Conto de natal

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Conto de Natal Do fundo da alcova escura, uma voz veio cansada e chorosa: - «Mamã Aurora, que cantam os sinos?» A velha ama volveu os olhos sem brilho e ergueu-se. Pousou cuidadosamente, na velha cadeira de junco, os utensílios de costura e encaminhou-se até junto do leito onde jazia uma criança pálida, franzina de grandes olhos negros e doces. A noite tinha vindo fria e agreste e a neve caía em grandes flocos docemente, lentamente, cobrindo tudo... No Céu, as estrelas brilhavam trémulas, pequeninas, parecendo murmurar: - «Que frio! Que frio!» Apesar do frio, havia algo de sobrenatural, de etéreo, de belo, no aspeto da noite. Os rostos das pessoas, que passavam apressadas na rua escura e mal iluminada, pareciam sorrir de paz, da amenidade, de alegria íntima. No entanto, os olhos de Aurora fixaram-se amorosos e tristes no rosto do pequeno ao ciciar: - «Que tens, meu amor?» O miúdo olhou-a, perguntando de novo: - «Que cantam os sinos?» A voz dela saiu arrastada e meiga: - «Que hão de cantar? Esqueceste que hoje é noite de Natal?» Os olhos da criança humedeceram-se, as mãos agarraram a coberta cetinosa, e respondeu como quem delira: - «Natal! Hoje é noite de Natal!... Lembras-te, Mamã Aurora? Não foi num Natal que os pais foram para a grande viagem? Disseste que viriam ver-me todos os Natais, mas não mais voltaram. Viriam trazer-me uma prenda, mas não vieram. Somente, no meu sapatinho apareceu um boneco de corda... Sim, disseste que viriam, mas o meu sapatinho ficou mudo quando lhe perguntei se os tinha visto... E... Sabes? O boneco tinha um papel num braço que dizia: - «Oferece o teu Jesus». Agora, não vais mentir-me, pois não? Dize-me: - «Os pais, este ano, virão?»

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Conto de Natal Do fundo da alcova escura, uma voz veio cansada e chorosa: - «Mamã Aurora, que cantam os sinos?» A velha ama volveu os olhos sem brilho e ergueu-se. Pousou cuidadosamente, na velha cadeira de junco, os utensílios de costura e encaminhou-se até junto do leito onde jazia uma criança pálida, franzina de grandes olhos negros e doces. A noite tinha vindo fria e agreste e a neve caía em grandes flocos docemente, lentamente, cobrindo tudo... No Céu, as estrelas brilhavam trémulas, pequeninas, parecendo murmurar: - «Que frio! Que frio!» Apesar do frio, havia algo de sobrenatural, de etéreo, de belo, no aspeto da noite. Os rostos das pessoas, que passavam apressadas na rua escura e mal iluminada, pareciam sorrir de paz, da amenidade, de alegria íntima. No entanto, os olhos de Aurora fixaram-se amorosos e tristes no rosto do pequeno ao ciciar: - «Que tens, meu amor?» O miúdo olhou-a, perguntando de novo: - «Que cantam os sinos?» A voz dela saiu arrastada e meiga: - «Que hão de cantar? Esqueceste que hoje é noite de Natal?» Os olhos da criança humedeceram-se, as mãos agarraram a coberta cetinosa, e respondeu como quem delira: - «Natal! Hoje é noite de Natal!... Lembras-te, Mamã Aurora? Não foi num Natal que os pais foram para a grande viagem? Disseste que viriam ver-me todos os Natais, mas não mais voltaram. Viriam trazer-me uma prenda, mas não vieram. Somente, no meu sapatinho apareceu um boneco de corda... Sim, disseste que viriam, mas o meu sapatinho ficou mudo quando lhe perguntei se os tinha visto... E... Sabes? O boneco tinha um papel num braço que dizia: - «Oferece o teu Jesus». Agora, não vais mentir-me, pois não? Dize-me: - «Os pais, este ano, virão?»

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As mãos da ama repousaram um pouco sobre a testa escaldante da criança, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, mas a boca sorria ao responder: - «Sossega... Verás os teus pais... Estão no Céu a pedir pela tua saúde... Não ouves os sinos? Eles dizem que Jesus nasceu e que todas as pessoas são felizes esta noite. É noite de Amor, de Paz, de Oração. Os sinos, hoje e amanhã, cantarão somente louvores ao Senhor alegres como as almas dos meninos bons, como a tua alma, Pedrito!» - «A minha alma é triste, Mamã! Mas... disseste que os sinos cantarão somente de alegria... E se alguém morrer?» Ao dizer isto, os olhos brilhantes de febre fixaram-se no rosto pálido da velha ama. E sorria, ao dizer, todo inclinado para o lado do quarto onde Aurora havia erguido um presépio iluminado: - «Mamã Aurora! Olha o Jesus como sorri! Que lindo, Mamã! Se eu pudesse voar ia ao Céu, ali, além buscar aquelas estrelinhas para enviar aos paizinhos... Tenho a certeza de que me viriam buscar e que eu iria com eles para a grande viagem de que me falas sempre... Ó Mamã!... E se eu fosse ver os paizinhos? Os sinos tocarão alegres, se eu for? E o Jesus dar-me-á as estrelas do Céu? Que lindas. Mamã, que lindas! E se e for? Abre a janela... Não vês a neve a derreter-se? São as estrelas que querem aquecer o Menino Jesus... Lá vou, lá vou.. Hei de agarrar uma para levar ao Paizinho... Deixa-me, não me magoes no peito! Deixa-me ir... Os sinos chamam: -«Pedrinho! Pedrinho! Pedrinho!» Adeus, Mamã Aurora! Logo volto. Lá vou... Guarda o boneco de corda para o Zé Roda... Dize-lhe... dize-lhe que depois lhe... lhe... lhe mando... uma estrela... Os sinos...» A voz deixou de ouvir-se lentamente, os olhos fecharam-se e o sorriso da criança tornou-se mais amplo, mais belo, mais indefinido nos lábios arroxeados... A velha dama debruçou-se sobre o leito tentando interpretar aquele sorriso que a gelava. Apalpou a testa, as faces, os olhos do menino e duas lágrimas quentes como fogo foram cair-lhe no regaço vazio. Pedrinho estava morto. Um anjo tinha subido ao Céu e as estrelas sorriam mais... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Quando o esquife branco foi a enterrar, no dia seguinte, dum certo lugar do cemitério a neve foi retirada.

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E pela primeira vez na aldeia da velha Mamã Aurora os sinos não dobraram anunciando morte. Tocaram suaves, lentos, uma música pura e etérea como a alma de Pedrinho, como a brancura imaculada

da neve daquela noite de Natal.

Maria Helena Amaro

In, «Maria Mãe», 1973. Data da conclusão da edição no blogue – 9 de outubro de 2012

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