Contribuições da Análise Institucional para uma abordagem das ...

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces n o 40, p. 47-73, 2010 47 Contribuições da Análise Institucional para uma abordagem das práticas linguageiras: a noção de implicação na pesquisa de campo Décio Rocha Bruno Deusdará O presente artigo tematiza a problemática da implicação, tópico ao qual vem sendo atribuída uma grande importância quando se assume uma perspectiva que provisoriamente caracterizaremos como não cientificista em relação à produção de saberes no campo das ciências sociais. O referido tópico será aqui discutido como um vetor importante oriun- do da prática analítica em perspectiva institucionalista, que nos permitirá interrogar certos impasses da pesquisa de campo voltada para as práticas de linguagem em um enfoque discursivo. Assim sendo, o que ora propomos é repensar as fronteiras que, entre nós, constituíram a Análise do discurso e a Análise institucional como especialidades de formações acadêmicas distintas, a fim de favorecer novas composições nessa paisagem disciplinar, atualizando sua força instituinte. Nosso propósito será o de incluir nos contornos que envolvem a referida problemática os estudos comprometidos com um certo modo de apreender as práticas linguageiras segundo a perspectiva desenvolvida por analistas do discurso – denominação vaga, tendo em vista a diversidade de abordagens que reclamam para si o “selo da discursividade”, mas que possuem em comum, se- gundo podemos avaliar, o fato de não reservarem em suas discussões qualquer espaço efetivamente relevante de problematização das implicações, ou, pelo menos, de o fazerem apenas de forma marginal. Trataremos especificamente de algumas dúvidas que se atualizam a partir da opção pela pesquisa de campo. Queremos especialmente colocar em discus- são uma certa concepção de pesquisa de campo que a veria como uma etapa de mera “coleta de dados”. Ora, parece-nos insuficiente compreender os textos, produzidos em situações concretas de enunciação, como “dados” a serem cole- tados, extraídos desses contextos e passíveis de análise em outras coordenadas

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contribuições da Análise institucional para uma abordagem das práticas linguageiras:

a noção de implicação na pesquisa de campo

Décio RochaBruno Deusdará

O presente artigo tematiza a problemática da implicação, tópico ao qual vem sendo atribuída uma grande importância quando se assume uma perspectiva que provisoriamente caracterizaremos como não

cientificista em relação à produção de saberes no campo das ciências sociais. O referido tópico será aqui discutido como um vetor importante oriun-

do da prática analítica em perspectiva institucionalista, que nos permitirá interrogar certos impasses da pesquisa de campo voltada para as práticas de linguagem em um enfoque discursivo. Assim sendo, o que ora propomos é repensar as fronteiras que, entre nós, constituíram a Análise do discurso e a Análise institucional como especialidades de formações acadêmicas distintas, a fim de favorecer novas composições nessa paisagem disciplinar, atualizando sua força instituinte.

Nosso propósito será o de incluir nos contornos que envolvem a referida problemática os estudos comprometidos com um certo modo de apreender as práticas linguageiras segundo a perspectiva desenvolvida por analistas do discurso – denominação vaga, tendo em vista a diversidade de abordagens que reclamam para si o “selo da discursividade”, mas que possuem em comum, se-gundo podemos avaliar, o fato de não reservarem em suas discussões qualquer espaço efetivamente relevante de problematização das implicações, ou, pelo menos, de o fazerem apenas de forma marginal.

Trataremos especificamente de algumas dúvidas que se atualizam a partir da opção pela pesquisa de campo. Queremos especialmente colocar em discus-são uma certa concepção de pesquisa de campo que a veria como uma etapa de mera “coleta de dados”. Ora, parece-nos insuficiente compreender os textos, produzidos em situações concretas de enunciação, como “dados” a serem cole-tados, extraídos desses contextos e passíveis de análise em outras coordenadas

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de espaço-tempo, sem qualquer reflexão sobre esse procedimento que se carac-teriza como uma intervenção de ordem ético-política. A título de ilustração da demanda a que nos vemos respondendo com a interface que aqui pretende-mos constituir entre uma atitude institucionalista e uma perspectiva discursiva, faremos menção ao que dizem manuais de metodologia a esse respeito. Em Santos (1999), o campo como “fonte de informações” opõe-se ao laboratório e se define da seguinte maneira: “Lugar natural onde acontecem os fatos e fenôme-nos. A pesquisa de campo é a que recolhe os dados in natura, como percebidos pelo pesquisador” (Santos, 1999, p. 30). Vemos assim que os “dados” mencionados no trecho acima relacionam-se com os “fatos” e os “fenômenos”, seja por uma relação de equivalência, seja por representarem fragmentos, pedaços deles.

Antecipando um debate que privilegiaremos neste artigo, diremos que aquilo que se considera como sendo um “dado” resulta fundamentalmente de um duplo procedimento: por um lado, a naturalização de um real sócio-histórico pré-existente à presença do pesquisador e não alterado por sua pre-sença; por outro, a autonomização do real, o qual se apresentaria claramente delimitado em unidades que a qualquer momento poderiam ser capturadas pelo pesquisador.

O recurso à noção de implicação terá por objetivo precípuo desfazer equívocos como o que ora apontamos. Falaremos, pois, de implicação, par-tindo de uma definição mínima do conceito, o qual remete à noção de não-neutralidade do pesquisador diante do tipo de conhecimento que produz, isto é, uma espécie de mescla essencial de forças no interior da qual resultariam as posições de sujeito e de objeto – formas que se deixam apreender a partir de um “exercício de individualização” que já é efeito: efeito-sujeito e efeito-obje-to. Em outras palavras, o pesquisador está inelutavelmente presente naquilo que pretende analisar e que só pode ver a partir do lugar que ocupa; o pesqui-sador não pode não ser perspectivo, mas pode explorar aquilo que condiciona seu olhar, sua intervenção.

Nosso percurso neste artigo estará organizado em quatro momentos:. conceituação de implicação, noção-chave que, a nosso ver, possibilita

um rearranjo de fronteiras disciplinares, viabilizando uma problematização da pesquisa de campo;

. apresentação de um breve panorama conceitual, situando a noção de implicação no bojo do movimento institucionalista francês;

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. desdobramentos da noção de implicação, ampliando-a e estendendo-a aos estudos voltados para as práticas linguageiras;

. relato de trabalhos centrados nas práticas linguageiras que indiquem a pertinência da noção de implicação.

1. sobre a noção de implicação

A noção de implicação, que definimos segundo a ótica do instituciona-lismo francês1, remete à impossibilidade de objetividade, de neutralidade na pesquisa, ou seja, impossibilidade de apagamento das instituições de diferen-tes ordens que atravessam o pesquisador e que são constitutivas de seu fazer: implicações afetivas, profissionais, institucionais, etc.

O tema das implicações põe em questão a impossibilidade da adoção de critérios de objetividade como norteadores de uma atividade de pesquisa, em especial no que concerne àquela desenvolvida em ciências sociais, território no qual, de forma privilegiada, se coloca em dúvida a “relação de exterioridade de quem pesquisa face ao que é pesquisado”2: ... a noção de implicação revela-se indispensável a qualquer abordagem de um objeto de conhecimento que reco-nhece a realidade social como complexa. (GUILLIER; SAMSON, 1997, p. 23)

Com efeito, no referido território de pesquisa, não existem um objeto (mundo exterior representável) e um sujeito (mundo interior, consciência re-presentante) dados de antemão, cisão que remeteria à posição dualista cartesia-na. Verifica-se, desse modo, a impossibilidade de uma exterioridade essencial, de uma ruptura3 entre sujeito e objeto, produzindo-se, antes, uma mescla de forças – mescla que não corresponde nem a um sujeito, nem a um objeto individualizados, e que foi inicialmente associada à noção psicanalítica de con-tratransferência, para designar o conjunto de reações do analista/pesquisador frente ao analisando. ... é comum em psicologia falar de ‘implicação’ para

1 Segundo Baremblitt (1992, p. 13-4), sob a denominação institucionalismo reúne-se um le-que variado de tendências, de escolas, cujo denominador comum poderia ser grosso modo localizado no fato de todas pretenderem “propiciar, apoiar, deflagrar nas comunidades, nos coletivos, nos conjuntos de pessoas, processos de autoanálise e processos de autogestão”.

2 Tradução nossa, procedimento a ser adotado no decorrer de todo o artigo.3 Como reformulantes de objetividade, Guillier & Samson falam ainda da impossível “exterio-

ridade – ruptura – distanciação” na pesquisa em ciências sociais (GUILLIER; SAMSON, 1997, p. 23).

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designar a existência de um lugar [un lieu], de um elo [un lien], apresentando uma relação de confusão entre o analista e seu paciente. (GUILLIER; SAM-SON, 1997, p. 24)4.

Em breve retrospectiva, os conceitos de transferência e contratransferência institucional foram produzidos em psicanálise entre 1960 e 1965. Por con-tratransferência entende-se o “conjunto das reações inconscientes do analista à pessoa do analisando e, mais particularmente, à transferência deste” (LA-PLANCHE: PONTALIS, 2001, p.102). Quanto à delimitação do conceito, duas são as possibilidades de entendimento: (i) contratransferência é tudo o que, da personalidade do analista, pode intervir no tratamento; (ii) contra-transferência remete apenas aos processos inconscientes que a transferência do analisando provoca no analista. Como se percebe, a caracterização fornecida para a referida noção parece por si só justificar sua posterior substituição pelo conceito de implicação.

Para Barbier (1985), trabalhar as implicações em um dado campo de in-tervenção (o qual pode ser um estabelecimento, um grupo informal, um grupo institucionalizado, um grupo amplo como, por exemplo, um vilarejo) significa explicitar a ação latente ou manifesta das instituições nesse campo. Sustentan-do um ponto de vista que defende uma tipologia tripartite das implicações – implicações de nível psicoafetivo, de nível histórico-existencial (relativo ao etos e ao habitus da classe social de origem do pesquisador) e de nível estrutural-profissional –, o autor apresenta a seguinte formulação para o conceito:

[a implicação é] o engajamento pessoal e coletivo do pesqui-sador em e por sua práxis científica, em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições passada e atual nas relações de produção e de classe, e de seu projeto sócio-político em ato, de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda atividade de conhecimento. (BARBIER, 1985, p. 120)

4 É interessante observar o jogo de palavras possibilitado pela língua francesa no que concerne aos significantes lieu e lien, “coincidência” que não faz senão enfatizar a impossibilidade de distinguir em absoluto o lugar (lieu) ocupado pelo analista e o elo (lien) que o liga a seu outro, a saber, o analisando.

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Com efeito, vários são os autores que trouxeram sua contribuição para uma definição de implicação, acentuando a impossibilidade de se evitar o tema, como se percebe no ponto de vista sustentado por Lourau, para quem “somente a análise das implicações permite compreender e transformar rela-tivamente os atos falhos da pesquisa em ciências sociais.” (apud MERINO 1997, p. 60).

Uma mesma ordem de reflexão pode ser resgatada em Morin: o pesqui-sador não se contenta em analisar os dados sociais relativos a seu objeto; antes, ele integra em seu dispositivo5 a elucidação de “perturbações” induzidas para tentar “compreender-se a si mesmo enquanto observador” (MERINO, 1997, p. 60). Ou ainda: “é da ordem da implicação todo fator pessoal que tenha uma relação entre o sujeito e o objeto de pesquisa, entre o pesquisador e o objeto de conhecimento científico”. (MERINO, 1997, p. 60)

Segundo Savoye (apud FERRARATO, 1994, p.145), a implicação “é a configuração singular das relações nas quais o pesquisador é enredado: relação com o seu objeto de pesquisa, com a instituição de pesquisa da qual ele depen-de, com o contexto político e social que o engloba etc.”.

Em mais uma iniciativa de definição, localizamos a seguinte proposta:

... entendemos por implicação o grau de envolvimento, sempre presente, do analista para com o objeto estudado (implicação de ordem afetiva, política, ideológica etc.) que vai de encontro à famosa neutralidade herdada do cientificismo ultrapassado que coloca o investigador fora do contexto estudado, distante do objeto ... (NEVES et al., 1987, p. 58)

Não nos alongaremos mais na diversidade de respostas oferecidas por ou-tros autores em relação à noção de implicação, pois consideramos suficientes as que até aqui elencamos. Acrescentaremos apenas uma reflexão de Lefort que nos parece particularmente feliz no sentido de garantir uma postura de acolhi-mento da referida idéia de implicação no âmbito de toda e qualquer atividade pesquisa. Com efeito, segundo o autor, o que caracteriza uma sociedade demo-

5 Dispositivo (ou agenciamento) “é uma montagem ou artifício produtor de inovações que ... atualiza virtualidades ...” (BAREMBLITT, 1992, p. 151).

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crática é que nela nada se encontra fundado a priori (apud GUILLIER; SA-MSON, 1997, pp. 24-5). Ora, tal inexistência de fundamentos dados a priori mantém precisamente um estreito vínculo com o debate possibilitado pela aná-lise das implicações, tendo em vista tratar-se de um conceito que contribui para desnaturalizar muito do que aprendemos a ver como sendo um “dado natural”. Por essa razão, acreditamos que um papel fundamental desempenhado pelas implicações esteja muito adequadamente formulado na definição que se segue, papel que, como veremos, produz ressonâncias ineludíveis sobre a dimensão ética de nossa própria possibilidade de atuar em um dado campo:

[no que concerne à implicação] A questão principal não nos parece resumir-se ... à necessidade de analisar a maneira como aquele que intervém se vincula aos indivíduos, grupos e insti-tuições com os quais trabalha. (...). Quando falamos em análise da implicação, não nos referimos apenas a isto, nem sequer pri-mordialmente a isto. Trata-se, isto sim, da análise dos víncu-los (afetivos, profissionais e políticos) com as instituições em análise naquela intervenção em tal ou qual organização e, de forma ainda mais generalizada, da análise dos vínculos (afeti-vos, profissionais, políticos) com todo o sistema institucional. (RODRIGUES; SOUzA, 1987, p. 33).6

Como se pode depreender, a mencionada dimensão ética que aqui se con-sidera afasta-se de um provável sentido de “caráter, costume ou estado original de um homem” (COOK, 1993, p. 124), de uma compreensão de sujeito a partir da noção de pessoa, de ciência como conhecimento formal ao qual se deva chegar segundo determinada fórmula ou manutenção de procedimento prévios, e assume a indissociabilidade dos vínculos – afetivos, profissionais e

6 As autoras ilustram os diferentes níveis de trabalho sobre as implicações indicando que, se, por exemplo, um grupo de estagiários de psicologia de uma universidade particular realizasse uma intervenção em uma escola pública, a análise da implicação incluiria, certamente, não apenas as identificações e rivalidades entre os analistas e os professores, os alunos e a própria direção da escola, mas, mais fundamentalmente, “os vínculos com as instituições em análise (a instituição da universidade e a instituição da escola ...) e os vínculos com todo o sistema institucional (o público e o privado, o dinheiro, a comunidade científica, o Estado, ... e, até mesmo, a própria instituição da análise institucional!).” (RODRIGUES; SOUzA, 1987, p. 33).

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políticos -, das escolhas e dos processos múltiplos que configuram subjetividades e intersubjetividades em toda e qualquer contingência da prática de pesquisa, atravessando-a e constituindo-a em seus vieses de análise. Fato que em nada desacredita seu patamar científico. Compartilha, assim, com uma visão de ética, que considera a maneira pela qual nos conduzimos enquanto sujeitos morais de nossas ações, e também com uma visão de ciência, que se relaciona às condições de sua institucionalização e consagração de seus saberes em nossa sociedade:

“As ciências do homem não são separáveis das relações de poder que as tornam possíveis e que suscitam saberes mais ou menos capazes de atravessar um limiar epistemológico ou de formar um conhecimento” (DELEUzE, 2005, p. 82).

2. Breve panorama conceitual do institucionalismo

Para uma compreensão mais balizada da noção de implicação, consideramos necessário recorrer a outros conceitos do institucionalismo francês que se arti-culam com o tema. Na realidade, não seria difícil multiplicar as conexões possí-veis de serem estabelecidas entre implicação e uma grande diversidade de noções. Tendo em vista, no entanto, os limites que se impõe este artigo, privilegiamos os pontos de contato entre implicação e as seguintes noções: instituição (instituinte e instituído); atravessamento e transversalidade; analisador; campo de análise e campo de intervenção; encomenda, demanda, (análise da) oferta. Julgamos que essas noções, dentre outras ainda que poderíamos convocar, são suficientes para uma problematização da postura a ser assumida pelo linguista na pesquisa de cam-po, criando ferramentas que favoreçam a desnaturalização da prática de pesquisa.

A análise implicacional é regularmente vista como sendo o ponto mais delicado da Análise institucional7, perspectiva teórico-metodológica que remete a todo e qualquer trabalho de explicitação de uma dada realidade institucio-

7 Expressão cunhada por Guattari para responder às exigências de interdisciplinaridade entre, por um lado, a psicoterapia institucional nascente no início dos anos 50 do último século (grosso modo, uma rearticulação da prática hospitalar da psiquiatria tradicional com o pen-samento psicanalítico), de cuja construção ele próprio participou ativamente, e, por outro, diversas outras práticas similares em campos variados, a exemplo da pedagogia, do urbanis-mo, dos movimentos estudantis, etc. (GUATTARI, 1985, p. 103).

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nal, isto é, de explicitação de um dado estado de configuração de um campo institucional. Segundo Hess (2001, p. 181), qualquer um pode praticá-la, uma vez que não se trata de uma “nova disciplina produzindo novos especia-listas”. Desse modo, o que é preciso para praticá-la é que se evidencie o sentido do embate entre forças instituintes e forças instituídas nas instituições que atravessam o sujeito e também as forças que esse sujeito atravessa. Em outras palavras, tal revisão do processo de institucionalização implica que se possa dar conta “de sua própria institucionalização como sujeito social”: “não posso me colocar entre parênteses”, dirá Hess (2001, p.164). Como exemplos de implicações a serem analisadas, o autor cita a própria escolha de um tema de pesquisa, ou então a escolha entre fazer x, y ou z, decisões que não comportam qualquer grau de neutralidade ou de naturalidade:

O homem, como a instituição, se produz e se reproduz perma-nentemente. O que é curioso é que, ao se produzir, o homem produz a instituição; exatamente como a instituição que, ao se produzir, produz ... homens ... Essa dialética entre a reprodução social e a reprodução do sujeito no campo social obriga o pes-quisador a recolocar em questão a ilusão de uma neutralidade ou de uma objetividade possível no campo das ciências huma-nas. (HESS, 2001, p. 164)

Compreende-se, desse modo, que instituição não deva “se confundir com o estabelecimento e suas paredes, o local de trabalho”. Instituição “é o que vem à luz no enunciado das implicações de cada um em uma situação, segundo um dispositivo de trocas construído por um modo de intervenção” (FERRARATO, 1994, p. 145).

Rodrigues e Souza (1987) revêem diferentes possibilidades de entendi-mento da noção de instituição, segundo a tradição francesa do conceito:

. a instituição-estabelecimento, concepção que se assenta nos trabalhos de Psicoterapia Institucional que têm início na década de 40 do último século:

... instituição é pensada como ESTABELECIMENTO de cui-dados, num duplo sentido: um estabelecimento que merece ser cuidado (terapeutizado) e que, deste modo, pode ser mobiliza-

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do a serviço da ação terapêutica – os enfermos seriam curados pela institucionalização, ou melhor, pela participação ativa na vida e nas transformações institucionais. (...) [por extensão] ins-tituições são ... todos os ESTABELECIMENTOS ou ORGA-NIzAÇÕES, com existência material e / ou jurídica: escolas, hospitais empresas, associações, etc. Tal sentido está presente em afirmações tais como: ‘trabalho em uma instituição” (RO-DRIGUES; SOUzA, 1987, p. 21);

. a instituição-dispositivo instalado no interior dos estabelecimentos, como seria o caso, por exemplo, dos “grupos operativos, grupos de discussão, assembléias, equipes de trabalho, conselhos de classe, etc., instalados no inte-rior de estabelecimentos tais como escolas, hospitais, empresas, etc.” (RODRI-GUES; SOUzA, 1987, p. 22). E mais: “conhecer tais técnicas [técnicas de trabalho institucional] e saber manejá-las qualificaria, ao menos parcialmente, o ‘trabalhador institucional’, o ‘perito’ ou ‘especialista’ em instituições.” (RO-DRIGUES; SOUzA, 1987, p. 22);

. a instituição-produção, atividade8, novo entendimento de instituição originário dos movimentos anti-institucionais, os quais enfatizam ser a insti-tuição o “produto da sociedade instituinte em tal momento de sua história” (RODRIGUES; SOUzA, 1987, p. 23), isto é, uma não-natureza. Trata-se de uma “forma geral das relações sociais, que se instrumenta em estabelecimentos e / ou dispositivos” (RODRIGUES; SOUzA, 1987, p. 23).

O objetivo da Análise Institucional seria trazer à luz essa dia-lética instituinte-instituído... Para tanto, ela pode intervir EM estabelecimentos e COM dispositivos, mas sempre visando a apreender a instituição em seu sentido ativo. (RODRIGUES; SOUzA, 1987, p. 24).

Vemos, deste modo, que, em consonância com Ferrarato (1994), a noção de instituição visa alcançar um estatuto conceitual, não mais permanecendo

8 Os termos produção e atividade são opções de Rodrigues e Souza (1987, p. 24) para atualizar esta terceira acepção de instituição.

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no plano meramente empírico da organização ou do dispositivo. Neste caso, não mais se poderá dizer, por exemplo, que a escola ou o conselho de classe sejam instituições. Antes, diremos que na organização escola ou no dispositi-vo conselho de classe (re)produzem-se relações que multiplicam o campo das instituições (conceituais) para as quais poderemos nos voltar: a instituição da formação, da educação, da infância, dos diferentes profissionais da educa-ção, da avaliação, dos diversos campos do saber, dos processos de seleção etc. O analista deve intervir, segundo Rodrigues e Souza (1987, p. 26), não na “organização-produto (dispositivos e objetivos naturalizados) e sim no nível da(s) instituição(ões) que se instrumenta(m) na mesma”, problematizando-a(s). Isso porque o objetivo da análise seria não o mero atendimento ao que solicita o cliente (melhoramento das relações, por exemplo), mas a subversão do instituído.

Para as autoras, uma atitude “institucionalista” se define por intermédio de quatro “pontos de convergência”: o questionamento das formas clássicas de pesquisa baseada em critérios de cientificidade; o questionamento dos especia-lismos profissionais instituídos; a ênfase na análise da implicação; a análise da instituição da Análise Institucional, a qual vem sendo vista como “propriedade dos psicólogos”9.

Assim, pois, as autoras oferecem uma definição de instituição: “certas for-mas de relações sociais, tomadas como gerais, que se instrumentam nas orga-nizações e nas técnicas, sendo nelas produzidas, re-produzidas, transformadas e / ou subvertidas.” (RODRIGUES; SOUzA, 1987, p. 32)

Na definição que oferecemos de instituição, fizemos menção ao encontro de um plano em que se atualizam elementos da ordem do instituído e um plano de forças instituintes. Devemos agora acrescentar que, em consonância com a argumentação de Baremblitt (1992), cada um desses planos constitui uma malha na qual se entrelaçam seus diferentes elementos: por um lado,

9 Segundo Rodrigues e Souza (1987, p. 34), “ao menos no contexto do Rio de Janeiro, as práticas autodenominadas de Análise Institucional vêm sendo desenvolvidas quase que ex-clusivamente por profissionais ‘psi’: são psicólogos, psicanalistas ..., psicopedagogos ... e, fundamentalmente, profissionais ‘psi’ ligados à instituição escola (os antigos ‘psicólogos es-colares’)”. De nossa parte, conforme dissemos no início deste artigo, estamos convencidos de que muitas das contribuições do institucionalismo poderiam revigorar a reflexão de nossa abordagem discursiva das práticas linguageiras.

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entrelaçamento, interpenetração, entre os elementos instituídos, isto é, aque-les que trabalham no sentido de promover a reprodução, a estabilização; por outro lado, entrelaçamento, interpenetração, entre os elementos instituintes, ou seja, os que trabalham para a produção, para a promoção das utopias. Esse duplo modo de entrelaçamentos em toda dinâmica das instituições possibi-lita-nos distinguir duas noções: a noção de atravessamento (interpenetração dos elementos a serviço do instituído) e a de transversalidade (interpenetração entre as diferentes forças instituídas). A citação que a seguir reproduzimos é bastante esclarecedora sobre a noção de atravessamento:

Nós dizemos... que uma escola é um estabelecimento das or-ganizações do ensino, que por sua vez são uma realização da instituição da educação. Mas acontece que uma escola não só alfabetiza, não só instrui, não só educa... senão que, de alguma forma ela também prepara força de trabalho (alienado), ou seja, uma escola também é uma fábrica. Por outro lado, uma esco-la... também consegue manter os alunos presos durante seis a oito horas por dia e... o que fundamentalmente lhes ensina é a obedecer e o que basicamente lhes transmite é um sistema de prêmios e punições, especialmente de punições. Neste sentido é que uma escola é também um cárcere. Mas, além disso, o que a escola ensina é uma série de valores do que deve ser cons-truído, do que deve ser destruído, ensina formas de exercício da agressividade. Então, de alguma maneira, também se pode dizer que uma escola é um quartel. Então, ...uma escola, no nível do instituído, do organizado, ...no nível da reprodução, ...está atravessada pelas outras organizações. (BAREMBLITT, 1992, p. 36-7)

Como se percebe no fragmento, os atravessamentos da escola remetem ao conjunto de circunstâncias que colaboram para a manutenção de um de-terminado estado de coisas (manutenção da exploração, do silenciamento, dos sistemas de classificação, etc.). Porém, retomando Baremblitt (1992), uma escola não é apenas isso:

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... uma escola também é um âmbito onde se tem a ocasião de formar uma agrupamento político-militar, um clube infantil; ... onde se pode aprender a lutar pelos direitos; ... onde se pode integrar um sistema de ajuda mútua entre os alunos; ... onde se podem adquirir elementos para poder materializar as correntes instituintes, produtivas; numa escola também se pode aprender a lutar contra a exploração, a dominação, a mistificação. (BA-REMBLITT, 1992, p. 37)

Em definição largamente inspirada em Hess (2001, pp.217-8), diremos que a transversalidade é o conjunto dos pertencimentos do sujeito para além da organização considerada, por meio de cuja explicitação o sujeito logra questionar a relação de assujeitamento imposta pela instituição. Ou ainda, retomando literalmente o autor, diremos que a transversalidade é algo cuja elucidação “reintroduz o exterior no interior” (HESS, 2001, p. 217).

Tendo em vista essa segunda ordem de considerações acerca da escola, compreende-se em que sentido ela também pode ser vista como lugar de in-terpenetração de outras organizações, instituições, para a atualização de forças organizantes, isto é, instituintes. Esse é precisamente o plano dito de trans-versalidade, o qual, diferentemente de outras duas dimensões também sem-pre presentes nas organizações – a saber, a mera verticalidade das hierarquias estabelecidas e a horizontalidade das relações informais – é responsável pela produção de “dispositivos que não respeitam os limites das unidades organi-zacionais formalmente constituídas, gerando assim movimentos e montagens alternativos, marginais e até clandestinos às estruturas oficiais e consagradas” (BAREMBLITT, 1992, p. 38).

Não é difícil perceber que a produção de tais “movimentos e montagens al-ternativos”, que questionam o plano do instituído, é obra do trabalho realizado por analisadores10. Segundo Baremblitt (1992), analisadores são efeitos ou fenô-menos formalmente comparáveis àquilo que se privilegia no trabalho analítico empreendido pela psicanálise, a exemplo do sonho, dos atos falhos, dos lapsus linguae, chistes, sintomas, delírios, etc. O analisador é o “elemento que revela

10 O termo analisador foi utilizado no contexto da neurofisiologia por Ivan Pavlov (1849-1936) para se referir aos sistemas sensoriais, compostos por receptores, vias nervosas e zonas cerebrais associadas, que permitem analisar a complexidade do mundo percebido.

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e faz falar a dicotomia constitucional da instituição: a saber, a luta entre forças instituintes e forças instituídas” (HESS, 2001, p. 182). Em outras palavras, é o elemento que vem atualizar o não-dito da instituição (e também o não realizado, isto é, os comportamentos proibidos, outro modo de manifestação do recalque).

Consideram-se, em geral, dois tipos de analisadores: (i) analisadores es-pontâneos ou naturais (que BAREMBLITT, 1992, p. 72, prefere denominar históricos), a saber, aqueles que se produzem “naturalmente” na vida históri-co-social; (ii) analisadores artificiais ou construídos, isto é, inventados pelo analista para favorecer a explicitação de saberes, de conflitos e dos possíveis caminhos projetados na vida de uma instituição.

Hess e Authier (1994) ilustram de modo particularmente claro a função de um analisador, recorrendo ao seguinte exemplo: “... o primeiro homem que construiu uma bússola para revelar a existência dos campos magnéticos cons-truiu um analisador desses campos. Porém, não se pode falar de analisador a cada emprego da bússola ...” (HESS; AUTHIER, 1994, p. 79)

Se não se pode falar de analisador nos empregos ulteriores da bússo-la, isso se deve ao fato de um analisador sempre implicar a análise de uma nova realidade. Em outras palavras, o analisador não é um gadget guardado na manga do analista para ser aplicado indiscriminadamente a qualquer situação, pois, segundo Hess e Authier (1994), isso significaria negar a singularidade de cada instituição.

Uma outra distinção que se deve fazer com base no referido conceito de instituição é aquela que se verifica entre campo de análise e campo de interven-ção. Com efeito, tal distinção é essencial para que possamos, a seguir, cumprir as seguinte etapas:

. descrever as diferentes formas de encaminhamento de uma intervenção;

. relacionar as noções de oferta, encomenda e demanda tendo em vista o necessário trabalho de análise que tais conceitos pressupõem.

Por campo de análise compreende-se “o perímetro escolhido como ob-jeto para aplicar o aparelho conceitual disponível...: a inteligência acerca de como ele funciona, a articulação de suas determinações, a forma em que são gerados seus efeitos etc.” (BAREMBLITT, 1992, p.157). Quanto mais amplo for o campo de análise, maior a possibilidade de entendimento do campo de intervenção, o qual pode ser definido como “o recorte que delimitará o espaço dentro do qual se planejarão e executarão as estratégias, logísticas e técnicas,

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que deverão operar neste âmbito específico para transformá-lo de acordo com as metas propostas.” (BAREMBLITT, 1992, p. 158). Compreende-se que o campo de intervenção pressupõe necessariamente um campo de análise com base no qual aquele será pensado e compreendido. Desse modo, “...o campo de intervenção é, em geral, infinitamente menor que o campo de análise ...” (BAREMBLITT, 1992, p. 67).

Baremblitt (1992, p. 102-4) apresenta-nos uma tipologia das diferentes modalidades de intervenção:

. um serviço (de intervenção) é oferecido a partir de posições tradicio-nais, clássicas (por exemplo, o serviço oferecido por um profissional liberal ou autônomo, por uma sociedade científica de Análise institucional, por um estabelecimento privado, por um departamento ou setor específico de uma Faculdade);

. um serviço (de intervenção) é oferecido por parte de uma equipe que integra a organização na qual se pretende intervir;

. um serviço (de intervenção) é oferecido como no caso anterior, mas de modo menos burocratizado e de forma menos profissional (como é o caso de institucionalistas que, militando num partido político, são solicitados a inter-vir em um segmento específico a pedido do partido);

. um institucionalista integrante de uma dada organização à qual pertence organicamente ou não passa a intervir em algum segmento sem que tenha ha-vido qualquer solicitação de seus serviços (caso de um membro de uma associa-ção de moradores que, no exercício de sua função como integrante da referida associação, opera como institucionalista, sem que seja explicitada tal condição);

. um exercício cotidiano de uma prática institucionalista (o sujeito não oferece serviços como institucionalista, mas alimenta uma concepção institu-cionalista de mundo e, por isso, vive suas relações cotidianas – no trabalho, em família, etc. – com base em tais princípios).

Uma tal tipologia das diferentes modalidades de intervenção vem atu-alizar, como não é difícil perceber, diferentes modalidades de atualização da oferta. A tal questão prende-se a da diferença que separa encomenda, demanda e oferta.

A encomenda (também chamada de demanda latente, pedido, encargo) remete aos “sentidos não explícitos, não manifestos, dissimulados, ignorados ou reprimidos, e que comporta uma demanda de bens ou serviços”, ou seja,

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trata-se de um termo que alude a uma “exigência de soluções imaginárias ou de ações destinadas a restaurar a ordem constituída quando a mesma está ameaçada.” (BAREMBLITT, 1992, p. 169).

Análise da demanda

... é a análise e deciframento que se faz do pedido de intervenção por parte de uma organização. (...) É o material de acesso inicial que já contém valiosos aspectos conscientes, manifestos, deli-berados, assim como todo um filão de aspectos inconscientes e não-ditos que remetem a um esboço inicial da ... problemática da organização solicitante. (BAREMBLITT, 1992, p. 153).

É importante que a análise da demanda esteja articulada com a análise da produção dessa demanda (também denominada “análise da oferta”). Com efeito, não existe demanda se não existe uma oferta prévia de análise. Em outras palavras, a própria organização de análise é geradora da demanda que lhe é formulada, e um dos passos centrais será então explicitar “a publicida-de, a divulgação científica ou não científica, a proposição direta ou indireta dos serviços que a organização analítica faz e que não pode não ser causante, geradora ou moduladora da demanda de serviço que lhe é formulada.” (BA-REMBLITT, 1992, p. 68-9).

Baremblitt lembra ainda que o pedido nunca coincide com a demanda, devendo ser decifrado com base nela, pois “seu sentido varia segundo qual seja o segmento organizacional que a formula.” (BAREMBLITT, 1992, p. 169). Com efeito, o pedido pode efetivamente ser formulado a partir de diferentes “lugares” institucionais:

(i) a hierarquia superior de uma dada organização de trabalho;(ii) o trabalhador (localizado em diferentes níveis de hierarquia na or-

ganização de trabalho) que se encontra em formação e que faz coincidir seu projeto de trabalho monográfico de pesquisa com uma dada realidade vivida em seu espaço de atuação profissional11;

11 Este parece ser o caso das encomendas de intervenção solicitadas por intermédio de profis-sionais inscritos em cursos do antigo DESS (Diplôme d’Études Supérieures Spécialisées) na Université de Aix-en-Provence, na França.

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(iii) o pesquisador, que pode (ou não) coincidir com o trabalhador. Tal diversidade de lugares institucionais não deixará de ser significativa para

a análise da demanda. Nas pesquisas que vêm se desenvolvendo no viés da articu-lação linguagem e trabalho, parecem ser positivamente valorizados os casos descri-tos em (i), uma vez que o pedido de intervenção por parte da própria hierarquia superior da organização de trabalho funciona como “reconhecimento social” do mérito e da “eficácia” dos serviços oferecidos pelo grupo de pesquisa; paralela-mente, diremos que vêm sendo menos valorizados os casos descritos em (iii), uma vez que tudo se passa então como se, em função do recentíssimo interesse do profissional dos estudos da linguagem por problemas voltados para o mundo do trabalho, o pesquisador-linguista precisasse criar “artificialmente” a encomenda, uma vez que nunca seria solicitado a “resolver” problemas como os apontados.

O que queremos acentuar a esse respeito é que não compartilhamos os referidos critérios de valorização. Uma experiência bem-sucedida de interven-ção, seja ela deflagrada pelo próprio pesquisador, seja por um pedido enca-minhado pela hierarquia da organização ou pelo trabalhador em formação, identifica-se, antes, pela capacidade de mobilizar dispositivos de análise da demanda, isto é, daquilo que subjaz ao pedido inicialmente feito. Um bom termômetro, portanto, da legitimidade de um trabalho de campo é, pois, a capacidade de o analista “se enxergar” na situação que lhe chega, isto é, sua condição de trabalhar suas implicações e, a partir de então, reafirmar o caráter necessariamente perspectivo dos saberes que resultarão daquele encontro.

Uma última contribuição acerca do modo pelo qual se articulam en-comenda e demanda pode ser localizada em Rodrigues (2004), que explici-ta o viés predominantemente psicanalítico que norteou o entendimento das referidas noções, tendo em vista a crença na existência de “algo latente a ser desvelado por uma espécie de leitura psicanalítica de estilo hermenêutico” (RODRIGUES, 2004, p. 139). A autora retoma, então, o modo pelo qual Lourau apresenta a questão, recolocando o encontro de encomenda e demanda de forma não canônica, distanciando-se do universo da ótica psicanalítica e aproximando-se de algo da ordem do predominantemente bélico, tendo em vista que o autor se refere, então, a “... estratégias, campos em luta, desvios. A relação entre encomenda e demanda se vê circunstanciada pelo dispositivo socioanalítico de intervenção, em lugar de remeter a profundidades, verdades, sentidos ocultos e / ou níveis essencializados” (RODRIGUES, 2004, p. 140).

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3. o que o institucionalismo traz para a nossa reflexão?

Tendo em vista nossa opção por trabalhar com uma perspectiva discursiva das práticas linguageiras, podemos nos indagar por que escolhemos esses conceitos desenvolvidos na perspectiva institucionalista para articulá-los com o de implicação.

Diríamos, em primeiro lugar, que proceder a uma análise das implica-ções de sua atuação em um dado campo significaria, para o linguista / analista do discurso, recusar qualquer movimento de naturalização de sua presença no referido campo, assim como dos conhecimentos que nele se produzem.

Muitas vezes – talvez mesmo esta seja a regra – deparamos com situações em que o linguista deixa implícito um certo “desejo de invisibilidade”, quando não torna esse mesmo desejo algo que francamente explicita. Dito com outras palavras, trata-se do desejo de estar presente em um dado campo, sem que sua presença venha a interferir na dinâmica das relações que ali se verificam. Tal posição significa que prevalece a ingênua crença de que o analista-linguista não produziria qualquer alteração do meio, ou que ele poderia se tornar “neutro” na cena em que atua e, por extensão, ter acesso à realidade “exatamente como ela realmente se apresenta”12. Isto é subestimar o valor da palavra: acreditar que ela possa se produzir “no vácuo”, sem um direcionamento, pretensamente livre das coerções que pesam sobre uma dada situação de enunciação - posição francamente antibakhtiniana que declaradamente rejeitamos.

Logo, para nós, acolher a necessidade de lidar com as implicações é criar as condições para um tratamento efetivamente dialógico das práticas lingua-geiras. E, como vimos anteriormente, trabalhar as implicações implica uma re-visão de quais são nossos atravessamentos institucionais, nossas possibilidades mesmas de estar naquele campo, de “falar uma mesma língua” que o referido campo ou, pelo menos, de ter a condição de negociar efeitos de sentido que se produzem para muito além do que poderíamos controlar.

12 Como vimos no item anterior, a própria instituição do lugar do analista é geradora do tipo de demandas que lhe são encaminhadas! Além disso, negar um lugar de relevo à análise das implicações significa negligenciar, não sem uma boa dose de ingenuidade, o duplo sentido adquirido pelo termo, segundo Hess (2001): por um lado, implicar-se em / com alguma coisa, significando enredar-se, envolver-se com algo; por outro, estar implicado, expressão que remete aos múltiplos pertencimentos institucionais do sujeito. Assim, se é verdade que podemos nos iludir tentando evitar as implicações na primeira acepção do termo, compreende-se por que razão seria impossível esquivarmo-nos de sua presença no segundo sentido indicado.

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A começar pela relatividade de nossa possibilidade de atuação: nossa materialidade de trabalho são os enunciados proferidos no interior de dadas condições. Este é um limite – e, é claro, uma possibilidade a ser valorizada – de nossa atuação, e um limite já tão distendido quanto possível, se for lembrado que a linguística que praticamos é uma linguística enunciativa, que traz para seu campo de ação uma série de questões definitivamente ausentes do âmbito do chamado “núcleo duro” dos estudos linguísticos, o qual se volta para a análise da língua enquanto sistema.

A exemplo da reflexão de Rodrigues e Souza (1987), diremos que, se trabalhamos com as práticas linguageiras, isso não deverá, contudo, significar que sejam linguísticas as demandas que nos chegam. Aqui queremos retomar o problema da desconstrução dos especialismos profissionais que leva as au-toras a afirmar que o fato de trabalharem com níveis psicológicos enquanto possibilidade de intervenção numa situação não significa que também nesse nível deva se situar a análise a ser levada a cabo: “necessariamente psicologiza-remos e despolitizaremos [nossas perspectivas de análise] porque este é nosso especialismo instituído?” (RODRIGUES; SOUzA, 1987, p. 32).

Da mesma forma, numa paródia do texto de Rodrigues e Souza, dire-mos não ser adequado permanecer num plano estritamente linguístico – no sentido de uma linguística do sistema abstrato – o qual se configura como vetor de despolitização, apenas por ser este (pretensamente) o nosso “especia-lismo instituído”. Por essa razão, queremos mais uma vez subscrever a defini-ção de discurso que localizamos em Maingueneau (1989), a qual tem o mérito de não separar produção textual (nível de uma intervenção mais imediata do profissional-linguista) e produção de uma dada comunidade discursiva (elemento que não pode ser esquecido no plano da análise a ser realizada): “... falaremos de prática discursiva para designar esta reversibilidade essen-cial entre as duas faces, social e textual, do discurso” (MAINGUENEAU, 1989, p. 56).

O autor ainda nos adverte no que concerne ao modo pelo qual devemos entender a noção de “comunidade discursiva”:

... o grupo ou a organização de grupos no interior dos quais são produzidos, gerados os textos que dependem da formação discursiva ... [e também] tudo o que esses grupos implicam no

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plano da organização material e modos de vida. (MAINGUE-NEAU, 1989, p. 56).

Desse modo, para além dos limites impostos pelos especialismos que via de regra nos tornam míopes e que, por essa razão, constituem um verdadeiro desserviço na formação de novos profissionais da área e na própria produção de conhecimentos, reafirmamos aqui nosso maior interesse pela tematização de questões de ordem política que envolvem um determinado modo de atuali-zação da dimensão do social que podemos – e desejamos – ajudar a construir. Aliás, essa era a “aposta” e o “desafio” que encontrávamos em Foucault (1984), em Rodrigues e Souza (1987) e em Hess (2001) acerca da viabilidade (e mes-mo a necessidade) de desconstruir tais especialismos. Acrescentamos que o próprio perfil do horizonte teórico no qual nos situamos – o de uma Análise do discurso de base enunciativa – já nos parece favorecer tal posicionamento, trazendo-nos algo que, de certo modo, já nos é familiar, uma vez que também nós, analistas do discurso, trabalhamos em um campo que não chega a se constituir como propriedade privada de ninguém.

Por que analistas do discurso decidem tematizar as implicações? Eis a questão que talvez o leitor esteja se fazendo já há algum tempo, tendo em vista a novidade de tal procedimento.

De forma bastante sintética, diremos que, se tematizamos as implica-ções, isto se explica pelo fato de sabermos que: (i) toda prática produz efeitos; (ii) é impossível continuar acreditando que nos encontramos no interior de um dispositivo sujeito X objeto; (iii) todo exercício de leitura do real que nos cerca apresenta uma dimensão ético-política da intervenção que norteará o sentido de social que desejamos construir, um social não naturalizado.

Não há neutralidade do pesquisador, assim como não há neutralidade no pesquisado, por muito que se queira assegurá-la/valorizá-la como possí-vel. Isto, no entanto, não significa crer que o fazer científico seja uma im-possibilidade: o rigor intrínseco a toda pesquisa precisa considerar o atraves-samento dos limites e da amplitude do que somos capazes de “ver”, “ouvir” e “dizer”. O que se faz visível/dizível tem como constitutivo o irremediável estar situado em um determinado tempo e espaço. Concretiza-se em marcas que consideram a intervenção sempre por meio de um gênero de discurso, produzindo enunciados que registram a diversidade e a complexidade da

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experiência do humano (BAKHTIN, 1992, 1987). Como afirmamos ao iní-cio do artigo, “estou inelutavelmente presente naquilo que pretendo analisar e que só posso ver a partir do lugar que ocupo”, assim como “meu olhar so-bre o outro não coincide nunca com o olhar que ele tem de si” (AMORIM, 2003, p. 14).

Retomando a mencionada possibilidade de explorar a problemática de estudos comprometidos com um certo modo de apreender as práticas lingua-geiras e o fato de os estudos na área da Análise do discurso não reservarem explicitamente em suas discussões espaço para a questão das implicações, pri-vilegiamos em nosso artigo considerações acerca dos dispositivos de captação/produção de textos para análise.

Teríamos, assim, breves indicações acerca de dispositivos de captação/produção de textos que funcionam, em um dos casos, como analisador histó-rico – também chamado de analisador natural, que emerge do próprio jogo de forças das situações a serem estudadas – e, em outro, como analisador construído – ou seja, produzido pelo pesquisador com o intuito de explicitar certos saberes que se mostram subjacentes a certas situações de trabalho. Dian-te da perspectiva que ora assumimos, o quadro-mural da sala de professores de uma escola da rede pública estadual13 e a entrevista são compreendidos como dispositivo de captação/produção de textos, a partir de uma ótica discursiva, ou seja, como produção situada sócio-historicamente, como prática lingua-geira que se define por uma dada configuração enunciativa que a singulariza (MAINGUENEAU, 1989).

Comentaremos brevemente esses dois tipos de dispositivos a que fizemos referência no parágrafo anterior. Iniciaremos explicitando que discussões nos conduzem a considerar o quadro-mural como dispositivo de captação/produ-ção de textos, procurando evidenciar a que demandas formuladas pela própria pesquisa tal opção pretende responder.

Diríamos inicialmente que a referida pesquisa, ao discutir as diferentes imagens de professor que se produzem e circulam na escola, propõe um debate relacionando os diversos espaços pelos quais o trabalhador docente circula na escola e os modos a partir dos quais esse trabalhador é convocado a trabalhar.

A esse respeito, vejamos o fragmento que segue:

13 Pesquisa realizada por Deusdará (2006).

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Atentando especificamente para o(a)s trabalhadore(a)s docen-tes, a dinâmica de circulação parece fazê-lo(a)s transitar entre a sala de professores e a sala de aula. Chegam cedo, dirigem-se à sala de professores, assinam o ponto, aguardam o sinal tocar, os alunos sobem, logo em seguida, o(a)s professore(a)s. Na hora do intervalo, o retorno. O(a)s alunos espalham-se no pátio, já o(a)s professore(a)s retornam para a sala destinada a ele(a)s. Bebem água e café, dirigem-se ao banheiro, conversam. Ao término do intervalo, toca novamente o sinal, aguardam o(a)s alunos subirem e, mais uma vez, dirigem-se às salas de aula. (DEUSDARÁ, 2006, p. 57-58)

Fazendo incidir o foco de análise sobre essa dinâmica de circulação dos in-divíduos no espaço escolar, em consonância evidente com as reflexões foucaul-tianas acerca das instituições disciplinares, a pesquisa em questão vai propondo a construção de uma demanda de análise que contribua para a desnaturalização dos sentidos instituídos em torno do trabalho docente. Tal percurso de pesqui-sa parece colocar para essas investigações o desafio de pensar a linguagem como um dos planos de constituição do real. A linguagem deixa de ser compreendida apenas como um plano de representação de eventos exteriores a ela. No caso em análise, julga-se haver diversos modos de intervir sobre o trabalho do pro-fessor, entre eles, pode-se afixar textos no mural da sala de professores.

Desse modo, ao optarmos pelo mural como campo produtor de pistas para a análise, estamos pressupondo que haja uma “massa de textos”, um conjunto de interações sendo produzido na sala de professore(a)s, dos quais o mural representa um possível re-corte. A própria existência do mural já pressupõe uma escolha de alguns entre tantos outros textos, que circulam por outros momentos e em outros espaços, tendo como referência um cer-to propósito comunicativo de falar ao(à)s professore(a)s. Assim como a escolha de alguns entre tantos outros textos pressupõe um certo funcionamento do mural, põe em ação seu propósito comunicativo, a seleção a que procedemos desses textos não pode ser compreendida como uma simples “coleta”, mas como

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uma “nova situação de enunciação” que viabilizará a construção de um outro texto, de uma outra possibilidade de falar sobre o trabalho docente. (DEUSDARÁ, 2006, p. 81)

A partir desse fragmento, eis o que se evidencia:

Sabemos que todos os textos que figuraram no mural no perío-do de nossas observações constituem material importante para compreender os diferentes modos de produção / circulação de saberes do trabalho docente, na sala de professore(a)s. Por exemplo, a presença de um artigo de jornal abordando o episó-dio recente da política nacional em que parlamentares e minis-tros vinculados ao governo federal são acusados de corrupção (episódio que ficou conhecido como “mensalão”) fala-nos de um mural que pressupõe a existência de um leitor que se inte-ressa (ou se deseja que assim o seja) por questões que, ao menos aparentemente, extrapolam seu cotidiano mais imediato. O referido texto, assim como vários, evidenciam uma dimensão importante do mural, não interpelam seus leitores apenas como professore(a)s de uma determinada escola, mas também como cidadãos, membros de uma determinada categoria, etc. (DEU-SDARÁ, 2006, p. 72)

Desse modo, a opção pelo mural como campo produtor de pistas para a análise pressupõe a existência de uma “massa de textos”, um conjunto de inte-rações sendo produzido na sala de professore(a)s, dos quais o mural representa um possível recorte. A própria existência do mural já se sustenta em uma es-colha de alguns entre tantos outros textos, que circulam por outros momentos e em outros espaços, tendo como referência um certo propósito comunicativo de falar ao(à)s professore(a)s. Assim como a escolha de alguns entre tantos outros textos pressupõe um certo funcionamento do mural, a seleção feita dos textos a serem analisados pela referida pesquisa não pode ser compreendida como uma simples “coleta”, mas como uma “nova situação de enunciação” que viabilizará a construção de um outro texto, de uma outra possibilidade de falar sobre o trabalho docente.

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O segundo dispositivo de captação/produção de textos que anunciamos funciona, diferentemente do anterior, como um analisador construído, uma vez que remete à ação do pesquisador que o “inventa” com o objetivo de explicitar determinados saberes que pretende colocar em análise. Trata-se da entrevista, gênero discursivo que nos parece carecer de um trabalho de con-ceptualização, a exemplo da iniciativa de trabalhos como os de Daher (1998) e de Rocha, Daher e Sant’Anna (2004), que buscam explicitar a complexidade do gênero. Assim, queremos agora discutir o estatuto de textos produzidos em situação de entrevista no contexto das interações verbais que dão sustentação a um trabalho de pesquisa em ciências humanas e sociais.

No âmbito das pesquisas realizadas em diversos campos de conheci-mento, a entrevista vem sendo concebida na acepção mais corrente do termo, como a que nos apresenta o verbete de dicionário on line: “encontro combina-do; conferência entre duas pessoas em local e hora antecipadamente combina-dos; declarações feitas por alguém e que um jornalista publica, posteriormente na imprensa”14. O verbete refere-se a ela como situação que envolve um prévio contato entre pessoas com a finalidade de acordar a posterior coleta de infor-mações ou opiniões. Menciona apenas um dos “subgêneros” da entrevista, e atribui ao jornalista o papel de mero coletor, reprodutor e divulgador das informações recebidas.

Essa concepção sobre o gênero é recorrente também em obras de meto-dologia de pesquisa em ciências humanas. Em artigo publicado por Rocha, Daher e Sant’Anna (2004), são apresentados e comentados vários fragmentos, extraídos de algumas dessas publicações, nas quais se verifica a existência de variadas crenças como a de que a entrevista seria uma ferramenta “que auxilia o informante a expressar uma informação [tratada como verdade oculta] a ser recolhida pelo entrevistador numa determinada interação” (2004). Ou seja, é compreendida como mero instrumento de captação de “enunciados verdadei-ros”, de “saberes objetivos”. A constatação merece de nossa parte pelo menos dois comentários que remetem diretamente à problemática das implicações.

No primeiro, recorremos a Maingueneau. O autor afirma que, quando se trabalha com o discurso, há que se ter em mente o fato de que “falar implica o dispositivo no qual estamos falando. Falamos sempre por meio de um dispositivo,

14 www.priberam.pt/dlpo/ definir_resultados.aspx Consulta em 20 de julho de 2006.

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de um gênero com regras próprias. Não existe nenhuma fala que esteja fora de um certo tipo de dispositivo. Não existe uma fala absoluta.” (2006, p. 2). Além disso, “O discurso não é só linguagem, implica parceiros, papéis .... não está fora da sociedade, está dentro. Permite que o sujeito se comunique, se construa”.

Os resultados das reflexões ora apresentadas apontam para a pertinência de uma perspectiva dialógica segundo a qual a entrevista em situação de pes-quisa não pode corresponder ao que se entende por gênero primário (Bakhtin, 1992), tendo em vista sua complexidade enunciativa: não se trata de mera ferramenta a serviço da captação de verdades, representando, antes, um dis-positivo de produção / captação de textos, isto é, um dispositivo que permite retomar / condensar várias situações de enunciação ocorridas em momen-tos anteriores (Rocha; Daher; Sant’Anna, 2004). O enfoque que defendemos para a entrevista representa, acima de tudo, uma opção política que fazemos diante do perfil de pesquisador que pretendemos construir e do modo como pretendemos lidar com a alteridade. A esse respeito, o conceito bakhtiniano de exotopia (Bakhtin, 1992) é revelador da dimensão ética da problemática da alteridade no que concerne à criação tanto teórica quanto artística: é preciso situar o olhar do outro e devolver-lhe um ponto de vista (o do pesquisador) sobre o referido olhar.

O outro comentário retoma considerações de Daher (1998) acerca do dispositivo de entrevista construído para fins de pesquisa de campo. Com efeito, a autora reconhece a inadequação de um modelo de entrevista aca-dêmica no qual figurem tão-somente as perguntas a serem dirigidas ao(s) entrevistado(s). Em seu lugar, propõe o registro em um quadro de cinco colu-nas dos tópicos relevantes para a elaboração da entrevista no referido contexto: na primeira coluna, os blocos temáticos a serem contemplados na entrevista; na segunda, os objetivos a serem alcançados na entrevista; na terceira, o pro-blema a ser investigado a cada momento da entrevista; na quarta, as hipóteses feitas pelo pesquisador acerca das respostas dos entrevistados; na última, as perguntas a serem dirigidas ao(s) entrevistado(s).

A construção do referido quadro não seguia um caminho retilíneo; ao contrário, o que era problematizado em cada linha de uma dada coluna servia de base de reflexão para a formulação da linha correspondente da(s) coluna(s) adjacente(s).

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Dentre as vantagens encontradas na formulação do referido quadro, des-tacam-se minimamente os seguintes pontos: (i) o(s) problema(s) de pesquisa era(m) rigorosamente distinguido(s) dos problemas referentes à realização da entrevista; (ii) era possibilitada uma base bastante segura para avaliar a distância verificada entre as hipóteses construídas pelos pesquisadores (isto é, as implica-ções dos pesquisadores com o campo a ser investigado, as quais se atualizavam naquilo que os pesquisadores demonstravam já saber acerca do campo) e as respostas obtidas na entrevista (isto é, aquilo que efetivamente se produzia no referido campo); (iii) a entrevista podia finalmente ser vista não como mera “coleta de dados”, mas como real intervenção na produção de um texto.

4. À guisa de conclusão:

O presente artigo apenas muito de leve toca numa questão que nos pare-ce crucial para um tratamento adequado das práticas discursivas: a análise das implicações tematizada pela Análise institucional, problemática que tivemos a oportunidade de aproximar neste artigo à análise da relação entre uma dada produção linguageira e seu entorno. Dito de outro modo, a tematização das implicações do pesquisador das práticas linguageiras com / em seu campo pa-rece retomar o antigo debate acerca das condições de produção dos discursos. Eis o que nos parece lícito concluir a partir de uma das observações de Lourau (1979) que a seguir transcrevemos:

Não estamos totalmente determinados, não estamos totalmen-te indeterminados: porque há uma História, somos seres so-bredeterminados - sobredeterminantes. Nas situações-limites intensas, ...compreendemos subitamente que forças sociais nos atravessam e aprendemos ao mesmo tempo a controlá-las, a inflecti-las. (...) Condição indispensável à produção da transversalidade: não um ‘equilíbrio’ que seria o da ausência de história, mas um afrontamento, um conflito, uma contradição para resolver. (LOURAU, 1979, p. 39)

Se nem estamos totalmente determinados por um fora (o que implicaria o divórcio homem / mundo), nem produzimos tudo a partir de um marco zero,

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uma abordagem das práticas linguageiras: a noção de implicação na pesquisa de campo

devemos concluir que o debate acerca das implicações vem reencontrar, no ter-ritório da Análise do discurso que compartilhamos, a temática dos enlaçamentos (Maingueneau, 1989), uma vez que esta coloca em cena “a ausência de exteriori-dade entre coerções enunciativas e práticas institucionais” (Maingueneau, 1989, p. 67). Uma tal observação parece-nos representar uma interessante hipótese de trabalho, gerando desafios para futuras investigações referentes aos lugares e aos modos de inscrição das implicações nas práticas linguageiras.

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Recebido: 31/04/2010Aprovado: 09/06/2010