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    CON - VERSES E FATOSRabino Nilton Bonder

    A questo das converses ao judasmo, mais do que polmicas entre osdiversos movimentos judaicos, revela importantes tendncias da auto-imagem dos judeus nos ltimos sculos. A freqente desconfiana dosudeus quanto sinceridade dos conversos se baseia em parte no temor da

    corroso pela assimilao e em parte pelo temor de utilizao do judasmopara "interesses prprios". Ambas consideraes so relatadas desde osprimeiros textos rabnicos sobre o assunto. H, no entanto, um terceiroelemento de carter bastante subjetivo e que uma "fresh mutation", umdesenvolvimento moderno da questo.Diz respeito evoluo da idia de que "ser judeu" uma condiotransmissvel apenas pelo "sangue". Para colocar em linguagemcontextualizada, no estamos falando de uma carga gentica, terminologiamuito recente, mas de uma "alma" que retrocede at o Monte Sinai. Estepedigree espiritual consiste numa forma de racismo que se expressa pelacrena no de um corpo diferenciado, mas de uma alma diferenciada.Mais popularmente, essa forma de teologia ocupa o imaginrio comosendo "impossvel para um no-judeu entender o drama, a tragdia, asaga e a epopia do judasmo". S uma "alma" moldada pela experinciahistrica e amamentada por um "lar judaico" consegue produzir o "ser

    udeu".Vamos fazer um passeio pelo conceito da "converso" com o intuito dedeixar exposta uma insegurana interna dos judeus que se manifestaexternamente na questo da converso. A possvel falta de fidelidade doconverso, sua capacidade de inocular o judasmo de percepes errneas,ou o seu potencial de diluir algo que puro, revelam a fragilidade daidentidade judaica moderna. insuportvel grande massa de judeus nopraticantes e absorvidos pela cidadania e pela globalizao perceber queh pouca, quase nenhuma ou nenhuma diferena entre eles e os noudeus. Aumentar o valor do ttulo para preservar a qualidade do clube,

    sem uma real benfeitoria no contedo e na qualidade do mesmo, indicativo de decadncia. Aparentemente resolvidos estariam os extremos- a ortodoxia e os judeus plenamente assimilados. O primeiro assume ser"diferente" dos outros seja em sua misso histrica ou, sob forma mstica,em sua funo csmica. O segundo assume ser "um igual" e, portanto,questes como a converso ou convenes de pertencimento poucoimportam.No entanto, ambas as posturas apenas dissimulam uma resoluodefinitiva. A ortodoxia, primeiramente, vive seu drama particular tendoque adotar posturas cada vez mais radicais de diferena num mundo deiguais. No s a televiso fala de iguais, mas a moral, a tica, a cultura, aarte, a cincia, os mitos e os misticismos. A ortodoxia usufrui desta

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    igualdade, depende desta igualdade, faz uso dela e precisa, ao mesmotempo, constantemente se re-assegurar de que ela no existe. A vestimenta,as prticas e as idias tm como funo maior no tanto servir ao Criador,mas proteger o judeu. O segundo grupo, assume ares de resolvido paradescobrir na primeira ou segunda gerao que seus descendentes tornam-

    se confusos, no identificando em sua postura uma opo comunitria,mas uma desistncia.A palavra "guer" - converso - aparece no texto bblico com o sentido de"estrangeiro". Sua raiz de significado "residir, habitar", transmite umasensao de transitoriedade. "Moradores temporrios vocs foram noEgito" diz o texto bblico gerando uma das mais fortes identificaesudaicas - vocs foram estrangeiros, vocs foram moradores temporrios

    sentados sobre suas malas e vocs foram "conversos" em meio a outros.No h dvida que a expresso contm uma dubiedade. Se o converso algum que abraa uma cultura e uma f, porque designa-lo para sempre

    como um "estrangeiro"?Esta ambigidade aparece nos textos em afirmaes como "o converso recebido de braos abertos e tratado como um judeu" (Lev. R. 2:9) ouem discusses como a de se pode servir como juiz ou no ("um proslito spode servir como juiz em casos civis estando impedido de servir em casoscriminais e, mesmo assim apenas para outro proslito" - Iev. 102a).Em certos casos a questo de sensibilidade diferena. Marcar arealidade de uma origem e de uma famlia externa ao judasmo tambmaparece em discusses do tipo: "Como deve um converso se dirigir aosancestrais judaicos? Nas oraes deveria o converso dizer "Nosso D'us eD'us dos seus antepassados" ou "Nosso D'us e D'us de nossosantepassados"?". A pergunta legtima do ponto de vista objetivo. Dizerque o D'us de seus antepassados (tomando obviamente "D'us" por umaforma especfica de relao com D'us) seria uma mentira. No entanto,Maimnides percebe a malcia implcita nesta "verdade" e sentencia emcarta a um amigo convertido (Rambam, Responsa 42- ed. Freiman) "umconverso deve dizer 'Nosso D'us e D'us de nossos ancestrais' ou 'que nosescolheu' ou 'que nos deu' ou 'que nos fez herdar', porque ao escolher setornar um converso passou a ser um discpulo, um filho, de Abrao. Uma

    vez que se converte no h diferena entre eu e voc...".

    Na verdade, nenhuma outra tradio to marcada pela idia deconverso como a judaica.Seu fundador no um profeta, um visionrio que recebe importantesrevelaes, mas algum que se associa a outro pacto diferente daquele deseus pais e de sua origem. Abrao um personagem distinto de Moiss, deBuda, de Jesus ou mesmo de Maom. Abrao um converso quegradativamente converte tambm a sua mulher e as mulheres de seu filhoe de seus netos.

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    No s a tradio traa a origem de importantes personalidades comoRabi Akiva, Rabi Meir, Shemaia e Avtalion converses, mas os apontacomo descendentes dos perversos Sancheriv, Sisera, Haman e Nero (Git.56b). Isto demonstraria que a converso um ato de "nascimento" novo,independente do passado, seja do individuo ou de sua ancestralidade.Simbolicamente isto se expressa pelo fato de ser o Messias descendente deconversos. Ruth a moabita, faz parte da linhagem direta do Rei David, oqual por sua vez ancestral do Messias. Em resumo, Abrao umconverso, Moiss um judeu que retorna e casa-se com uma no judia,Rabi Akiva descendente de conversos e o Messias idem. No h dvidaalguma que nos traos que hoje identificamos como tipicamente judeus -peles claras, meninos sardentos, ruivos, caucasianos, olhos claros e etc - hpresena de misturas exgenas basicamente em todas as famlias. Poucospovos podem traar to diretamente sua origem a guerim, a estrangeiros,que passaram a morar, habitar, conviver e comportar-se com e como

    udeus.O processo de dificultar as converses assumindo aspectos cada vez maisrgidos, so bastante modernos. No sculo XVII, os conselhos judaicos daLitunia e Moravia impuseram severas penalidades para o ato deproselitismo e para guarida oferecida a conversos. A razo para tal derivade fatores externos e internos. O externo devia-se a vrias acusaes, tantona Litunia como na Polnia, de que os judeus eram proselitistas. Nosabemos se estas eram falsas acusaes ou se realmente representavamuma atitude da comunidade. No campo interno, por sua vez, o mundomoderno fez recrudescer o desejo por fronteiras ntidas e definidas entreos membros do grupo dos judeus e os outros. A ameaa trazida pelaemancipao, pela assimilao e pela miscigenao acabaram porproduzir exigncias cada vez mais estritas no que diz respeito converso.Mais recentemente, a volatilidade com que os indivduos cruzam asfronteiras de tradies e culturas adicionou suspeita ao processo deconverso ao judasmo. interessante notar que esta atitude mais severa com as converses deorigem nitidamente ashkenazi. O mundo sefaradita at a poucas dcadasagia de forma bastante pragmtica para com a converso, admitindo sua

    prtica como uma necessidade intrnseca a um povo de "moradores eestrangeiros", como se sentiam os judeus.TACH'LIS, NA PRTICAA RIGIDEZ NA converso e o abandono de atitudes mais pragmticas sonitidamente um reflexo de sentimentos de insegurana e falta de controlesobre os destinos do judasmo. interessante notar que a literaturarabnica trata a questo da converso com toda a sua riqueza e"diversidade". No h a expectativa atual de uma fidelidade bsica queseja absoluta. Fidelidades parciais eram tambm reconhecidas, o que

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    demonstra grande interesse num tratamento mais pragmtico. Vejamos ostermos usados para distinguir as diversas atitudes dos conversos:GER TOSHAV (proslito residente)-- aquele que para adquirir cidadanialimitada na Palestina, renunciava idolatria. (Gitt. 57b)GER SHEKER (proslito insincero) - aquele que ocultava a preservaode costumes e crenas de sua f de origem. GER TSEDEK (proslito justo) -- aquele que se convertia comconhecimento do judasmo, com sinceridade e com compromisso.GER G'ERURIM (um converso auto-realizado) - no formalmenteadmitido e convertido, mas que recebido informalmente pelacomunidade (Av. Zara 3b).GER ARIOT (proslito por medo) (Hull 3b) - aquele que pressionadodireta ou indiretamente para a converso. O exemplo clssico os "gereiMordechai v-Esther" -- conversos de Esther. (Esther VIII,17)GER CHALOMOT (proslito por sonho) - conversos por conselho mstico,por sonho ou por interpretador de sonhos (San. 85b)GERIN TO'IN (proslitos em erro) - conversos que no seguem osdirecionamentos do Judasmo mesmo sem tra-los por outros preceitos.(Iev. 25a)Aps mais de uma dcada atuando como um rabino que realiza conversescomo uma forma de conviver com fenmenos inerentes a realidade dosudeus do Brasil, posso distinguir todos os diferentes grupos definidos

    pelos rabinos do passado. H os que se convertem de forma plena e soexemplos para os prprios judeus de um judasmo vivo e com valoresintrnsecos que muitos desconhecem. H os que so apenas "residentes",convivendo bem com o judasmo, mas no demonstram interesseintelectual ou espiritual pelo mesmo. So sinceros na sua adoo doudasmo, criam seus filhos como judeus e acabam funcionando de forma

    semelhante a grande massa de judeus aculturados que, mesmo assim,

    preservam sua identidade e pertinncia. H os que se converteram pormedo. Medo do cnjuge, ou da sogra, ou pressionados por seus prpriospreconceitos ("a mulher deve seguir o marido") ou pelo desejo depenetrao em grupos sociais judaicos. H cada vez mais os "proslitospor sonho", que fazem do misticismo um substituto para a falta deidentidade prpria. H proslitos mentirosos que manipulam o ato deconverso para a obteno de favorecimentos AFETIVOS e mesmoMATERIAIS. H os conversos em "erro", que diferente dos "residentes"que cumprem com prticas destitudas de paixo, no renegam o judasmoapesar deste ter pouca presena em sua vida.Esta variedade de casos mostra algo interessante: h diferentes tipos deguer. Eles no so apenas a categoria dos "justos", dos proslitos

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    absolutos, mas toda esta gama que mencionamos acima. At mesmo o guersheker - o proslito mentiroso e manipulador - um guer. bvio que sedetectada a malcia, aqueles responsveis pela converso devem impedi-la.Mas importante perceber que estes estilos de guer, s so conhecidosaps o ato de converso formal. At este ato, todos os guerim tero que se

    apresentar como candidatos a ser guer tsedek (justos) ou no mnimo guertoshav (residentes). Este fenmeno parecido a interveno religiosa nocasamento, por exemplo. Um casal pode estar se casando por amor e complena conscincia do significado de um casamento. Pode vir sem amor,pode vir para angariar proveitos materiais, pode vir s para cumprir avontade dos pais, pode querer apenas uma casa afetiva que no tinha comos pais e assim por diante. At que ponto o rabino deve interferir para queo casamento seja feito apenas entre um zug tsedek (um casal de justos)?Afinal a chup um compromisso nas esferas celestes, porque quereriaum rabino envolver D'us numa situao que no fosse sempre "absoluta",certa e incontestvel? Sabe porque? Porque no haveria casamentos. bvio que em casos patticos onde processos maliciosos sejam detectadospor um rabino, este deveria se envolver at o ponto de se negar a oficiar"tal casamento". Recordo-me de um casal de "crianas", ambos com 18anos que me procuraram para realizar seu casamento. Tinham certeza do que queriam e tinham a beno de seus pais. Naconversa com ambos fiquei impressionado por sua imaturidade e, pormeus parmetros, eles no deveriam se casar pelo menos naquelemomento. Ao questiona-los em vrios aspectos vi que estavam seguros deseu desejo. Por instantes sa de minha sala para refletir pois estavaconfuso: qual era o meu papel? Seu desejo era genuno por razes que euulgava erradas. Mas quem era eu para querer controlar o futuro? Acaso

    o prprio erro no pode ser o caminho escolhido por algum? Sabe-se lqual a funo que o erro (admitindo-se que eu tinha razo) teria na vidadestas pessoas? Como diz um ditado judaico: "Nunca retire o fardo dascostas de uma pessoa porque voc no sabe a funo que este pode ter.Ajude-a sim com o fardo, ajude-a a reconhecer que h outras maneiras delidar com o fardo, mas no o remova por julgamento seu."Eu fiz este casamento como faria o casamento de um casal no qual um dos

    cnjuges estivesse buscando vantagens materiais (casamento sheker -insincero) desde que dentro de minhas possibilidades tivesse feito tudo oque julgasse tico para advertir o outro cnjuge de uma possvel malciaenvolvida. Mas se este tomasse a deciso de prosseguir com o mesmo, nome caberia outra coisa a no ser realizar este casamento. E destas unies j surgiram muitas bnos, mesmo porque as bnosno so produto de acertos momentneos que determinam destinos. Asbnos so produtos da interao constante dos indivduos com a suavida. A incerteza est presente em todas as certezas e no reconhecer isto querer impor-se ao futuro. Nossa responsabilidade inclui tambm

    compreender a partir de onde no somos responsveis.

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    Retornando as converses, acredito que fundamental seriedade ecompromisso nessa questo. Desafio no Brasil algum processo deconverso que exija tanto comprometimento de tempo, participao,doao, questionamento emocional, intelectual e espiritual quanto o querealizamos na CJB. No entanto produzimos todos os tipos de guerim

    descritos acima. Repito, no os produzimos sem a exigncia de ser guereitsedek (justos) e muitos (uma quantidade gratificante) se torna, mastambm todos os demais tipos se revelam com o passar do tempo.H conversos justos que no produziro uma continuidade judaica e hconversos mentirosos que nos traro Rabi Akivas e Rabi Meirs. Oproblema no so os conversos, o problema so os judeus. Qual oudasmo que os judeus acreditam e querem praticar? Somente este pode

    ser o judasmo exigido daqueles que querem ser judeus. Alguns tmproposto uma converso que seja no-religiosa, o que parece, a primeiravista, maravilhoso. Eu adoraria que todos os demais guerim que no

    fossem tsedek (justos), que no quisessem ser judeus observantes, sedirigissem a um cartrio ou a um consulado que faria a sua conversocivil. Mas, muito menos por uma questo de poder ou interesse rabnico,percebo que isto um engodo.Da mesma forma que acredito num casamento religioso no s para osobservantes do judasmo, mas vejo neste ato de casamento religioso umaforma em si de observncia, imagino o mesmo para as converses.Acredito que o judasmo no apenas uma cidadania civil e que em suacomplexidade contm as tradies, os rituais, o folclore e o misticismo.No contemplar as converses num ambiente que inclua tudo isto abrirmo do que acredito.O custo o mais difcil que existe para um mortal: reconhecer que no setem controle sob processos desta ordem. Vou continuar a realizarconverses que tenham a qualidade de gerar guerei tsedek (conversosustos), mas vou produzir todo o tipo de guerim. Eu e todos os rabinos,

    sejam de que orientao forem. Mas se h custos, h benefcios tambmem no se controlar processos. E isto diz respeito s surpresas e s bnosinesperadas.No me considero proselitista nem para os no-judeus e nem para osudeus. Na verdade no acredito no convencimento. Mas o desejo do outro

    e a inteno do outro eu respeito at provado o contrrio. Mas a dignidadede um judasmo sem medo, sem segregao e receptivo eu acredito. Realmente a questo das converses no deveriam estar na agenda nem daOrtodoxia nem dos judeus assimilados. Para os diferentes difcil"produzir" diferentes. Para os que no precisam de qualquer convenoda linguagem e da liturgia, para iguais absolutos, perda de tempo.Mas para todos aqueles que se sentem como iguais e ao mesmo tempoidentificados com costumes, prticas e tradies de uma cultura e de viso

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    de mundo especfica, fronteiras sempre existiro. No existiro comobarreiras mas como forma e como especificidade. A abertura destasfronteiras fundamental para sua existncia destas fronteiras em nossosdias.Como a pele que nos d identidade e delimita o nosso corpo, suaporosidade nada menos do que vital.