a corrupção é cultural e estáentranhada na forma como a sociedade se organiza para resolver seus conflitos maisíntimos e radicais. “Nazareth Cerqueira dizia o seguinte: afirmar que os baixos saláriosjustificam a corrupção é dizer que todo o pobre é tendente ao crime, é menosprezar ocolarinho branco”, observou um tenente-coronel negro, que, no segundo comando de N.Cerqueira, era capitão. Para alguns ideólogos da corporação, o policial já é corrupto antesde entrar na PM. Para entender com mais profundidade esta questão, Nazareth Cerqueiracriou um grupo especial de policiais que estudavam a corrupção na tropa. O primeiroestudo deste grupo chamado “Perfil dos policiais militares excluídos por desvio de condutaem 1991”, constatava que a maioria dos policiais excluídos por corrupção trabalhava embatalhões da Zona Sul. O estudo mostrava ainda que os policiais se corrompiam porquedesejavam ter o mesmo padrão de vida dos moradores da Zona Sul.

M) Um novo modelo de açãoEm 27 de novembro de 1991, o número 177 do Boletim do Comando da Polícia Militar,trazia um texto intrigante de Nazareth Cerqueira. Nele, o então comandante-geral da PMmostrava que a conjuntura internacional e as mudanças ocorridas no país não permitiamque a PM continuasse usando conceitos e formas operacionais herdadas da ditadura militar.Entre os conceitos que deveriam ser revistos constavam: as estruturas de comando, asformas operacionais, os referenciais teóricos para o trabalho da polícia, o recrutamento eseleção de quadros, a ética, os materiais usados, o relacionamento institucional, enfim, umasérie de propostas que iam de encontro ao que pensava a Inspetoria Geral de PolíciasMilitares (IGPM). “Além disso, e não só por isso, mas também pelos mandamentos daConstituição Federal de 1988, e da Estadual de 1989, há que fazer todo um questionamentodas crenças tradicionais relativas ao emprego da polícia em geral e, no caso da PolíciaMilitar, das crenças ligadas à doutrina de Segurança Nacional, em que o componenteideológico faz os policiais militares trabalharem (Segurança Pública) contra o inimigointerno, óbices, antagonismos e com o uso maximizado da força”. Ele completava esteboletim com este pensamento: “A tarefa de transformar e modernizar a PM não é um merodesejo do comandante, e sim uma imposição da sociedade”.

Conclusão

Desde 1983, Nazareth Cerqueira pensava numa polícia inteligente. Neste sentido, podemosafirmar, aqui, que as mudanças implementadas pelo ex-comandante da PM se tornaramponto de partida das mudanças que estão sendo feitas no aparelho policial fluminense pelogovernador Anthony Garotinho e pelo secretário estadual de Segurança Pública, JosiasQuintal. Vamos, aqui, resgatar a fala de ex-oficiais que trabalham com Nazareth Cerqueiraem relação a este propósito, o que demonstra que sua obra vai ainda ser citada ereferenciada por mais tempo na história da polícia fluminense.

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“Ele tinha na cabeça que a polícia é um serviço. Ele levantou a idéia depolícia-serviço em contraposição à idéia de polícia-força. (...) foi muitocombatido na época e teve a oportunidade de voltar para um segundocomando e formatar melhor seu projeto.(Tenente-Coronel).

“(...) no primeiro comando, ele estava começando um trabalhoprevencionista na corporação. Ele era visto como um brizolista e não comoum profissional de polícia. Mas, por que isso? Porque a visão do sistemapolicial era a visão que o sistema autoritário impôs. Ele foi o único nahistória da PM que modificou essa idéia de polícia do Estado e de políciada cidadania. (Major)

“Ele começou um discurso de prevenção quando todo o mundo estavavoltado para o combate, para o inimigo interno, para a matança dedelinqüentes indiscriminadamente, para a matança de pessoas que nãoestivessem com suas idéias de acordo com o regime (...) em 1983, elechegou, ainda com toda essa cultura autoritária incrustada, fez um bomdiscurso. Era um comandante negro que nunca tinha havido na história dacorporação” (Major)

“Acho que a ascensão de negros na PM começou a aparecer desde que ocoronel Nazareth Cerqueira começou assumiu o comando (...) é aquelenegócio, em cada profissão tem um que sobressai mais que outro, e comcerteza, em relação a parte intelectual, ele estava há mil anos-luz na frentede todo o mundo”. (Major)

Notas Bibliográficas:

1.Ver as obras de Gaston Bachelard, um dos mais importantes teóricos da metodologia científica.2. CRUZ, SÉRGIO DA. “Cel PM Cerqueira: o sonho de uma polícia cidadã”. In PM Noticiário. No.82.Outubro/Dezembro de 1999. Policia Militar dos Estado do Rio de Janeiro.3. Até hoje, o Exército controla as Polícias Militares através da Inspetoria das Polícias Militares (IGPM). O IGPM foicriado no período da Ditadura Militar, para que o regime mantivesse sob suas rédeas as Polícias Militares. O IGPMdetermina às polícias o tipo de armamento e o uniforme a ser utilizado. O Exército ainda impõe que seu ritual militar-administrativo faça parte da PM, dividida em batalhões, companhias, ranchos, ordem unida etc. Durante o regime militar,as Forças Armadas transformaram os Serviços Reservados (P-2) das PMs em unidades auxiliares dos Serviços deInformações das três armas. Neste sentido, a PM também era obrigada a espionar os movimentos sociais para identificarpotenciais “inimigos internos”. Uma visão mais aprofundada da participação das polícias civil e militar na repressãopolítica está em HUGGIN, MARTHA W. Polícia e Política: as relações Estados Unidos/América Latina. Cortez Editora,São Paulo: 1998.4. Em 1982, em plena eleições para o governo estadual, o Jornal do Brasil publicou uma reportagem mostrando umablitz da PM, numa favela da Zona Norte do Rio. Na primeira página, uma fotografia com negros presos pela PMamarrados por cordas no pescoço causou impacto na opinião pública pois a imagem brutal em nada diferia das famosasilustrações de Debret sobre a escravidão na antiga capital do Império. Leonel Brizola, um dos candidatos ao PalácioGuanabara, usou a reportagem durante a campanha para falar da importância dos direitos humanos. Dissera, na ocasião,que, se eleito, os negros não seriam mais humilhados pela polícia como demonstrava a fotografia. Na época, algunsanalistas políticos afirmaram que Brizola ganhou alguns pontos nas pesquisas por causa deste discurso. 5. Os direitos humanos foram usados com muita competência pela classe média brasileira durante a Ditadura Militarquando jovens universitários se tornaram integrantes de grupos guerrilheiros. Ao serem presos, eram torturados ou mortos.Assustada com a tortura de seus integrantes, a classe média condenava os militares usando os direitos humanos como

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bandeira. Em nossa opinião, foi dessa forma que os direitos humanos no Brasil tiveram sua politização mais conseqüente,pois sensibilizou importantes instituições da sociedade civil como as igrejas, os partidos, os sindicatos, Ordem dosAdvogados do Brasil, Associação Brasileira de Imprensa e outras. Nos anos 80, com o processo de redemocratização dasociedade brasileira, quem retoma o discurso dos direitos humanos são precisamente os favelados, operários e excluídosem geral que se queixavam dos arrochos salariais, da violência policial nas comunidades carentes e do uso da forçapolicial contra as manifestações por direitos humanos. 6. Em 1988, o coronel Jorge da Silva, um dos principais teóricos da PM, venceu um concurso da OAB sobre a questãojurídica no centenário da Abolição. Ao ceder o prêmio, a banca examinadora ficara surpresa, pois a obra vencedora foraescrita por um policial, que, na verdade, para evitar estereótipos, se inscrevera no concurso como advogado e não comooficial da PM.7. CRUZ, SÉRGIO DA. Obra citada.8. Depoimento prestado para nossa pesquisa.9. Idem, ibidem.10. Os oficiais negros costumam dizer que na PM é impossível um oficial branco ter mais chances, por causa dahierarquia e da disciplina que beneficiam a todos. Desse modo, um salário de um Major negro é o mesmo de um Majorbranco. Todos podem chegar no posto mais alto se não tiverem durante a carreira nada que desabone suas condutasenquanto policiais.11. Exceto no Rio de Janeiro e em São Paulo, em outros estados, os governadores recém eleitos – 1983 – mantiveramainda o modelo anterior de controle das organizações policiais pelas Forças Armadas quando foram nomeados generaispara as Secretarias de Segurança Pública. Na visão dos partidos conservadores – e até de alguns setores progressistas dasclasses médias brasileiras – a presença de um general comandando algum organismo impunha respeito, segurança ecredibilidade como se o controle da criminalidade fosse algo essencialmente “militar”. No caso do Rio de Janeiro, Brizolanão quis nada com militares, porque nunca quis repetir o modelo da Ditadura Militar que o deixou quase 15 anos fora doBrasil. Recentemente, após o fracasso do segundo governo Brizola/Nilo Batista, o governador Marcello Alencar (1995-1998), repetiu o modelo de outros estados nomeando para a chefia de segurança pública o general Nilton Cerqueira, quenão conseguiu conter o aumento dos índices de violência com a política de combate à criminalidade através da repressãoindiscriminada. 12. Estes foram os casos de Carlos Alberto Caó de Oliveira, que se tornou secretário de Trabalho e Habitação, e deEdialeda Nascimento, secretária de Assistência Social. Ainda assim, em outras secretarias, outros militantes negrosocuparam cargos de segundo escalão. No segundo governo Brizola, foi criado a Secretaria Estadual de Promoção e Defesa

das Populações Negras, comandada por Abdias do Nascimento. E, novamente, no governo Anthony Garotinho, foi criadaa Subsecretaria de Direitos Humanos, também dirigida por Nascimento. Esta subsecretaria foi extinta com a reforma queGarotinho fez no final de 1999, para enxugar a máquina administrativa.13. O PDT, no Rio de Janeiro, foi o partido que mais deu chances aos militantes negros. Já em 1983, o programa dopartido incluía o negro como objeto de políticas reformistas. Só mais tarde, o PT passou a compreender a importância daquestão racial quando criou alguns núcleos dedicados à questão do racismo e da ascensão de negros ao poder. 14. Para combater os grupos de extermínios – que atuavam, principalmente, na Baixada Fluminense – Brizola criou aComissão Especial, ligada diretamente ao seu gabinete, e com policiais especializados em desvendar homicídios contra aspopulações carentes. A Comissão Especial, no governo Moreira Franco (1987-1990), passou para o gabinete do secretáriode Polícia Civil. Depois se tornou apenas mais um órgão burocrático da polícia.15. Silva diz que a segurança pública é tão importante para a qualidade de vida que é um perigo deixá-la apenas aocontrole dos policiais. Ver SILVA, JORGE DA. Controle da criminalidade e da segurança pública na nova ordemconstitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1990.16. CERQUEIRA, CARLOS MAGNO NAZARETH. Por uma metodologia do estudo da criminalidade e da violência.Secretaria de Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, 1985.17. Durante o primeiro governo Brizola, a instalação de cabines em bairros da Zona Sul acabou se transformando naprincipal política de atendimento comunitário da PM. Mais à frente, Nazareth Cerqueira se auto-criticou ao notar que estapolítica só beneficiava determinados grupos de moradores. Jorge da Silva também problematizou a relação polícia/bairrosnobres. “Para não poucas pessoas das elites e das classes médias e altas os policiais seriam simplesmente os seusempregados para combater criminosos indeterminados e incertos (grifo do autor) escondidos nas favelas e na periferia.Há pessoas das elites que, embora não o externem explicitamente, é assim que pensam sobre o papel da polícia” . Obracitada (p.141). 18. Ver SOARES, FRANCISCA VERGÍNIO. Violência, direitos humanos e segurança: um olhar crítico dos governosBrizola e Moreira Franco. Tese de Doutorado. Departamento de Ciências Sociais. PUC- São Paulo: 1998. Segundoautora, a nova violência dos anos 80 seria uma combinação de vários fatores, tais como: a corporação(policial) que resistiaa tentativa de se criar uma polícia cidadã; os traficantes dominando as áreas carentes; a intensificação da corrupção depoliciais com o narcotráfico; os bicheiros invadindo o poder público através de políticos que recebiam propina e suborno.19. Soares (obra citada) diz que a política de segurança pública brizolista fracassou em função do próprio envolvimento deautoridades e policiais com o crime organizado, e pela desatenção com que tratou o crime organizado. Diz ela: “Ogoverno Brizola se notabilizou pela ambigüidade. Porque como entender sua predisposição em ouvir, principalmente apopulação excluída, sem atentar ao principal causador dos distúrbios violentos em seu habitat (grifo da autora), como onarcotráfico? O silêncio indica a superficialidade com que o problema da segurança foi abordado, embora ele tenha desde

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o início, exposto o que articularia direitos humanos ( grifo da autora) ao projeto de segurança (grifo da autora) (p.90).Mais à frente, a autora detalha mais este fracasso: “A via democrática dos direitos humanos, que fora adotada por essegoverno, diríamos, provocou um certo desencanto na burocracia militarista. O novo Contrato Social (grifo da autora), quetencionava deslocar o absolutismo militar (grifo da autora) encontrou sérias resistências. Não apenas no interior dacorporação, como também no interior da própria sociedade civil. O novo momento político que a sociedade brasileira

vivenciava, parecia não agradar aos defensores do regime militar, os quais recusavam abandonar o modelo da lógica daguerra”.(p.103).20. No governo Moreira Franco, dois relatórios da Anistia Internacional condenaram o extermínio de crianças eadolescentes e o crescimento dos índices de homicídios em todas as faixas etárias. Moreira também viu nascer, no seuúltimo ano no Palácio Guanabara, a chamada onda de seqüestros de empresários. O caso de maior repercussão foi oseqüestro do publicitário Roberto Medina, idealizador do evento Rock in Rio, em 1990. 21. Esse rompimento foi expresso através de diversas notas de instrução do comandante-geral para os chefes militaresonde se acentuava que a PM deveria deixar de lado todos as normatizações militares para se transformar numa empresapública prestadora de serviços. Nessas instruções, Nazareth Cerqueira também procurava situar os policiais nos contextosdas mudanças políticos-sociais pelas quais o mundo estava passando, como a queda do muro de Berlim e o processo daPerestroika na Rússia, com Gorbachov. 22. NOBRE, CARLOS. “PM muda técnica de combate ao crime”. O Dia, Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1991.

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