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Cooperação Solidária: A presença de estudantes da África

Lusófona no Brasil

Carlos Subuhana1 e Iadira Antonio Impanta2

Introdução, justificativa e síntese da bibliografia fundamental

O objeto de estudo do trabalho aqui apresentado é a presença de estudantes

oriundos de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa – PALOP, no Brasil (Rio de

Janeiro, São Paulo e Redenção/CE), com o objetivo de estudar uma experiência de

imigração temporária. A proposta tem sido fazer um mapeamento das trajetórias dessa

população que está a fazer seus estudos universitários, em nível de graduação ou pós-

graduação. Adicionalmente, temos investigado a experiência social e cultural desses

estudantes. Ao restringir o nosso universo de pesquisa não estamos querendo afirmar

que as questões que esses estudantes se colocarem sejam apenas inerentes a seu grupo,

ao contrário, elas também se fazem presentes em outros universos sociais, basicamente

em outras situações de deslocamentos estudantis, dinâmicas populacionais ou

migratórias, como as estudadas por Leandro (2004), Petrus (2001), Sayad (1977, 1998 e

1999), Subuhana (2005, 2008) entre outros.

Vale destacar que o estrangeiro que chega ao Brasil fica atrelado e/ou

subordinado aos parâmetros da Lei 6.815/80, ainda do período ditatorial, elaborada sob

a ótica da ideologia da "segurança nacional" (Cf. Zamberlam et al., 2009). Imigrantes

com entradas temporárias ou permanentes são cadastrados e registrados pelo SINCRE -

Sistema Nacional de Cadastros e Registros de Estrangeiros, segundo as modalidades

dos vistos concedidos.

1 Bacharel em Ciências Sociais (IFCS/UFRJ); Mestre em Sociologia, com concentração em Antropologia

(PPGSA/IFCS/UFRJ); Doutor em Serviço Social (PPGSS/ESS/UFRJ); Pós-doutor em Antropologia

(DA/USP); Professor Adjunto (UNILAB); Coordenador do projeto de pesquisa de iniciação científica

“Estudar no Maciço de Baturité: trajetórias e experiências socioculturais de estudantes africanos na

Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira”, do PIBIC/CNPq/UNILAB 2015-

2016).

2 Bacharel em Humanidades (UNILAB); Estudante de Sociologia (Terminalidade); Bolsista do projeto de

pesquisa de iniciação científica “Estudar no Maciço de Baturité: trajetórias e experiências

socioculturais de estudantes africanos na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-

Brasileira”, do PIBIC/CNPq/UNILAB 2015-2016).

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Os estudantes estrangeiros (na linguagem da norma jurídica brasileira) estão

restritos à Resolução Normativa nº. 16 de 18 de agosto de 1998, cujo artigo 3º. reza:

Aos estudantes de qualquer nível de graduação ou pós-graduação, inclusive aqueles

que participam de programas denominados 'sanduíches', com ou sem bolsa de

estudo, poderá ser concedido visto temporário, previsto no inciso IV do art. 13 da

Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980.

O visto temporário é concedido ao estrangeiro na condição de estudante pelo

prazo de 1 (um) ano ou, de acordo com o convênio, a cada 6 (seis) meses, prorrogável

caso necessário, e mediante prova declaratória de aproveitamento escolar e de matrícula

da Instituição de Ensino Superior (IES) ao qual está vinculado. É um visto que pode ser

renovado e prorrogado anualmente, bem como transformado em Visto Permanente.

Historicamente, de acordo com Manolita Correia Lima & Fábio Betioli Contel

(2009), tanto a educação quanto à internacionalização da educação superior no Brasil

estão fortemente atreladas ao Estado (como instância definidora de políticas,

responsável pelo financiamento e regulação) e à participação das universidades públicas

e institutos de pesquisa por ele mantidos. Consequentemente, a concretização dos

primeiros programas de cooperação internacional dependeu da criação das

universidades e da vontade política dos governantes.

Ainda de acordo com os autores citados, estima-se que a inauguração da política

de cooperação internacional no Brasil ocorreu nos anos 30, ocasião em que os governos

federal e estadual criaram quatro “universidades sucedidas”: Universidade Federal do

Rio de Janeiro (1920), Universidade Federal de Minas Gerais (1928), Universidade

Federal do Rio Grande do Sul (1934) e Universidade de São Paulo (1934) (Rossato

apud Lima & Contel, 2009). Desde então, convencidos de que as possibilidades de

desenvolvimento de uma nação soberana também dependem de progressivos

investimentos na formação de recursos humanos e no fomento da ciência e da

tecnologia, o Governo brasileiro (no contexto de regimes democráticos ou não), por

meio de ações combinadas entre os Ministérios da Educação (MEC), Relações

Exteriores (MRE), Ciência e Tecnologia (MC&T) tem atuado como importante

provedor do processo de internacionalização da educação, da ciência e da tecnologia

(Ribeiro apud Lima & Contel, 2009).

Hoje os estudantes africanos, tanto os Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-

G) quanto os Estudantes-Convênio de Pós-graduação (PEC-PG) e do Projeto UNILAB,

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entram no Brasil para realizarem seus estudos através de acordos de cooperação,

assinados entre o Brasil e os governos africanos, nas áreas de educação e cultura.

O estudante-convênio é um aluno especial, selecionado em seu país pelos

mecanismos previstos no PEC-G e PEC-PG. Esse visa à cooperação bilateral na área

educacional, graduando profissionais de nível superior para fins de formação de quadros

nos países em desenvolvimento, signatários dos Acordos de Cooperação.

Como participante do PEC-G e do PEC-PG, “o estudante deve atender aos

objetivos e metas do Programa: vir ao Brasil, estudar, graduar-se e retornar ao seu país”.

Nos termos do protocolo, o estudante convênio é aluno de tempo integral, “para que

possa integralizar o curso em tempo hábil” (Protocolo: MRE e MED – Brasil, 13 de

março de 1998).

Em 2008, o Governo Federal brasileiro divulgou a intenção de desenvolver

ambiciosa política de internacionalização ativa (capaz de atrair acadêmicos

internacionais), de caráter contra-hegemônico, com a criação de três universidades

públicas federais (Universidade Federal da Integração Latino-americana - UNILA,

Universidade Federal da Integração da Amazônia Continental - UNIAM e da

Universidade Federal de Integração Luso-Afro-Brasileira - UNILAB), de natureza

supra-nacional, comprometidas com a promoção da inclusão social e da integração

regional por meio do conhecimento e da cooperação solidária (Informativo Unila,

2008), que estariam integradas à rede de universidades federais de educação superior da

Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior

(ANDIFES).

A Universidade Federal de Integração Luso-Afro-Brasileira (UNILAB) foi

criada pela Lei nº 12.289, de 20 de julho de 2010, e integra, no Ceará e na Bahia, várias

políticas públicas relacionadas ao ensino superior, que são estratégicas tanto para o

Brasil como para a comunidade internacional. Exemplos dessas políticas são a formação

de recursos humanos, com foco na interiorização e na democratização do acesso, e a

integração internacional por meio da educação superior, feita numa perspectiva de

cooperação entre o Brasil e os demais países da Comunidade dos Países de Língua

Portuguesa (CPLP). Nesse contexto, a UNILAB, assentada em um projeto político-

pedagógico inovador e com responsabilidade social e ambiental, se constitui num

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importante agente de fomento do desenvolvimento regional e do intercâmbio cultural,

científico e educacional no âmbito da CPLP.

A UNILAB prioriza temas de interesse convergente, em áreas consideradas

estratégicas para o desenvolvimento e a integração desta rede de países (Angola, Brasil,

Cabo Verde, Guiné Bissau, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste). Trabalha

intensivamente a cooperação internacional, estabelecendo programas de intercâmbio

acadêmico e solidário com os países parceiros. Nesta direção, investe na captação de um

corpo docente e discente oriundo dos países que formam a CPLP, na fixação de

convênios temporários ou permanentes com instituições sediadas nos países da CPLP.

Apesar do curto período de existência e do desafio que a implantação deste

projeto representa, a UNILAB tem impulsionado seu desenvolvimento estrutural,

acadêmico e científico, e conta hoje com mais de 200 servidores docentes e 300

servidores técnico-administrativos, além dos mais de 2500 discentes regularmente

matriculados. Para se ter uma ideia do impacto da UNILAB no cenário do ensino

superior brasileiro, cabe dizer que já existem mais estudantes internacionais

matriculados na UNILAB e na UNILA, instituição irmã, voltada para a América Latina,

do que em todas as outras 61 universidades federais brasileiras juntas. Em sua plenitude,

a UNILAB acolherá cinco mil estudantes de graduação, mestrado e doutorado

presenciais, e terá corpo docente composto por 300 professores, sendo150 permanentes

(efetivos) e 150 temporários (visitantes), preferencialmente nativos dos países da CPLP

(Projeto de Lei n.3.891 de 2008).

A presença de universitários africanos no Brasil tem sido analisada à luz das

transformações - como o contexto de mudanças e reestruturação econômica-social -

pelas quais as sociedades africanas têm passado nas últimas décadas e que vem trazendo

um novo diálogo sobre as políticas públicas e educacionais.

Uma das questões que me vem chamando atenção na minha própria experiência

e nas conversas tidas com os estudantes africanos diz respeito aos aspectos que têm

motivado pais e familiares a mandarem seus filhos ao Brasil, um país de

“desenvolvimento intermediário”, para prosseguirem seus estudos. É necessário

perceber a existência de diversas motivações que se escondem por detrás de uma

aparente similaridade de projetos e escolhas por parte desses estudantes e de seus

familiares. Como bem observou Maria Engrácia Leandro (2004) a elaboração ou re-

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elaboração de projetos migratórios ou de estudos não estaria desligada da dinâmica

social e familiar em situações muito concretas, uma vez que normalmente é na família e

em função dela “que se concebem, tomam forma e realidade e se re-elaboram” os

projetos de dinâmicas populacionais (Leandro, 2004: 95).

É difícil fornecer dados quantitativos que caracterizem essa população. Existe

imensa dificuldade de obter dados efetivos desse contingente estudantil como mostram

inúmeros trabalhos feitos com o tema, do qual cito o de Edilma Desidério (2006), que

em sendo funcionária do IBGE, fala da incerteza dos dados nessa fonte e outras como a

Polícia Federal. Lembro ainda, que os sistemas de registros das universidades brasileiras

quanto à origem desses estudantes são irregulares e falhos, o que impossibilita saber

quantos são de fato. Os dados que dispomos apontam para a faixa etária dessa

população que varia de 18 a 44 anos, havendo um ligeiro equilíbrio entre o número de

homens e mulheres. Poucas são as famílias constituídas de marido, mulher e filhos.

Os estudos desses universitários são financiados por seus próprios pais e

parentes3, Organizações Não-governamentais (ONG`s) 4, pelos governos de dos países

de origem (via ministérios), pelo Governo Brasileiro (CAPES/MEC, CNPQ), bem como

por empréstimos bancários. Na UNILAB, através do Programa de Assistência ao

Estudante (PAES), o aluno recebe 335 reais mensais de auxílio moradia.

De modo muito geral e, somente com relação aos efetivamente entrevistados,

pode-se afirmar que em termos de origens sociais, os pais e parentes desses estudantes

são, em sua maioria, membros de altos escalões do governo (como ministros e

governadores, por exemplo), empresários, funcionários dos setores público, privado e

de ONG´s, ou seja, de famílias de alto status sócio-econômico e político. Os poucos

filhos de camponeses ou de funcionários que auferem salários baixos conseguem entrar

no Brasil para prosseguirem com seus estudos universitários através de bolsas de

estudos, basicamente em nível de pós-graduação (mestrado e doutoramento). Muitos

são provenientes das capitais dos países de origem - Bissau, Luanda, Maputo, Praia, São

Tomé - e de cidades como Beira, Huambo, Kabinda, Lichinga, Príncipe, Sal, Santo

Antão e São Vicente.

3 Pais e parentes têm como obrigação assinar um termo de compromisso no qual afirmam estarem em

condições de custear os estudos de seu filho e/ou parente, sendo que o valor mínimo exigido é de

300/500$00 (quinhentos dólares americanos) mensais.

4 The Ford Foundation, Banco Mundial, FNUAP, entre outras.

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Essa população se identifica a partir de classificações distintas que se referem a

distinções étnico-raciais e linguísticas que podem ou não se cruzar - como negros,

mestiços, indianos, mulatos e brancos; fulas, macuas, umbundus e rongas -; são

bilíngües e/ou multilíngües, ou seja, falam português, emakhwa, ciyao, bitonga, crioulo

de Cabo Verde, crioulo da Guiné Biaasu, kikongo, lingala, inglês e francês, entre outras

línguas.

As Instituições de Ensino Superior (IES) nos cinco países estão em processo de

grande expansão e também de inovação. Mesmo assim, é fato que um número ínfimo

alcança o nível universitário que, se cresceu nos últimos anos com a criação de

instituições privadas de ensino que se estabeleceram também fora das capitais

(especialmente nas cidades de Corimba/Angola, Mindelo/Cabo Verde e

Nampula/Moçambique), e com a expansão de instituições de ensino superior públicas,

ainda atendem diminuto número de cidadãos. Os estudantes universitários representam

um segmento microscópico em relação ao total da população, não atingindo 3%. O

perfil comum que caracteriza as instituições de ensino superior e pesquisa dos PALOP

é: i) dificuldade de acesso a recursos; e, ii) elevada dependência de doações externas

para o ensino e, particularmente, para a pesquisa. Hoje os cinco países contam com

cerca de cento e três (103) IES e estão assim distribuídas: Angola (48) 5, Cabo Verde

(10); Guiné Bissau (4), Moçambique (38) 6, e São Tomé e Príncipe (3).

Já que o número de potenciais candidatos ao ensino superior não para de crescer

e as universidades nacionais – sobretudo as universidades públicas, não conseguem

absorver essa demanda, hoje a opção de alguns pais e familiares tem sido enviar seus

filhos para realizarem seus estudos universitários no exterior, em especial para Portugal,

África do Sul e Brasil. Ao que consta, a primeira geração de estudantes dos PALOP a

e/imigrar para o exterior a fim de prosseguir com seus estudos universitários ocorreu

nos meados da década de 1950 através das missões (Igrejas) Protestantes, num primeiro

momento para África do Sul e para outras colônias inglesas, e depois para Portugal,

França, Suíça, RDA, EUA e Inglaterra, entre outros. Dessa primeira geração, que

manteve contato com a esquerda europeia através do Partido Comunista Francês e com

5 Até 1999 tinha uma Universidade, a Universidade Agostinho Neto, fundada em 1962.

6 A Universidade Eduardo Mondlane, a maior e a mais antiga, fundada em 1962, hoje conta com 12

Faculdades.

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os ideais liberais florescentes nos EUA, surgem as principais lideranças7, que conduzem

os processos de luta interna em nome das independências de seus países.

A principal questão teórica que tem orientado nossas pesquisas é a da migração

(emigração e imigração), no caso presente, migração temporária. Preferimos usar o

termo “migração temporária” por acreditar que o conceito “migração” em strictu sensu

seria definitivo demais, uma vez que esses estudantes entram no Brasil com o “Visto

Temporário IV”. Migrações temporárias seriam, de acordo com Maria Beatriz Rocha-

Trindade (1995:44), os movimentos migratórios a que correspondem estadias a prior

limitadas no tempo, e uma das situações singulares seria a dos estudantes que, em países

estrangeiros, visam obter determinadas qualificações, sobretudo em programas de

ensino superior graduado e pós-graduado de longa duração (Philip Muus, 1995, p.170).

Para Sayad (1998), a imigração consiste no deslocamento de populações por

todas as formas de espaço socialmente qualificadas (o espaço econômico, político no

duplo sentido, cultural, sobretudo em suas dimensões simbolicamente mais

“importantes”, o espaço linguístico, religioso, entre outros).

Na obra citada Sayad (1998:13) diz que a imigração é um “fato social

completo”, única característica, segundo o autor, em que há concordância na

comunidade científica. E a este título, todo o itinerário do imigrante seria um itinerário

“epistemológico”, um itinerário que se daria no cruzamento das ciências sociais, como

um ponto de encontro de inúmeras disciplinas.

De acordo com Milesi & Marinucci (2005), o fenômeno migratório atual aparece

como um processo dinâmico onde dificuldades pessoais e comunitárias do migrante

nem sempre são suficientemente levadas em conta, especialmente pelo ordenamento

jurídico dos países e da sociedade internacional.

A migração atual apresenta-se com muitos rostos, desafiando as instituições

normalmente estruturadas e conservadoras. Nesse contexto, ainda de acordo com os

autores citados, nas últimas décadas, novas categorias de migrantes (mulheres e jovens

estudantes) passaram a integrar o fenômeno da mobilidade humana, atraídas pelo novo

7 Os nomes das lideranças mais conhecidas e famosas são: Agostinho Neto (Angola), Amílcar Cabral

(Cabo Verde e Guiné Bissau), Eduardo Mondlane e Marcelino dos Santos (Moçambique), Miguel

Trovoada (São Tomé e Príncipe), entre outros.

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avanço tecnológico que busca sustentar a lógica produtiva neoliberal. Esta demanda, de

um modo geral, passou a ser correspondida pelas Instituições de Ensino Superior e

governos, aumentando o intercâmbio científico na formação dos jovens estudantes, na

qualificação de docentes e no incentivo à pesquisa, dando início a uma nova era de

produção do conhecimento.

Durham, citado por Dulce Mungoi (2006), afirma que nenhuma migração pode

ser compreendida como um deslocamento meramente geográfico, pois as migrações

representam uma movimentação no universo social. Destartes, para o estudante, a

mobilidade não implica apenas em cruzar a fronteira física, mas enfrentar mudanças

cotidianas (culturais, linguísticas, de ordenamento jurídico entre outras) que interferem

nas suas identidades individuais e coletivas como também na sua cosmovisão.

Entretanto, Milesi & Marinucci (2005) sugerem que a vinda de estudantes para o

Brasil deve ser analisada à luz de diferentes programas de cooperação existentes, que

"abrem as portas" para que centenas de cidadãos, de países especialmente em via de

desenvolvimento (africanos e latino-americanos), ingressem nas Instituições Superiores

Brasileiras para concretizarem os seus projetos profissionais e a possibilidade de

manutenção e ou ascensão social.

Projetos de vida e a escolha do Brasil

Em termos conceituais a noção de projeto, assim como da sua objetividade e

subjetividade, tem recebido pouca atenção por parte dos sociólogos, como bem

reconheceu M. E. Leandro (2004). De acordo com Leandro, foram os filósofos, como

J.P. Sartre (1986), M. Merleau-Ponty (1971), E. Husserl, D. Christoss, entre outros que

inicialmente se debruçaram sobre esta problemática.

No Brasil são muitos os autores que atualmente se dedicam ao estudo de projeto.

Um dos mais renomados é Gilberto Velho (1994) que vê o mundo moderno como palco

da valorização do indivíduo, o que possibilitaria a elaboração de projetos individuais

que na sociedade tradicional. Na sociedade complexa e moderna a família aparece mais

como rede de apoio. Myriam Moraes Lins de Barros (1999) diz que o projeto é pensado

em condições sócio-culturais específicas e está ligado aos valores da sociedade. É o

aspecto socializado do conhecimento (SCHUTZ, 1974), ou o aspecto público da

linguagem (VELHO, 1979) que dá ao projeto a possibilidade de existência.

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As pesquisas têm nos indicado que os projetos destes interlocutores estão mais

atrelados à família, embora alguns cheguem a afirmar que suas trajetórias e seus

projetos de vida sejam individuais. Para muitos desses estudantes, a família constitui o

núcleo central e fonte de equilíbrio.

“[...]. Não tem como ser individual porque ele não é individual. Para eu vir para cá é meu

irmão que morava comigo que era estudante e trabalhador na época, teve que abrir mão de

muita coisa, ele já era pai. E, com certeza, ele pode não ter me dito, mas, com certeza ele abriu

mão de muita coisa para me ajudar. Quando eu estava aqui, todos [...] os meus irmãos já eram

pais [...], de família e sem muitos recursos. Com certeza eles abriram mão de um monte de

coisas para poderem me manter aqui. Então, isso é impagável, não vou pagar nunca. O único

jeito de pagar é pensar nesse coletivo, mesmo” (Fausto – Moçambique).

É importante frisar que nas tradições culturais africanas, de origem bantu, a idéia

de coletividade é muito presente. Para um bantu, “ser”, é fundamentalmente “estar em

relação com os outros” (TEMPLS, 1965, p. 38). Com isso não queremos afirmar que em

países de economia de mercado, como é o caso dos PALOP, não se faça presente o

“individualismo”. Ele existe, mas os resquícios das sociedades simples, que por sua

coalizão deram origem às soberanias atuais, acabam prevalecendo nas famílias, sejam

elas nucleares ou alargadas. Como diria Elísio Macamo (2008), em África “todos

[vivem] num contexto social moderno, mas na base de referências sociais tradicionais. É

um contexto extremamente individualista, mas a [...] resposta a essa condição é a

família e a comunidade” (p. 67). Hoje, quando o diploma universitário vem se tornando

o principal passaporte de construção do futuro das jovens gerações, as famílias se vêem

na obrigação de se mobilizar para ter um doutor no seio da família, o que lhes permitirá

aceder ou não a outra posição social. “É sempre bom ser uma referência na família. É

muito gratificante [...]” (Sonia – Guiné Bissau).

“Eu acho que é o orgulho de ter amanhã alguém com nível universitário. Eu não acredito

[...] que nenhum deles esteja à espera da minha ajuda para melhorar alguma coisa na vida

deles. Não acredito, tenho certeza disso. Mas eles [...] estão à espera de algum dia dizer

para os amigos deles que têm um irmão que se formou, na universidade X, fora de

Moçambique. Já é um privilegio para eles, é um privilegio para mim também” (Fausto -

MZ).

Ao escolher um país para prosseguir os estudos, o Brasil acaba apresentando

vantagens por causa dos laços de amizade que unem o Brasil com os PALOP com

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ênfase em suas especificidades históricas, sociais, econômicas, educacionais e culturais.

A língua portuguesa, que é oficial no Brasil e nos PALOP, acaba sendo um dos atrativos

para esses estudantes.

“O Brasil foi minha primeira opção por causa da língua portuguesa, que é um facilitador.

Já pensei em estudar em Portugal mais pela língua também. Acabei escolhendo o Brasil

porque sabia que era um país líder em cursos de jornalismo e comunicação” (Vanda –

Cabo Verde).

Vale notar que em termos de custos, sai mais barato mandar um filho para

prosseguir seus estudos no Brasil do que na África do Sul, Austrália, EUA, Inglaterra e

Portugal, por exemplo. O custo de vida do Brasil seria mais baixo que dos países

citados. A oportunidade também é apontada como um dos fatores que traz esses

estudantes ao Brasil.

“Eu fui para África do Sul, mas não goste. Voltei para Angola, estava à espera de uma

bolsa para o Canadá depois as coisas começaram a correr mal. Não tive alternativa a não

ser o Brasil” (Jorge – Angola).

“Na verdade, não foi uma escolha. Em Moçambique a dificuldade de fazer curso superior é

muito grande. [Depois] que consegui terminar o ensino secundário, não consegui entrar no

ensino superior lá, entrei numa escola técnica de jornalismo em Moçambique” (Fausto –

Moçambique).

Outros escolheram o Brasil por influência de amigos ou parentes que aqui

moram ou moraram.

“Nem fui eu que escolhi o Brasil. Foi o meu pai que estudou aqui, morou aqui seis anos,

fez Psicologia, daí decidiu nos mandar para cá. Existia uma experiência anterior do pai.

Por que escolher o Brasil? Bom, respondendo por aquilo que o meu pai falou [...], o meu

pai falou que o Brasil era uma boa escola para a vida...” (Luaia).

Muitos são os que escolhem fazer um curso no Brasil sem terem nem sequer

uma idéia do que seja esse curso. Outros escolheram o Brasil por influência de amigos

ou parentes que aqui moram ou moraram. Uns chegaram a imaginar que o Brasil fosse

um “paraíso social”, sinônimo de desenvolvimento e progresso, portanto, de uma vida

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farta e de oportunidades incomensuráveis para todos. Muitos chegam a imaginar que o

estilo de vida e o Brasil mostrado nas telenovelas da Rede Globo de Televisão e da

Rede Record Internacional seria o Brasil real, ou seja, o Brasil que eles haveriam de

encontrar. O que mostram nos meios de comunicação “é uma perfeição” (Sonia –

Guiné Bissau). O que “eles mostram na novela é uma coisa totalmente diferente. Tipo

Rio de Janeiro, praias, Copacabana [...]. É a única noção que eu tinha” (Carla – São

Tomé e Príncipe).

Esses estudantes não partem numa situação de total desconhecimento acerca da

nova realidade social que os recebe. De fato, há toda uma vasta rede de relações que se

vai tecendo e re-atualizando entre os primeiros que partem e os que ficam, o que faz

com que estes possam elaborar certa constelação de elementos avaliativos em relação à

sua provável situação futura. Contudo, agora que conhecem o Brasil, muitos dos nossos

interlocutores voltariam para prosseguirem com seus estudos porque o ambiente de

estudos encontrado é considerado bom. Cá os professores são “muito legais” e

“dispostos a ajudar”. Muitos são os que afirmam que a experiência que estão tendo, é

mais “gratificante” do que dolorosa e o Brasil oferece um ambiente universitário que

incentiva ao crescimento científico.

Atitudes de Preconceito Discriminação

O “preconceito de cor” e/ou “preconceito racial” é apontado como a principal

causa do mal-estar de um número considerável desses estrangeiros, nossos

interlocutores, em terras brasileiras. Há que reconhecer que os brancos, alguns mestiços

e poucos negros afirmam que não se sentem discriminados por causa do “tom de pele”.

Vale notar que mesmo entre os negros há aqueles que afirmam ter mais

facilidade de detectar que estão sendo discriminados em relação aos outros. Talvez

sejam vítima de “discriminação sofisticada” (SANTOS, 2002:36). Segundo Hélio

Santos muitas das vezes, quando a pessoa está sendo vítima de “discriminação

sofisticada” raramente consegue se aperceber. Esse tipo de discriminação, difícil de

captar, seria o mesmo que sofre a classe média negra brasileira. O que notamos em

quase todas as entrevistas é o reconhecimento de que o ser universitário e estrangeiro

atenua a experiência negativa que representa descobrir-se em desvantagem social pela

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simples pigmentação da pele. Todavia muitos são os que dizem ter passado por

situações constrangedoras pelo fato de terem uma tonalidade de pele escura (negros).

São vários os ambientes sociais - como em prédios residenciais, ônibus, supermercados,

restaurantes, em festas, dentro da universidade, entre outros – que obrigam esses

estudantes a refletirem sobre a sua condição de “preto”.

“o negro é considerado pobre. Não é como em Moçambique [...]. Aqui ser negro é sinônimo

de ser do último escalão em que todo mundo pisa” (Sábado).

Uma de nossas entrevistadas, que estava como convidada numa festa na Barra da

Tijuca, no Rio de Janeiro, chegou a ser confundida de empregada doméstica pelo fato de

ser a única com tonalidade de pele mais escura entre os presentes naquele ambiente

social.

“Num dia desses fomos numa festa na Barra da Tijuca [...], por eu ser a pessoa mais escura

na festa, houve alguém que me pediu [...] coisas. Achou que eu fosse empregada e estivesse

ali para servir [...]. Daí falei para ele que eu era convidada...” (Catija).

A Expectativa do Retorno

Para além do compromisso diplomático assumido, que é de “retornar a seu país

de origem em período não superior a três meses” (Protocolo, seção X, Cláusula 23) após

o término dos estudos, quase todos manifestam o interesse de regressar para contribuir

para o progresso de seus países, trabalhando ou dando aulas, e formar família.

Eis o comentário de um dos entrevistados: “Terminando os meus estudos eu vou

direto para Angola. Sou uma pessoa bem família, quero ficar com os meus familiares.

Se for para fazer sucesso faço lá mesmo” (Jorge – Angola).

Os nossos interlocutores imaginam poder dar o máximo de si e esperam ter um

“enquadramento” que lhes facilite “transmitir” os conhecimentos adquiridos no Brasil.

Mas há aqueles que reconhecem que nem tudo será maravilhoso e têm suas reservas,

pois hoje em dia o mercado dos PALOP, bem como os de outros países em África,

tornou-se muito competitivo. De uma maneira geral esperam aplicar os conhecimentos

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adquiridos no Brasil nas realidades de seus países, dando aulas, se envolvendo em

organismos governamentais e não-governamentais ou criando seus próprios negócios.

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