Brasília, 17 de agosto de 2011 A Visão Contemporânea sobre Transparência nas Contas Públicas.
Contemporânea número 02 - agosto de 2012
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CONTEMPORÂNEA
Nesta edição:
NÚ ME RO
A G OS T O 2 01 2
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PROSSEGUINDO COM A quase REVISTA
Em seu segundo número, Contemporânea, nossa quase revista, segue seu propósito de colocar ideias em movimento. São sete os
textos. Em Arte e Crítica podemos ler um comentário de Michelle Gonçalves sobre o filme Cheyenne – This Must Be The Place (Aqui
é o meu lugar), de Paolo Sorrentini, em que Sean Penn incorpora as diabrites de um rockstar anacronicamente gótico a reconstruir
uma memória que ele ainda não conhece.
Em Cultura do Futebol temos duas contribuições. A primeira é de Mozart Maragno, cujo tema é o lugar e as expectativas que o
futebol encontra no imaginário e nas demandas nacionais no contexto dos Jogos Olímpicos. Logo após publicamos a primeira
resenha de Contemporânea, de Carlus Augustus Jourand Correia, sobre o livro O Jogo da Minha Vida: história e reflexões de um
atleta, de Paulo André, zagueiro do atual campeão da Copa Libertadores da América, O Corinthians Paulista. Carlus mostra as
ambiguidades do discurso nativo, apontando também em sua fecundidade como fonte histórica e sociológica.
Política e Sociedade reúne três contribuições, todas sobre os Jogos Olímpicos. A primeira, escrita por mim, é uma reflexão sobre
os Jogos como fenômeno contemporâneo, nascentes junto com os primeiros suspiros do que Eric Hobsbawm chamou de short
century, mas em movimento que se atualiza em tempos em que tudo parece ser imagem. Wagner Camargo comenta o
desempenho brasileiro nos Jogos de Londres, analisando-os nos termos das posições geopolíticas das nações olímpicas, dos
investimentos nacionais e das expectativas que temos sobre o sucesso e o fracasso de nossos atletas. Finalizando esta seção,
Michelle Gonçalves narra uma experiência como espectadora presente nas últimas Olimpíadas, mostrando como o prazer
sensorial corresponde, em certa medida, àquele identificado por Hans Ulrich Gumbrecht, o de fruir a beleza dos esportes.
Educação recebe um breve texto meu sobre a importância da educação infantil para a formação das crianças, em especial no que
se refere, no interesse desta consideração, à formação para a vida pública e ao combate contra todo tipo de obscurantismo.
Contemporânea segue recebendo textos, sempre procurando conversa livre, a boa polêmica, o livre pensamento. Sintam-se
convidados a ler, criticar, escrever.
Ilha de Santa Catarina, 20 de setembro de 2012. Alexandre Fernandez Vaz
Arte e Crítica CHEYENNE – THIS MUST BE THE PLACE
Michelle Carreirão Gonçalves
Cultura do Futebol FUTEBOL EM SUA FACETA "GENI" Mozart Maragno
RESENHA: BENINI, Paulo André Cren. O Jogo da Minha Vida: história e reflexões de um atleta. São Paulo: Leya,
2012
Carlus Augustus Jourand Correia
Política e Sociedade OLIMPÍADAS
Alexandre Fernandez Vaz
POLÍTICA ESPORTIVA, MEDALHAS E UMA GEOPOLÍTICA À BRASILEIRA
Wagner Xavier de Camargo
LONDRES 2012: UMA EXPERIÊNCIA OLÍMPICA
Michelle Carreirão Gonçalves
Educação EDUCAÇÃO INFANTIL: CARÁTER PÚBLICO E FORMAÇÃO ILUMINISTA
Alexandre Fernandez Vaz
Uma quase Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea
http:/ /nucleodeestudosepesquisas.blogspot.com.br/ b logdonucleo@gmai l .com
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Uma quase Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea
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Sobre a autora
Michelle Carreirão Gonçalves é
Licenciada em Educação
Física/UFSC; Mestre em
Educação/UFSC; Graduanda do
curso de Filosofia/UFSC;
Doutoranda do Programa de Pós-
Graduação em Educação/UFSC;
Bolsista CNPq (UFSC/Leibniz
Universität Hannover); Membro do
Núcleo de Estudos e Pesquisas
Educação e Sociedade
Contemporânea.
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U7
Contato:
ARTE E CRÍTICA
CHEYENNE – THIS MUST BE THE PLACE
Michelle Carreirão Gonçalves
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação /UFSC
Dia desses assisti ao filme Cheyenne – This Must Be
The Place (Aqui é o meu lugar, no Brasil) em um Freiluftkino
(cinema a céu a aberto) de Berlim. O título é uma
homenagem à homônima canção dos Talking Heads, no
filme interpretada pelo ex-vocalista da banda, David
Byrne, em pequena e especial participação. A experiência
de assistir um filme em um parque, sentada numa cadeira
do tipo espreguiçadeira, enrolada num cobertor (sim,
porque as noites de verão alemão, muitas vezes, são frias),
em meio a árvores e tendo apenas o céu estrelado sobre
minha cabeça, já valeria a viagem. Mas o filme também
não decepcionou.
Cheyenne é o personagem principal interpretado
por Sean Penn, um roqueiro gótico que parece ter parado
nos anos 1980, com suas roupas pretas, cabelo
desarrumado, maquiagem carregadíssima no pó branco,
no lápis preto e no batom vermelho. A referência é
claramente Robert Smith, vocalista do The Cure, que fez
muito sucesso naquela década, com músicas como Boys
Don’t Cry e Friday I’m in Love. Além disso, há pitadas de
Edward Mãos de Tesoura – interpretado por Johny Deep no
filme homônimo (Edward Scissorhands, 1990) – e do
também roqueiro Ozzy Osbourne, que aparecem nos
trejeitos de Cheyenne, no jeito de andar, de falar e olhar.
Cheyenne é um rockstar decadente que tem em
Dublin uma vida chata, cercado por sua mulher-bombeira
(Frances MacDormand), um cachorro e uma fã
inseparável, Mary (Eve Hewson que, por sinal, é filha de
Bono Vox, do U2, mais uma referência ao rock). Seus dias
são gastos entre ir ao supermercado, isolar-se na solidão
da casa, ou ainda, tentar mediar o desespero da mãe de
Mary, por conta de um mistério que envolve seu filho
Tony. A reviravolta acontece quando Cheyenne tem de
voltar à Nova York para rever o pai à beira da morte e
com quem não mantinha contato havia trinta anos. Mas
ele chega tarde, por conta de uma das suas
excentricidades, e não consegue se despedir. No
momento em que reencontra a família judia, descobre que
o pai passou grande parte da vida procurando o
torturador que o havia supliciado em Auschwitz. É aí que
o filme muda de vez. Cheyenne toma para si a busca do
pai, e sai rodando pelo interior dos EUA, no melhor estilo
road movie.
É interessante como o diretor italiano Paolo
Sorrentino trabalha com um jogo de cores nas diferentes
passagens de Cheyenne. Em Dublin, os tons são mais
acinzentados, mais escuros, assim como a vida monótona
e depressiva; em Nova York as cores são vivas, agitadas
como a grande metrópole; no interior estadunidense, mais
no Novo México, as tonalidades passam por colorações
amareladas, áridas, secas como a terra; já em Utah é
possível ver o branco e o azul gélido, anunciando o que
está por vir.
A saga de Cheyenne em busca do algoz de seu pai
é claramente seu movimento de maturação. Ele sai de
Dublin, da segurança do lar, seu esconderijo de menino,
com o andar cabisbaixo e o olhar desprotegido, encarando
a dureza e a indiferença na cidade grande, as dores e a
insensibilidade no interior, a decadência e a outra versão
da história no “fim do mundo”. E faz isso com sua roupa,
penteado e maquiagem de adolescente, carregando sua
inseparável mala de rodinhas. Por sinal, Cheyenne
aparece quase todo o filme, puxando algo (antes da mala,
há uma cesta de compras, também com rodas), um
apêndice, um peso que saiu de seus ombros
(parafraseando o próprio personagem numa das cenas em
que conversa com o inventor da mala com rodas), mas
que o persegue, que dificulta sua caminhada, que o atrasa,
que o torna cada vez mais deprimido. Não se sabe se o
que ele carrega é culpa pelo que ocorreu com seus fãs,
mágoa pelo rompimento com o pai, ou mesmo a
fragilidade e incapacidade de tomar sua vida nas próprias
mãos (sua esposa é a figura forte e dominante da casa e,
nesse sentido, mais próxima do arquétipo masculino; ela é
pai ao dar segurança, mãe ao consolar, esposa na
intimidade da cama). De toda forma, é somente depois de
sofrer seu tardio e longo rito de passagem, que Cheyenne
consegue encontrar seu lugar, deixando para trás a
fantasia de uma vida infanto-juvenil alegre e leve, e
assumindo, finalmente, os riscos, a responsabilidade, as
dores e as delícias de ser adulto.
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Uma quase Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea
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Sobre o autor
Mozart Maragno é Licenciado em
Educação Física UFSC, Mestrando
do PPPGE/UFSC e Servidor do
Instituto Federal de Santa Catarina –
Campus Ararangua.
http://buscatextual.cnpq.br/buscat
extual/visualizacv.do?id=T127252
Contato:
CULTURA DO FUTEBOL
FUTEBOL EM SUA FACETA "GENI"
Mozart Maragno
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação /UFSC
No momento de fechamento olímpico, quando a
seleção brasileira de futebol masculino foi medalha de
prata - ou seja, um resultado abaixo do que era esperado
pelo grupo, pela imprensa, pelos torcedores –,
identifiquei um fenômeno interessante nas redes sociais,
caixa de ressonância “à quente” do cotidiano: um
ressentimento em relação ao futebol masculino, sobretudo
quando colocado em contraposição às modalidades
esportivas com menos visibilidade e apoio. Esse
ressentimento, essas manifestações, em alguns momentos
hostis diante de um fracasso futebolístico, não são algo
recente. Vários dos estudos sócio-culturais dedicados a
eventos de futebol já apresentaram interessantes análises
sobre a temática. Não foram poucas as ocasiões em que
vilões foram eleitos no futebol brasileiro. A derrota na
Copa do Mundo de 1950 é um belo exemplo disso –
mesmo que trabalhos acadêmicos, como o de Antonio
Jorge Soares, em seu doutoramento, não corroborem
todas as “teses” enfatizadas no discurso popular das
últimas décadas. No caso da medalha de prata de
Londres, com Neymar, Mano Menezes e companhia,
aparece um elemento novo, isto é, a crítica de amantes de
outras modalidades que denunciam a monocultura
esportiva do país, as regalias que os atletas de futebol têm
e os demais não, que atrasariam o desenvolvimento
brasileiro rumo a ser potência olímpica. Isso tudo, claro, é
visão de sujeitos que se manifestam no contexto citado.
As três medalhas do boxe brasileiro, por exemplo,
acenderam o alerta para essa comparação. Justamente o
boxe, cujos protagonistas são profundamente humildes
em origem e percorreram os caminhos mais tortuosos
para o sucesso esportivo máximo, que é subir ao pódio
nos Jogos Olímpicos. Os irmãos capixabas Yamaguchi e
Esquiva Falcão, com histórias de vida cinematográficas,
conquistaram, nas próprias palavras deles, “mais que o
futebol” em Londres. Isso, não há dúvidas, pode provocar
comoção geral durante as duas sagradas semanas.
Esquiva foi tão medalha de prata quanto a estrela
Neymar, de salário estratosférico, de mil e uma
propagandas na televisão, xodó, ídolo, “queridinho da
mídia”. O sucesso permanente do voleibol e, em outras
Olimpíadas, do futebol feminino, também gerou reações
duras diante de mais um “fracasso” dos rapazes (a
medalha de ouro inédita não veio mais uma vez). Embora
com toda estrutura gerada ao longo de muitos anos, o
voleibol, evidente, não desfruta das mesmas condições
midiáticas do futebol e, com muita luta, encaixa uma final
de liga nacional em emissora aberta. O futebol feminino,
pela própria gestão (?) da CBF, já escancara as diferenças.
O contraste é claro, sedutor para a tradicional acidez
nativa em relação aos bem sucedidos, mas perigoso.
Vamos para as obviedades que o leitor está cansado de
saber: o futebol é o esporte mais popular do planeta, o de
maior mercado, de maior mídia, com maior penetração
popular. Tudo isso proporciona aos bem sucedidos, como
é o caso de Neymar, um status que o boxeador olímpico
jamais terá. O garoto de Mogi das Cruzes também não
teve uma trajetória tranquila. A cobrança e pressão
apareceram desde cedo. Trata-se de um fenômeno
esportivo como poucos. Raros são os chegam à sua
condição aos 20 anos de idade. O futebol, por outro lado,
tem um grau de imprevisibilidade muito maior que o
voleibol ou o boxe. Outra obviedade: uma equipe de
menor condição técnica pode mais facilmente
surpreender. Lembro que o futebol brasileiro jamais pode
ser menos que o máximo, que campeão. E mesmo quando
ganha, se não for de uma forma mais próxima das
“tradições nacionais”, com o “nosso jeito”, com o “futebol-
arte”, pode ser uma conquista com asteriscos (a seleção
campeã de 1994 não seria um exemplo de tensão nesse
sentido?). Diante desse grau de exigência, Londres 2012
mais uma vez foi um prato cheio para as comparações e a
malhação da Geni, o futebol masculino brasileiro, já
cobrado na máxima potência seja em Copas do Mundo ou
em qualquer amistoso. Refresco a memória do leitor de
quando o intelectual Emerson Leão já dizia que “na
seleção, tudo vale tudo”. Dessa forma, no momento em
que o esporte bretão vira parte de um todo muito menos
badalado no dia a dia, como nos Jogos Olímpicos, acaba
sendo alvo preferencial do ressentimento geral. Nada que
surpreenda em termos de Brasil, onde a oscilação que o
futebol provoca entre o “somos os melhores do mundo” e
a autodepreciação implacável é cotidiana.
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Uma quase Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea
Sobre o autor
Carlus Augustus Jourand Correia é
graduado em História pela
Universidade Federal Fluminense
(UFF) e mestrando em Educação
pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro(UFRJ). Membro do
Laboratório de Estudos do Corpo
(LABEC) e do Núcleo de Estudos e
Pesquisa em Esporte e Sociedade
(NEPESS) desenvolve pesquisas na
área de História, Sociologia e
Educação com enfoque nas relações
entre esporte, sociedade e educação
no Brasil e no Mundo.
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=S4332342
Contato:
CULTURA DO FUTEBOL
RESENHA
BENINI, Paulo André Cren. O Jogo da Minha Vida:
história e reflexões de um atleta. São Paulo: Leya, 2012
Carlus Augustus Jourand Correia
Mestrando em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
O Jogo da Minha Vida: Historias e reflexões de um
atleta é um livro exemplar em diversos aspectos. O
esporte e mais especificamente o futebol é, há muito
tempo, teorizado, discutido e narrado por historiadores,
antropólogos, sociólogos e diversos outros pensadores
das Ciências Humanas. Contudo, esse debate e esses
estudos ainda carecem muito da participação ativa dos
nativos do futebol quando se trata de expor suas ideias e
tomar a palavra para si.
Nesse ponto as autobiografias dos atletas ainda
são escassas, sendo um dos poucos exemplos a do ex-
atleta Zé Mario1. O livro de Paulo André vem acrescentar
muito em nosso conhecimento sobre futebol e nossas
indagações não só sobre o jogo, mas também sobre a
estrutura por trás dele.
Paulo André é atualmente jogador do
Corinthians, atuando como zagueiro, mas também
desempenha as ocupações de escritor e artista plástico.
Iniciou a carreira aos 15 anos no São Paulo Futebol Clube
e passou por diversos clubes no Brasil, tais como Guarani
de Campinas e Atlético Paranaense. Além disso, atuou
três anos na Europa, jogando pelo Le Mans da França,
regressando em 2009 para defender o Corinthians. Paulo
André pode ser considerado uma exceção no meio
futebolítisco atual, caracterizado pelo tom blasé dos
discursos. Muito articulado com as palavras e as ideias,
busca conciliar ao máximo o futebol e os estudos de
forma autodidata, para que possa praticar a reconversão
profissional ao final de sua carreira, como ele mesmo
destaca no livro. Toda essa sua trajetória é o combustível
e o fio condutor da autobiografia.
A obra está dividida em três partes. A primeira
intitula-se Futebol amador e nela Paulo André relata desde
o momento em que decidiu se tornar um jogador de
futebol, na infância, até a assinatura de seu primeiro
contrato profissional, com o Guarani de Campinas. Nessa
primeira parte são descritas as “veias abertas da formação
de atletas”2, ou seja, as dificuldades e o cotidiano das
categorias de base no futebol brasileiro vivenciadas por
ele.
O autor procura desconstruir as ideias divulgadas
na grande mídia sobre o sucesso da profissão de jogador
de futebol e suas facilidades. Com isso, Paulo André
relata o caminho percorrido por ele antes de ser
profissional e as várias dificuldades e incertezas que o
esporte lhe proporcionou, além dos diversos sacrifícios
que precisou enfrentar para alcançar seu objetivo.
profissionalização não elimina as dificuldades enfrentadas
no futebol, mas as transforma em outras, principalmente
em relação aos cuidados com o corpo, ao enfrentamento
das lesões e à convivência com empresários e dirigentes.
Em contrapartida, são relatas as alegrias de jogar futebol,
principalmente no momento das vitórias, e a possibilidade
de obter recursos financeiros para ajudar a família,
conhecer novos lugares no mundo e aprender sobre novas
culturas. A atuação pelo Corinthians ganha força em
função da conquista do título Brasileiro.
A terceira e última parte traz para os leitores as
ideias e questionamentos de um jogador para com seu
esporte, ou mais próximo de nossa realidade do
trabalhador com o seu próprio labor. Paulo André
praticamente conversa com o leitor e expõem suas
concepções sobre como se comportar como atleta, sobre as
mazelas na formação no futebol e como o cuidar do corpo
e da mente, elementos fundamentais para o sucesso e
desenvolvimento do jogador profissional. Através de suas
reflexões, o autor desnuda a estrutura do futebol nacional
e dialoga com os vários atores participantes desse
processo, tais como pais, dirigentes, expectadores e os
jogadores, estejam eles em formação ou sendo já
profissionais.
O livro O Jogo da Minha vida é, no entanto, muito
mais que uma biografia, um rico material para pensarmos
a realidade do futebol brasileiro através dos olhos de um
nativo do campo esportivo que possui o devido
distanciamento que nos leva a bem compreender os
problemas e a estrutura do futebol nacional,
principalmente no que concerne à formação de nossos
atletas. O livro é um retrato do futebol nacional e a
história de Paulo André poderia ser, na verdade, a de
muitos outros jovens no Brasil, sendo necessário para isso
que apenas fosse trocado nome do autor.
Talvez a primeira parte do livro seja a mais
interessante por mostrar uma realidade ainda pouco
conhecida ou divulgada na mídia para os espectadores de
futebol. Nela é evidenciado um esporte sem
regulamentação ou fiscalização efetiva, que estimula seus
jovens a buscar a profissionalização no futebol, mas que
quase não oferece amparo para seu desenvolvimento
esportivo, e muito menos incentivo para a formação de
um cidadão nos bancos escolares. Por isso, no texto são
mostradas as dificuldades de conciliação da escola com o
futebol, produzindo jovens que somente sabem jogar, mas
sem possibilidade de reconversão profissional em caso de
não obterem sucesso na carreira ou quando se retirarem
dos palcos esportivos.
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Uma quase Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea
Além disso, é posta em análise a quantidade de
jovens que serão excretados desse circuito futebolístico e
que, sem escolarização adequada, acabarão ocupando
postos de trabalho subvalorizados. Nesse ponto devemos
lembrar que os relatos de Paulo André, corroboram as
assertivas de Arlei Damo sobre a formação de
futebolísticas à "brasileira"3, ou seja, privilegiando quase
exclusivamente a obtenção de capitais futebolísticos.
Apesar de Paulo André poder ser caracterizado
como um jogador exceção na sua concepção de
estruturação sobre o futebol no Brasil e no mundo, em
determinados elementos esse atleta ainda perpetua em
seus discursos alguns elementos do senso comum
futebolístico.
Com isso, é interessante analisar o livro também como um
discurso cristalizado do atleta e como a representação de
sua visão sobre o esporte e o futebol. Nesse ponto, cabe
ressaltar novamente que Paulo André é um nativo desse
campo e com isso possui, por dentro dessa estrutura,
certo conhecimento de seu funcionamento, mas talvez
não consiga observá-la como um maior distanciamento
em determinados pontos.
“os nativos, mestres e aprendizes têm um domínio difuso do que sejam as categorias amplas instituídas pelo Estado e pela FIFA, o que não impede que eles as manipulem e observem-nas”4
Esse talvez seja o motivo pelo qual ao longo de
todo o livro ele realize diversas críticas ao futebol
brasileiro, à formação das categorias de base e ao
comportamento dos atletas, mas sem indicar com precisão
a quem as críticas se dirigem. Isso mostra como ele tem o
conhecimento dos problemas, consequência direta de
suas experiências cotidianas, mas não consegue
compreender os delineamentos macrossociais desses
processos.
Nesse ponto o livro procura romper com as
representações do jogador apenas como ícone pop da
cultura globalizada e igualmente discutir a própria
estrutura de formação dos atletas. No entanto, não
consegue avançar mais em suas análises, pois recai em
discursos pré-formatados sobre o sucesso e sua relação
direta com o comprometimento nos treinos, na obediência
as hierarquias e ordens dentro do clube e na manutenção
do condicionamento físico. Dessa forma, reproduz as
concepções dominantes sobre o comportamento esperado
dos atletas.
Toda essa obra é na verdade a narração de uma
trajetória vitoriosa de um atleta que supera as
adversidades e os problemas por meio do trabalho duro,
da privação e da responsabilidade. A fala de Paulo André
é um elogio ao profissionalismo do jogador de futebol,
para que ele se torne um atleta e não apenas um jogador,
como destaca o autor.
Esse discurso do atleta que começou a jogar a
partir de 1995 é consequência direta do processo de
transformação pelo qual passa o futebol brasileiro desde o
final da década de 1990, com uma maior
profissionalização dos campeonatos e da estrutura dos
clubes de futebol. Nessa questão a profissionalização do
jogador também é requerida e preconizada pelos
instrumentos midiáticos, os investidores e os torcedores.
Isso porque estando o futebol imbricado no sistema
capitalista mundial e sendo dentro dele uma mercadoria,
a obtenção de lucros e manutenção como produto
atraente está diretamente relacionada com a forma de
gestão e atuação dos atores diretamente envolvidos com o
jogo.
Esse processo foi influenciado pelo processo de
hipermercantilização do esporte mundial verificado a
partir da década de 1970 com o desenvolvimento
tecnológico, proporcionado pelo avanço dos meios de
comunicação e transporte, o desenvolvimento da televisão
e a ampliação do número de pessoas interessadas em
acompanhar as competições. Através disso, ocorreu a
multiplicação do público e conseqüentemente, o potencial
mercantil do esporte, fato que traria mudanças na
organização dos torneios e nas próprias regras que dão
formato às modalidades esportivas.
Isso ficou bem claro na associação da FIFA com as
grandes empresas multinacionais, como a Adidas e a
Coca-Cola principalmente a partir do início da década de
1980 transformando essa federação esportiva quase que
numa empresa do ramo do entretenimento. Assim a
exposição cada vez maior desses esportes em um contexto
televisivo na década de 1980 e sua consolidação na década
de 1990 proporcionou o consumo deles em formas
inéditas e estabeleceu a construção de um esporte-
espetáculo e do jogador-mercadoria.
O jogador não é mais somente um especialista em
determinado ofício, ele é também uma imagem a ser
veiculada a produtos e demandas que só podem ser
valorizados se suas performances dentro e fora de campo
estiverem boas. Sendo essas performances fora de campo
entendidas como as práticas sociais valorizadas numa
sociedade capitalista, tais como o ascetismo, a disciplina e
o profissionalismo em suas atitudes.
O trabalho duro, compromissado e árduo é, dessa
forma, parte do profissionalismo propagandeado pelo
autor e visto como condição sine qua non para a
sobrevivência dos mais aptos, como descreve na terceira
parte, intitulada de Reflexões. Com isso, mesmo que não
perceba, reitera o discurso do mercado com sua mão
invisível premiando e selecionando os atletas que mais se
encaixam na lógica de comportamento do modelo
considerado ideal e valorizado nesses novos tempos de
mercantilização do esporte. O atleta-máquina, dócil, mas
também consciente de suas funções como atleta.
A biografia de Paulo André avança bastante ao
“colocar para jogo” bastidores da formação, com
indagações e opiniões de alguém que está cotidianamente
imerso nesse campo e pode, dessa forma, suscitar debates
para além da academia. Mas essa imersão no campo
esportivo ao mesmo tempo internaliza discursos e
posicionamentos que valorizam atitudes, e concepções
responsáveis pela legitimação das práticas do mercado
dentro do futebol. Sendo assim a imersão no campo é um
elemento importante para compreender questões muitas
vezes conhecidas apenas pelos nativos, mas também pode
trazer os perigos de concepções naturalizadas e
atemporais, como se determinadas práticas realizadas por
eles fossem um processo natural, inexorável e realizados
“desde sempre”.
No mais o livro deve ser visto como um olhar do
nativo sobre sua realidade, mas também como uma fonte
histórica e sociológica do futebol nacional, observando-se
em seu interior a construção do discurso e o contexto no
qual foi produzido.
1 BARROS, José Mario de. Futebol: Porque foi... Porque não é mais. São Paulo: Sprint Editora,1990. 2Esse termo é uma paráfrase ao livro de Eduardo Galeano intitulado “As veias abertas da América Latina”. Nesse livro o autor disserta sobre a história da América latina expondo eventos de grande impacto para a história do continente. 3Esse denominação de modelo à “brasileira” foi cunhado pelo antropólogo Arlei Sander Damo (2007) para descrever as especificidades da formação dos atletas brasileiros mais focados na obtenção de capitais futebolísticos do que na formação educacional básica. 4DAMO, Arlei Sander. Do Dom a Profissão: formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo: Aderaldo e Rothschild Editora, Anpocs, 2007. Pág 145
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Uma quase Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea
Sobre o autor
Alexandre Fernandez Vaz é Doutor
pela Leibniz Universität Hannover.
Professor dos Programas de Pós-
graduação em Educação e
Interdisciplinar em Ciências
Humanas da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC).
Coordenador do Núcleo de Estudos
e Pesquisas Educação e Sociedade
Contemporânea (UFSC/CNPq).
Pesquisador CNPq.
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extual/visualizacv.do?id=B295957
Contato:
POLÍTICA E SOCIEDADE
OLIMPÍADAS
Alexandre Fernandez Vaz
Professor da UFSC
Os Jogos Olímpicos de Londres atualizaram o
mito do encontro esportivo entre nações celebrado a cada
quatro anos. Decalcando as Olimpíadas da Antiguidade,
os Jogos modernos deveriam reafirmar a paz e a união
entre os povos, suspendendo as eventuais guerras para
sua realização, segundo o espírito do ideário do Barão de
Coubertin. Ele e outros aristocratas, no final do século
dezenove, levaram adiante aquele objetivo que quase
soava anacrônico em tempos já de sociedade burguesa
consolidada: reunir atletas para, sem interesse financeiro,
representarem a si e a seus países em uma contenda
esportiva. O prazer desinteressado deveria vir antes da
busca frenética por recordes e vitórias.
Quase que um último suspiro da aristocracia, em
seu impulso neoclássico de restauração de um poder
ferido de morte cem anos antes, com a Revolução
Francesa, os Jogos proibiram durante muito tempo a
participação de profissionais. Nada mais estranho ao
mundo aristocrático do que a democracia e o trabalho
para o próprio sustento, de forma que aqueles que
ganhavam a vida com o próprio corpo deveriam ficar
alheios à festa. Em arroubo sexista, inicialmente também
vedavam a participação de mulheres, já presentes, no
entanto, na segunda edição das Olimpíadas.
Nas Olimpíadas de Londres não vimos nada
disso. Lá estavam atletas altamente profissionais a
disputar medalhas acompanhadas de bônus por vitórias e
de uma exposição jamais experimentada. Historicamente,
a presença de profissionais nas competições foi sendo
paulatinamente tolerada, primeiro no futebol, depois em
outros esportes. A discussão foi inteiramente superada
com o fim da Guerra Fria. Os países que compunham o
Pacto de Varsóvia se orgulhavam de promover o espírito
olímpico, negando o profissionalismo, mas abrigando,
sob forte apoio estatal, seus atletas, demarcando um dos
muitos paradoxos do socialismo real, a defesa de um
modelo esportivo aristocrático. Pensando bem, é enorme
a coerência da plutocracia soviética com o esporte
olímpico, em especial no contexto da corrida tecnológica
perpetrada por ela e pelos países da OTAN. Conquista do
espaço, armamentos para os conflitos do Terceiro Mundo
e instrumentalização dos corpos no esporte (em que
pontificava o doping), foram armas importantes na
batalha sem fronteiras que sucedeu a II Guerra Mundial e
que durou até o início dos anos 1990, quando o Império
Soviético caiu "como um castelo de cartas", segundo a
expressão do historiador Eric Hobsbawm.
O esporte sempre andou pari passu com as
imagens que o divulgam. Contemporâneo do cinema e da
grande imprensa, os Jogos Olímpicos foram, em
Berlim/1936, tema de uma das primeiras transmissões
televisivas experimentais. Aquela Olimpíada inaugurou
ainda a moderna maneira de filmar e, portanto, de ver
esportes. Tudo o que se assiste hoje na TV pôde ser
antevisto antevisto no documentário de Leni Riefenstahl,
Olympia, na captação de imagens, na montagem ou na
narrativa. Nazista desde sua concepção, o projeto de
Riefenstahl não é, no entanto, mostra de uma suposta
"traição" aos ideais olímpicos pelos Jogos organizados
pelo Nacional-socialismo. O Barão de Coubertin não se
absteve de cantar louvores ao regime nazista que, por sua
vez, não se furtou de fazer o elogio ao corpo esportivo
"puro", asséptico, higiênico, sem misturas, máculas ou
história, condição que corresponde ao totalitarismo.
Apesar das inúmeras e rigorosas regras para a
captação e divulgação de imagens, os Jogos de Londres
foram, sem dúvidas, a edição olímpica em que elas com
mais velocidade e alcance estiveram disponíveis. De
atletas e público foi exigida toda uma etiqueta a ser
cumprida nos locais de competição, sendo a preocupação
maior a de não ferir os interesses dos patrocinadores. Nas
praças esportivas não se podia consumir alimentos que
não os oficiais, tampouco estava autoriza a manifestação
política.
De fato, os Jogos já foram lugar de embates
históricos para além dos campos esportivos, como o gesto
de dois velocistas estadunidenses medalhistas no México,
em 1968, punhos em luvas negras erguidos durante o
hasteamento da bandeira a execução do hino nacional na
cerimônia de premiação. Ou como os boicotes de países
africanos em 1976, dos Estados Unidos e vários aliados em
1980, dos soviéticos e sua área de influência em 1984.
Foram também lugar de terrorismo, a exemplo do
sequestro e assassinato de onze atletas israelenses nos
Jogos de Munique, em 5 de setembro de1972, por um
comando palestino que desejava intercambiá-los por
presos em Israel. A assepsia política atual não visa a
proteção do ideal aristocrata da paz nesses dias de Jogos,
como faz supor a indústria do entretenimento, mas a
proteção do grande negócio que o evento é.
Terá sido impossível controlar as milhares de
pessoas com seus refinados aparatos tecnológicos a captar,
montar e divulgar imagens e textos de forma quase
instantânea. Os próprios expectadores foram personagens
dos enredos que inundam as redes sociais, assim como os
atletas. Walter Benjamin disse nos anos 1930, que o ator de
cinema atuava no enfrentamento da câmera; Riefenstahl
inventou os atletas como atores modernos, assim como
fizera com os políticos em Triunfo da Vontade,
documentário sobre um congresso do Partido Nazista. O
esporte há muito que não é apenas documentado ou
transmitido, mas produzido e realizado para ser
capturado pelas lentes que cada vez mais são o
prolongamento do olho. Mercadoria espetacular, os Jogos
já não foram apenas em Londres, mas em todos os lugares
ao mesmo tempo.
O ideário aristocrata já não está presente nas
Olimpíadas, o que não deixa de ser uma vantagem.
Espetáculo global de atletas que devemos admirar pelas
proezas, negócio dos mais lucrativos a mobilizar
sentimentos difusos em nosso tempo, como o
nacionalismo e a identificação patriótica. Melhor seria ver
tudo isso como um jogo, que sempre tem algo de gratuito
e simplório, de fascinante e grandioso. Aos Jogos
Olímpicos, a devida importância. E nada mais.
1 Uma versão deste texto foi publicada no Diário Catarinense (DC
Cultura) em 11 de agosto de 2012, sob o título de Olimpíada da
imagem.
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Sobre o autor
Wagner Xavier de Camargo é
cientista social com mestrado em
Educação Física. Doutor em Ciências
Humanas pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), foi
bolsista da Deutscher Akademischer
Austausch-Dienst (DAAD) em
estágio internacional na Freie
Universität Berlin (FU Berlin),
Alemanha. Insere-se no campo dos
estudos antropológicos das práticas
esportivas e dedica-se, com especial
destaque, à investigação das
relações de gênero entre
masculinidades nos esportes de
competição.
http://buscatextual.cnpq.br/buscat
extual/visualizacv.do?id=B195056
Contato:
POLÍTICA E SOCIEDADE
POLÍTICA ESPORTIVA, MEDALHAS E UMA
GEOPOLÍTICA À BRASILEIRA
Os jornais televisivos e virtuais noticiaram no
último dia das Olimpíadas de Londres, que o Comitê
Olímpico Brasileiro (COB) anunciou ter cumprido a meta
esportiva planejada para o Brasil nos Jogos. Segundo
consta, com R$ 100 milhões a mais para o esporte em
relação ao que fora repassado pelas loterias no ciclo
olímpico chinês (à época, R$ 231 milhões), o país cumpriu
sua “missão”.
Que geopolítica esportiva é essa, que com esse
plus de milhões, só garantiu duas medalhas a mais em
relação ao resultado de 2008? Como se pode avaliar a
campanha do país no conjunto dos resultados obtidos
nestes Jogos Olímpicos? As marcas e medalhas
aguardadas na natação não vieram a contento. Nas classes
da vela, outras decepções: o "feijão com arroz básico" não
garantiu o que o potencial da modalidade predizia. O
atletismo só flertou com possibilidades e nada trouxe. No
hipismo, diz-se que faltaram cavalos adequados. E teve
até algoz do lado das forças (sobre)naturais, como ventos
demoníacos e usurpadores de chances. O boxe é caso
excepcional e merece ser considerado à parte. No
alvorecer de sábado, penúltimo dia de competições na
capital londrina, os meios de comunicação destacavam –
alguns de modo modesto, outros mais enfáticos – que a
campanha brasileira foi “a melhor dos últimos vinte
anos”. Atente-se para o detalhe: desde Barcelona-92 não
íamos tão bem no quesito “total de medalhas”!
Ou seja, mesmo não entrando no mérito da
distribuição de ouros, pratas e bronzes, depois das 15
medalhas em Atlanta-96, 12 em Sydney-2000, 10 em
Atenas-04, 15 em Pequim-08, agora foram as incríveis 17
medalhas conquistadas! Realmente um feito
surpreendente! Sozinho nesta versão olímpica, Michael
Phelps conseguiu mais ouros que os/as atletas/as
brasileiros/as (e mesmo que todas as modalidades em
que o país esteve presente) lá nos Jogos. Sabe-se,
igualmente, que ele conquistou, em sua jovem carreira
esportiva, mais ouros do que a Argentina em toda a sua
história olímpica.
Mas não pensem que apenas o Brasil tem este
histórico de resultados parcos, quase insignificantes.
Depois dos promissores anos do início do século XX, a
Grã-Bretanha amargou desempenhos relativamente
fracos no quadro geral de medalhas, o que a levou a uma
política de remodelamento do sistema e replanejamento a
médio e longo prazos após o fiasco de Atlanta-96 (quando
os britânicos conquistaram, no total, apenas 15 medalhas).
Nas versões sucessivas foram 28 (Sydney-2000),
30 (Atenas-04) e 47 medalhas (Pequim-08). O principal
foco foi incentivar esportes até então nacionalmente
pouco desenvolvidos, como o ciclismo. A Coréia do Sul é
é exemplo similar. O jovem país participou pela primeira
vez das Olimpíadas em Londres-1948 e durante quase
quarenta anos manteve-se nas últimas posições do
famigerado quadro. A ascensão como Tigre Asiático e o
redimensionamento da economia traduziram-se em
investimento em educação com reflexos claros no esporte,
como se tem constatado. Se somadas as desta versão
olímpica de verão, o país totaliza 244 medalhas em sua
história.
Estes dois países são exemplos a serem seguidos.
Terminam estas Olimpíadas em colocações
inquestionáveis: a Grã-Bretanha em 3º lugar, com 29
ouros, e a Coréia do Sul em 5º lugar, com 13 ouros.
Muitos dirão que tais efeitos foram possíveis
porque tais países sediaram Olimpíadas – isto é, o
planejamento governamental refletiu-se em méritos
esportivos. Eu não apostaria tantas fichas neste
argumento. E mais: os resultados concretos (e
sistematicamente melhorados em termos de número de
medalhas) são sintomas de, no mínimo, forte investimento
no esporte de base e clara política de detecção de talentos,
além de investimentos permanentes na manutenção de
jovens no meio esportivo. Não é preciso ir muito longe
para colher um exemplo disso: se na Colômbia o grande
capital de fomento ao esporte vem da esfera pública
(como acontece em nosso país), distintamente daqui, lá se
mantém um programa de incentivo a milhares de crianças
com aptidão esportiva que necessitam do desempenho
escolar para obterem o auxílio. Aqui os oficiais Comitês
Olímpico e Paralímpico investem unidirecionalmente no
alto nível e algumas ONGs que se propõem a inserir e
estimular crianças e adolescentes carentes em programas
esportivos, acabam suspeitas de corrupção e desvio de
verbas públicas.
A reincidência à pergunta é para fazer pensar: que
geopolítica é esta em que um resultado de 17 medalhas é
ovacionado? Só se for à moda brasileira mesmo. Aliás,
como já disse certa vez o inigualável Nelson Rodrigues:
"O brasileiro não está preparado para ser 'o maior do
mundo' em coisa nenhuma. Ser 'o maior do mundo' em
qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma
grave, pesada e sufocante responsabilidade." Por essas
lógicas ilógicas é que continuamos fadados a vestir a
fantasia de “sempre brasileiros”: fazemos festa por duas
anacrônicas medalhas a mais no quadro geral, bebemos
nossa cerveja, amamos nossas mulheres (mulatas,
obviamente, porque vivemos de estereótipos) e na
segunda-feira de trabalho já esquecemos tudo o que
aconteceu. E que venha a festa apoteótica “Rio-2016”!
Wagner Xavier de Camargo
Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina
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Uma quase Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea
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1
Sobre a autora
Michelle Carreirão Gonçalves é
Licenciada em Educação
Física/UFSC; Mestre em
Educação/UFSC; Graduanda do
curso de Filosofia/UFSC;
Doutoranda do Programa de Pós-
Graduação em Educação/UFSC;
Bolsista CNPq (UFSC/Leibniz
Universität Hannover); Membro do
Núcleo de Estudos e Pesquisas
Educação e Sociedade
Contemporânea.
http://buscatextual.cnpq.br/buscat
extual/visualizacv.do?id=K4770696
U7
Contato:
POLÍTICA E SOCIEDADE
LONDRES 2012: UMA EXPERIÊNCIA OLÍMPICA
Michelle Carreirão Gonçalves
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação /UFSC
Sou fã de esportes. Adoro assistir as mais
diversas competições. E em tempos de Jogos Olímpicos,
fico completamente fora do ar, curtindo na frente da TV
as duas semanas em que ocorre o maior evento esportivo
mundial. Neste ano, por conta da proximidade
geográfica, tive a oportunidade de estar na cidade sede
dos Jogos durante os últimos dias da Olimpíada.
Londres estava incrivelmente organizada e
preparada para receber os milhares de visitantes vindos
de todos os cantos do mundo para prestigiar, ver, torcer,
sofrer e se alegrar com os Jogos. A cada esquina era
possível encontrar duplas de policiais fazendo a
segurança, mas também dando informações, auxiliando
no que fosse preciso. Nas estações do Underground (o
metrô londrino), muitos voluntários dando dicas,
mostrando as direções e caminhos para os mais variados
locais de competição. Eles também podiam ser vistos nos
parques e em diferentes lugares da cidade, com suas
camisetas rosa e sua boa vontade, sempre prontos para
ajudar. Muitos falavam outros idiomas, algo inclusive
sinalizado nas respectivas camisetas (encontrei um desses
Staffs que tinha um pequeno botton dizendo “Ich spreche
Deutsch” – “Falo alemão” – e fiquei muito feliz, apesar de
estar me virando em inglês). E havia ainda as pessoas
comuns, moradores da cidade, que foram também muito
receptivos. Numa manhã, um senhor que saía de um
prédio, ao ver eu e minha companheira de viagem,
Viviane Silveira, perdidas com um mapa na mão,
atravessou a rua, mudou sua rota e veio nos perguntar,
“What are you looking for?”
Para quem não tinha ingressos para assistir suas
modalidades preferidas, era possível ir até algum grande
parque, como o Hyde ou o Victoria, e assistir, numa
imponente estrutura montada com telões, praça de
alimentação, banheiros e atividades de lazer, o que
estivesse sendo transmitido por lá, geralmente disputas
com participação de equipes da Grã-Bretanha ou as finais
das modalidades.
Fiquei impressionada com a quantidade de “sem
ingressos” pela cidade. Havia bastante gente tentando
descolar algo em frente aos estádios e ginásios, horas
antes das partidas. Muitos brasileiros, inclusive. Por sinal,
a presença brasileira também me impressionou, com suas
fantasias verde-e-amarelas, suas bandeiras enchendo a
cidade. Nada como viver em tempos de economia
aquecida em terras tupiniquins.
Pelas ruas da cidade, por todos os cantos, gente,
muita gente, com as mais diversas caras, línguas e cores.
Vestindo uniformes, camisetas, trazendo bandeiras.
Atletas
Atletas misturavam-se com ex-atletas e não atletas. Os
pontos turísticos estavam abarrotados de curiosos com
suas máquinas fotográficas, câmeras, celulares e tablets nas
mãos, querendo registrar o momento, os lugares, captar
aquela atmosfera em que os heróis olímpicos descem e se
misturam aos homens comuns. Já nas arenas, o
movimento era outro: as ordinary people procuravam se
diferenciar por meio de pinturas, de fantasias, de gritos,
enfim, das diversas formas de chamar a atenção da
câmera de TV. Ali, nada parecia mais importante do que
ser filmado e ter a imagem projetada no telão da arena.
Nem mesmo a torcida pela seleção preferida parecia ser
mais importante.
Nesse lugar cheio de deuses disfarçados de mortais,
e de mortais tentando ter seu momento estrelar, também
não contive a emoção ao me deparar com alguns atletas
conhecidos do Brasil: Flavio Canto (ex-judoca,
comentarista de uma emissora de TV), Fabiano Peçanha
(corredor de 1500m e 800m, prova que disputou), Virna
(ex-jogadora de vôlei, também comentarista) e Dani Lins
(levantadora da seleção de vôlei, medalhista de ouro).
Mas foi o encontro fortuito com um campeão
olímpico que me emocionou de um jeito inimaginável.
Quando aquele sujeito muito alto passou na direção
contrária a minha, entrando na estação de metrô,
reconheci seu rosto. Para confirmar, li em seu crachá:
Joaquim Cruz. Eu e minha parceira de aventura olímpica
não acreditamos no que vimos. Pensamos: “com ele
precisamos tirar uma foto”. E o chamamos de Joaquim,
assim, como se fôssemos íntimas. Ele se virou e pareceu
um pouco assustado, um tanto surpreso talvez, porque
não esperava ser parado ali, ainda mais por duas fãs que
não são da geração que o viu correr e brilhar nas pistas do
mundo (ele foi campeão olímpico em 1984, quando eu
tinha apenas 1 ano de idade). Mas foi incrivelmente
simpático e atencioso. Aquele foi meu momento olímpico,
completamente mágico, quando Joaquim Cruz, um dos
meus ídolos do atletismo, dedicou um breve instante do
seu tempo para oferecer uma imagem sorridente para a
fotografia, capturada pela objetiva e retida de modo
singular na minha memória. E é a ele e a todos os atletas
que me fizeram e ainda me fazem emocionar, me
surpreender e me fascinar ao ver esportes, que agradeço.
Nisso concordo com Gumbrecht: não há nada mais
importante a agradecer ao esporte do que o prazer que ele
nos proporciona.
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Uma quase Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea
Sobre o autor
Alexandre Fernandez Vaz é Doutor
pela Leibniz Universität Hannover.
Professor dos Programas de Pós-
graduação em Educação e
Interdisciplinar em Ciências
Humanas da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC).
Coordenador do Núcleo de Estudos
e Pesquisas Educação e Sociedade
Contemporânea (UFSC/CNPq).
Pesquisador CNPq.
http://buscatextual.cnpq.br/buscat
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Contato:
EDUCAÇÃO
EDUCAÇÃO INFANTIL:
CARÁTER PÚBLICO E FORMAÇÃO ILUMINISTA
Alexandre Fernandez Vaz
Professor da UFSC
A educação infantil é direito das famílias, em
especial das crianças, e, como tal, obrigação do Estado.
Meninos e meninas frequentam as instituições de
educação infantil não só porque os pais trabalham, mas
porque lá podem e devem ter experiências educativas
singulares. Professoras com formação especializada e
outros profissionais cuidam dos pequenos, colocando-os
em contato mais próximo com o mundo elaborado pela
ciência e pela arte, com o quê já existia antes de eles
nascerem e é constantemente renovado. Brincar é
atividade própria das crianças, ainda que não
exclusivamente delas. Na educação infantil encontram
espaço, tempo, materiais e mediações de pares e de
adultos para isso. Com as brincadeiras e outras
atividades, propostas ou espontâneas, elas aprendem
conceitos, desenvolvem o senso estético e a moralidade.
As brincadeiras são experimentações lúdicas que não
prescindem de um movimento que é similar ao da
composição da obra de arte, combinando a abertura dos
sentidos com o esforço intelectual.
Assim como depois fará a escola, a educação
infantil deve preparar as crianças para a vida pública,
para no futuro atuarem criticamente em sociedade. Como
bem destacou Hannah Arendt, cabe aos adultos
mostrarem a elas o mundo que as recebe, ao mesmo
tempo em que devem protegê-las, desencarregando-as de
tarefas e expectativas que são daqueles que já cresceram.
O imenso desafio que se coloca para a educação é o de
efetivar a formação dos pequenos frente a este mundo,
sem deixar que neles se perca a possibilidade de
transformação deste mesmo mundo.
Como espaço de formação, a educação infantil
diferencia-se da família em concepção, organização e
práticas. Não há dúvidas sobre a importância da presença
da família nas instituições de educação infantil, mas elas
devem ter calendários distintos porque atuam na
formação de forma diversa. Os eventos nas instituições,
por exemplo, devem ser distintos das celebrações
domésticas. É preciso diferenciar espaço público de vida
privada.
A educação pública não pode, por exemplo, fazer
proselitismo religioso, mas reforçar o próprio caráter
laico, inclusive por respeito à pluralidade de crianças que
recebe. É bom que no interior da instituição os adultos
coloquem entre parênteses suas crenças e que ajam sob os
desígnios da razão pública. Professoras que expõem as
crianças a canções e filmes religiosos, que as ensinam a
rezar e as ameaçam com castigos "divinos", ou com
quaisquer outros, devem rever sua prática.
Da mesma forma, a pauta da educação infantil
não pode ser a do calendário do comércio e do consumo.
Para ser formativa, ela deve apresentar às crianças formas
de interpretar o mundo que não equiparem poder de
compra e fascinação pela mercadoria a sucesso e
felicidade. Os pequenos são expostos a todo tipo de
demanda do mercado, em especial neste país, em que a
televisão como alternativa de entretenimento, tem uma
onipresença brutal na vida de cada um de nós. A presença
agressiva da propaganda, com ofertas em cores e formas
com personagens e brinquedos que parecem exigir um
gozo sem limites, exige a disposição para o combate
pedagógico. Oferecer outros modelos de interpretação do
mundo, distintos da indústria do entretenimento, é algo
que a educação não deve prescindir.
A educação infantil é essencial para a formação
das crianças. Mas, para que sua promessa se cumpra,
precisamos levar muito a sério, e em sentido extenso, o
caráter público da educação. Pequenos iluministas,
sensíveis e não conformistas, para que possam se tornar
pessoas críticas e autônomas, é o que queremos que as
crianças sejam.
1 O texto é devedor de contribuições de Ana Cristina Richter,
Gisele Carreirão Gonçalves, Josiana Piccolli e Michelle Carreirão
Gonçalves, sem que isso as torne responsáveis por qualquer dos
equívocos nele presentes. Uma versão mais resumida foi
publicada na coluna Opinião, do Diário Catarinense, n. 9649, em
19.ix.2012, p. 18, sob o título de Por uma educação infantil.
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