Consulta sobre abono de faltas a estudantes que se ausentem regularmente dos horários de aulas...

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1 NÃO TEM ATOS PARECER 068/2010 INTERESSADA: Mantenedora: Fundação Municipal de Ensino Superior de Nova Mutum Mantida: União de Ensino Superior de Nova Mutum ASSUNTO: Consulta sobre abono de faltas a estudantes que se ausentem regularmente dos horários de aulas devido a convicções religiosas – Lei estadual nº 9.274/2009 RELATOR: Cons. Adonias Gomes de Almeida PROC. nº.225435 /2010- CEE/MT. PARECER – CEPS nº. 068/2010-CEE/MT. APROVADO EM: 22.06.2010 I - RELATÓRIO Trata-se de consulta elaborada pela Fundação Municipal de Ensino Superior de Nova Mutum, mantenedora da União de Ensino Superior de Nova Mutum, sobre abono de faltas a estudantes que se ausentam regularmente dos horários de aulas, devido a convicções religiosas, em virtude da Lei Estadual nº 9.274, de 16 de dezembro de 2009. A referida Lei estadual traz disposições sobre a realização de concursos e processos seletivos para provimento de cargos públicos e exames vestibulares no Estado de Mato Grosso, bem como pretende estabelecer regras de direito educacional no território deste Estado. No âmbito da legislação educacional, a citada lei estabelece que estabelecimentos de ensino da educação básica, profissionalizante e superior, do âmbito público ou privado, estarão obrigadas a autorizar a substituição da frequência de alunos ausentes, em razão de guarda religiosa, por trabalhos escritos ou outras atividades acadêmicas, determinadas pela Instituição de ensino. Em razão de já haver decisão do Conselho Nacional de Educação – CNE por meio do Parecer nº 224/2006-CNE/CES, o Interessado consulta o CEE/MT e aguarda manifestação sobre o tema. II - ANÁLISE A Lei Estadual nº 9.274, de 16 de dezembro de 2009, padece de diversos vícios formais e materiais, que resultam em sua absoluta invalidade, seja por razões de inconstitucionalidade direta e indireta, seja por ofensa a regras infraconstitucionais vigentes afetas ao tema. Veja-se.

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NÃO TEM ATOS

PARECER 068/2010 INTERESSADA: Mantenedora: Fundação Municipal de Ensino Superior de Nova Mutum Mantida: União de Ensino Superior de Nova Mutum ASSUNTO: Consulta sobre abono de faltas a estudantes que se ausentem regularmente dos horários de aulas devido a convicções religiosas – Lei estadual nº 9.274/2009 RELATOR: Cons. Adonias Gomes de Almeida PROC. nº.225435 /2010- CEE/MT.

PARECER – CEPS nº. 068/2010-CEE/MT.

APROVADO EM: 22.06.2010

I - RELATÓRIO

Trata-se de consulta elaborada pela Fundação Municipal de Ensino Superior de

Nova Mutum, mantenedora da União de Ensino Superior de Nova Mutum, sobre abono

de faltas a estudantes que se ausentam regularmente dos horários de aulas, devido a

convicções religiosas, em virtude da Lei Estadual nº 9.274, de 16 de dezembro de 2009.

A referida Lei estadual traz disposições sobre a realização de concursos e

processos seletivos para provimento de cargos públicos e exames vestibulares no Estado

de Mato Grosso, bem como pretende estabelecer regras de direito educacional no

território deste Estado.

No âmbito da legislação educacional, a citada lei estabelece que

estabelecimentos de ensino da educação básica, profissionalizante e superior, do âmbito

público ou privado, estarão obrigadas a autorizar a substituição da frequência de alunos

ausentes, em razão de guarda religiosa, por trabalhos escritos ou outras atividades

acadêmicas, determinadas pela Instituição de ensino.

Em razão de já haver decisão do Conselho Nacional de Educação – CNE por

meio do Parecer nº 224/2006-CNE/CES, o Interessado consulta o CEE/MT e aguarda

manifestação sobre o tema.

II - ANÁLISE

A Lei Estadual nº 9.274, de 16 de dezembro de 2009, padece de diversos vícios

formais e materiais, que resultam em sua absoluta invalidade, seja por razões de

inconstitucionalidade direta e indireta, seja por ofensa a regras infraconstitucionais

vigentes afetas ao tema.

Veja-se.

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1. Inconstitucionalidade reconhecida pelo STF – ADI nº 2806

Não se trata da primeira tentativa de um Estado-membro em conformar a

sociedade a um comportamento religioso específico.

Em 2002, no Rio Grande do Sul, foi promulgada uma lei semelhante, que

pretendia, igualmente, regulamentar o funcionamento do poder público federal, estadual e

municipal, nos limites territoriais daquele Estado-membro, cuja inconstitucionalidade foi DECLARADA pelo órgão máximo do Poder Judiciário Nacional, o Supremo Tribunal Federal – STF.

Observa-se que o reconhecimento da inconstitucionalidade pelo STF, chamado

este, pela Carta Magna, de “guardião da Constituição”, tem efeito ex tunc e erga omnes.

O primeiro efeito significa que a declaração de inconstitucionalidade retroage à data da

violação, ou seja, da publicação da lei, e o segundo, que a decisão tem efeito para todas

as situações jurídicas com as mesmas características.

A fim de resumir os principais vícios do ato normativo que violam a Constituição,

trazemos à baila a Ementa do julgamento proferido em 27/03/2003, nos Autos da Ação

Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 2.806-5:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 11.830,

DE 16 DE SETEMBRO DE 2002, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.

ADEQUAÇÃO DAS ATIVIDADES DO SERVIÇO PÚBLICO ESTADUAL E

DOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO PÚBLICOS E PRIVADOS AOS

DIAS DE GUARDA DAS DIFERENTES RELIGIÕES PROFESSADAS NO

ESTADO. CONTRARIEDADE AOS ARTS. 22, XXIV; 61, §1º, II, C; 84, VI, A;

E 207 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

No que toca à Administração Pública estadual, o diploma impugnado padece

de vício formal, uma vez que proposto por membro da Assembléia

Legislativa gaúcha, não observando a iniciativa privativa do Chefe do

Executivo, corolário do princípio da separação de poderes.

Já, ao estabelecer diretrizes para as entidades de ensino de primeiro e

segundo graus, a lei atacada revela-se contrária ao poder de disposição do

Governador do Estado, mediante decreto, sobre a organização e

funcionamento de órgãos administrativos, no caso das escolas públicas;

bem como, no caso das particulares, invade competência legislativa

privativa da União.

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Por fim, em relação às universidades, a Lei estadual nº 11.830/2002 viola a

autonomia constitucionalmente garantida a tais organismos

educacionais.

Ação julgada procedente. [grifou-se]

A Lei Estadual nº 9.274/2009 padece dos mesmos e insuperáveis vícios de

inconstitucionalidade da lei gaúcha, declarada nula pelo STF em sede de controle

concentrado de constitucionalidade, no exercício da função precípua da Corte de guarda

da Ordem Constitucional, além de outros atinentes ao ordenamento jurídico mato-

grossense.

Veja-se.

• Ofensa ao princípio da separação de poderes

A Lei estadual em comento viola frontalmente o princípio da separação de

poderes.

Segundo o sistema de freios e contrapesos, o Poder, nesta Unidade Federativa, é

dividido em três, segundo as características principais e peculiares, independentes e

harmônicos entre si, a saber: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Cada qual desempenha funções típicas: o Executivo administra, o Legislativo cria

as normas jurídicas, e o Judiciário decide os conflitos decorrentes da aplicação do direito

posto.

O Poder, no entanto, sofre tensões sociais, e há sempre a tendência ao abuso.

Por tal motivo, foi idealizada a teoria da separação de Poderes, segundo as principais

funções do Estado. Cada uma das divisões do Poder desempenha funções típicas e

atípicas, em que um limita e controla a atividade do outro, a fim de que se encontre um

equilíbrio e verdadeira harmonia entre eles.

O órgão com competência tipicamente legiferante é o Poder Legislativo, que, no

nosso sistema, possui 3 níveis, cada qual com sua competência fixada pela Constituição

da República: federal (Congresso Nacional, de composição bicameral, formado pelo

Senado Federal e pela Câmara dos Deputados Federais), estadual (Assembléias

Legislativas) e municipal (Câmaras de Vereadores). O Distrito Federal é um ente

federativo sui generis, misto das competências estaduais e municipais (Câmara Distrital).

O Legislativo, portanto, inova o ordenamento jurídico, estabelecendo as regras

gerais e abstratas que regerão o convívio social.

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Segundo o sistema de freios e contrapesos, há uma reserva constitucional de

assuntos, que, em razão de sua importância e reflexo na Administração Pública, embora

dependam da criação de lei para ser exercida, cuja iniciativa está reservada,

privativamente, ao Chefe do Executivo.

Entre os assuntos de competência privativa do Chefe do Executivo está o

funcionamento dos órgãos públicos e o regime jurídico dos servidores de sua esfera de

governo.

Nesse sentido, na gestão dos órgãos da administração direta, indireta ou

fundacional federais, a competência legislativa é privativa da União, e a iniciativa é

privativa do Presidente da República (artigo 84, IV, a, da Constituição Federal/1988).

Igualmente, nos Estados-membros, a competência legislativa é da Assembléia

Legislativa, e a iniciativa é privativa do Governador (art. 39, parágrafo único, inciso II,

alíneas a, b e d, e art. 66, inciso V, todos da Constituição do Estado de Mato Grosso).

Ao dispor sobre o processo seletivo para investidura no quadro da administração,

bem como sobre o processo seletivo de ingresso nas instituições de ensino públicas e

privadas, houve a violação à separação de Poderes, por ofensa às regras dos níveis

federal e estadual, bem como dos respectivos sistemas de ensino.

A Assembléia Legislativa não poderia, no âmbito federal, invadir a competência da

União e a iniciativa privativa do Presidente da República e, no âmbito estadual, atropelar

a do Governador do Estado.

A Lei Estadual nº 9.274/2009 pretende regulamentar o processo seletivo de

concurso para provimento de cargos e empregos públicos dos três entes, processo

seletivo para ingresso nas universidades (vestibulares) públicas e privadas, do sistema

federal e estadual, bem como o funcionamento de instituições de ensino, também dos

sistemas estadual e federal, limitando o funcionamento, o regime de pessoal e,

consequentemente, implicando em aumento de despesa, sem indicação da fonte de

receita correspondente.

2. Inconstitucionalidade – ofensa à Constituição do Estado de Mato Grosso – Vício formal – processo legislativo

Conforme se verifica da decisão proferida pelo STF nos autos da ADI

mencionada, lei que tenha como objeto conformar o funcionamento do Estado,

restringindo-o e adequando-o aos interesses de um costume religioso, seja ele qual for, é

inconstitucional.

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No entanto, outro argumento a somar-se ao fato da nulidade da lei em comento é

a ofensa às regras do Poder Constituinte Derivado Decorrente, tratadas na Constituição

do Estado de Mato Grosso.

Especificamente referente ao sistema estadual de ensino, determina o artigo 45,

parágrafo único, inciso XIII, que a disciplina encontra-se na reserva legal da espécie

normativa Lei Complementar:

Parágrafo único Serão regulados por lei complementar, entre outros casos

previstos nesta Constituição:

(...)

XIII - Lei de Diretrizes da Educação;

A lei complementar possui um processo legislativo diferenciado, mais rígido que o

previsto para as leis ordinárias, exatamente porque os assuntos reservados à sua

disciplina são mais relevantes, exigindo um maior debate, reflexão e, essencialmente,

quorum de aprovação da proposta legislativa.

A reserva legal de lei complementar é uma inescapável restrição ao Poder

Legislativo, sob pena de nulidade do ato normativo.

O Poder Legislativo é um poder CONSTITUÍDO, ou seja, ele existe porque o

Poder maior – originário – diz que ele existe. Este poder é o Poder Constituinte

Originário. Enquanto poder constituído, ele deve obedecer às restrições impostas pelo

Poder Constituinte Originário.

Essa é uma regra lógica que confere legitimidade ao poder constituído por aquele

poder maior, que o criou. A criatura não pode afrontar seu criador.

A Assembléia Legislativa, por mais que seja o Poder tipicamente inovador do

ordenamento jurídico estadual, não pode extrapolar as regras limitativas da sua própria

existência sob qualquer pretexto.

Assim, a Lei Estadual nº 9.274/2009 é nula; primeiro, porque invade a

competência privativa da União, de iniciativa do Presidente da República, no que

concerne ao sistema federal, à legislação nacional e aos órgãos federais presentes no

Estado de Mato Grosso; segundo, porque, no âmbito estadual, violou a regra da reserva

legal de lei complementar.

Ainda, pois, que, por hipótese, não houvesse ofensa material à Constituição da

República, é inconstitucional a Lei estadual nº 9.274/2009, tendo em vista que não

observou a espécie normativa exigida para tanto.

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3. Vício material – invasão de competência da União

A Constituição de 1988, em seu artigo 1º, estabelece que a República Federativa

do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito

Federal, constituindo-se em Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos,

dentre outros, a soberania.

Daí extraem-se:

a) o princípio Republicano, ou seja, que o Brasil adota como regime de governo a

República, conhecida como governo do povo, pelo povo e para o povo;

b) o princípio Federativo, segundo o qual o Estado brasileiro é formado pela União

indissolúvel dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, ficando,

portanto, caracterizadas 3 níveis de organização política interna: federal, estadual e

municipal, cada qual com sua competência definida e distribuída pela Constituição.

c) o princípio do Estado de Direito, que significa ser o Estado Brasileiro signatário

da segurança jurídica, representada pela obediência ao ordenamento jurídico (normas

jurídicas – princípios e regras) definidos internamente pelos entes competentes

constitucionalmente.

d) o princípio da soberania, ou seja, no âmbito interno, é o Estado Brasileiro que

dá a última palavra e, no âmbito externo, não está sujeito a interferência de nenhum outro

Estado, fazendo parte da comunidade internacional em igualdade de condições.

Transportando tais princípios para o caso concreto, faz-se necessário estabelecer

algumas premissas básicas:

d.1) Soberania x independência: Soberania é um atributo que o Estado Brasileiro

possui. Por Estado, para fins de SOBERANIA, leia-se governo federal.

A divisão em Estados-membros, Distrito Federal e Municípios é apenas uma

divisão política interna, para fins de descentralização do Poder, tendo como objetivo que

a criação de vários centros irradiadores de poder estarão mais próximos da realidade

local e, consequentemente, serão mais eficientes.

A divisão política não significa que cada ente federado reúne em si o atributo da

soberania.

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Nesse sentido, portanto, estabelece-se a divisão em 3 níveis de poder: o federal,

o estadual e o municipal (com a peculiaridade de que o distrital é misto, reunindo

características estaduais e municipais).

A divisão não estabelece propriamente uma hierarquia entre os entes; há uma

divisão de competências entre eles.

Nesse sentido, a Constituição da República acaba por estabelecer, em geral, que

a União reúne atribuições do ente federal e de órgão nacional.

A fim de que haja uma harmonia e homogeneidade nos entes federativos, a União

edita normas gerais que terão vigência em todo o território nacional, de observância

obrigatória por todos os Estados, municípios e Distrito Federal.

Os Estados, por sua vez, no exercício da competência residual, adequam e

particularizam as regras federais, editando normas específicas aplicáveis no âmbito de

seu território. Aos municípios compete adequar as regras nacionais e estaduais à

realidade local.

Cada ente, portanto, é independente, não podendo haver interferência de um em

outro, desde que sejam observadas as regras constitucionais de competência fixada para

cada um.

Não se pode confundir, pois, independência com soberania.

Os Estados, o DF e os Municípios não podem, sob pena de nulidade absoluta por

inconstitucionalidade, sob o argumento da independência, opor-se às normas

constitucionais e nacionais existentes.

O sistema é, portanto, harmônico.

Nesse sentido, um Estado que pretenda estabelecer como a União deverá agir

dentro dos limites territoriais que lhe são próprios, está claramente violando a

Constituição da República, ofendendo os princípios do Estado de Direito, Federativo e

Republicano.

É o que se verifica claramente pelo teor da Lei Estadual nº 9.274/2009, a qual

pretende estabelecer como a União, o Estado e os Municípios deverão comportar-se em

sede de concurso público, processo seletivo, vestibulares e, até mesmo, como os

sistemas estaduais de ensino (federal e estadual) funcionarão em Mato Grosso. A

inconstitucionalidade é gritante.

Legislar sobre o Sistema Federal de Ensino é competência da União; nenhum

Estado-membro pode pretender regulá-lo diferente no seu território.

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No que concerne ao Sistema Estadual de Ensino, a Constituição Mato-grossense

confere o assunto à reserva absoluta da Lei Complementar, o que desde já invalida a Lei

Estadual, por vício formal.

Outrossim, ainda que seja editada uma Lei Complementar, deve ela obedecer aos

ditames da Constituição da República e das normas NACIONAIS em matéria de

legislação educacional.

Nesse sentido, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB

estabelece várias regras aplicáveis a todos os Estados-membros, entre as quais: mínimo

de duzentos dias letivos, frequência de setenta e cinco por cento do total de horas letivas

para aprovação etc.

Ora, se a LDB fixa 200 dias letivos para a educação básica e para o ensino

superior e setenta e cinco por cento de frequência para aprovação, não pode um Estado-

membro disciplinar de modo contrário, sob pena de ilegalidade e, por consequência,

inconstitucionalidade reflexa.

4. Vício material – inobservância do ordenamento jurídico educacional vigente – LDB

Sempre tendo como ponto de partida a Constituição da República, já analisamos

a iniciativa privada do Presidente da República nas leis que impliquem no processo de

gestão da administração pública direta, indireta e fundacional federais.

A Constituição, outrossim, ao distribuir as competências legislativas diversas,

reservou à União regular as normas gerais da educação nacional no art. 209.

No art. 22, a Carta Magna fala especificamente da competência da União em fixar

a lei de diretrizes e bases da educação nacional:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(…)

XXIV - diretrizes e bases da educação nacional;

Em razão da divisão política da República federal, havendo 27 entes federativos

diferentes, a Constituição pretende que seja conferida alguma uniformidade à educação

nacional, por meio de regras uniformes aplicáveis em todos os sistemas educacionais.

No exercício da competência-ordem da Constituição, foi editada a Lei nº 9.394/96,

conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB.

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Referida lei divide a história escolar em educação básica e superior, prevê a

colaboração entre os sistemas federal, estadual e municipal de ensino, estabelecendo

diversas regras gerais comuns e específicas a cada um deles.

Como exemplo, podemos mencionar a previsão mínima de dias letivos, duzentos

dias letivos, aprovação condicionada a frequencia e aproveitamento, entre outros.

Como regime geral, nenhum Estado ou município poderá, ao dispor sobre seu

sistema de ensino, determinar contrariamente ao disposto na LDB.

É o que se verifica claramente na Lei estadual nº 9.274/2009.

Ao estabelecer tratamento heterogêneo, pretendendo eximir o aluno de 1 dia de

aula por semana, estar-se-ia criando uma categoria diferenciada de alunos, que, à

margem da determinação nacional, teria apenas 160 dias letivos de aula, enquanto os

demais alunos estão obrigados a 200.

O tratamento diferenciado é absolutamente desprovido de amparo constitucional e

legal, tendo em vista o princípio da igualdade de acesso e permanência na escola, bem

como do regime previsto na LDB nacional.

5. Princípios fundamentais violados: Estado laico, isonomia e liberdade de convicção, crença e culto.

Não menos importante, deixamos para o final o enfrentamento da delicada

questão da liberdade religiosa afeta ao caso.

A Constituição da República assegura, como direito fundamental, a liberdade de

consciência, de crença e de culto, ao lado de outros princípios, como, por exemplo, o da

isonomia.

O princípio da isonomia é um dos mais importantes de uma democracia, tanto que

fora mencionado várias vezes no texto constitucional: arts. 5º, caput; 7º, inciso XXXIV; 14,

caput; 37, inciso XXI; 43, §2º, I; 206, inciso I; 227, §3º, inciso IV, entre outros.

Tal princípio traz em si duas idéias básicas: 1) em regra, todos são iguais perante

a lei, não se admitindo distinção de qualquer natureza; 2) os iguais devem ser tratados

igualmente e os desiguais, desigualmente, na medida das suas desigualdades.

Aqui se revela um princípio geral muito importante: nenhum direito é absoluto,

todos encontram limitações uns nos outros e na própria Constituição, que reconhece de

antemão algumas situações diferenciadas, em que deve ser conferido um tratamento

diferenciado, para que se estabeleça uma situação de equilíbrio.

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O tratamento desigual se justifica porque a igualdade formal não é suficiente; há

situações em que o tratamento diferenciado se justifica exatamente para que se alcance

a igualdade material. São exemplos de exceções as medidas afirmativas (negros, índios,

deficientes físicos – arts. 24, inciso XIV; 37, inciso VIII; 40, §4º, inciso I; 201, §1º; 203,

inciso V; 208, inciso III; 210, §2º; 227, §1º, inciso I e §2º; 231; 232; 244), diferenças nas

políticas públicas de proteção à mulher (arts. 7º, inciso XX; 40, §1º, inciso III, alínea “a” e

“b”; 143, §2º; 201, §7º, inciso I e II) preferências e políticas públicas em favor dos idosos

(arts. 203, inciso V; 230, §1º), entre outros.

As hipóteses de tratamento diferenciado, a fim de que se alcance a verdadeira

igualdade, revelam, portanto, que não há direito absoluto.

Todo direito, outrossim, encontra limite em outros direitos.

A liberdade de consciência e de crença assegura que todos possuem liberdade de

crer em qualquer religião, seita ou filosofia, desde que não ofenda aos direitos outros,

direitos individuais ou coletivos. Segundo esta garantia, assegura-se, inclusive, o direito

de não crer em coisa nenhuma ou de renunciar às crenças espirituais/sobrenaturais em

primazia da ciência.

São livres, portanto, cristãos, judeus, muçulmanos, ateus, protestantes, espíritas,

budistas, evolucionistas, agnósticos, panteístas e todos os que, com sua crença, não

ofendam a direitos individuais ou coletivos.

A Constituição assegura, inclusive, a chamada cláusula da escusa de consciência:

Art. 5º (...)

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de

convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de

obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa,

fixada em lei;

Segundo a Constituição, portanto, havendo uma obrigação a todos imposta,

ninguém poderá ser privado de direitos se, por foro íntimo, manifestar uma dupla recusa:

primeiro de cumprir a obrigação geral e, segundo, cumprir a obrigação alternativa.

É a justificativa para os adeptos de alguns segmentos religiosos, em não prestar

serviço militar obrigatório.

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Veja-se que, no caso que envolve a realização de concursos, vestibulares e

frequência escolar, NÃO SE TRATA DE OBRIGAÇÃO LEGAL A TODOS IMPOSTA,

razão pela qual não incide a cláusula da escusa de consciência.

Ninguém é obrigado a participar de concurso, vestibular ou estudar aos sábados

ou qualquer outro dia da semana. Apenas aqueles que pretendem participar,

voluntariamente, dos eventos realizados naqueles dias é que devem submeter-se à

norma.

A situação é clara e razoável.

De outro modo não haveria como realizar nenhum tipo de atividade sem ofender a

crença de alguém.

Imaginem-se as religiões que guardam os sábados, ou os domingos, ou qualquer

outro dia da semana. Se se tentar prestigiar a guarda de cada uma delas, simplesmente

estaria inviabilizada a realização de qualquer atividade.

Assim, para que não se beneficie nem se prejudique nenhum segmento, as regras

são gerais, abstratas e, portanto, aplicam-se indistintamente a todos os sujeitos. Cabe a

cada um verificar a compatibilidade das regras coletivas à sua realidade pessoal.

Exatamente em prestígio ao tratamento isonômico de liberdade de consciência e

de crença, o Estado brasileiro adotou uma postura de absoluta neutralidade religiosa.

O Estado brasileiro é laico, como se pode extrair do disposto no art. 19 da

Constituição da República:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o

funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de

dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de

interesse público;

II - recusar fé aos documentos públicos;

III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

Os Poderes Públicos, pois, não podem, sob qualquer pretexto, associar a

atividade administrativa a nenhuma denominação religiosa.

Assim, é inadmissível que haja um tratamento geral, a ser observado pela maioria

das pessoas e outro regime, destinado a beneficiar unicamente um segmento religioso.

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Não se admite tratamento detrimentoso nem preferencial a nenhum credo, seja

ele qual for.

Em razão da liberdade religiosa e da isonomia, porquanto, não pode haver a

obrigação de obediência à LDB pela coletividade e um benefício especial aos sabatistas,

ou a qualquer outro segmento.

Veja-se, outrossim, que o sistema educacional, tema objeto da lei que afeta

diretamente a competência deste Conselho Estadual de Educação, não obriga ninguém a

estudar sexta-feira à noite ou sábado de manhã; no entanto, toda pessoa que optar por

um curso, cujo desenvolvimento das atividades esteja previsto para o referido período,

deverá, igualmente, observar frequência mínima, seja fixada em lei (educação básica),

seja fixado no regulamento das Instituições dotadas de autonomia (ensino superior).

A Constituição da República, especificamente em sede de ordenamento

educacional, estabelece o princípio da igualdade de acesso e permanência, no seu art.

206, inciso I.

Fundado nesse princípio, já houve diversas manifestações do CNE em pedidos de

autorização para formação de turmas especiais para sabatistas, com manifestações

desfavoráveis: vide os Pareceres CNE/CEB nº 15/99 e CNE/CES nº 336/2000, 29/2006 e

224/2006.

Destacamos o caso em que uma Instituição já possuía autorização para oferta de

cursos de Administração e Pedagogia, no período noturno. A fim de atender à demanda

de estudantes adventistas, houve o pedido de formação de uma turma especial, com

aulas no período da manhã. O pedido foi negado, sob o fundamento de violação à

igualdade de acesso e permanência (art. 206, inciso I, Constituição da República) –

Parecer CNE/CES nº 336/2000.

Da descrição do caso concreto verificamos duas importantes circunstâncias afetas

à questão central desse processo: não só estudar aos sábados (do pôr-do-sol da sexta-

feira ao pôr-do-sol do sábado) não é obrigatório, mas também há alternativa aos adeptos

da guarda religiosa no período mencionado, como, por exemplo, cursos ofertados no

período da manhã.

Ora, dizer que as Instituições de ensino deverão conferir tratamento diferenciado

aos sabatistas pode até mesmo inviabilizar as atividades, além de violar o princípio da

isonomia.

Tiremos, como exemplo, um curso ofertado às sextas-feiras à noite e aos sábados

durante o dia, como é muito comum nos cursos de pós-graduação lato sensu.

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Assegurar a guarda religiosa a qualquer indivíduo significa dizer que a Instituição

de Ensino estará obrigada a formar uma nova turma e oferecer INTEGRALMENTE

OUTRO CURSO ao aluno sabatista, mesmo que seja uma única pessoa, enquanto os

demais serão obrigados à frequência regular às aulas. É totalmente desprovido de

qualquer razoabilidade.

O princípio da razoabilidade, de origem na escola romano-germânica, é também

conhecido como devido processo legal substancial, do direito anglo-saxão, e o princípio

da proibição de excessos, do direito português.

Todos eles conferem a garantia de que qualquer regra, para que seja válida,

deverá ser razoável, materialmente constitucional, ou seja, deverá estar em conformidade

com os princípios e valores consagrados na Constituição. Não basta a presença de lei

formal, é preciso um conteúdo axiológico razoável na norma.

A ausência da razoabilidade em prestígio à legalidade formal foi que proporcionou

o horror do regime nazista. A perseguição a algumas minorias (judeus, ciganos,

homossexuais, deficientes etc.) tinha amparo em leis aprovadas pelo parlamento alemão.

Daquela terrível experiência extraiu-se que não basta que uma determinada regra

seja aprovada pelo Poder Legislativo; ela precisa ser ideologicamente compatível com os

valores supremos da sociedade.

O exemplo trata de um dos casos mais extremos de violação ao princípio da

razoabilidade/devido processo legal substancial. Toda norma, porém, seja em maior ou

menor medida, que afronte o referido princípio será nula, em razão do vício da

inconstitucionalidade.

Não basta, portanto, ter forma de lei; para que qualquer regra seja válida é

indispensável que ela seja materialmente constitucional, ou seja, que esteja preenchida

de razoabilidade.

A Lei estadual nº 9.274/2009, ainda que não fosse eivada dos vícios formais de

inconstitucionalidade por ofensa ao devido processo legislativo, materialmente também é

incompatível com a ordem constitucional, por ofensa ao princípio da isonomia, da

liberdade de consciência e de crença e da laicidade estatal, pois pretende submeter toda

a sociedade aos interesses de um comportamento religioso específico.

III – VOTO

Pelo exposto, somos de parecer:

Page 14: Consulta sobre abono de faltas a estudantes que se ausentem regularmente dos horários de aulas devido a convicções religiosas

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a) Pela inconstitucionalidade formal e material da Lei estadual nº 9.274/2009, por

violação direta e reflexa à Constituição da República, da Constituição do Estado de Mato

Grosso e ao ordenamento jurídico educacional vigente, em concordância com o Parecer

emitido pela Câmara de Educação Básica deste Conselho, bem como em conformidade

com o entendimento do STF, firmado em sede de controle concentrado de

constitucionalidade, além dos pareceres reiterados do CNE, manifestados em ambas as

Câmaras, segundo a fundamentação supra;

b) Seja oficiado à Procuradoria Geral do Estado de Mato Grosso, ao Ministério

Público Estadual, à SEDUC – Secretaria de Estado de Educação, à SECITEC –

Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, à UNEMAT – Universidade do Estado de

Mato Grosso e ao SINEPE/MT – Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de

Mato Grosso, para, querendo, tomarem as providências que entenderem necessárias;

c) Que se dê ciência ao interessado e às demais Instituições de Ensino do Estado

sobre a obediência ao ordenamento educacional vigente, notadamente à Constituição da

República, à Constituição Estadual, à LDB nacional (Lei 9.394/96) e à estadual (Lei

Complementar Estadual nº 049/1998).

É o voto.

Cons. Adonias Gomes de Almeida Relator

III – DECISÃO DA CÂMARA DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E DE EDUCAÇÃO

SUPERIOR

A Câmara de Educação Profissional e de Educação Superior do Conselho

Estadual de Educação de Mato Grosso acompanha o voto do Relator.

Cuiabá, 22 de junho de 2010.

Consª. Regina Lúcia Borges de Araújo Presidente da CEPS/CEE/MT