Conto - "O Contador Do Povo"

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Conto baseado no filme "Narradores de Javé" - Eliane Caffé

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  • Produo de texto narrativo com base no filme Narradores de Jav, Eliane Caff.

    O contador do povo

    ngela C. Pereira da Silva

    Em seu casebre isolado do vilarejo, por sua vez isolado do mundo, Bi amaldioava o povo de Jav: Cidadezinha maldita, povinho medocre, enfiado no oco do mundo. Afinal, onde j se viu expulsarem da cidade um legitimo filho da terra, um letrado, um escrivo de estrias?, era o que pensava. A verdade era que Bi, dando a si o papel de vtima, havia arrumado a maior confuso com o povo de Jav, vilarejo do serto nordestino. Sendo funcionrio do correio da cidade, que andava as moscas porque a maior parte da populao era analfabeta, Bi tentou garantir o emprego a seu modo. Ento, comeou a escrever cartas em nome dos moradores, inventando fofocas ou espalhando os segredos que corriam na boca de todos, revelados aos cochichos, meias verdades. O correio movimentou-se, o povo se alvoroou, procuravam Bi para ler as cartas recebidas e dar a resposta, que mais uma vez ia cheia de floreios, umas palavrinhas a mais, pensava ele. Quando o povo descobriu a sujeirada de Bi, decidiu em assemblia expuls-lo do convvio da cidade. - Fofoqueiro mentiroso de uma figa! gritavam todos. Mas a vida d suas voltas, mesmo em torno da meia dzia de quarteires que compunha Jav. Fato que chegou o dia em que esse povo todo precisou da ajuda de Bi. Contrariados, ltimo recurso. E tudo por causa dos engenheiros que, sem mais nem menos, assentaram na cidade. Outra assemblia. Zaqueu, que era uma espcie de lder naquele lugar sem governo, trazia as informaes de uma conversa com os engenheiros. E tudo se resumia num s ponto: Jav ia ser inundada. - O que que ce t falano homi? E a modo de onde vamo nis mor? O que ser feito de nossas casa? caiu em perguntas Dona Deodora, quase no acreditando. - Como que podem afog nossos mortos que to enterrado aqui? desesperou-se Dona Divina. - isso mesmo, meu povo. Jav vai ser inundada para a construo de uma hidreltrica. coisa decidida. E eles s voltam atrs se provarmos por a + b que essa cidade tem sua importncia, que pode ser considerada um patrimnio histrico. Zaqueu, ento, apresentou para o povo a sua idia. Precisavam salvar Jav, torn-la patrimnio da humanidade e fariam isso registrando em um livro todas as ricas histrias que o povo da cidade contava sobre a fundao do lugar. Mas o livro precisava ser bem escrito, a linguagem deveria ser cientfica. - E quem que vai ser a mo santa pra escrever uma proeza dessas? levantou um dos presentes. Zaqueu, j preparado para a pergunta, mudou de expresso, ficou srio e disse: - Olha, meu povo, no fim das contas acaba que vai ter que ser Bi. Engolimo nosso orgulho e obrigamo aquele desgraado a acert as contas com a gente escrevendo o livro. Foi a maior confuso. O povo falava tanto ao mesmo tempo, revoltado, que nem cabe aqui descrever tamanha baguna. Mas o resultado nos interessa e a voc, leitor curioso,

  • digo que se decidiu dar a misso a Bi, com a condio de que todo mundo ia vigiar bem o seu servio. Foram busc-lo na casa de paredes pichadas. Sabe-se l o que Bi quer dizer com tanta letra junta, foi o que disse Braga. Encurtando o episdio, ficou certo que Bi seria o escritor da Odissia de Jav. Querendo ele ou no. Verdade que no seria fcil pra qualquer Machado de Assis que fosse conseguir organizar tanta informao diferente sobre a fundao de Jav. O velho Vicentino contou sobre a chegada do fundador, Indalcio, que trouxe seu povo depois de sair em retirada de uma guerra contra a Coroa Portuguesa. Deodora deu sua verso e disse que quem cantou as divisas, demarcando as terras de Jav, foi Maria Dina, que teria guiado o povo depois que Indalcio morreu... de desinteria, segundo Braga, para o qual Maria Dina era andarilha e louca. Os velhos irmos Armando Penerin e o Outro, filhos dos gmeos Cosme e Damio, brigavam entre si sobre quem era filho de quem, j que o casamento da me, Madalena, foi regado a muita bebida e ela acordou com o noivo e o cunhado na cama. Armando Penerin afirmava que os ossos de Indalcio estavam enterrados em suas terras. O ltimo relato que Bi ouviu foi o do negro que cantou sua memria em dialeto africano. Segundo ele, Indalo guiava seu povo para a frica e, indo parar em Jav, encontrou Oxum, o lugar onde moram as guas. Era uma infinidade de verses. Portugueses, africanos... Uma analogia com o nosso Brasil to diverso em plena poca dos 500 anos do descobrimento. Bi percebeu esse detalhe e viu ento sua histria construda. Escrevendo na linguagem do povo, descrevendo elementos da cultura javlica e misturando as muitas verses sobre a fundao da cidade, Bi conseguiu transformar o livro numa narrativa que simbolizava a diversidade da cultura brasileira. Mas ainda precisava que o livro chegasse s mos certas. Diferente dos moradores, Bi sabia que no se tratava de entregar a histria aos engenheiros e pronto. Lembrou-se, ento, de um certo quarto poder que leu uma vez em crnica de jornal. Precisava de um jornalista. Despedindo-se dos moradores e sem revelar a sua idia, Bi viajou para a capital em busca de algum que tivesse o poder de divulgar o livro. - Fique sossegado, meu povo. Eu volto s depois que todo esse Brasil ficar sabendo de nossa odissia. No se sabe como e quem foi a boa alma que Bi encontrou na capital, mas o fato que, em menos de uma semana, os engenheiros foram embora e comearam a chegar outro tipo de gente. Povo curioso com cmera e microfone na mo, falando bonito, era o comentrio que se ouvia sobre os jornalistas. O livro de Bi havia se transformado em sensao, assim como o drama que estava vivendo aquele vilarejo. A mdia transformou Jav num pedacinho do Brasil, sinnimo de uma cultura oprimida, silenciada, assim como aconteceu com os ndios quando os portugueses chegaram aqui. Bi caiu nas graas do povo de Jav. - Um grande escritor javlico dizia-se. Convidado para se tornar cronista num jornal da capital, que dera a ele uma coluna chamada Contador do povo, Bi despediu-se de Jav. Em um gesto cheio de significado, ele olhou a cidade de frente, admirando uma cultura que fora salva e que faria parte do futuro agora, e caminhou para trs, como quem sabe que exerceu o importante papel do historiador, que rene relatos, retoma o passado e o preserva.