CONSIDERA‡•ES GERAIS SOBRE EXPOSI‡•ES E .CONSIDERA‡•ES GERAIS SOBRE EXPOSI‡•ES E PALESTRAS
ConversacomCaoGuimarães
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8/9/2019 ConversacomCaoGuimares
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Maril DarDot[as psc]
CorrespondnCias
Cnves de M Dd cm s psc e cnes C Gumes,cmssnd e pubcd n BoMB 102, m de 2008, NY, EUa.
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em si me interessa muito pouco. Ela s funciona quando me joga
para longe ou para perto, para trs ou para frente, s vezes um pou-
quinho para o lado: quando me enxergo e enxergo o outro do outro
lado do espelho; quando a percepo vagueia, percorre caminhos
estranhos, transborda; quando os tempos se embaralham e a ansie-
dade some. Ento o que importa no a arte, mas o que nos leva a
ela, e pra onde ela nos leva.No nal, ou melhor, no comeo, acho que produzir arte
pra ns apenas uma maneira de tentar entender isso tudo, e de ten-
tar mudar um pouquinho a sua congurao: do tempo, do real,
do amor e da solido. E, como voc mesmo disse, tudo comea por
acaso. Alguns vo chamar esse comeo de processo criativo, como se
a arte fosse sua nalidade. Eu preferiria chamar de desejo. Ou, como
voc, de necessidade.
Assim comeo ento a nossa conversa epistolar com uma
pergunta sobre Histrias do no ver. Ao reler o seu livro que deli-
cioso e me transportou alhures de repente deparei-me com uma
palavra: estria. E imediatamente lembrei de minha infncia, quan-
do, para mim, as duas palavras estria e Histria (a ltima com todo
o poder que lhe conferia a maiscula) existiam em nossa lngua, e
eram opostas. Estria era co, inveno, era o que me contava meu
pai antes de dormir. Isso estria para boi dormir, dizamos dealguma lorota, conversa mole. Histria era aquilo que aprendamos
na aula, era a verdade. No me lembro bem quando aprendi que no
se deveria escrever estria, mas lembro que tal mudana me fez na
poca pensar muito sobre o assunto: a partir dali no se usaria mais
estria, era tudo histria (com maiscula e minscula), ou, melhor
ainda, era tudo co.
Mas no seu livro estavam ali, em graas distintas: Histriasno ttulo, e estria, aquela que te contaram sobre as tradies dos
casamentos de certas regies de pases muulmanos. A quei na
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dvida: teria eu inventado essa histria ao perceber por mim mesma
a indiscernibilidade total entre os dois termos?
Consultei o Aurlio: encontrei ali o verbete estria, que dizia:
Estria. S. f. V. histria. [Recomenda-se apenas a graa
histria, tanto no sentido de cincia histrica, quanto no de narrativa
de co, conto popular, e demais acepes.]
Investigando mais, acabei descobrindo que foi um talde Joo Ribeiro quem props a adoo do termo estria, em 1919,
para designar, no campo do Folclore, a narrativa popular, o conto
tradicional, objeto de estudo dos especialistas daquela rea. O fato
que a distino pegou, saiu das raias do folclore, principalmente
depois que Guimares Rosa publicou, em 1962, seu Primeiras est-
rias. Crescemos ns dois, assim, com essa dicotomia estabelecida,
que procurava distinguir realidade de co. Como se isso fosse
possvel. O fato que senti um grande alvio ao ver hoje essa possi-
bilidade negada pelo Dicionrio Aurlio, ou pela nossa lngua, que,
diferentemente do ingls, no distingue story de history.
Mas, voltando s suas histrias, vi que voc traduz o ttulo
do livro como Stories of not-seeing. Achei ento que este poderia ser
um bom tema para comear nossa conversa.
Cao: Istria da carochinha. Istria de trancoso. Istria praboi dormir. Istria do Brasil. Mestre dos Mestres (personagem cen-
tral de meu lme O fim do sem fim, 2001) me dizia que deveramos
escrever como a gente fala. Ento nem H nem E, mas I. Sua questo
bastante interessante pois evidencia o quo s vezes uma lngua
se torna burocrtica, passando ao largo da lngua realmente falada
nas ruas. Ou seja, o corpo erudito de uma lngua muitas vezes
uma co. O corpo da lngua real como o de uma ameba giganteem constante mutao, impossvel de ser apreendida em sua totali-
dade. Mas como uma lngua um dos componentes que dene uma
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nao, um conjunto de pessoas, modos e costumes, e o ser humano
precisa dessas distines, camos criando limites e amarras para
esse corpo que no pra de crescer e de mudar. como o mercrio.
Impossvel aprision-lo em uma forma nica. Da mesma forma, a
realidade e por extenso a histria. No existem uma realidade ou
uma histria objetiva quando se tem um ponto de vista ou innitos
pontos de vista.Em meu trabalho no me interessam muito esses limites
que geram uma forma nica. Pelo contrrio, interessa-me mais o
movimento e/ou processo pelo qual passa o corpo da grande ameba.
A arte como linguagem e diferentemente do que se quer das lnguas
no pode possuir um estatuto nal. Por isso a arte algo que se co-
munica com o universal e no apenas com a particularidade de um
povo ou de uma cultura.
Meu livro Histrias do no ver so experincias relatadas
atravs de imagens e de palavras. Experincias e realidades provo-
cadas por um dispositivo ser seqestrado por outras pessoas,
vendado, e levado a lugares onde registraria minhas impresses sen-
soriais com fotos cegas e narrativas escritas. Apesar de eu ter sido
o agente detonador do processo, ou seja, o que lanou os dados ao
acaso e quem vivenciou a experincia como seqestrado, esse pro-
cesso continua no seqestrador e principalmente no espectador (nocaso o leitor do livro).
Existe uma interao entre agentes e pacientes do processo,
uma troca de posies e de valores. No mais apenas o agente-
artista o nico agente criador. O seqestrador, ao criar uma reali-
dade para que o artista a vivencie, tambm agente criador da obra.
Como tambm aquele que l o livro, o chamado espectador, torna-se
ativo ao ter que desvendar as realidades que se escondem por trsdaquelas imagens e textos e principalmente na relao entre uma
coisa e outra.
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Isso acontece de forma bastante signicativa em outros tra-
balhos meus, como, por exemplo, no lme-instalao Rua de mo
dupla, em que peo para as pessoas trocarem de casa. Existe tanto
em Histrias do no verquanto em Rua de mo dupla um desejo meu
de compartilhar uma experincia, compartilhar uma realidade que
pode ser uma ao qualquer, um ambiente, ou mesmo um lme ou
um livro.Percebo o mesmo em seu trabalho quando voc prepara
um ambiente para compartilhar uma biblioteca (que voc chama
de A biblioteca de Babel), para compartilhar o processo de cons-
truo de um dilogo em Entre ns, ou at mesmo a leitura de um
livro, o Rayuela de Julio Cortzar, em sua instalao de mesmo
nome.
Penso em duas questes que acredito contenham algum
ponto de conuncia entre nossos trabalhos: Qual pra voc o papel
do acaso em seu trabalho e mesmo em sua vida? E qual a funo do
Outro tambm em sua vida e em seu trabalho?
Maril: Talvez toda a minha vida tenha sido construda pela
armao de acasos. Encontros fortuitos, acontecimentos inespera-
dos, acidentes. Eu nunca planejei muito a minha vida, nunca soube
ou desejei o que ia ser quando crescer. Mas eu sempre gostei deapostar. E intuitivamente fui apostando em situaes s quais o
acaso me levava, experincias que tinham o poder de me tirar do
lugar, de me apresentar coisas novas, de abrir outras possibilidades.
E tambm aprendi a aceitar aqueles acontecimentos que pareciam
ruins como possibilidades de mudana, e no como perdas. Aprendi
que problema uma coisa que pe a gente em movimento, vida.
Ento acho que o acaso importante pra mim na medida em queestou atenta a ele, pois assim posso arm-lo. Pois, como gritava
Gal, preciso estar atento e forte.
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H uma passagem muito bonita no livro Rayuela, de Julio
Cortzar, que fala da armao do acaso nos encontros entre Hor-
cio Oliveira e Maga:
A tcnica consistia em marcar encontros vagos num bairro a uma
certa hora. Eles gostavam de desaar o perigo de no se encontra-
rem, de passarem o dia sozinhos, metidos num caf ou sentadosnum banco de praa, lendo-um-livro-a-mais. () marcavam vagos
encontros por a afora e quase sempre se encontravam. Os encon-
tros, por vezes, eram to incrveis que Oliveira se propunha uma
vez mais o problema das probabilidades, revirando-o por todos os
lados, desconadamente. () Aquilo que para ele tinha sido uma
anlise de probabilidades, eleio inspirada ou simplesmente con-
ana na sorte ambulatria, passava a ser, para ela, um autntico
fatalismo. E se voc no tivesse me encontrado?, perguntava
Horcio. No sei, o que interessa que, agora, voc est aqui.
(Rayuela, cap. 6)
Talvez eu tenha aprendido isso com a Maga: que o acaso impor-
ta como abertura para algo que pode acontecer, o que levou a ele
no importa muito, e o Se no no existe. Como ela, eu gosto de
dizer Sim.Meu processo de trabalho catico, e sempre comea por
acaso. Vou anotando coisas, idias, frases, vou marcando livros; mas
nada muito sistemtico antes de aparecer alguma idia mais concre-
ta: vou vivendo, absorvendo, observando, sentindo, trocando. Uma
hora o trabalho se me revela por alguma angstia, algum problema,
em alguma insnia, a partir de algum material ou imagem retida, nal-
guma conversa. A comea um trabalho dirio de execuo mesmo,que pode ser curto ou longo, como foi o da instalao Rayuela (2005),
que levei um ano para fazer.
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O livro Rayuela, de Julio Cortzar, comea com uma propos-
ta: sua maneira, este livro muitos livros, mas , sobretudo, dois
livros. O leitor ca convidado a escolher uma das possibilidades.
A instalao Rayuela apresenta outra leitura possvel: eu
suprimi digitalmente quase todo o texto do livro, deixando apenas
as passagens em que encontrei verbos de deslocamento espacial,
alm dos nmeros de pginas e captulos. Eu queria compartilharuma leitura que evidenciasse esses deslocamentos, que eram para
mim a estrutura do livro, como tambm a do jogo da amarelinha.
O trabalho tambm prope que o visitante se desloque pelo espao
expositivo, lendo trechos ao acaso. O que acontece entre esses deslo-
camentos imaginado e vivenciado pelo outro.
Como voc, desejo com o meu trabalho estabelecer com o
outro uma relao de cumplicidade. Um compartilhamento, uma
troca, um dilogo. Acredito que nossas relaes com os outros o
que nos constitui. Na arte e na vida.
Em 2006, convidei amigos para jogar um jogo de dados de
letras. No havia muitas regras: apenas tentar compor palavras com
os treze dados lanados. Interessava-me provocar e mostrar o pro-
cesso de construo de um dilogo a partir do que lhes era dado pelo
acaso, pelas circunstncias. Os jogos, sempre entre duplas, foram
gravados e exibidos simultaneamente em 13 monitores na instalaoEntre ns.
O trabalho acontece em duas instncias: uma, mais ntima,
se d quando as pessoas aceitam entrar no jogo que proponho e,
conseqentemente agir, sentir e pensar sobre a situao experimen-
tada. Como o que acontece com voc e seu seqestrador no Histrias
do no ver, ou com as pessoas que trocam de casa em Rua de mo
dupla. A outra instncia, de escala mais pblica, a instalao, quepermite certa violao dessa intimidade quando o espectador do tra-
balho tem a sensao de ver o pensamento do outro na construo
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de cada palavra. O espectador se torna um terceiro jogador: tenta
tambm compor palavras, enxerga aquelas palavras possveis, mas
no compostas pelos jogadores. Assim como o espectador comea
tambm a interpretar os sinais das casas que se apresentam em seu
Rua de mo dupla, ou o leitor que se torna ativo ao ter que desvendar
as Histrias do no ver.
Sim, vejo que existe mesmo uma conuncia entre nossosprocedimentos, que muitas vezes incluem tentar envolver o outro
no processo do trabalho, compartilhar com eles uma aventura, uma
experincia, uma alegria. Fico pensando que talvez essa seja uma ma-
neira de tentar sentir de perto o que uma proposio pode provocar
no outro, e tambm como o outro a modica, como ele pode tam-
bm provocar mudanas em ns. Lembro do seu ltimo e inespera-
do seqestro: h nele uma subverso da regra que me interessa a
princpio voc no sabe que aquele seqestro um jogo, uma brinca-
deira, como eram os outros. A situao parece fugir ao seu controle.
Acho que ns dois utilizamos como procedimentos de nos-
sos trabalhos a situao do jogo, de estabelecer regras. O que te inte-
ressa no jogo? E qual o papel do acaso em seu trabalho e mesmo em
sua vida?
Cao: O jogo est no cerne de qualquer relao social.O jogo e a mentira. Quando encontramos algum perguntamos ime-
diatamente (meio que sem pensar) tudo bem? e escutamos tam-
bm meio que automaticamente tudo bem! Tanto voc quanto o
outro iro armar instintivamente um pseudo bem-estar necessrio
para que as relaes se estabeleam (pelo menos em um primeiro
momento). Precisamos mentir sobre nossa real condio para no
assustarmos o outro.As regras so necessrias para o convvio social, e o tecido
social (que tambm uma matria em constante mutao) precisa
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da regra pois quer conservar um estado, um modo de vida. Mas as
regras (como tambm os jogos) envelhecem, no acompanham o
dinamismo social. Por isso necessrio perder o controle, quase for-
ar o descontrole, para reinventar as regras, como tambm os jogos.
Outras formas de percepo da realidade, isso o que me
interessa ao inventar um jogo. No me interessa no jogo a compe-
tio. Meus jogos eu os quero abertos onde todos os participantestm algo a ganhar. No no sentido da vitria, mas da evoluo.
Os participantes geralmente esto ali voluntariamente desejosos
de participar. Mais do que participar, se entregar. So corajosos no
sentido de abrirem suas vidas, suas casas, seu tempo, pois sabem
que participam de uma experincia que promove o descontrole, que
no caso signica investigao sobre si mesmo ao entrar em contato
com um mundo diferente do seu.
Como em todos os jogos a razo e o acaso cumprem papis
fundamentais em seu desenvolvimento. Mas quando o objetivo no
a vitria voc no tem por que pensar demais, ao contrrio, per-
mite a esponjosidade de seu ser aorar para uma melhor absoro
da experincia. Ao se libertar parcialmente da razo para adentrar-
se no ambiente do jogo voc permite que o acaso cumpra o papel
de timoneiro da situao. Albert Camus tem uma frase maravilhosa
sobre isso: O acaso o Deus da razo. A razo como propriedadeintrnseca e qualicatria da raa humana (e em geral usada inde-
vidamente para armar a superioridade da raa) est submetida a
uma outra instncia, digamos muito mais exvel, misteriosa e por
isso mesmo sedutora, o acaso.
Andarilho, meu ltimo longa-metragem, trata justamente de
algo que tange essa discusso a relao entre o caminhar e o pen-
sar. Diferentemente de Descartes, minha frase seria caminho, logopenso! Sou um caminhante, prero sempre andar a qualquer outro
meio de transporte. Porque caminho muito sentia uma absurda
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derivao no movimento de meus pensamentos. Comecei ento a
tentar (na segunda metade da caminhada) fazer o caminho inverso
(lembrar) da trilha de pensamentos que vivenciei e descobrir as asso-
ciaes que me levaram a pensar o que estava pensando naquele
momento. Era realmente um exerccio fascinante! Pensei ento em
fazer um lme sobre andarilhos, pessoas que simplesmente passam
a vida andando. Se eu, caminhante domesticado de cidade grande,j sinto tal fora derivativa no pensamento (delrio?) ao caminhar,
imagine aqueles que passam a vida andando! E ao fazer o lme, em
contato com os personagens, senti a fora do acaso na vida daquelas
pessoas. Um dos andarilhos ao chegar a uma encruzilhada de rodo-
vias (uma que vai ao norte do pas e outra que vai ao sul) me disse que
no pensava muito sobre que direo tomar, seguia mais a intuio e
o acaso. Da mesma forma os pensamentos em nossas cabeas quan-
do estamos caminhando. Por quais etreos caminhos, por quantas
encruzilhadas um pensamento precisa passar para chegar a existir?
A massa cinzenta do crebro, a massa cinzenta do asfalto, superf-
cies e labirintos pelos quais passam ps e pensamentos. Interessa a
voc chegar a algum lugar ou o que vale o deslocamento?
Maril: Lembrei de uma histria curiosa que tem muito a ver
com esse nosso papo sobre o jogo. Em 2003, eu e Cinthia Marcellerealizamos um trabalho que se chama O grande bingo: um jogo/per-
formance que aparentemente funciona como um bingo qualquer.
Os jogadores compram uma cartela com 17 nmeros, vendida por
R$1,00. Cada um pode comprar apenas uma cartela. O jogo come-
a: Cinthia e eu vamos cantando as bolinhas numeradas tiradas do
globo; simultaneamente, uma mo com a bolinha aparece em close
no telo. Ao completar a cartela, BINGO!, todos vencem ao mesmotempo, pois todas as cartelas tm impressos os mesmos nmeros,
ainda que em ordem diferente. Todos recebem o prmio, que igual
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ao valor arrecadado dividido pelo nmero de vencedores. Ou seja,
R$1,00. O grande bingo foi realizado duas vezes, e em ambas pude-
mos desfrutar do que acontecia quando os jogadores percebiam que
todos tinham os mesmos nmeros, e mesmo assim continuavam
jogando, mais empolgados ainda, e eram tomados por uma gran-
de alegria quando chegava o momento da vitria compartilhada.
A histria curiosa a seguinte: eu estava conversando com um outroartista, e ele me perguntou sobre aquele jogo de bingo que vocs
zeram em que ningum ganha. Ele falou isso e eu levei um susto,
porque para mim e para Cinthia, e acho que tambm para o pblico
que participou do trabalho, aquele era um jogo em que todos ganha-
vam. Na armao dele cou clara a fora de um paradigma capi-
talista: como seganharfosse sempre estar em vantagem sobre os
outros, nunca uma igualdade.
Jogos criam uma situao revelatria de si mesmo e do
outro, da relao que se estabelece, e do contexto mesmo em que
estamos inseridos. Assim usei o jogo de dados em Entre ns, o silen-
cioso jogo de palavras cruzadas em Movimento das ilhas; assim usa-
mos, eu e Cinthia, o jogo de bingo.
Sobre o deslocamento. Na minha vida tenho sido muito guiada
pela intuio, como o andarilho do teu lme. A intuio uma forma
de estar atenta ao que acontece, de apostar no acaso e no desconheci-do. O interessante dos desvios, das mudanas de direo, das partidas
e dos regressos, depois de um tempo, que sempre se revelam ser
outra coisa que aqueles motivos que pensava guiarem minha escolha,
ou melhor, que aqueles que eu usava para justicar racionalmente
para mim mesma certa escolha em certo momento. O motivo do des-
locamento no tinha um m, era a mudana em si mesma. Por isso
no penso sobre aonde chegar, penso sempre em onde estou.Lembro que escolhi fazer meu primeiro trabalho de uma
aula de losoa sobre a gura do andarilho. Comeava com uma
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citao de Nietzsche: Quem chegou, ainda que apenas em certa medi-
da, liberdade da razo, no pode sentir-se sobre a Terra seno como
andarilho embora no como viajante em direo a um alvo ltimo:
pois este no h. Mas bem que ele quer ver e ter os olhos abertos para
tudo o que propriamente se passa no mundo; por isso no pode prender
seu corao com demasiada firmeza a nada de singular; tem de haver
nele prprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudana e natransitoriedade.
O vdeo Hic et nunc (Aqui e agora), que realizei em 2002,
fala um pouco dessa abertura ao presente e mudana como parte de
meu processo de trabalho. Rosalind Krauss dene os verbos da lista
de Richard Serra, de 1967-68, como mquinas capazes de construir
seu trabalho. Hic et nuncrepresentava as minhas mquinas. Comecei
fazendo minha prpria lista de verbos: que inclua os verbos esquecer,
dialogar, errar, jogare, de novo, esquecer. Cada um dos 72 verbos dessa
lista foi escrito por minha mo direita em uma lousa branca, e logo
depois apagado pela mo esquerda: escrevo esquecer/apago/ escrevo
experimentar/apago/ escrevo multiplicar/apago/ escrevo querer/apa-
go/ e assim sucessivamente, at voltar a esquecer. O vdeo que registra
esse processo projetado em loop na mesma lousa branca.
Hoje, cinco anos depois, continuo achando que o meu pro-
cesso de trabalho guiado por essa transitoriedade, por esse olharatento ao presente, sem regras nem formas estabelecidas. Ele se faz
a cada dia. E a cada dia mudam os verbos.
Como o seu processo?
Cao: Outro dia encontrei uma ex-colega de escola em um
aeroporto. Havia 30 anos que ns no nos encontrvamos. Para minha
surpresa ela me disse que se lembrava de mim como um aluno apli-cado, sempre andando com uma pastinha surrada a tiracolo. Eu disse
a ela que jamais fui aluno aplicado e que as aparncias enganam.
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Sempre senti muita preguia em cumprir tarefas e obrigaes, prin-
cipalmente as que eu no sentia empatia alguma. A palavra cio (do
grego schol) derivada da palavra escola. No dia que descobri isso
senti uma espcie de conrmao do que intuitivamente eu praticava
desde menino de escola. Um dos fundamentos do meu processo de
trabalho o cio.
Poderia dizer ento que uma das mquinas capazes deconstruir meu trabalho no um verbo, mas um substantivo que
denomina um estado. Pelo menos em um primeiro momento. Antes
da ao h que se deixar tomar pelo desejo de agir, h que se deixar
impregnar pela vontade. E sinto a vontade como uma espcie de
nuvem ou camada atmosfrica que vai envolvendo lentamente meu
ser. A vontade geralmente aparece quando me sinto vontade, ou
seja, disponvel e aberto a que a vontade aparea.
A escola do cio, ao contrrio do que possa parecer e ain-
da mais no mundo em que vivemos, no das mais fceis de se
conseguir um diploma. tudo o que a sociedade mais rejeita. Pois
se a palavra escola ganhou um sentido positivo na sociedade mo-
derna, a palavra cio corre na contramo de tudo o que ela valoriza.
O ocioso se tornou sinnimo de vagabundo, omitindo assim toda
a nobreza etimolgica da palavra herdada dos gregos. Estar ocioso
estar aberto ao conhecimento. Existe uma diferena entre noestar fazendo nada e estar fazendo nada. Quando estou fazendo
nada estou lidando com um absoluto, o Nada (esta palavra divi-
na!). Quando no estou fazendo nada, estou fazendo qualquer
coisa, sou um ser til para uma sociedade que privilegia justamente
qualquer coisa.
Essa questo sugere a velha idia da inutilidade da arte.
Fabricar um po e pintar um po. Entre os dois verbos fabricar epintar existe um substantivo po que precisa ser ingerido. Qual
o po que alimenta mais, o ingerido pela boca ou o ingerido pelos
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olhos? Quando como um po estou certamente adiando mais a minha
morte, mas quando vejo a pintura de um po no estarei aprendendo
melhor a como morrer? Fazer nada no seria aprender a morrer?
Depois de toda essa elucubrao anterior cheguei ento a
uma frase que poderia ser meu epito: Passei minha Vida fabri-
cando Nada para aprender a Morrer.
Sei que no vale nada mas j alguma coisaH um outro verbo que eu acrescentaria nessa maquinaria
verbal de construo de uma obra: Morrer.
Pois penso a morte como transformao. Um de meus
primeiros lmes chama-se Between inventrio de pequenas mortes.
Reproduzo a seguir um pequeno texto que escrevi sobre esse traba-
lho e que evidencia um pouco o que signica para mim o conceito
de morte:
Estamos acostumados a falar apenas de uma morte. Como se o
limite de uma vida fosse marcado de um lado pelo nascimento
e de outro pela morte. Se comessemos a ampliar o conceito de
morte, deduziramos vertiginosamente que ela est presente em
tudo, em cada micropartcula de uma vida, e que os limites so ex-
pansivos. Os limites so justamente este lugar onde morte e vida
se misturam na tnue expressividade de uma mudana. Em cadasegundo morrem milhes de clulas em nosso corpo, em cada se-
gundo enchemos e esvaziamos os pulmes de ar. Between o lugar
e o momento de passagem. O que separa o que est dentro do que
est fora, o que passa do que ca, o que atravessa do que resta.
Outro verbo que consta de seu inventrio verbal e que de funda-
mental importncia para meu processo de trabalho errar.Eu quase poderia armar que eu s acerto quando erro! Pois
o erro o mais eciente desestabilizador de certezas. E as certezas
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so as coisas que mais enrijecem a alma humana. As certezas apri-
sionam nosso ser, camos destitudos da vontade de tentar de uma
outra forma, camos sem acesso possibilidade da novidade. Errar
estar livre para poder tentar de novo de uma forma diferente,
abrir o leque das possibilidades. Destitudos de certezas livramos
nosso ser para que ele se reinvente.
Finalmente por trs dessas trs poderosas instncias quepermeiam meu processo de trabalho o cio, a morte e o erro (curio-
samente trs coisas execrveis em qualquer fbrica ou em qualquer
escola moderna, o que prova que arte no tem nada a ver com pro-
cesso de produo de capital ou lucro e no se aprende em escola)
existe, latente e onipresente, uma quarta instncia: o movimento!
O cio, a morte e o erro so geradores de movimento.
O cio no sentido da absoro da vontade e do desejo.
A morte no sentido da transformao. O erro no sentido da liberdade
de expresso e da busca pelo novo. E o movimento a prpria vida,
a uidez constante. Um rio que aparentando ser sempre o mesmo
sempre diferente.
Maril: Sua ltima carta me chegou num dia de uma pe-
quena morte. Eu estava cortando uns papis e de repente o estilete
escapou da mesa e enterrou-se na minha perna. No foi um aciden-te de grandes propores um pequeno corte de uns cinco cent-
metros, um pouco fundo, verdade. Mas, desde criana, a viso do
meu prprio sangue me faz desmaiar. E a perspectiva do desmaio
sempre pior que o acidente em si mesmo. Porque desmaiar per-
der totalmente o controle, assumir uma fragilidade muito concre-
tamente, experimentar uma pequena morte. Eu estava sozinha em
casa e tentei controlar, coloquei sal na boca, achei que tinha passadoa tonteira, mas de repente eu j estava no cho. E quando consegui
me levantar liguei pro meu namorado, pedi ajuda. Pedir ajuda no
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algo que eu faria um tempo atrs, pois sempre achei que devo ser
forte, e isso se confundia s vezes com ser auto-suciente. Ele veio
e me limpou a ferida, me fez almoo, cuidou de mim. E isso algo
que fui aprendendo tambm com o meu trabalho: a assumir que
preciso do outro.
Acho que concordo com voc quanto ao verbo morrer no
sentido em que s crio alguma coisa a partir de um acontecimentoque me demanda ou me impe uma transformao. Muitas vezes
isso aparece no meu trabalho como um pedido de ajuda, de com-
panhia. Porque essas experincias de morte so muito solitrias.
E transform-las em trabalho muitas vezes querer compartilhar
essa solido, dizer vem, vamos juntos, me ajuda aqui. Eu acho
que em meu trabalho procuro ser otimista, tento aprender a viver
melhor. E viver melhor morrer melhor tambm.
Agora apareceu essa outra palavra que penso ser importan-
te no meu processo: solido. Sinto que muitas vezes, com os meus
trabalhos, quero provoc-la; outras vezes, sair dela. Acho que a arte
uma maneira de equilibrar estes dois estados que para mim so
importantes na vida e na morte: o estar-junto e o estar-s.
Falar sobre o cio tambm falar sobre o tempo, sobre como
lidar com ele. Em 2004, z o trabalho A meia-noite tambm o meio
dia um relgio, aparentemente comum, que prope um tempomodicado, retardado, mais lento. um relgio analgico em que
os ponteiros demoram 24 horas para dar uma volta completa, o que
normalmente levaria 12 horas. Sempre num tempo outro, ora parece
atrasado, ora adiantado coincidindo com o horrio ocial, de Bra-
slia, apenas ao meio-dia. Esse um trabalho em que tento armar
com mais contundncia a minha vontade de ir contra esse tempo
em que vivemos tempo em que a velocidade e a produo so asgrandes metas e contra toda a ansiedade que ele gera. Armar um
tempo lento, permitir-se o cio, a contemplao, o nada.
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8/9/2019 ConversacomCaoGuimares
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CORREspOndnCIAs
Por m, achei muito curioso que a sua ltima frase tenha
sido Um rio que aparentando ser sempre o mesmo sempre dife-
rente. Esse conceito, derivado de Herclito, aparece tambm no
meu primeiro trabalho, de 1998, O livro de Areia.
No conto O livro de areia, Jorge Luis Borges se depara
com um livro innito, com pginas que nunca se repetem. Constru
um objeto partindo desse texto e do fragmento de Herclito em quearma no ser possvel o mesmo homem entrar duas vezes no mes-
mo rio. um livro de pginas de espelhos, imagem do innito de
Borges e do devir de Herclito. O leitor desse livro, ou de qualquer
outro livro, de fato, nunca encontrar o mesmo sentido em suas pgi-
nas, mesmo que elas permaneam as mesmas. Um elogio ao movi-
mento, vida.