CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM PSICOLOGIA Rosalia... · Hannah Arendt . RESUMO A questão da ......

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MARIA ROSALIA DE AZEVEDO CORREIA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM PSICOLOGIA Salvador 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

EDUCAÇÃO

MARIA ROSALIA DE AZEVEDO CORREIA

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM PSICOLOGIA

Salvador

2007

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MARIA ROSALIA DE AZEVEDO CORREIA

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM PSICOLOGIA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, para obtenção do grau de Doutor em Educação.

Orientadora: Profa. Dra. Elizete Silva Passos

Salvador

2007

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em PsicologiaC

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MARIA ROSALIA DE AZEVEDO CORREIA

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM PSICOLOGIA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, para obtenção do grau de Doutor em Educação.

Profa. Dra. Elizete Silva Passos Orientadora - UFBA

Profa. Dra. Cecília Maria Bacellar Sardenberg

Universidade Federal da Bahia

Profa. Dra. Nívea Maria Fraga Rocha Fundação Visconde de Cairu

Profa. Dra. Sonia Regina Pereira Fernandes Universidade Federal da Bahia

Profa. Dra. Teresinha Fróes Burnham Universidade Federal da Bahia

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A Andrea e Frederico, pelas aprendizagens da convivência diária.

A todas as pessoas que passaram pela minha

vida na condição de estudantes, pelas aprendizagens de uma profissão.

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AGRADECIMENTOS

A Profa. Dra. Elizete Silva Passos, pela parceria na orientação e pela

paciência de aguardar todos os momentos.

A Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências, na pessoa do Prof.

Dr. Humberto de Castro Lima, pela possibilidade de fazer parte da comunidade da

Bahiana e por permitir a realização desta pesquisa.

A todos os alunos e professores do Curso de Psicologia da Bahiana, em

especial aqueles que concordaram em serem sujeitos dessa pesquisa, participando

dos Grupos Focais.

A Romélia Santos, mestra e companheira de todas as jornadas.

Ao prof. Gaspare Saraceno, pelo incentivo e cumplicidade na leitura dos

manuscritos.

A Marina Araújo e a Nicoleta, pela leitura do material em momentos cruciais.

A Zé Mineiro e a Lucília, pelo afeto, respeito e pela força.

A vô Pedro e a Dolores, pelo suporte afetivo de todas as horas.

A Iraci Capinam e Michel Dantas, do CEEBA, pela compreensão em

momentos importantes da elaboração desta tese.

A Aline Campos e Joelma, pelo socorro no finalzinho desta caminhada.

A Zezé, por enfrentar a fase final deste trabalho, sem restrições.

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“E tudo que os homens fazem, sabem ou

experimentam só tem sentido

na medida em que pode ser discutido.”

Hannah Arendt

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RESUMO

A questão da identidade constitui-se hoje uma temática relevante nas

Ciências Humanas e Sociais, tendo em vista que o mundo contemporâneo diverso e plural nega a existência de identidades fixas e hegemônicas e admite a coexistência de identidades plurais forjadas nos processos sociais de identificação e diferença. O propósito desta tese é estudar a construção de identidades profissionais em Psicologia, com alunos de um curso de Psicologia singular, tomando como referência a vivência curricular acadêmica e considerando a psicologia como profissão feminina. Há o interesse de percorrer os caminhos pelos quais esses estudantes assumem determinados discursos e posições de sujeito que os nomeiam psicólogos e psicólogas. A pesquisa inicia-se com a condensação e análise de um questionário respondido por alunos no momento em que ingressam no curso, sobre o entendimento que esboçam sobre a Psicologia e o ser psicólogo. Mediante o desenvolvimento de Grupos Focais e Análise Documental, tenta-se percorrer os caminhos pelos quais os alunos e as alunas ressignificam as concepções sobre Psicologia e o que os faz sentir-se psicólogos e psicólogas. Trabalha-se com aporte teórico multirreferencial, ancorando-se em saberes oriundos da Psicologia Social, Estudos de Gênero, Filosofia e Teorias de Currículo, dentre outros. Os dados da pesquisa revelam que esses estudantes ingressam no Curso idealizando formar-se em psicologia clínica, um ramo da Psicologia cujo mister deve ser exercido por meio da clínica privada de atendimento em consultório, numa reprodução do modelo de atendimento médico, o que não se modifica substantivamente durante a formação. Há, porém, uma ressignificação do entendimento do profissional quando, ao final do curso, entendem psicólogos e psicólogas como profissionais da escuta que, mediante uma escuta cuidadosa, ética e teoricamente fundamentada, prestam ajuda àqueles que os procuram. Entendem que a construção dessas identidades durante o curso é processual, havendo práticas curriculares que contribuem de forma marcante para isso, como é o caso dos Estágios e do Trabalho de Conclusão de Curso, dentre outras práticas. Ressaltam também a importância da psicoterapia pessoal como um importante e indispensável recurso para a formação profissional. A despeito da introdução de práticas inovadoras, o currículo do curso ainda se revela fragmentado, numa perspectiva tecnicista. Conclui-se que há necessidade de reorientar esse currículo, além de desnaturalizar a Psicologia como profissão feminina, porquanto verifica-se que há um atravessamento de Gênero no currículo do curso, embora não haja uma intencionalidade para isso. Sendo Gênero uma lente para compreender o mundo e em se tratando de uma profissão considerada feminina, também se constitui numa lente para entender a profissão. Recomenda-se a necessidade de desnaturalizar a Psicologia como profissão feminina, desconstruindo a lógica que qualifica as mulheres com atributos como delicadeza, sensibilidade e fragilidade que impregnam a profissão, impedindo uma renovação de suas práticas para atender às demandas do mundo contemporâneo. Considera-se que desnaturalizar a profissão como feminina, ultrapassar uma visão estereotipada e reducionista da profissão e investir na reestruturação de um currículo menos fragmentado são grandes desafios a serem enfrentados na formação de psicólogos e de psicólogas.

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ABSTRACT

The issue of identity constitutes today in a relevant theme for Social and Human Sciences, considering that the diversified and plural contemporary world denies the existence of fixed and hegemonic identities and admits the coexistence of plural identities developed in the social processes of identification and difference. The purpose of this thesis is to study the construction of professional identities in Psychology, with students of a particular Psychology undergraduate course, taking as reference the curricular academic experience and considering Psychology as a feminine profession. There is an interest in following the tracks through which these students adopt some discourses and subject positions which state them as psychologists. The research begins with the summary and analysis of a questionnaire answered by students at the moment when they enter the Course, regarding the understanding they start to develop about Psychology and being a psychologist, and through the process of focal groups and document analysis. An attempt is made to follow the tracks through which the students ressignify their concepts about Psychology, and that which makes them feel they are psychologists. A multi-referenced theoretical approach is used, anchoring the research in knowledge from Social Psychology, Gender Studies, Philosophy and the curricular theories, among others. The research data reveal that these students enter the Course idealizing pursuing Clinical Psychology, a field which is performed through private practice, which is a reproduction of the medical model of clinical consultation, and this does not change much throughout the Course. Thre is, however, a ressignification in understanding of the professional, when, at the end of the Course, students understand psychologists as listening professionals, whom, through a careful, ethical and theorethically based listening approach, provide help to those who seek them. They understand that the construction of these identities during the course happens through a process, and that some of the curricular practices such as the Internships and the undergraduate research project, among others, contribute a lot to that. They also underline the importance of personal psychotherapy as an essential tool for their professional education. Despite the introduction of innovative practices, the course curriculum still reveals itself as fragmented and technicist. In conclusion there is a need to restructure the curriculum, besides changing Psychology from a feminine profession, as it is observed that there is an unintentional gender issue in the curriculum. Since gender is a way of understanding the world, and considering Psychology as a feminine professional, it is also a way to understand the profession. A recomendation is made to change Psychology from a feminine profession, desconstucting the view of women as delicate, sensitive and fragile which impregnates the profession, blocking a renovation of practices to attend the demands of the contemporary world. It is considered that the great challenges to be confronted in the development of Psychologists are: to change the profession from its feminine bias, to go beyond a stereotyped and reducionist view of the profession, and to invest in the restructuring of the curriculum to make it less fragmented.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

GRÁFICOS 1 – Psicólogo - profissional de ajuda 140 2 – Psicólogo: um profissional da ajuda 143 3 – Psicologia – áreas de atuação 145 4 – Qualidades pessoais do Psicólogo 147 5 – Por que escolheu ser Psicólogo? 149 6 – Área que pretende trabalhar 150 7 – Opções de área de atuação a serem exercidas concomitante ao trabalho

clínico 152

QUADROS 1 – Transição do currículo nas turmas do Curso de Psicologia em 2003 116

TABELAS 1 – Faixa etária dos estudantes 135

2 – Renda familiar dos estudantes 136 3 – Número de TCC elaborados pelos alunos do curso de Psicologia por área

temática 184

4 – Opções de alunos para Estágios Específicos 196 5 – Escolha de alunos para Estágio Específico – Síntese 197

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABEP - Associação Brasileira de Ensino de Psicologia

ABOP - Associação Brasileira de Orientadores Profissionais

ABP - Associação Brasileira de Psicólogos

ABPJ - Associação Brasileira de Psicologia Jurídica

ABRANEP - Associação Brasileira de Neuropsicologia

ABRAPEE - Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional

ABRAPSO - Associação Brasileira de Psicologia Social

ANPEPP - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia

ASBRo - Associação Brasileira de Rorschach

CBO - Catálogo Brasileiro de Ocupações

CFP - Conselho Federal de Psicologia

CONEP - Conselho Nacional de Entidades Estudantis de Psicologia

CRP - Conselho Regional de Psicologia

DCN - Diretrizes Curriculares Nacionais

EBMSP - Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

FBDC - Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências

FENAPSI – Federação Nacional dos Psicólogos

FFCH - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

IBAP - Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica

IDORT - Instituto de Desenvolvimento Racional do Trabalho

IDOV - Instituto de Orientação Vocacional

INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais “Anísio Teixeira”

ISOP - Instituto de Seleção e Orientação Profissional

MEC - Ministério da Educação

NAPP - Núcleo de Atenção Psicopedagógica

PP - Projeto Pedagógico

SBPD - Sociedade Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento

SBPH - Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar

SBPOT - Sociedade Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho

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SBPP - Sociedade Brasileira de Psicologia Política

SOBRAPA - Sociedade Brasileira de Psicologia e Acupuntura

TPFP - Taxa de Participação na Força de Trabalho

UFBA - Universidade Federal da Bahia

USP - Universidade de São Paulo

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 14 1 TECENDO AS IDENTIDADES 401.1 FALANDO DE IDENTIDADES 401.1.1 Entendendo as identidades pela historicidade 411.1.2 Algumas concepções contemporâneas de identidade 431.1.3 Identidades em movimento 461.1.4 Identidades simbólicas e discursivas 491.2 IDENTIDADES DE GÊNERO 521.2.1 Buscando compreender o conceito de Gênero 521.2.2 Vivência do feminino 541.2.3 Vivência do masculino 621.3 IDENTIDADES PROFISSIONAIS 67 2 FORMAÇÃO SUPERIOR EM PSICOLOGIA 782.1 UM POUCO DA HISTÓRIA 782.1.1 Antecedentes à criação dos primeiros cursos 822.2 UM CURRÍCULO PARA A PSICOLOGIA 872.2.1 Sobre algumas concepções de currículo 922.2.2 Currículo oculto 982.2.3 Implicações das teorizações críticas no Currículo da

Psicologia

102 3 ESTRUTURA E PROPOSTA DO CURSO DE PSICOLOGIA

– CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA

112

3.1 O CURSO DE PSICOLOGIA 1123.1.1 Proposta Curricular do Curso 1193.1.2 Construção de identidades neste Curso de Psicologia singular 124 4 A PSICOLOGIA E O SER PSICÓLOGO –

POSICIONAMENTOS PRÉVIOS

1344.1 CARACTERIZANDO OS SUJEITOS 1344.2 ANALISANDO DADOS DO QUESTIONÁRIO INICIAL 1374.2.1 Visão da profissão 1394.2.2 Aspectos relevantes do profissional 1434.2.3 Investimento pessoal na profissão 1484.3 TRAÇANDO UM PERFIL 153

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5 VIVÊNCIA CURRICULAR – CONSTRUINDO AS IDENTIDADES 1565.1 AS PSICOLOGIAS – UMA MULTIPLICIDADE DE ABORDAGENS 1575.2 SENTIR-SE PSICÓLOGO, SENTIR-SE PSICÓLOGA 1625.3 ESTÁGIOS - VIVÊNCIA TEÓRICO-PRÁTICA 1675.4 PSICOTERAPIA – UMA APRENDIZAGEM DE SI 1755.5 TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO: BUSCANDO O

PESQUISADOR

1805.6 OUTRAS PRÁTICAS... A DIVERSIDADE NA FORMAÇÃO 1855.7 PSICÓLOGOS E PSICÓLOGAS: PROFISSIONAIS DA ESCUTA 192 6 CONFIGURANDO GÊNERO 2066.1 PSICOLOGIA – PROFISSÃO FEMININA 2066.2 UMA VISÃO DE MASCULINIDADE 2126.3 PROFISSÃO FEMININA... O QUE PENSAM OS HOMENS 216 REFLEXÕES 226 REFERÊNCIAS 232 APÊNDICES 247 ANEXOS 250

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INTRODUÇÃO

A trajetória profissional de um ser humano é de natureza singular. Isso é

evidente não apenas pelo fato de cada ser humano ser único, mas também pela

singularidade de possibilidades e arranjos a que cada um submete suas escolhas,

inclusive as profissionais, amparados em suas competências teórico-conceituais,

vida pregressa, oportunidades e circunstâncias vivenciadas em determinado

momento histórico. A despeito do projeto de vida e do desenvolvimento da carreira

ser particular, os seres humanos agrupam-se em torno de profissões que têm seus

saberes específicos, ditos, ritos, mitos, enfim, configurações sociais, em que aqueles

que a abraçam, segredam e compartilham, numa construção coletiva.

A profissão é deflagrada, para cada um, com base na escolha profissional e

toma contornos concretos na experiência acadêmica universitária da formação. Os

caminhos percorridos pelas vivências objetivas e subjetivas da condição de aluno,

em situações de aprendizagem, mobilizam saberes e afetos na construção de um

projeto profissional.

Entre muitas profissões que coexistem na atualidade, mesmo quando se

consideram as profissões tradicionais e aquelas que emergem das novas

configurações da sociedade contemporânea, a psicologia se sobressai por sua

complexidade, visto que abriga uma diversidade de concepções teórico-

metodológicas que revelam distintas epistemologias e posicionamentos filosóficos e

se oferece para ser exercida em múltiplos espaços de inserção profissional com

peculiaridades específicas. Não existe uma proposta de convergência dessas

posições; elas coexistem sendo complementares, ambivalentes ou até contraditórias

entre si, explicitando a existência de múltiplas psicologias e não apenas de uma que

unifique ou sintetize seu vasto campo teórico e empírico.

Compreender os caminhos que levam à construção da profissão de psicólogo

ou de psicóloga é uma curiosidade que foi despertada no momento em que,

enquanto psicóloga e educadora, assumiu-se a implantação e coordenação do

Curso Superior de Psicologia na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

(EBMSP), mantida pela Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências

(FBDC), na cidade do Salvador (BA), em 1999. A responsabilidade que esta tarefa

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confere, aliada à necessidade de articular disciplinas, programas, conteúdos,

selecionar professores, formar um corpo docente e, além de tudo, construir

coletivamente o Projeto Pedagógico do Curso foi a mola propulsora do investimento

neste Doutorado.

Entende-se que reconhecer-se psicólogo ou psicóloga configura identidade.

Esta, porém, não se esgota em si mesma. Extrapola a questão profissional e abarca

identificações outras como as questões de geração, de raça, de gênero, dentre

outras e, enquanto carreira profissional, é construída durante toda a vida. Essa

construção, porém, é realizada, de forma significativa, durante a vivência sistemática

do curso superior, quando os alunos assumem posições de sujeito e se apropriam

de um discurso que lhes confere um sentimento de pertencer a uma profissão. Para

isso, apreendem conteúdos, assimilam valores, formas de se posicionar socialmente

e adquirem um arsenal teórico e técnico-metodológico necessário ao exercício de

determinado mister, além de um diploma que lhes confere socialmente a condição

profissional, neste caso, psicólogo ou psicóloga.

Só é possível compreender a construção de identidades em psicologia

quando se lança mão da historicidade da ciência, da profissão e do contexto social,

compreendendo que estes se constituem como referenciais de ordem política, social

e cultural que, por meio dos discursos, promovem sentidos que os sujeitos vão

interpretando e significando. É no confronto dessas múltiplas configurações e

possibilidades simbolicamente construídas que a pessoa posiciona-se e descobre

sua singularidade na historicidade social, cultural e profissional.

Neste processo estão envolvidos o mundo, os outros, a própria pessoa e a

natureza da profissão, articulando a história de vida, as aspirações futuras, a

aquisição de conhecimentos, o desenvolvimento de habilidades e atitudes. Estas

competências refletem posturas de vida e posicionamentos éticos diante de si e do

mundo. Há um jogo de constituição de si e do mundo proporcionado pelas

configurações histórico-sociais, que forjam as possibilidades e impossibilidades

pessoais e coletivas de inserção e atuação profissional nos diversos contextos

sociais.

Para compreender a construção de identidades profissionais em psicologia,

elaborou-se a seguinte pergunta para ser respondida por esta tese: Como os alunos

de um Curso de Psicologia singular constroem sua identidade profissional de

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psicólogo ou psicóloga no processo curricular que vivenciam, tendo em vista que a

psicologia é considerada uma profissão feminina?

Com base nesta pergunta, há a pretensão de entender como os estudantes

constroem identidades profissionais em Psicologia na vivência acadêmica cotidiana,

mediante o processo curricular e as práticas pedagógicas que o curso proporciona,

sem a pretensão de buscar verdades que confiram uma identidade definitiva. Pelo

contrário, deseja-se compreender o movimento por meio do qual esses alunos vão

assumindo posições de sujeitos atravessadas pelas relações de poder, de classe, de

gênero, de geração, dentre outras e analisar a identidade como processo relacional

que produz sentidos, com base na linguagem e nos sistemas simbólicos que

afirmam os seres humanos como sujeitos.

Dos estudos realizados sobre a formação em psicologia desde os idos de

1960, quando a profissão foi reconhecida, definida a formação em ensino superior e

determinado o Currículo Mínimo Nacional pelos órgãos competentes da educação,

muitos trabalhos foram publicados sobre o assunto, utilizando uma diversidade de

abordagens no tratamento desta questão. Com relação a teses de mestrado e

doutorado, destacam-se os seguintes autores, dentre outros: Júlio Aquino (1990),

Mitsuko Antunes (1991), Luis Antonio Baptista (1987), Ana Merces Bock (1991,

1999), Ana Maria Jacó-Vilela (1996), Sérgio Ozella (1991), Manoelita Santos (1999).

A produção teórica relacionada à construção da identidade profissional e a questão

da profissão considerada feminina, entretanto, não tem tido visibilidade.

A proposta de elaboração desta tese apresenta um novo olhar sobre essa

problemática e acredita-se que se trata de um estudo relevante para a discussão

sobre a formação de psicólogos, tendo em vista que aborda aspectos importantes da

formação desses sujeitos/estudantes. Há um compromisso político com a práxis do

currículo enquanto prática concreta de ação diária da instituição escolar, dando

visibilidade a questões relacionadas aos conteúdos e práticas curriculares, ao

atravessamento de gênero no currículo, ao jogo de poder que institui a psicologia no

âmbito das profissões, dentre outros aspectos.

Pretende-se, com essa discussão, contribuir para uma maior criticidade na

formação de psicólogos e estimular maior aproximação da formação acadêmica com

a realidade histórico-cultural que a circunscreve. A relevância exprime-se não

apenas na atualidade do tema, mas na forma como elaborou-se a pergunta,

privilegiando o exame de processos já desenvolvidos, continuidades, lacunas,

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transformações e apontando-se novas possibilidades sobre os saberes e poderes

que constituem a Psicologia e a formação desses profissionais.

Foi definido como objetivo geral da pesquisa: compreender como os alunos

de um Curso de Psicologia singular constroem identidades profissionais no processo

curricular que vivenciam, de forma que ao final do curso possam se autonomear

psicólogos. E, como objetivos específicos:

- verificar as concepções que os alunos têm da Psicologia e da profissão de

psicólogo, ao ingressarem no curso, e como estas se reestruturam ao

longo da vivência acadêmica;

- analisar como as práticas curriculares desenvolvidas pelo Curso

contribuem para a ressignificação da identidade de psicólogo e psicóloga

que os alunos esboçam ao ingressar no ensino superior;

- verificar como a questão de gênero atravessa as práticas curriculares do

curso e os impactos que produz na formação;

- analisar o entendimento que os alunos têm sobre a psicologia como

profissão feminina;

Era necessário, portanto, demarcar uma trama teórico-metodológica que

pudesse captar o percurso dos alunos/sujeitos na construção de identidades

profissionais em psicologia. Elegeu-se a Pesquisa Qualitativa com o formato de

Estudo de Caso, como aquele que atende aos objetivos, compreendendo o contexto

escolar como um lugar de cultura contraditória, onde as construções simbólicas

significativas são erigidas no duplo jogo do dito e não dito, ou seja, daquilo que se

declara e aquilo que subjaz enquanto valor, norma e acima de tudo disputa de

poder.

Há, neste trabalho, uma categoria básica de análise, qual seja, a Identidade,

em torno da qual se problematizam as questões relacionadas ao currículo e às

práticas curriculares de um Curso superior de formação em Psicologia, assim como

os aspectos relacionados à Psicologia como profissão feminina. Trata-se, portanto,

de identidades profissionais e de gênero.

A concepção de identidade que a tese partilha refere-se à identidade como

processo, como um movimento contínuo de diferentes e sucessivas identificações

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que se interpõe entre as pessoas num jogo infinito de igualdade e diferença,

aproximação e distanciamento, permitindo, por meio do discurso, que as pessoas

reconheçam os iguais e os diferentes de si. Como ensina Stuart Hall (2000, p. 109):

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. Além disso, elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída, de uma “identidade” em seu significado tradicional – isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação interna.

Ao adotar esta concepção de identidade não se pretende descrevê-la como

um alvo aprioristicamente traçado para ser atingido pelos alunos. Muito pelo

contrário, este posicionamento teórico instiga a compreensão das sutilezas e

minúcias dos caminhos pelos quais se constituem os sujeitos, no caso deste estudo,

como os estudantes se constituem psicólogos e psicólogas, mediante os processos

que dão sentido a suas experiências acadêmicas do cotidiano escolar. Isso implica

abdicar da idéia de identidade como idêntico e compreendê-la forjada na teia do

social, do mesmo modo e com igual intensidade que se produz a diferença, ambos

constituídos pelas relações de poder (BUTTLER, 2003; GUARESCHI; BRUSCHI;

MEDEIROS, 2003; HALL, 2000, 2001; SILVA, 2000; WOODWARTH, 2000 dentre

outros).

Esta formulação, ancorada no aporte dos Estudos Culturais, significa o

conceito de identidade, definindo-o em uma rede discursiva, como produto de um

discurso. Discurso como prática, conforme propõe Foucault (1999, 2001b), não é

visto do ponto de vista lingüístico ou como um significado de palavras, mas como um

conjunto de práticas que produzem efeitos no sujeito. Essas práticas discursivas,

historicamente produzidas, resultam de condições interativas concretas que geram

os processos de significação pelos quais os seres humanos assumem posições-de-

sujeito, pelas quais identificam-se com determinados discursos, tomando-os como

verdades, apropriando-se deles, sujeitando-se a determinadas significações que

fazem com que se tornem o que são.

Nesta mesma perspectiva, compreende-se a construção das identidades

femininas e das identidades profissionais. Gênero, enquanto categoria teórica,

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considerada como suporte para compreensão e análise da pesquisa em foco, é

concebido, como afirmou Joan Scott (1993 p. 14)1: “[...] o gênero é um elemento

constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e

o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder.”

Esse conceito seminal, entretanto, foi desdobrado em suas implicações

políticas e sociais, mediante a incorporação de novos e constantes estudos que

dialogam com autores contemporâneos.

Afirma Evelyn Keller (1996, p. 94):

[...] o feminismo contemporâneo propõe que o gênero é inerente às estruturas sociais lingüísticas e discursivas e não uma diferença meramente corporal. A teoria feminista é um empreendimento intelectual que surgiu de um impulso político. O impulso político tinha como propósito questionar as marcações do gênero e suas limitações, como um sistema no discurso. E este impulso político conduziu a um programa intelectual cujo propósito ou objetivo é compreender como opera gênero.

Além disso, para entender identidades construídas no discurso, recorre-se ao

conceito de performatividade proposto por Judith Butler (2001), o qual assegura que

o discurso não tem apenas uma função meramente narrativa de fatos ocorridos no

passado, mas formata acontecimentos e posições de sujeito, na medida em que,

mediante exercícios de repetição, proporciona a assunção de posições que falam de

si e reconhece aquelas pelas quais se é falado.

Nesta mesma linha de raciocínio, aborda-se as identidades profissionais

neste trabalho, entendendo-as como construções relacionadas às posições que o

sujeito assume, mediante as práticas discursivas às quais está exposto e que

expressam a forma como o curso dissemina conteúdos, valores e procedimentos

que configuram a profissão de psicólogo e psicóloga, de modo a proporcionar-lhes

uma percepção particular de mundo e determinados modos de agir diante dele.

Destarte, o currículo do curso assume uma posição relevante no âmbito de análise

desta experiência, porquanto produtor de identidades.

Compreende-se o currículo, neste trabalho, como uma construção social,

incorporando leituras advindas das teorias críticas e pós-críticas em detrimento de

visões tradicionais e tecnicistas, numa franca adesão à proposição de Gimeno

1 Publicado originalmente em inglês como: SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical

analysis. In: _____ Gender and the politics of history, New York: Columbia University Press, 1998. p. 28-52. No Brasil, teve três versões publicadas em 1990, 1991 e 1995.

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Sacristán (1995), que se refere a currículo multicultural, e de Teresinha Fróes

Burnham (1998), que advoga o currículo multirreferencial. Há, nessas proposições,

um direcionamento do currículo para além da prescrição de objetivos e rol de

conteúdos, privilegiando o próprio ambiente escolar, atravessado por diferentes

grupos sócio-culturais e uma diversidade de linguagens que medeiam as

experiências de aprendizagens. Está contemplada nestas propostas tanto a

dimensão explícita como a dimensão oculta do currículo.

Como construtor de identidade, o currículo refere-se ao processo de

produção, transmissão, assimilação e reelaboração do saber como assevera

Teresinha Fróes Burnham (1998, p. 37):

Na construção desse sujeito, o currículo significa um dos principais processos, na medida em que aí interage um coletivo de sujeitos-alunos e sujeitos-professores, além de outros que não estão diretamente ligados à relação formal de ensinar-aprender. Nessa interação, mediada por uma pluralidade de linguagens – verbais, imagéticas, míticas, rituais, mímicas, gráficas, musicais, plásticas... – e de referenciais de leitura de mundo – o conhecimento sistematizado, o saber popular, o senso comum... – os sujeitos, intersubjetivamente, constroem e reconstroem a si mesmos, o conhecimento já produzido e que produzem, as suas relações entre si e com a sua realidade assim como, pela ação (tanto na dimensão do sujeito individual quanto social), transformam essa realidade num processo multiplamente cíclico que contém, em si próprio, tanto a face da continuidade como a da construção do novo.

Em se tratando de educação formal, mesmo no curso superior, a sala de aula

emerge como o locus necessário para transmissão/assimilação do saber

historicamente elaborado, embora a sociedade contemporânea configure e

reconheça novos loci de aprendizagem e considere importantes outros saberes além

daqueles restritos à esfera científica e acadêmica. A sala de aula, espacialmente

delimitada ou deslocada para outros ambientes de aprendizagem, constitui-se em

espaço privilegiado para a vivência e compartilhamento dos desafios, dos conflitos,

dos sucessos e dos fracassos que a escola proporciona, assemelhando-se a uma

arena aonde se debatem, no sentido literal e metafórico, os conhecimentos, os

valores, as normas e a conduta culturalmente construída e por onde circula, além do

saber objetivo, a subjetividade daqueles que dela participam. Guacira Louro (1997,

p. 59) adverte:

Os sentidos precisam estar afiados para que sejamos capazes de ver, ouvir, sentir as múltiplas formas de constituição dos sujeitos implicados na

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concepção, na organização e no fazer cotidiano escolar. O olhar precisa esquadrinhar as paredes, percorrer os corredores e salas, deter-se nas pessoas, nos seus gestos, suas roupas; é preciso perceber os sons, as falas, as sinetas e os silêncios; é necessário sentir os cheiros especiais; as cadências e os ritmos marcando os movimentos [...]

A formação profissional não pode e não deve restringir-se ao ambiente formal

e acadêmico. Ao contrário, exige que se promova uma constante interação da teoria

com a prática, com base em uma interlocução com o mundo produtivo, para

significar o efetivo exercício de ação profissional, mediante a inserção em contextos

reais de trabalho. Deve proporcionar a construção e a socialização do conhecimento

em quaisquer espaços da vida social, transformando-os em loci de aprendizagem

que configuram os espaços multirreferenciais de aprendizagem (FRÓES BURNHAM,

2000). Afinal, a formação profissional constrói identidades.

Tendo em vista a natureza da pergunta que se formulou e sendo o conceito

de identidade o fio condutor desta pesquisa que, enquanto tema polissêmico

atravessa vários campos disciplinares distintos, necessário se fez lançar mão de

aportes teóricos distintos, oriundos do campo da Psicologia, da Educação, dos

Estudos de Gênero, da Filosofia e dos Estudos Culturais e, dessa forma, recorrer a

uma abordagem multirreferencial teórica e metodológica para o presente estudo.

A multirreferencialidade atende aos propósitos desta pesquisa, uma vez que

considera os fenômenos psicossociais como complexos, caracterizados pela

heterogeneidade e pluralidade, e compreende o conhecimento como produzido pela

intersubjetividade. Admite-se que há uma negociação entre as múltiplas referências

que compõem os sujeitos e os temas estudados com a intenção de não recortar, não

fragmentar, mas compreender a totalidade que os circunscreve e delineia. Como

assegura João Martins (1998, p. 24): “[...] compreender uma realidade, tomando-a

como complexa, significa entender a interdependência entre todos os fenômenos

nela implicados.”

Esta abordagem representa o rompimento com um modelo de pesquisa

positivista em sua forma racionalista e fragmentária de tratar o conhecimento e

busca uma composição teórica com saberes produzidos por campos disciplinares

distintos, de forma que possibilite uma ampliação do olhar em relação ao objeto

investigado. A multirreferencialidade propõe-se a fazer uma leitura plural dos

fenômenos que analisa, com base em pontos de vista distintos que articulam

sistemas de referência também distintos e não redutíveis um ao outro. Parte-se do

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princípio de que um único ponto de vista é insuficiente para entender os fenômenos

em sua inteireza, ou seja, em sua complexidade. E a temática das Identidades

insere-se nesta possibilidade de leitura multirreferencial.

Jacques Ardoíno (1998, p. 37) argumenta: “[...] a abordagem multirreferencial

vai, portanto, se preocupar em tornar mais legíveis, a partir de uma certa qualidade

de leituras (plurais) tais fenômenos complexos (processos, situações, práticas

sociais etc.).” Enfatiza que esses múltiplos olhares podem focalizar os objetos não

apenas de ângulos diferentes, mas, inclusive, de posicionamentos diferentes, de

uma forma tal que possam até exibir possíveis rupturas epistemológicas. Afasta, por

conseguinte, qualquer possibilidade de conciliação e advoga um olhar hermenêutico

sobre o objeto de estudo, com uma intencionalidade de desvelar significados

possíveis.

Revela-se como uma posição epistemológica de crítica e criação científica

(MARTINS, 1998), na qual o fazer ciência configura-se como uma composição, uma

bricolagem metodológica (BORBA, 1998) definida no próprio desenrolar da

pesquisa. Sandra Corazza (1996, p. 121) adere aos princípios da

multirreferencialidade, ao discutir sobre a questão metodológica nos estudos da

contemporaneidade, quando propõe:

O processo metodológico é o de alquimia mesmo, resultando daí, uma bricolagem diferenciada, estratégica e subvertedora das misturas típicas da Modernidade. Alquimia que rompe com as orientações metodológicas formalizadas na e pela academia (particularmente, nos cursos de pós-graduação), cuja direção costuma ser a das abordagens classificatórias, tão ao gosto de certas publicações sobre pesquisa educacional, em que cada método vem apresentado em estado puro.

Pesquisadores da Psicologia Social, como Neuza Guareschi, Michel Bruschi e

Patrícia Medeiros (2003, p. 33), que também se inserem no campo temático dos

Estudos Culturais, partilham de uma compreensão multirreferencial para os

fenômenos psicossociais, quando sugerem: “[...] os Estudos Culturais utilizem-se de

todos os campos que forem necessários para produzir o conhecimento exigido por

um projeto particular.” Os autores citados apontam ainda três características

imprescindíveis, para que se realize um estudo neste campo, qual sejam: um “[...]

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projeto teórico e político, a metodologia da bricolage2 e a interdisciplinaridade.”

(GUARESCHI; BRUSCHI; MEDEIROS, 2003, p. 33).

Não havendo hipóteses a serem comprovadas por caminhos metodológicos

determinados, mas perguntas a serem respondidas sobre realidades complexas, que

precisam ser analisadas em sua inteireza, e distintas possibilidades de leitura, a

bricolagem revela-se um caminho coerente para uma pesquisa que se pretende

multirreferencial. Nela é possível reunir diversas estratégias metodológicas em torno

de um mesmo objeto de estudo, no qual os procedimentos são construídos durante

o próprio desenrolar da pesquisa, o que a torna singular e permite que o

pesquisador possa criar e redirecionar seu processo, assumindo os riscos, dos quais

fala Georges Lapassade (1998, p. 127), necessários ao trabalho que desenvolve:

“[...] a dimensão de improvisação, de intuição e de astúcia.”

A multirreferencialidade, entretanto, não deve ser confundida com a

multidimensionalidade. Esta, numa perspectiva tradicional, remete a um modelo de

pesquisa que se vale de variáveis explicativas para abordar o objeto de

conhecimento, enquanto aquela promove uma articulação entre os saberes,

preservando-os da forma como são, buscando a comunicação entre eles. Analisar,

nessa perspectiva, tem o significado de compreender, interpretar e explicitar, em

contraposição à idéia positivista de classificação e decomposição.

É na perspectiva de buscar articulação entre os saberes e compreender e

explicitar a construção de identidades de um grupo de alunos que freqüentam um

Curso de Psicologia singular que se elabora esta tese.

A forma multirreferenciada de pensar é própria do pensamento complexo.

Este, como propõe Edgard Morin (1998, 2000, 2001), é sinônimo de todo (totalidade)

e se contrapõe àquele a que chama de pensamento simples que, tributário da

concepção moderna de ciência, apresenta-se fragmentado e reduzido e,

conseqüentemente, simplifica e superficializa os fenômenos físicos, biológicos e

humanos. Por meio do pensamento complexo, o autor propõe-se a estabelecer a

comunicação entre as várias dimensões desses fenômenos, quais sejam, físicas,

biológicas, espirituais, culturais, sociológicas, psicológicas, dentre outras, de forma

2 De acordo com Neuza Guareschi, Michel Bruschi e Patrícia Medeiros (2003, p. 35), a

interdisciplinaridade e o rompimento da fronteira das disciplinas faz com que a metodologia adotada pelos Estudos Culturais possa ser diversificada e até ambígua: “Definida como uma bricolage, o que influencia escolha das práticas de pesquisa são as questões que são feitas, e estas dependem de seu contexto.”

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tal que possam permitir-se coexistentes, reconhecendo-se mutuamente, sem

estabelecer um plano hierárquico entre si. Diz Edgard Morin (2001, p.14):

Existe complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes.

Sob esse aspecto, a ordem linear da ciência clássica (moderna) prescritiva e

determinista é substituída por outra ordem, assimétrica, caótica e fractal (DOLL,

1997), na qual a realidade é vista como uma totalidade sem a redução a unidades

elementares, nem submissão a leis universais. As disciplinas fragmentadas, como

preconizado pela ciência moderna, no dizer de Morin (2000), serviram para isolar os

objetos de seu meio e separar as partes do todo. Com o advento da

hiperespecialização, provocaram o confinamento e o despedaçamento do saber.

Advoga Morin (2000) que a educação deveria romper com essa forma

inadequada de compreender os seres humanos e o universo para exibir as

correlações que existem entre os saberes, a complexidade inerente à vida e os

problemas que daí decorre, pois, segundo o autor: “[...] o conhecimento pertinente é

o que é capaz de situar qualquer informação em seu contexto, e, se possível, no

conjunto em que está inscrita.” (MORIN, 2000, p. 15). Sua progressão reside na

dependência da capacidade de contextualizar e englobar.

Conceber a instituição escolar como uma complexidade supõe que se pense

na multirreferencialidade como a forma de lidar com a diversidade que a compõe,

reconhecendo-a como um lugar de culturas contraditórias, onde transitam múltiplos

saberes e grupos sociais cujas peculiaridades precisam ser valorizadas, na

construção do conhecimento significativo e comprometido com as questões sociais,

locais e globais. Nisto estão implicados as concepções de currículo, as alternativas

metodológicas, a inclusão de uma perspectiva dialógica na construção do saber e o

reconhecimento das emoções como fator inerente ao processo de aprendizagem,

numa inclusão da subjetividade ao processo educacional.

É importante não perder de vista que estuda-se a construção de identidades

no âmbito de uma formação acadêmica de um Curso superior, na qual os alunos e

alunas, durante uma vivência cotidiana de cinco anos, constroem uma profissão,

definindo uma identidade profissional.

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A multirreferencialidade pode ser praticada na escola, na sala de aula, na

convivência diária com as diferenças, na busca de fontes diversificadas para o

conhecimento, no reconhecimento de múltiplas culturas e diversos tipos de

conhecimento, na adoção de múltiplas linguagens, na inserção das dimensões

subjetivas dos sujeitos da aprendizagem, no ato de ensinar e aprender. Assim

sendo, é possível pensar na pesquisa acadêmica numa abordagem multirreferencial,

na qual a relação sujeito-objeto seja de cumplicidade, em que o pesquisador não se

dissocia do universo que pesquisa. Este é o caso desta tese.

Nega-se o posicionamento moderno, que separa o sujeito do objeto,

considerando que não é possível admitir como verdadeira a existência de um mundo

objetivo independente das pessoas, em que, mediante o princípio da neutralidade, o

cientista manipula e generaliza leis, utilizando-se de práticas científicas rigorosas e

corretas.

A esse respeito, Alfredo Veiga-Neto (1996, p. 32) pronuncia-se, enfatizando:

[...] a questão da impossibilidade do distanciamento e da assepcia metodológica ao lançarmos nossos olhares sobre o mundo. Isso não significa falta de rigor, mas significa que devemos ter sempre presente que somos irremediavelmente parte daquilo que analisamos e que, tantas vezes, querendo modificar.

Essa questão já havia sido abordada por Michel Foucault (1999), quando de

sua conversa com Gilles Deleuze, ao falarem a respeito da separação teoria-prática.

Em resposta a uma provocação de Foucault sobre a participação na política,

Deleuze responde:

Talvez seja porque estamos vivendo de maneira nova as relações teoria prática. Às vezes se concebia a prática como uma aplicação da teoria, como uma conseqüência; às vezes, ao contrário como devendo inspirar a teoria, como sendo ela própria criadora com relação a uma forma futura de teoria. De qualquer modo, se concebiam suas relações como um processo de totalização, em um sentido ou em outro. Talvez para nós a questão se coloque de outra maneira. (FOUCAULT, 1999, p. 69-70).

E Deleuze conclui, argumentando que a relação teoria prática se dá por meio

de um sistema de revezamento em uma multiplicidade de componentes teóricos e

práticos. Em concordância, Michel Foucault (1999, p.70) afirma: “[...] a teoria não

expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática.”

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A indissociabilidade teoria prática também está presente nas pesquisas

feministas, quando se problematizam as questões do feminino na perspectiva

contemporânea. Não é sem razão que a pesquisadora Teresa de Lauretis (1994, p.

208) afirma sobre o sujeito dos estudos feministas:

[...] um sujeito constituído no gênero, sem dúvida, mas não apenas pela diferença sexual, e sim por meio de códigos lingüísticos e representações culturais; um sujeito “engendrado” não só nas experiências de relações de sexo, mas também mas de raça e classe; um sujeito, portanto, múltiplo em vez de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido.

As pesquisas numa abordagem multirreferencial consentâneas a sujeitos e

contextos múltiplos e complexos, numa posição política de implicação do

pesquisador no estudo que realiza, podem contribuir não apenas para o

desenvolvimento de novas formas de consciência crítica, com novos

posicionamentos sociais e políticos, no que se refere ao reconhecimento das

diferenças individuais e coletivas, como também para novas formas de entender e

abordar a escola e a educação.

Construída com o intuito de compreender como alunos de um Curso de

Psicologia singular constroem suas identidades profissionais, esta pesquisa definiu

seu recorte metodológico em consonância com o quadro teórico que a subsidia,

optando por se organizar como uma Pesquisa Qualitativa, em forma de Estudo de

Caso.

A pesquisa qualitativa é entendida, neste trabalho, como um caminho pelo qual

é possível ao pesquisador compreender fenômenos complexos, nos quais está

envolvida a subjetividade dos sujeitos que deles fazem parte. Nela existe uma

interdependência entre sujeito e objeto de estudo, sendo o pesquisador também um

sujeito da pesquisa. Há uma intencionalidade de aprofundar a compreensão de um

dado fenômeno, mediante a observação e a escuta daqueles sujeitos que fazem

parte do universo da pesquisa.

Referindo-se à pesquisa qualitativa em Psicologia, Fernando Rey (2002, p.71) diz:

[...] a construção de conhecimento na pesquisa qualitativa é um processo diferenciado que avança por rotas e níveis diferentes sobre o estudado, que encontram seu ponto de convergência no pensamento do pesquisador. O curso da pesquisa qualitativa pressupõe o estudo de caso não como via de obtenção de informação complementar, mas como momento essencial na produção de conhecimento.

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A pesquisa qualitativa lida com os indivíduos em situações concretas. Há uma

evidente articulação com a vida dos sujeitos, sendo possível revelar, do ponto de

vista deles, emoções, desejos, projetos, visões de mundo, dentre outros que

configuram o fenômeno em estudo. O foco é nos seres humanos envolvidos, que

engendram o problema da pesquisa, com base na perspectiva teórica que o

pesquisador utiliza para fundamentar seu trabalho, como entende Sandra Corazza

(1996).

Como uma abordagem fenomenológica, a etnopesquisa, enquanto pesquisa

qualitativa preocupa-se com a análise de fenômenos do mundo, descrevendo-os,

analisando-os, olhando-os de dentro, até que o fenômeno possa revelar-se como a

culminância de um processo, em que se faz necessária a participação ativa dos

sujeitos e supõe a compreensão das múltiplas dimensões que o constituem; e isto se

refere a uma pessoa, um grupo, uma instituição, um processo... Ademais, apresenta

resultados provisórios, inacabados, pois fenômenos psicossociais constroem-se no

processo, como um vir-a-ser, que se faz e refaz constantemente.

Evidencia-se, portanto, como um poderoso caminho para as pesquisas na

área da Educação e revela, outrossim, uma dimensão política de implicação e

possibilidades de transformação da realidade. Trabalha com sujeitos reais que

vivenciam as vicissitudes do cotidiano, buscando uma construção conjunta, na qual

as vozes e os saberes de todos, inclusive aqueles considerados pouco relevantes ou

representativos, são valorizados. A pesquisa, desse ponto de vista, torna-se crítica e

pode exibir ambivalências, contradições, incertezas, opacidades próprias da

condição humana. Esta é também a ótica pela qual se realizam as pesquisas de

Gênero, como asseguram Sandra Harding (1998) e Eli Bartra (1998), quando

advogam que esta forma de pesquisar possibilita novos padrões de conhecimento

distintos daqueles tradicionais, pois, ao se dar voz aos sujeitos, no caso, as

mulheres, cria-se condições para a transformação da realidade, por meio das lutas

políticas.

Nesta pesquisa de doutorado, como se pretende fazer uma exploração

minuciosa das circunstâncias e acontecimentos que levam os alunos e as alunas,

pelo percurso acadêmico que vivenciam, a se autonomear psicólogos e psicólogas,

ao delimitar o Estudo de Caso, utilizou-se as técnicas de Questionário, Análise

Documental e Grupos Focais.

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Revela-se uma escolha metodológica pertinente, quando se confronta com o

entendimento de Menga Lüdke e Marli André (1986) sobre o Estudo de Caso. Estas

autoras asseguram que este deve ser utilizado quando se quer estudar algo singular

em profundidade, posto que tem a possibilidade de analisar a realidade de forma

complexa, entendendo-se complexo na concepção moriniana do termo, exposta

anteriormente. Ademais permite novos direcionamentos durante o curso da

pesquisa, perseguindo os caminhos que surgem no próprio desenrolar do estudo,

não se atendo apenas a um roteiro pré-fixado.,Permite também que se utilize uma

grande variedade de fontes de informações, tanto aquelas que se escolhe na

confecção do projeto quanto outras que se fazem necessárias para examinar e

revelar o fenômeno estudado.

Teóricos da Psicologia, em seu viés sócio-histórico, corroboram a propriedade

do uso do Estudo de Caso em suas pesquisas, como é explicitado por Wanda Aguiar

(2001, p. 139): “[...] o conhecimento produzido, seja a partir de um sujeito, uma

escola, um grupo, constitui-se, pois, em uma instância deflagradora de apreensão e

do estudo de mediações que concentram a possibilidade de explicar a realidade

concreta.” Roberto Macedo (2002 p. 150) enfatiza que, nas pesquisas realizadas no

enfoque multirreferencial, o Estudo de Caso conduz à apreensão da ”[...] pertinência

do detalhe que o edifica e da singularidade que o marca, identifica-o e referencializa-

o, sem cair nos regularismos e formismos das perspectivas tecno-funcionalistas.”

Com relação à Análise dos Dados, enquanto uma etnopesquisa privilegia o

cultivo da flexibilidade e da sensibilidade, considera que esta análise se dá durante

todo o desenrolar da pesquisa, havendo, entretanto, um momento em que se

sistematiza o registro e a avaliação dos dados coletados em sua totalidade,

buscando o entendimento do fenômeno do ponto de vista dos sujeitos que

participaram da pesquisa. Em se tratando de uma Pesquisa Qualitativa, procedeu-se

à Análise de Conteúdo, buscando uma articulação com a Análise das Práticas

Discursivas que produzem sentidos no cotidiano, proposta por Mary Jane Spink

(2004).

A Análise de Conteúdo consolidou-se como o caminho mais adequado para os

propósitos da Pesquisa Qualitativa, tendo em vista que esta sempre busca

investigar, com base no discurso, o sentido que os seres humanos atribuem a

situações de seu cotidiano. Esta análise permite revelar o significado das

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mensagens de uma determinada situação, e é nessa tarefa que a importância do

pesquisador se manifesta.

Incorporou-se uma Análise de Conteúdo “[...] aberta, processual e construtiva”

como refere Fernando Rey (2002, p. 146), que se orienta para a produção de

indicadores sobre o material que se analisa, buscando interpretar o universo

simbólico que o discurso enuncia em detrimento daquela que considera o texto dos

sujeitos externos ao pesquisador, cujo acesso objetivo fragmenta e distorce a

realidade que expressa. Ademais, admite-se, como Roberto Macedo (2002, p. 206),

que a voz dos sujeitos é um ponto norteador da análise das pesquisas, pois eles não

devem falar apenas “pela boca da teoria”, visto que é nessa fala que se revela a

realidade da qual fazem parte.

Mary Jane Spink (2004) distingue discurso de práticas discursivas, referindo-

se ao discurso como regularidades lingüísticas enquanto as práticas discursivas

dizem respeito aos momentos ativos do uso da linguagem, ou seja, da linguagem em

ação, em que convivem tanto a ordem e a regularidade como a diversidade. Esta

autora está interessada em compreender a dimensão performática do discurso, com

o intuito de verificar como os sujeitos atribuem sentidos a suas práticas cotidianas.

Sentido é assim definido pela autora:

[...] sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente, interativo, por meio do qual as pessoas — na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas — constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta. (SPINK, 2004, p. 41).

Desse ponto de vista, a produção de sentidos é necessariamente

interdisciplinar, o que torna possível o diálogo entre vários campos de saber, e situa

o conhecimento no interior dos processos de interação social, tendo em vista que se

configura como uma prática social, dialógica e que se vale da linguagem utilizada

pelas pessoas em suas interlocuções do dia a dia. Fala-se, portanto, da linguagem

corriqueira, aquela dos falantes em situações concretas de interação.

É importante demarcar esse horizonte metodológico em que se inscreve esta

pesquisa, pois trata-se de um estudo sobre a construção de identidades de

psicólogos e psicólogas, de alunos e alunas de um Curso de Psicologia singular,

valorizando-se as vivências do cotidiano escolar. Emerge, pois, deste recorte, uma

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visão multirreferencial dos fenômenos que constroem identidades. Ademais, tratar

este tema exige, além de uma cumplicidade com os sujeitos da pesquisa, uma

possibilidade concreta de perceber como operam as práticas que constituem os

sujeitos em seu processo de formação profissional. A vida escolar, enquanto uma

vivência cotidiana, configura um espaço de criação, recriação e construção diária

das relações que se estabelecem com as pessoas e com o saber que, num contexto

complexo, utilizam-se de práticas discursivas nas mediações entre os pares, para

que possam construir o mundo e os outros à medida que se constroem.

Assumindo a condição de pesquisadora envolvida com o objeto de pesquisa e

a metodologia como uma bricolagem que se faz e refaz de forma artesanal,

orientada pelos caminhos que a própria pesquisa empreende, optou-se por relatar

os procedimentos, que se cunhou de teórico-metodológicos pela impossibilidade de

separá-los, tomando como referência a ordem cronológica, ou seja, como os fatos

da pesquisa aconteceram. Houve, durante todo o processo, uma inter-relação

permanente entre a teoria e a prática, quando a produção dos dados empíricos

orientou os rumos que a pesquisa tomou. Dessa maneira, não se pode falar de

momentos distintos de produção teórica/revisão de literatura, coleta e análise dos

dados.

A curiosidade da pesquisadora pelo estudo da temática da Identidade foi

despertada desde o Curso de Mestrado no Programa de Pós-graduação em

Educação da UFBA, em 1999, quando, em dissertação intitulada Ser aluno para

continuar peão (DIAS, 1998, 1998), discutiu-se o impacto que a vivência do papel de

aluno, patrocinada pelo retorno compulsório à escola, advindo dos ditames da

reestruturação produtiva, provocava na identidade de trabalhador, tomando como

sujeitos operários do Pólo Petroquímico de Camaçari. Defendeu-se a identidade na

perspectiva da Psicologia Social como uma construção subjetiva sobre a realidade e

que se constitui nas representações simbólicas que o indivíduo desenvolve sobre si,

sobre o mundo e os outros, ancorando esses posicionamentos na Psicologia Social

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latino-americana e em teóricos como Antonio Ciampa (1987, 1994)3, Sílvia Lane

(1981, 1994)4,e Jacob Levy Moreno (1978)5.

Estudar a construção de identidades de alunos de um Curso de Psicologia,

numa pesquisa de doutoramento, por sua vez, impôs-se pela necessidade de

compreender, de fato, o que é e como se dá essa formação profissional e tomou

corpo com a leitura de dois textos distintos. O primeiro deles foi publicado em

2001, na Revista Psicologia Ciência e Profissão, de autoria de Mauro Magalhães e

colaboradores, intitulado Eu quero ajudar as pessoas: a escolha vocacional da

Psicologia. Realizada no Rio Grande do Sul, esta pesquisa discute o que pensam

os alunos de um universo particular sobre a profissão de psicólogo, quando

ingressam num Curso Superior de Psicologia; e o segundo, a divulgação da

Pesquisa WHO (CFP, 2001), patrocinada pelo Conselho Federal de Psicologia, na

qual informava-se que a maioria dos profissionais de psicologia no Brasil (mais de

90%) são mulheres.

Nos caminhos e descaminhos percorridos na escolha do recorte teórico-

metodológico e a definição da questão a ser investigada, com o objetivo de analisar

a construção de identidades de psicólogos e psicólogas com alunos e alunas de um

curso de Psicologia singular, recorreu-se a um questionário (Anexo A) que o Curso

aplica a todos os seus alunos do primeiro semestre, presentes no primeiro dia de

aula. Construído com questões abertas, o questionário inquiria a respeito do que

pensavam os alunos sobre a Psicologia e a profissão, de uma forma linear e

aleatória, visto que hão havia uma intencionalidade definida a priori. Havia uma

exigência de que fosse aplicado, de fato, no primeiro dia de aula, quando se

supunha que não havia ainda nenhuma interferência do Curso para instrumentalizar

o aluno sobre o tema e acreditava-se que a compreensão que eles exibiam, nesse

momento, pertencia ao conhecimento do senso comum, e isso, de fato, era o que

interessava. 3 Ciampa defende a idéia de identidade como metamorfose, afirmando, numa perspectiva do

materialismo histórico-dialético, que há uma identidade pressuposta que é continuamente re-posta por meio da consciência e da atividade (CIAMPA, 1987, 1994).

4 Psicóloga brasileira que, dentre outros, liderou o movimento de reestruturação da Psicologia brasileira, aderindo às fundamentações marxistas para compreensão de fenômenos psicológicos. (LANE,1994, 1981).

5 Jacob Levy Moreno, psiquiatra romeno, é autor das teorias que fundamentam o Psicodrama. Para ele, o ser humano é de natureza social e constitui-se numa intersubjetividade partilhada por seus pares nas múltiplas relações que vivencia, mediante os papéis que desempenha. Criou a Teoria dos Papéis (MORENO, 1978).

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Foi realizada, portanto, a condensação e análise das respostas destes

questionários, que somavam 151 e diziam respeito a alunos ingressos em oito

semestres, de 2000 a 2003. Paralelamente, investimentos foram feitos para atualizar

conhecimentos sobre as temáticas de Identidade e Gênero ancorado nas produções

contemporâneas que se situam numa perspectiva pós-moderna de compreensão de

ciência e de sujeito.

Teve-se, nesse momento, o ponto de partida teórico-metodológico,

porquanto a condensação e análise destes questionários compuseram o primeiro

momento da pesquisa, e foi considerado o marco zero, a partir do qual pretendia-

se investigar como os alunos ressignificavam a Psicologia, a profissão e

construíam suas identidades. Junto com uma revisão de literatura sobre Identidade

e Gênero, de acordo com as leituras anteriormente mencionadas, a condensação e

análise dos questionários compôs o texto que foi aprovado no Exame de

Qualificação.

Por orientação da Banca que participou do referido Exame, entretanto,

algumas providências foram tomadas com relação ao material apresentado. Em

primeiro lugar, o questionário inicial foi retrabalhado para desagregar respostas

masculinas e femininas, privilegiando o recorte de Gênero, o que deu outro rumo

para a pesquisa, visto que alunos e alunas, impregnados de suas construções de

Gênero, percebem e se relacionam com a Psicologia de forma diferente. Em

segundo lugar, investimentos foram realizados para incorporar de forma incisiva a

temática de Currículo no escopo do trabalho; e em terceiro, a pergunta da tese foi

reescrita, porque ficou evidente que o foco do trabalho deveria ser a trajetória dos

alunos na apropriação de um discurso que lhes nomeasse psicólogos e psicólogas,

entendendo que Gênero e Currículo fazem a mediação na assunção dessas

Identidades.

Estavam definidos, portanto, o Quadro Teórico e a pergunta para ser

respondida pela tese, escolhido o Grupo Focal como Instrumento de Coleta

privilegiado, e definido o universo da pesquisa, que se restringia às oito primeiras

turmas do curso. A idéia básica era compreender os caminhos que os alunos

trilhavam para assumir um discurso que os identificasse como profissionais da

Psicologia. Os Grupos Focais deveriam ser realizados com alunos e também com

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professores, para verificar o posicionamento dos últimos a respeito da Psicologia e

da profissão. Estava definida também a adesão aos postulados teóricos dos Estudos

Culturais, da Psicologia Social Histórico-Crítica, dos Estudos de Gênero e das

Teorias Críticas e Pós-críticas do Currículo.

A escolha da técnica de Grupo Focal justifica-se por permitir que pessoas

reunidas possam discutir um determinado tema com base em suas experiências

pessoais. Bernadete Gatti (2005, p. 9) assegura que as trocas realizadas no grupo,

entre os participantes, permitem emergir “[...] conceitos, sentimentos, atitudes,

experiências e reações, de um modo que não seria possível com outros métodos,

como por exemplo, a observação, a entrevista ou questionários.” Como David

Morgan (1997), Bernadete Gatti (2005) concorda que, no grupo, é possível obter

informações que podem captar a perspectiva subjetiva dos sujeitos, sendo

necessário um entrevistador experiente em condução de grupos, a fim de que possa

dirigir os temas trabalhados nos grupo para os objetivos da pesquisa, não se

perdendo em divagações desnecessárias.

Os grupos foram formados por alunos que aderiram ao convite feito pela

pesquisadora, nas salas de aula, quando explicitou os objetivos da pesquisa e a

necessidade de coletar esses depoimentos em grupo, sendo voluntária a

participação de 27 alunos6 em cinco grupos. Foi utilizada uma sala ambiente, onde

os participantes dispuseram de espaço e equipamentos necessários a trabalhos

dessa natureza. Os cinco grupos realizados com os alunos foram conduzidos pela

pesquisadora, sendo gravados em fita k-7, posteriormente transcritas, assim como o

grupo realizado com os professores. Este, porém, foi coordenado pela psicóloga

Romélia Santos, como colaboradora da pesquisa, pelo fato de possuir uma vasta

experiência no trabalho com grupos de orientação sócio-psicodramática.

O primeiro Grupo Focal foi realizado em novembro de 2004. A despeito de ter

os depoimentos considerados para a análise de dados, funcionou como um piloto

para a realização dos demais, pois, quando avaliada sua execução, novos

redirecionamentos foram tomados para torná-lo mais objetivo, com a adoção de um

6 Sendo 4 alunas no primeiro grupo e 5 no segundo; um do sexo masculino e quatro do feminino; 7

estudantes no terceiro grupo, dentre eles um homem, 6 no quarto, contando com um do sexo masculino; e 5 no quinto grupo, sendo todas mulheres.

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roteiro para discussão, pré-estabelecido (Apêndice A), que contemplasse o

entendimento do que é a Psicologia, o que é ser psicólogo, a psicologia como

profissão feminina e as práticas do curso que privilegiam a assunção do sentir-se

psicólogo e psicóloga.

Com uma abordagem sócio-psicodramática7, o Grupo Focal foi realizado sob

a temática “Eu, o meu momento e a psicologia”, obedecendo às fases propostas por

esta metodologia grupal. Considerou-se como “Aquecimento Inespecífico” o

momento de acolhimento do grupo, quando a pesquisadora explicou a pesquisa, o

objetivo do grupo focal e solicitou que cada um preenchesse o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice B); como “Aquecimento Específico”,

realizou-se um relaxamento, quando os alunos foram induzidos a fazer mentalmente

uma retrospectiva de seu percurso no Curso de Psicologia, desde o dia em que

receberam o resultado de aprovação no vestibular até aquele momento. Ao

retornarem do aquecimento, abrindo os olhos, foram-lhes propostas duas tarefas, a

saber: fazer uma colagem, na qual ficasse evidente seu momento em relação à

psicologia — para isso, dispunham de uma grande diversidade de material para

colagem (tintas, lápis coloridos, revistas, tesouras, papéis coloridos variados etc.) —

e, paralelamente, foi iniciada a discussão com a pergunta “o que é, para vocês, ser

psicólogo?”. Este foi considerado o momento da dramatização proposto pela

abordagem sócio-psicodramática, porque os alunos eram os protagonistas do grupo,

apresentando suas idéias, conceitos, sentimentos, experiências, dentre outros. A

quarta e última fase do grupo, o sharing ou compartilhamento, foi realizada com a

apresentação, para o grupo, da colagem feita por cada um.

Quanto à coleta de dados junto aos professores, houve o mesmo

aquecimento inespecífico e a diretora do grupo optou por fazer um aquecimento

específico com um desenho coletivo, no qual os professores pudessem expressar

seu envolvimento na formação de alunos em psicologia. A discussão sobre a

psicologia e a profissão (fase da dramatização) foi realizada em dois sub-grupos,

sendo as respostas confrontadas no compartilhamento.

7 Método criado pelo psiquiatra Jacob Levy Moreno, utilizado nas ciências sociais e humanas em

pesquisa social e no diagnóstico. Permite o esclarecimento de relações intergrupais e seus valores compartilhados a partir da participação ativa de seus componentes (MORENO, 1978).

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Os demais grupos com alunos,(quatro) e o grupo com os professores foram

realizados entre junho e dezembro de 2005. Todos os encontros foram gravados em

fita k-7, que foram transcritas em sua totalidade e se constituiram no material para a

análise da pesquisa. As produções (colagens e desenho) tanto de alunos quanto de

professores, foi fotografada. Tendo em vista o volume de informações coletadas

nesses grupos, para realizar a análise dos dados, de início, tomou-se a decisão de

não considerar como dados de análise aqueles depoimentos relativos à colagem

sobre “eu, o meu momento e a psicologia”, sendo retomados posteriormente, para

as epígrafes. Também as colagens só foram utilizadas nas ilustrações das epígrafes,

pois em nenhum momento houve a intenção de interpretá-las sob qualquer

perspectiva psicológica.

A condensação dos dados passou por alguns momentos específicos que, por

força dos próprios achados na fala dos sujeitos, provocou constantemente uma nova

articulação com a teoria. É possível descrevê-la em momentos:

• no primeiro momento, fêz-se a transcrição de cada grupo separadamente,

o que resultou em um material específico para cada grupo; com este

material foi realizada a tentativa de agrupar as perguntas, com base nas

categorias que haviam sido definidas no questionário inicial (A profissão, o

profissional e o investimento pessoal), o que se tornou impossível, posto

que estas categorias revelaram-se indissociáveis entre si;

• decidiu-se então verificar o conteúdo das respostas e agrupar as falas em

grandes categorias — Gênero, Currículo, Psicologia —, numa perspectiva

transversal. Surgiram novos reagrupamentos em forma de subcategorias,

como: ser psicólogo e/ou ser psicóloga, sentir-se psicólogo e/ou sentir-se

psicóloga, ser mulher, ser homem, a psicoterapia, currículo como

processo, práticas relevantes do curso, a experiência do Juliano Moreira,

os Estágios, o TCC. Essas subcategorias, em um determinado momento,

foram tratadas de forma independente, não sendo articulados

necessariamente com os três temas acima colocados, sendo reagrupadas

no momento da elaboração do final do texto;

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• num terceiro momento, desagregou-se a fala de alunos e alunas, ou seja,

respostas masculinas e respostas femininas. As falas sobre a

masculinidade, em particular, provocaram uma nova revisão de literatura

sobre o tema, visto que, ao estudar Gênero, não havia privilegiado esse

recorte, o que provocou uma nova rearticulação no Quadro Teórico da

pesquisa.

A análise temática constituiu-se em um momento particularmente rico,

delicado e difícil, de exame minucioso das respostas, na tentativa de construir

categorias que representassem unidades com sentido. Significou buscar, dentre

tantas falas dos discursos dos sujeitos, aquelas mais significativas para a proposição

que se estava analisando. É um momento muito complexo no trato com o material

da pesquisa, pois exige o cruzamento de informações de diferentes sujeitos de

diferentes grupos e, às vezes, sobre diferentes temas. Frequentemente, uma fala

pode ser colocada em mais de uma categoria, sem prejuízo de seu entendimento.

Ademais, incitou ao recurso de analisar registros e documentos do próprio Curso de

Psicologia, para enriquecer as constatações verificadas e buscar novas leituras que

tratassem de temas específicos que emergiram da fala dos sujeitos.

A intenção de apresentar a metodologia em forma de relato atende a dois

objetivos. Em primeiro lugar, explicitar a ineficiência de um plano (no sentido literal

de caminho prévio), para realizar uma pesquisa dessa natureza; e, em segundo,

evidenciar um pouco da emoção de realizar este trabalho. A necessidade de relatar

o percurso metodológico, depois da pesquisa concluída, possibilitou estar diante da

tarefa de fazer uma retrospectiva minuciosa do caminho percorrido e dos desafios

que a pesquisa colocou, mostrando que esta imprimiu um ritmo que, de fato, não foi

ditado de fora, mas dela própria.

Assim sendo, o texto poderia ser elaborado de várias formas, porém a

fundamentação teórica e os dados empíricos coletados entre os sujeitos deram

origem aos seis capítulos que compõem o texto da tese e estão esboçados a seguir:

O primeiro capítulo traz as concepções teóricas que fundamentam o estudo

da Identidade, considerada como a categoria básica para o desenvolvimento desta

tese, e em torno da qual desenvolve-se toda a construção teórico-metodológica.

Ancora a pesquisa num campo temático polissêmico, tendo em vista que identidade

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é considerada um conceito emblemático tanto na concepção moderna como nos

estudos contemporâneos sobre a constituição dos sujeitos. Evidencia como, a

depender do aporte teórico de que se lance mão, pode-se compreender a identidade

de diversas formas e explicita a construção de múltiplas identidades em processo

permanente de construção e desconstrução, percorrendo caminhos que

fundamentam a construção de identidades de gênero e identidades profissionais.

O capítulo subseqüente, o segundo, trata da formação superior em Psicologia

e discorre sobre a criação dos cursos superiores de Psicologia no Brasil e a

legislação que orienta a implantação desses cursos. Além disso, discute concepções

de currículo e enfatiza aspectos relevantes do currículo oculto e do currículo como

discurso, que interessam sobremaneira ao estudo que se empreende.

O terceiro capítulo tem o objetivo de contextualizar a pesquisa, apresentando

o Curso e sua proposta pedagógica, além da instituição que o sedia, destacando

valores que balizam e orientam o trabalho que desenvolve, uma vez que apresenta

uma singularidade, qual seja, ser uma instituição de educação superior voltada para

a área da saúde.

Com relação ao quarto capítulo, este apresenta o perfil dos estudantes do

Curso de Psicologia em foco no momento em que ingressam no curso, explicitando

as concepções que demonstram ter sobre a psicologia e a profissão de psicólogo,

além de revelar o investimento pessoal que fazem nesta profissão. O perfil é traçado

com base na análise de um questionário respondido pelos alunos no primeiro dia de

aula, cujas respostas apontavam para a reprodução do senso comum sobre a

psicologia e a profissão de psicólogo. Com os dados desagregados em respostas

femininas e masculinas, privilegiando o recorte de gênero, faz-se uma confrontação

com estudos outros produzidos no Brasil e que discutem o sentido e o significado

que a profissão tem para seus adeptos e também os avanços e retrocessos

percebidos nos 45 anos de profissão no Brasil.

Sequenciando a análise dos dados da pesquisa, o quinto capítulo busca

compreender a formação do psicólogo e da psicóloga do ponto de vista dos alunos e

das alunas, tentando elucidar os caminhos pelos quais aproximam-se/distanciam-se

do que acreditam ser o profissional ou a profissional da psicologia, ressignificando as

concepções inicialmente apresentadas. Há interesse em entender as posições de

sujeitos que esses alunos assumem, ao se apropriar de um discurso que os legitima

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como estudantes e profissionais da psicologia e em destacar como ressignificam o

entendimento do psicólogo como profissional de ajuda para profissional da escuta.

Além do mais, enfatiza o processo curricular, demarcando determinadas práticas

curriculares como nucleares na construção de posições de sujeito e assunção de

identidades. Faz, portanto, uma análise do currículo do curso, avaliando

determinadas práticas curriculares, e confronta posicionamentos dos alunos com

dados referentes à própria administração do curso.

O recorte de gênero é privilegiado no sexto e último capítulo desta tese,

quando se aborda o atravessamento de gênero no currículo do Curso de Psicologia,

verificando como este determinante social está presente no curso, mesmo que não

haja uma intencionalidade para isso, e analisa os posicionamentos dos sujeitos da

pesquisa quanto ao entendimento de masculino e feminino, desagregando os

depoimentos de alunos e alunas.

Por fim, esboçam-se as Reflexões Finais, apresentando-se, de forma

sintética, os aspectos relevantes que a pesquisa revelou, demarcando a contribuição

para a formação de novos profissionais da psicologia e para a análise dos currículos

destes cursos.

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Fui me deixando levar pelo sentimento e surgiu isso. O que é isso?

Como uma boa canceriana que fez, eu tô me sentindo em casa,me sentindo confortável,

certa de que é isso! Me sentindo aconchegada dentro da profissão!

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1 TECENDO AS IDENTIDADES

O estudo da construção de identidades profissionais, especialmente quando

se recorre a um curso de formação profissional como campo empírico de pesquisa,

defronta-se com um projeto de autoconstrução que é inicialmente imaginado e

delineia-se e firma-se num movimento permanente de negociação de sentidos sobre

como se entende e sente-se uma profissão.

Nessa perspectiva, no presente capítulo, ao discorrer teoricamente sobre a

construção de identidades profissionais em psicologia, optou-se por abordar

algumas concepções de identidade, explicitando concepções de sujeito a elas

subjacentes e apresentar o entendimento que se tem sobre identidade profissional,

notadamente quando se estuda uma profissão que é considerada feminina, o que

significa fazer o recorte que privilegia esta identidade feminina.

1.1 FALANDO DE IDENTIDADES

As indagações pessoais acerca de quem são fazem parte dos

questionamentos humanos sobre o mundo, sobre a vida e sobre os seres humanos

desde que se tem notícia que os seres pensantes manifestam preocupações sobre

si. Ciampa (1987, p.14) diz: “[...] onde houver gente, haverá questão de identidade.”

Esse tema, passados alguns milênios das primeiras civilizações e mais de 2000

anos da era cristã, continua bastante atual.

A temática da Identidade problematiza e pretende responder questões sobre

“quem sou eu” e/ou “quem somos nós”, questionando cada ser humano em

particular e/ou cada grupo formado pelas mais diversas condições sociais, cada

nação, cada etnia, cada grupo religioso, cada profissão, cada família... As

experiências de vida adquirem significados com base no conhecimento e no

reconhecimento de si, de quem se quer ser, a que grupo pertence e também de

quem não se é, quem não se quer ser e a quais grupos não se pertence, em função

da apropriação de determinados discursos que produzem sentido.

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Isto impõe que, ao falar de identidade, deve-se compreender os seres

humanos como inscritos em um contexto social, histórico, simbólico e lingüístico que

movimenta diferentes e complexas forças na constituição das dimensões individual e

coletiva. Por isso, como sugere o título, fala-se de identidades e não da identidade.

1.1.1 Entendendo as identidades pela historicidade

Identidade tem-se revelado um conceito complexo, estudado sob diferentes

olhares e fundamentado em teorias sociais e psicológicas.

De acordo com Stuart Hall (2001), antes do período iluminista, as pessoas

eram consideradas como “divinamente estabelecidas”, obedecendo à ordem secular

e divina das coisas. Esta visão não possibilitava a compreensão de mudanças

substanciais em sua existência, nem lhes conferia o direito de ser um indivíduo

independente, uma vez que, na concepção teocêntrica de mundo, os seres humanos

pertenciam a Deus.

Com o esgotamento do modelo de sociedade feudal e do obscurantismo da

Idade Média surgiu na Europa Ocidental o iluminismo, com grandes transformações

econômicas, políticas e sociais que proporcionaram o advento do capitalismo, hoje

configurado sob a denominação de modernidade. Esta apregoa uma concepção de

indivíduo livre e racional, autônomo, sujeito de si e do conhecimento.

Boaventura Souza Santos (1996, p. 136) assegura:

[...] a preocupação com a identidade não é, obviamente, nova. Podemos dizer até que a modernidade nasce dela e com ela. O primeiro nome moderno da identidade é a subjetividade. O colapso da cosmovisão teocrática medieval trouxe consigo a questão da autoria do mundo e o indivíduo constituiu a primeira resposta.

Tendo em vista as características próprias da época, essa subjetividade

moderna era individual e abstrata.

Stuart Hall (2001, p.10-11) defende que três concepções de identidade se

desenvolveram ao longo do tempo; a primeira delas está assentada na concepção

iluminista de sujeito, que compreende o ser humano como

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[...] um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo da existência do indivíduo.

Nesse pressuposto, assim como naquele anteriormente citado por Boaventura

Souza Santos (1996), está implícito um entendimento de homem apriorístico, que

existe independente das condições objetivas e subjetivas de sua existência, que

condiciona a uma natureza humana que é universal e abstrata suas possibilidades

de se revelar, de crescer, de se realizar, dentre outras, ou não.

A idéia de natureza humana universal, que “naturaliza” os fenômenos

humanos, forjados na intrigante e complexa realidade social na qual os seres

humanos estão inseridos, sendo produtores e por ela produzidos, dentre eles a

construção de identidades, está impregnada das concepções positivista e idealista

de homem e de sociedade. Como afirma Stuart Hall (2001, p. 29-30):

[...] à medida em que as sociedades modernas se tornavam mais complexas, elas adquiriram uma forma mais coletiva e social [...] o cidadão individual tornou-se enredado nas maquinarias burocráticas e administrativas do estado moderno.

No pensamento deste autor, este foi o pano de fundo para a emergência de

uma concepção mais social de sujeito, em que se reconhece como importante a

realidade que o cerca e que com ele estabelece trocas, relativizando o peso do

sujeito autônomo e auto-suficiente da posição iluminista. O sujeito passa a ser

entendido como social, formado na relação com as outras pessoas com as quais

partilha valores, sentidos e símbolos. A identidade desse sujeito sociológico,

considerada por Stuart Hall (2001) como a segunda concepção de identidade, está

vinculada à estrutura social de uma forma biunívoca, em que se faz uma conexão

entre pares como público x privado, interior x exterior, objetividade x subjetividade,

embora os considere como instâncias distintas. No entendimento de Stuart Hall

(2001, p.11): “O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’,

mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais

‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem.”

Questionamentos recentes sobre o pensar moderno, que ratifica a

objetividade do conhecimento e a adoção do método e do estatuto das ciências

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naturais como legítimos e únicos para a construção do conhecimento, proporcionou

uma nova forma de conceber o mundo, o ser humano e as ciências. Como assegura

Jeni Vaitsman (1995, p.4):

[...] no nosso século tanto nas ciências sociais quanto nas ciências físicas e naturais a valorização da autonomia, da subjetividade, emergirá como eixo de um novo paradigma, integrando-se à imagem do objeto da ciência. Uma nova forma de se representar a relação entre sujeito e objeto, bem como entre indivíduo, natureza e sociedade, desenvolve-se como parte de transformações históricas de uma nova condição pós-moderna que segundo Lyotard, se delineia desde o final do séc. XIX.

Perderam legitimidade as práticas científicas “corretas”, as verdades

universais, os discursos em forma de metanarrativas, a dicotomia entre sujeito e

objeto, dando lugar ao reconhecimento da diferença e do singular que se expressa

por meio de discursos fragmentários. E nessa perspectiva, surge uma nova

concepção de sujeito, que leva Stuart Hall (2001) conforme indicamos anteriormente,

a falar da terceira concepção de identidade, àquela do sujeito pós-moderno.

Inês Hennigen (2003, p.185) afirma:

O sujeito pós-moderno não tem mais uma identidade essencial, mas várias identidades, (trans)formadas continuamente em relação ao modo como é representado ou interpelado pelos sistemas culturais ao redor, podendo ser contraditórias ou não resolvidas.

Ao negar uma concepção totalizante de sujeito, portador de uma

essencialidade, a concepção pós-moderna fala de um sujeito multifacetado, plural,

atravessado por contextos e significados mutantes e circunstanciais.

1.1.2 Algumas concepções contemporâneas de identidade

Diante do exposto, há que se considerar, nas formulações que se situam sob

orientação identificada com pressupostos contemporâneos, a existência da

impossibilidade de compreender a identidade como fixa, imutável, completa,

coerente. Teorias sociais e ciências humanas, hoje, concebem a identidade como

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um fenômeno relacional, múltiplo, historicamente construído e produto da interação

lingüística realizada pelas práticas discursivas.

Stuart Hall (2001, p. 12-13) afirma: “[...] a identidade torna-se uma ‘celebração

móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais

somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.”

Enfatiza o caráter histórico da identidade, cujos processos de identificação e

diferenciação são continuamente modificados em decorrência de condições espaço

temporais. Esta obra foi publicada originalmente com o título The question of cultural

identity (HALL, 1992). Em publicação posterior, intitulada Who needs “identify”,

aprofunda seu pensamento. Em publicação de 2000, Stuart Hall esclarece o

significado do termo:

Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos dos quais se pode “falar.” (HALL, 2000, p. 111-112).

Entende-se, portanto, que Stuart Hall avança em suas proposições. para

situar a identidade no movimento de tornar-se, esculpida pelas práticas discursivas

que constroem posições de sujeito. Assim sendo, identidades e subjetividades não

podem ser confundidas nem consideradas fenômenos semelhantes. Como

esclarecem Anita Bernardes e Julio Hoenisch (2003), subjetividades e identidades,

embora indissociáveis, não podem se reduzir uma à outra, porquanto subjetividade

não é o ser, mas os modos de ser ou a constituição do sujeito forjado na rede

discursiva em tempo e espaço específicos, enquanto as identidades “móveis e

intercambiantes” são constituídas com base na diferença como produtos do discurso

e da cultura. Dizem os autores: ”Falamos de identidades enquanto posições-de-

sujeito, posição em uma rede discursiva, em uma teia social e cultural nunca

determinada, mas sempre por se fazer.” (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p. 120).

As identidades, nesse ponto de vista, “[...] são um modo de inscrição em rede

discursiva.” (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p.120) enquanto a subjetividade

ultrapassa esse momento, sendo “[...] uma maneira de constituição de um ’si’, de um

’dentro’, pelo qual o sujeito se observa e se reconhece como tal.” (BERNARDES;

HOENISCH, 2003, p.123).

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E Katryn Woodward (2000, p. 55) esclarece que, embora os termos

identidade e subjetividade venham sendo usados por alguns com o mesmo sentido,

do ponto de vista dos Estudos Culturais o termo subjetividade “[...] sugere a

compreensão que temos do nosso eu.” Envolve aspectos conscientes e

inconscientes, enquanto as identidades referem-se às “[...] posições que assumimos

e com as quais nos identificamos.” (WOODWARD, 2000, p. 55). E sobre esse

assunto, conclui:

[...] o conceito de subjetividade permite uma exploração dos sentimentos que estão envolvidos no processo de produção da identidade e do investimento pessoal que fazemos em posições específicas de identidade. Ele nos permite explicar as razões pelas quais nós nos apegamos a identidades particulares. (WOODWARD, 2000, p.55).

Corroborando o entendimento de identidades como processualidade, Tomaz

Silva (2000) apresenta uma síntese do que acredita ser a identidade e também do

que supõe não ser. Em seus argumentos, descarta a essencialidade para a

identidade e nega as possibilidades de ser fixa, estável, unificada, permanente ou

definitiva, e assevera: “[...] a identidade é uma construção, um efeito, um processo

de produção, uma relação, um ato performativo [...] a identidade é instável,

contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada [...]” (SILVA, 2000, p. 96-97).

Com essa definição, o autor estabelece conexões entre as identidades, as estruturas

discursivas e narrativas, os sistemas de representação e as relações de poder.

O contexto social contemporâneo, mutante e instável, revela-se como

elemento propulsor da coexistência de múltiplas identidades. Isto leva Katryn

Woodward (2000, p. 31) a afirmar: “A complexidade da vida moderna exige que

assumamos diferentes identidades.” Ou seja, coexiste uma variada gama de

posições que se pode assumir ou não, consubstanciadas pelas transformações

advindas de um contexto de mudanças sociais e históricas que provocam tensões

entre o instituído e o instituinte que, por sua vez, interferem nas formas como as

pessoas representam o mundo e a si mesmas. Como afirma Neuza Guareschi,

Michel Bruschi e Patrícia Medeiros (2003, p. 43): “[...] as sociedades atuais não têm

um núcleo ou centro que produza identidades fixas, mas uma pluralidade de

centros.” Deste modo, os sujeitos defrontam-se continuadamente com múltiplas

possibilidades de conferir distintos significados a suas experiências.

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Na perspectiva da processualidade e da transitoriedade na construção das

identificações e das diferenciações, Anita Bernardes e Júlia Hoenisch (2003, p. 119)

expõem posicionamentos afirmando: “[...] a identidade expressa-se na forma como

nos tornamos algo ou alguém em uma determinada composição de grupo, etnia,

raça, gênero, família ou profissão.”

O entendimento de identidades como construções inacabadas, plurais, como

postula este tese, pode ser sintetizada no dizer de Boaventura Souza Santos (1996,

p.135), que entende a identidade como “identificações em curso” e assim se

expressa:

Sabemos que as identidades culturais8 não são rígidas nem, muito menos imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso. (SANTOS, 1996, p. 135).

As proposições acima referidas refletem aspectos diversos do entendimento

que se tem, na contemporaneidade, sobre o construto teórico da identidade. Dentre

muitos pontos convergentes, surge um que parece tangenciar essas formulações

científicas, qual seja, o consenso de que as identidades são múltiplas, mutantes,

inacabadas e constituídas na intersubjetividade das relações do ser humano

consigo, com o outro e com o mundo. 1.1.3 Identidades em movimento

As circunstâncias que propiciam os processos identificatórios e de

diferenciação na construção das identidades permitem a existência de uma gama de

diversas identidades convivendo simultaneamente, inclusive em situações opostas,

podendo até serem contraditórias entre si. A unidade que se supõe ou pode-se

8 Entende-se que identidade cultural é o termo utilizado pelos teóricos que situam o estudo das

identidades na perspectiva contemporânea para marcar que as identidades são sempre construídas no processo cultural.

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esperar que a identidade confira é, portanto, ilusória, mais próxima de um mosaico

em movimento de que um todo estático unificado.

De acordo com Tomaz Tadeu Silva (2000, p. 86), as teorizações sociais

contemporâneas têm recorrido a metáforas que sugerem a idéia de movimento,

deslocamento e viagem para descrever a identidade, ao compará-la com “[...]

diáspora, cruzamento de fronteiras, nomadismo.” O autor assegura que “[...] as

metáforas que buscam enfatizar os processos que complicam ou subvertem a

identidade querem enfatizar – em contraste com o processo que tenta fixá-las – aquilo

que trabalha para contrapor-se à tendência de essencializá-las.” (SILVA, 2000, p.86).

A esse respeito, Antonio Ciampa9 (1987) já afirmava que a idéia de identidade

como algo dado ignora o contínuo processo de identificação que a constitui,

confundindo-a com um produto. Reafirmando a característica de movimento. O autor

assevera:

[...] re-atualizamos, através de rituais sociais, uma identidade pressuposta, que assim é vista como algo dado (e não se dando continuamente através da re-posição). Com isso retira-se o caráter de historicidade da mesma, aproximando-a mais da noção de um mito que prescreve as condutas corretas, reproduzindo o social. (CIAMPA, 1987, p. 163).

Em um texto marcado por uma orientação do materialismo histórico e

dialético, Ciampa (1987) critica posicionamentos que consideram a identidade como

algo que, ao ser conquistado, permanece no sujeito de uma forma fixa e imutável e

propõe a compreensão de identidade como metamorfose, tentando desvendar a

ideologia da não transformação do ser humano como condição para a não

transformação da sociedade. Nesse particular, compreende a Identidade também

como uma questão política e atrela ao estudo da identidade as categorias de

atividade e consciência10 como indispensáveis para a compreensão do ser humano

como produzido historicamente.

9 Antonio da Costa Ciampa, psicólogo brasileiro que, em 1987, publicou sua tese de doutoramento

defendida na PUC-SP sob o título A estória de Severino e a história da Severina, um ensaio em Psicologia Social, na qual propõe a tese da Identidade como metamorfose, como morte-vida. Seu estudo contribuiu de maneira decisiva para dar visibilidade a essa temática nas pesquisas na área da Psicologia, influenciando uma geração subseqüente que, adepta da Psicologia Social Crítica, estuda o tema.

10 Atividade e Consciência – dois conceitos propostos por Karl Marx e Friedrich Engels (1980). A atividade é definida como o contínuo trabalho dos seres humanos para produzirem suas formas de sobrevivência. Consciência é a capacidade de simbolizar e representar essas ações, num movimento dialético que as torna interdependentes. Consoante os autores: “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.” (MARX; ENGELS, 1980 p. 307).

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Kathryn Woodward (2000) ressignifica o pensamento de Ciampa (1987) e fala

de uma perspectiva essencialista para definir a identidade, argumentando que isso

acontece quando se lança mão de atributos como “verdadeira”, “autêntica”, “fixa”,

dentre outros semelhantes para adjetivar a identidade. Este argumento também é

partilhado por Tomaz Tadeu Silva (2000) e Stuart Hall (2000) quando asseguram

que a identidade assim dita esgota-se em si própria. É, como afirma Tomaz Tadeu

Silva (2000, p. 74) “[...] auto-contida e auto-suficiente.” Juntos, os dois autores

concordam com a necessidade da existência de uma definição não essencialista

para identidade. Referem-se a um “conceito estratégico e posicional” que se baseia

na diferença, é constituído na teia relacional que forja os seres humanos com suas

características e determinantes materiais e simbólicos e está estruturado em forma

de linguagem. Este entendimento leva Stuart Hall (2000, p. 108) a afirmar:

Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas, que elas são na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação.

Neste caminho teórico, a pesquisadora Rosi Braidotti (2006, p. 1) concorda

com os posicionamentos de Stuart Hall (2000) e afirma que a identidade é “[...]

construída nos mesmos gestos que a colocam como ponto de ancoradouro de certas

práticas sociais e discursivas.” Propõe a formulação de “sujeito nômade”, em

oposição a qualquer compreensão de identidade como fixa e estável, entendendo

que este sujeito dinâmico e mutante está identificado com transições e passagem e

nunca com destinos pré-determinados ou retorno a lugares conhecidos. Enquanto

teórica feminista, Rosi Braidotti (2006) identifica o nomadismo como uma

consciência crítica de feministas ou de outros intelectuais que assumem posições de

resistência a modos de pensamento hegemônicos, compartilhando com o que

chama de rebelião de saberes subjugados.

É descartada a idéia de identidade como produto acabado, como traço inato

ou um atributo fixo dos sujeitos ou grupos. É importante percebê-la como um

processo, um vir-a-ser, ficando entendido, acredita-se, a impossibilidade de se

pensar a identidade como algo privado que pertence à interioridade de cada ser

humano, mesmo porque o mundo subjetivo, como uma apropriação simbólica do

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real, impõe a subjetivação da realidade e a objetivação do mundo psíquico de cada

um (em forma de ações), num movimento tal que seja possível às pessoas se

reconhecerem e se denominarem no reconhecimento e denominação de seus pares

e dos não pares, numa constituição objetiva/subjetiva de si e do mundo. Como nos

ensina Fernando Rey (2003, p. 230): “A identidade não é uma formação

intrapsíquica, é um sentido que aparece de forma simultânea nas configurações

subjetivas do sujeito e nas emoções e significados produzidos pela delimitação

social de seu espaço de ações e relações.”

Em função da complexidade que enreda a construção teórica da Identidade,

pode-se perceber que esta não pode ser apropriada por uma única disciplina. O

impulso que a emergência do pensamento contemporâneo proporciona, como

sugere Stuart Hall (2001), com o conseqüente rompimento das fronteiras

disciplinares, provocou o surgimento de um outro tipo de conhecimento — o temático

—, que deu maior visibilidade a questões como a da identidade. Como expõe

Boaventura Sousa Santos (2001, p. 47): “[...] a fragmentação pós-moderna não é

disciplinar e sim temática. Os temas são galerias por onde os conhecimentos

progridem ao encontro uns dos outros.” Entendemos que o estudo das identidades

torna-se possível quando se percorre e reconstitui caminhos de indivíduos e grupos

na tentativa de compreender o movimento que os constitui. E é nessa direção a

proposta desta tese, de investigar, no cotidiano escolar de um Curso de Psicologia

singular, como os alunos e alunas constroem as identidades profissionais de

psicólogo e psicóloga, tomando como referência os Estudos Culturais que a

concebem como produto do discurso.

1.1.4 Identidades simbólicas e discursivas

O campo temático dos Estudos Culturais, ainda em construção, oferece-se

como alternativa possível para abrigar as teorizações mais recentes sobre a

identidade, uma vez que, conforme Ana Escoteguy (2003, p. 67/68), estes Estudos

“[...] estão profundamente envolvidos no debate sobre modos adequados de teorizar

e representar o ser humano, isto é, estão interessados na maneira pela qual a

cultura se conecta com a esfera da subjetividade.”

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Nessa trajetória, os Estudos Culturais ressignificaram o conceito de

identidade, inscrevendo-o em um campo de intersecção de saberes em que a

identidade passa a ser definida em uma rede discursiva, constituindo-se como

produto do discurso, da cultura. Numa apropriação de conceitos pós-estruturalistas,

sustentam que as posições-de-sujeito são posições construídas, que os indivíduos

assumem quando se identificam com determinados discursos, tomando-os como

verdades, apropriando-se deles, sujeitando-se a determinadas significações que

fazem com que se tornem o que são. E nesse particular fica evidente a contribuição

de conceitos foucaultianos na compreensão da construção de identidades.

Nas formulações teóricas elaboradas para possibilitar a compreensão da

produção das identidades pelo viés dos Estudos Culturais, numa interlocução com a

Psicologia Social, há que se lançar mão ainda de conceitos oriundos das posturas

pós-modernistas, como propõem Anita Bernardes e Júlio Hoenisch (2003). Para

esses autores, no que concerne à pós-modernidade, rompe-se com formas

tradicionais de ver o mundo, próprias das teorizações modernas e adota-se como

verdadeiras a falência das metanarrativas e da crença na existência de uma

essência humana universal. Com relação à adoção de construtos pós-estruturalistas,

dizem os autores “[...] a linguagem é condição de possibilidade para compreensão

da produção do conhecimento, dos saberes e das disciplinas.” (BERNARDES;

HOENISCH, 2003, p. 97).

Assim sendo, identidade, como produção histórico-cultural, pode ser

considerada uma relação social simbólica e discursiva sujeita aos jogos de poder

que presidem as permanentes negociações dos seres humanos no contexto social.

Num movimento dialético coexistem, na constituição das identidades, as

identificações e as diferenciações como inseparáveis e interdependentes.

É importante demarcar a questão dos jogos de poder. Na concepção

foucaultiana, o poder é uma estratégia em que manobras, táticas e técnicas são

utilizadas pelos participantes para exercê-lo. Instauram-se como atos discursivos em

processos de negociação, em um cenário marcado por tensões, conflitos,

confrontos, avanços, recuos, tanto em posições de dominação como de resistência.

O poder, portanto, segundo Michel Foucault (2001a), caracteriza-se por

posicionamentos estratégicos e nunca como um ponto central que se verticaliza em

um movimento dominante. Foucault (2001a, p. 161) adverte:

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Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção.

Se o poder produz, utiliza-se de estratégias de sedução, de convencimento,

estabelece limites, alarga horizonte, captura aliados e seguidores como uma força

que circula entre as pessoas num movimento de alternância entre aqueles que o

detém, os que o conquistam e os que o perdem, estabelecendo fronteiras simbólicas

entre eles. São jogos de negociação em que é vencedor, num determinado

momento, aquele que tem argumentos mais convincentes diante dos demais, mas

que não conquista esse status em definitivo, visto que os jogos de poder não se

esgotam (FOUCAULT, 2001 a).

Os discursos produzidos socialmente, sejam eles de qualquer ordem,

expressam um saber ou a verdade, como refere Foucault (2001b), e forjam posições

de grupos determinados como produtos dos jogos de poder que formatam as

posições de sujeito, às quais os indivíduos se identificam e pelas quais se apropriam

do discurso que fala deles e reconhecem os discursos pelo qual são falados.

Consoante com os jogos de poder que presidem os discursos, a identidade,

na perspectiva contemporânea, ou seja, centradas na rede discursiva, é sempre uma

identidade conquistada, disputada entre negociações de sentido e jogo de interesses

como defendem Boaventura Souza Santos (1996) e Stuart Hall (2001). As

permanentes classificações sociais às quais os indivíduos estão sujeitos, no

movimento contínuo de inclusão/exclusão, nivela-os, diferencia-os e dá-lhes o

sentimento de pertencer, conferindo posições sociais privilegiadas de ascensão

social ou não. Como afirma Bader Sawaia (2004, p. 123): “[...] a identidade é uma

categoria política disciplinadora das relações entre as pessoas, grupos, ou

sociedade, usada para transformar o outro em estranho, igual, inimigo ou exótico.” Considera-se legítimo neste trabalho conceber identidades como construção,

em detrimento de formulações outras que as nivelam a traço inato ou atributo fixo do

sujeito ou de grupos. Admite-se, pois, como princípio, que a história é tecida no

cotidiano, lugar em que os seres humanos produzem sua existência por meio de

diferentes práticas sociais, estabelecendo relações que reconhecem e marcam

igualdades e diferenças. E nessa perspectiva, podem-se inscrever as identidades

femininas e masculinas.

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1.2 IDENTIDADES DE GÊNERO

A posição teórica que esta tese sustenta nega que exista qualquer fator único

como determinante das identidades, inclusive a de gênero, contrapondo-se ao

determinismo biológico que considerava a diferença anatômica dos sexos como

força motriz legítima para as diferenças entre os homens e as mulheres.

Uma das primeiras questões assumidas pelos Estudos Feministas consistiu

exatamente em desconstruir essa concepção biologicista e remeter as questões

relacionadas à vivência do masculino e do feminino à esfera do simbólico, ao plano

das representações que configuraram a área temática de Gênero e levaram a

pesquisadora Joan Scott (1993, p.13) a afirmar que gênero “[...] é um elemento

constitutivo das relações sociais [...] e uma forma primeira de significar as relações

de poder.”

1.2.1 Buscando compreender o conceito de Gênero

Os estudos de gênero constituem uma área muito nova nas teorizações

sociais, tendo em vista que o entendimento de Gênero como construção histórico-

social é recente na história do pensamento ocidental. Maria Eunice Guedes (1995)

argumenta que a posição e o papel social das mulheres vêm sendo expressos, no

legado cultural construído em 2500 anos de civilização, desde o apogeu até os

nossos dias, por meio dos mitos inscritos no imaginário popular.

A temática da mulher como objeto de investigação científica vai florescer

como campo de estudos, segundo Guacira Louro (1997), a partir de 1969, quando

da efervescência dos movimentos sociais reivindicatórios na Europa, que

caracterizam o que Stuart Hall (2001) denomina o grande marco da modernidade

tardia. No dizer de Jeni Vaitsman (1995, p. 4):

[...] essa crise dos discursos universalizantes eclodiu como parte da emergência da problemática do “outro”, ou seja, dos movimentos de afirmação de identidades raciais, étnicas, sexuais, locais, etc., que identificaram nos discursos derivados da concepção iluminista de razão

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universal, a dominação empírica de uma razão branca, masculina, burguesa e ocidental.

O feminismo como crítica teórica ou como movimento social tributário desse

momento histórico representa uma ruptura no pensamento hegemônico, uma vez

que proporcionou visibilidade às questões do universo feminino, até então

desconsiderado como tema relevante para estudos e pesquisas.

A despeito desse tempo, cronologicamente curto, os Estudos de Gênero

oferecem uma produção teórica complexa e disseminada em diversos campos

temáticos e disciplinares com interlocuções teóricas diversificadas.

Adentrar nos estudos de Gênero é uma tarefa difícil e delicada, tendo em

vista que, como um campo de estudos em construção, polissêmico e transversal,

proporciona uma grande quantidade de estudos, investigações e teorias que fazem

e re-fazem sua produção teórica que se propõe, mediante estudos e análises, a

desnaturalizar as relações humanas fundadas na diferença entre os sexos.

Referimo-nos, pois, a uma construção social que depõem sobre as relações

sociais empreendidas pelos seres humanos no cotidiano de suas vidas. Isto significa

dizer que se trata de um fenômeno concretizado nas ações e relações diárias dos

seres humanos em suas investidas para dar conta da sobrevivência e da construção

da sociedade. E, nesse intento, revela crenças e valores que, subjacentes,

direcionam o teor, a importância e a magnitude daquilo que é simbolizado,

assimilado e reproduzido nas relações sociais de determinada cultura, em

determinada sociedade, num determinado tempo.

Como assegura Marlene Neves Strey (1998, p.183):

As diferenças sexuais são encontradas em todos os mamíferos. Entretanto, os humanos desde sua origem têm interpretado e dado uma nova dimensão a seu ambiente físico e social através da simbolização. Humanos são animais auto-reflexivos e criadores de cultura. O sexo biológico com o qual se nasce não determina, em si mesmo, o desenvolvimento posterior em relação a comportamentos, interesses, estilos de vida, tendências das mais diversas índoles, responsabilidade de papéis a desempenhar, nem tampouco determina o sentimento ou a consciência de si mesmos/a nem as características da personalidade, do ponto de vista afetivo, intelectual ou emocional, ou seja psicológico.

Partilha dessa idéia a pesquisadora Bila Sorj (1992, p.15), quando afirma:

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[...] o equipamento biológico sexual inato não dá conta da explicação do comportamento diferenciado masculino e feminino observado na sociedade [...] diferentemente do sexo, o gênero é um produto social, aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo das gerações.

Joan Scott (1993, p.26), reportando-se a Pierre Bourdieu, avança nessa

compreensão e afirma: “[...] estabelecido como um conjunto objetivo de referências,

o conceito de gênero estrutura a percepção e a organização concreta e simbólica de

toda a vida social.”

Assim sendo, gênero, como um corpo articulado de conhecimentos para a

compreensão do real, propõe-se a desvelar a relação que transforma um ser

humano do sexo masculino em homem assim como transforma um ser humano do

sexo feminino em mulher. E aí reside toda a complexidade da apreensão desse

construto. Variáveis e determinantes sociais, políticos, econômicos, geográficos,

jurídicos, dentre outros, no plano do coletivo e de determinantes individuais como

história de vida e características de personalidade no plano individual, interferem na

construção de gênero.

1.2.2 Vivência do feminino

As formulações contemporâneas de compreensão do real que negam as

desigualdades como resultado de determinações unívocas e universais,

compreendendo-as na perspectiva de múltiplos critérios historicamente construídos,

não podem assimilar a identidade feminina como construída na oposição binária

masculino/feminino.

O sexo biológico que marca todos os humanos indistintamente instala o dado

primeiro da identidade humana e se constitui em atributo inseparável da história de

cada um. Tornar-se homem ou mulher, entretanto, é uma aprendizagem realizada na

rede social, por meio dos significados simbólicos que produzem as subjetividades.

Aprende-se a ser homem ou a ser mulher, desde o momento em que se

nasce, havendo um contexto materno-familiar-social que engendra as formas de

lidar com o menino ou com a menina. E é o peso da cultura na qual está inserida a

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família que determina os padrões de conduta adequados para as crianças do sexo

masculino e feminino.

Assim sendo, a identidade está sendo tecida desde o nascimento, no

momento em que se constata a formação anatômica dos genitais externos. No caso

da mulher, a identidade feminina é atualizada pelo ritual biológico da menstruação e,

posteriormente, pelo da maternidade.

Afirma Carmem Grisci (1995, p.15) que o ritual da maternidade “[...]

ideologicamente naturalizado, perpassa a vida das mulheres independentemente de

sua concretude no real ou permanência em nível do imaginário.” Dessa forma,

percebe-se como naturais fenômenos sociais e humanos construídos

historicamente, imputando um peso determinístico às condições de feminilidade e

masculinidade.

Na verdade, o ser homem ou o ser mulher são construídos na teia das

relações sociais que articulam modelos de conduta culturalmente determinados, por

meio de discursos que criam estereótipos reproduzidos de geração a geração.

Constituídos nos discursos, produzem padrões de desigualdade e discriminação

entre os sexos, que constituem o campo temático de gênero.

Marlene Strey (1998, p. 183) afirma: “[...] toda sociedade possui um sistema

de gênero: conjunto de arranjos através dos quais a sociedade transforma a biologia

sexual em produtos da atividade humana e nos quais essas necessidades

transformadas são satisfeitas.” Assim sendo, as instituições e práticas sociais são

constituídas e constituintes de gênero, ou seja, a justiça, a igreja, as práticas

educativas ou de governo, a política, dentre outros, produzem-se com base nas

relações de gênero e também nas relações de classe, etnia, nacionalidade,

religiosidade, geração, dentre outras. Como diz Jane Flax (1991, p. 220): “[...] as

relações de gênero entram em qualquer aspecto da experiência humana e são

elementos constituintes dela.”

Os estudos de gênero no Brasil, de acordo com Maria Eunice Guedes (1995),

iniciaram-se nos idos de 1970 e tiveram um peso maior quando a ONU decretou

como a “Década da Mulher” os anos de 1975 a 1985, que coincidiram com a

abertura do regime político brasileiro. O retorno de mulheres brasileiras exiladas

políticas possibilitou que pudessem trazer para os espaços acadêmicos e os

movimentos sociais brasileiros os avanços observados e vivenciados na Europa

sobre os estudos de gênero e as conquistas das mulheres. Foi, entretanto, a

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publicação, no Brasil, do texto de Joan Scott (1993) Gênero: uma Categoria Útil para

Análise Histórica que provocou os avanços mais significativos nos estudos e

pesquisas. Essa autora assim define gênero:

Minha definição de gênero tem duas partes e várias subpartes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder. (SCOTT, 1993, p.14).

Antes de fazer essa proposição, Joan Scott (1993) tece uma crítica detalhada

a estudos de gênero empreendidos até então, afirmando que estes posicionavam-se

como reducionistas, a-críticos e a-históricos e, portanto, legitimadores do paradigma

hegemônico que preconiza a supremacia masculina fundada na diferença anatômica

dos sexos como causalidade única para explicar a hierarquia entre os seres

humanos. Esta pode parecer uma conclusão simplista para a complexidade do texto

de Scott (1993) que avalia, dentre outros, os esforços das teorias feministas de

estudarem a hierarquia de gênero, partindo da teoria do patriarcado, de articulações

com a teoria marxista e/ou com a psicanálise.

O texto de Joan Scott (1993, p.13), entretanto, representa um avanço na

explicação do papel e do lugar da mulher na sociedade, pois sua definição provoca a

possibilidade de considerar gênero como categoria analítica, ou seja, “[...] como

meio de falar de sistema de relações sociais ou entre os sexos.” Joan Scott (1993, p.

14) afirma:

A meu ver é significativo que o uso da palavra gênero tenha emergido num momento de grande efervescência epistemológica entre pesquisadores em ciências sociais, efervescência que em certos casos toma a forma de uma evolução dos paradigmas científicos em direção a paradigmas literários (da ênfase colocada sobre a causa em direção a para à ênfase colocada sobre o sentido, misturando os gêneros da pesquisa segundo a formulação do antropólogo Clifford Geertz). Em outros casos, essa evolução toma a forma de debate teórico entre aqueles que afirmam a transparência dos fatos e aqueles que insistem sobre a idéia de que qualquer realidade é interpretada ou construída: entre aqueles que defendem e aqueles que colocam em questão a idéia de que o “homem” é o senhor racional do seu próprio destino.

As reflexões de Joan Scott (1993) levam-nos a acreditar que, no

direcionamento dos estudos de gênero, a pergunta empírica deva se deslocar de

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“por que” para “como”. O “como” exclui a relação linear de causa e efeito e permite

uma articulação, de maior ou menor complexidade, de múltiplas causalidades

provisórias na busca de compreensão do sentido. Nessa perspectiva, é possível

problematizar questões do feminino com outras como raça, classe, etnia, sexo,

religião, geração, dentre outras, com aspectos micro-sociais que singularizam

grupos e definem identidades, desvendando a intrincada rede simbólica que modela

e configura as relações sócio-afetivo-econômicas entre os seres humanos.

Pesquisadoras interessadas em estudar Gênero introduzem questionamentos

outros, a exemplo de Teresa de Lauretis (1994, p. 208), cujo texto publicado

originalmente em 198711 e, portanto, contemporâneo ao de Joan Scott (1993), cuja

primeira publicação data de 1989, questiona o conceito de diferença sexual,

advogando que existe um “potencial epistemológico” nos escritos feministas da

década de 1980 que podem visualizar:

[...] um sujeito construído no gênero, sem dúvida, mas não apenas pela diferença sexual, e sim por meio de códigos lingüísticos e representações culturais; um sujeito “engendrado” não só na experiência de relações de sexo, mas também nas de raça e classe: um sujeito, portanto, múltiplo em vez de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido.

Ancorando seu pensamento na formulação foucaultiana de “tecnologia

sexual”, Teresa de Lauretis (1994) propõe uma tecnologia de gênero que inclui uma

dimensão de processo à compreensão que se tem de gênero, quando fala da

construção, da desconstrução e da auto-representação de gênero; quando afirma

que a construção e a representação de gênero fazem-se no dia-a-dia, no cotidiano,

mediante ações e, principalmente, representações que se fazem das relações

vivenciadas nos mais diversificados espaços de convivência humana. Assegura que

esta é uma construção histórica que está presente na vida das pessoas,

consubstanciada pelos dados objetivos e subjetivos da realidade e que proporciona,

como produto, tanto as emoções e os sentimentos que povoam o universo simbólico

das pessoas quanto a produção artística, cultural e científica. Essa produção/produto

dá-se em um movimento que engloba não apenas as produções que se ocupam do

11 Este texto de Tereza de Lauretis foi publicado originalmente com o título The tecnology of gender,

na obra Tecnologies of gender, cujo editor é Indiana University Press, em 1987. No Brasil, foi publicado no livro organizado por Heloísa Buarque de Hollanda (1994).

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feminismo, mas, ao mesmo tempo e em igual intensidade, aquelas que também a

negam.

Teresa de Lauretis (1994, p. 237) assegura, ainda, que

[...] não existe nenhuma realidade social para uma dada sociedade, fora do seu sistema particular de sexo-gênero [...] é um movimento a partir do espaço representado por/em representação, por/em um discurso, por/em um sistema de sexo-gênero, para o espaço não representado, mas implícito (não visto) neles.

As identidades de gênero, enquanto simbólicas, são constantemente

reafirmadas pelos discursos que nomeiam homens e mulheres em suas ações

diárias, cotidianas e dizem respeito a todas as instâncias da esfera social.

No percurso histórico da construção de gênero, a teoria feminista, em

determinado momento, articulou seu discurso sobre a identidade feminina como

construída em oposição ao masculino, na pressuposição de que o outro, para a

mulher, é o homem. Tributária da lógica cartesiana, a teoria feminista construiu a

grande metanarrativa da Teoria do Patriarcado, que postulava uma forma de

hierarquia social em que os homens são os detentores do poder e as mulheres

estão a eles subordinadas. Nesta relação, a autoridade social é exercida mediante

os papéis de pai e de marido. Segundo Marlene Strey (1999, p.185), na sociedade

contemporânea, há uma evolução nessa forma de exercício do patriarcado, haja

vista que o poder social hoje “[...] é identificado com atributos que são considerados

masculinos.”

Como as posições de gênero são eixos determinantes na distribuição e

manutenção do poder na hierarquia social, a relação de subordinação a ela

subjacente sugere que o grupo subordinado não tem controle sobre as decisões que

afetam sua própria existência, mas, como Michel Foucault (1979, 1999 e 2001a) nos

ensinou, o grupo subordinado entra no jogo do poder, podendo assumir tanto

posições de resistência quanto de consentimento. A noção de poder implicada

nesse modelo falocrático de superioridade masculino assenta-se nos estudos

realizados por Foucault (1979, 1999 e 2001a). Este autor afirma que o poder não

existe e advoga que existem, sim, práticas e relações de poder, definindo o poder

como uma relação social.

Como construtores de identidades, “[...] os gêneros se produzem, portanto,

nas e pelas relações de poder [...]” afirma Guacira Louro (1997, p.41), por meio

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dos jogos de poder e dos discursos forjados no âmbito do social. As ações

discursivas inerentes às interações humanas posicionam sujeitos que atribuem

sentido a suas ações, emoções, reações, sentimentos, medianteo confronto e

negociação de suas próprias posições, segundo o ponto de vista foucaultiano, não

necessariamente verticais, mas em oposição, significando e ressignificando seus

conteúdos.

Assim sendo, nos estudos sobre Gênero, hoje, são feitas outras

problematizações. Não se busca inverter a equação de dominação do homem

sobre a mulher para colocar a mulher em primeiro lugar, assim como não se

estimula a tradicional associação do sexo com o biológico e do gênero com o

simbólico, que estabelece uma dicotomia sexo-gênero. Em contrapartida, há uma

tendência a se direcionar os estudos para o entendimento de como são

construídas as identidades de gênero no contexto contemporâneo. Conquanto

relações sociais complexas, exigem que se pense os seres humanos enquanto

seres sujeitos a determinações bio-psico-sociais, nas quais o corpo também está

sujeito às marcas históricas, posto que também constroem subjetividades e

identidades (SARDENBERG, 2002).

A dicotomia sexo/gênero, na qual o sexo é entendido como o corpo e gênero

como o simbólico, vem sendo questionada, porquanto reduz a complexidade dos

seres humanos à dicotomia mente/corpo. No dizer de Elizabeth Grosz (2000, p. 48-

49), esta relação é associada a muitas outras dicotomias, tais como razão/paixão,

sensatez/sensibilidade, fora/dentro, realidade/aparência, dentre outras, considerando

como a mais relevante para os Estudos de Gênero a correlação e associação

mente/corpo com a oposição macho/fêmea. A autora justifica seus argumentos na

história da constituição do saber filosófico, assegurando que a filosofia excluiu a

feminilidade quando tratou a feminilidade, mesmo que de forma subreptícia, como

uma desrazão associada ao corpo. E prossegue, fazendo uma discussão sobre o

dualismo mente/corpo até os nossos dias.

Formulações filosóficas contemporâneas, todavia, tem atribuído ao corpo

significados importantes que promovem a conexão com a própria condição histórica

dos seres humanos. É o que nos ensina Susan Bordo (1997), quando se refere a

outros autores como Douglas, para quem o corpo é um agente de cultura, a Pierre

Bourdieu, que fala de corpo como controle social e a Michel Foucault, que se refere

a corpos dóceis e regulados.

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Na verdade, quando se pensa em corpo como produtor de subjetividade e de

identidade, há que situá-lo nos espaços cotidianos que se constituem na arena das

disputas e estratégias de poder sendo lócus de negociações e confrontos

característicos dessas relações. Patrícia Medeiros (2003, p. 208) defende que “[...]

temos um corpo, mas o uso do corpo, o conceito do corpo, o status do corpo depende

do contexto social e histórico [...] não devemos considerar o corpo como algo

biologicamente dado de antemão, mas como algo que também tem uma história.”

Autoras interessadas em minar a dicotomia sexo/gênero que separa o

biológico e o cultural, naturalizando-os, advogam, como enfatiza Elizabeth Grosz

(2000, p. 76): “O corpo é visto como um objeto político, social e cultural por

excelência e não o produto de uma natureza crua, passiva, que é civilizada,

superada, polida pela cultura. O corpo é um tecido cultural e produção de natureza.”

Teórica e empiricamente, as formulações feministas fazem uma reviravolta

em suas posições, traçando um caminho de inclusão por superação. Na trajetória

das teorizações feministas há, em um primeiro momento, o reconhecimento do

corpo (biológico) como o lócus da diferença entre homens e mulheres que permite a

elaboração de Teorias como a do Patriarcado. Em seguida há uma supervalorização

dos desdobramentos simbólicos que a diferença corporal provoca na trama das

relações sociais e elaboram um conjunto de teorias que se ampara na relação sexo-

gênero. No momento atual, é possível retornar ao corpo para recuperá-lo como uma

instância diferenciada, para além do aparato biológico, porquanto realidade histórica

produtora de subjetividades.

Na perspectiva de entender os corpos como processos relacionais,

construídos simbolicamente por estratégias históricas que definem indivíduos e

grupos em determinado tempo-espaço, Cecília Sardenberg (2002, p. 65) propõe a

expressão “corpos gendrados”, na qual o corpo é considerado “[...] tanto como

objeto quanto produto de representações e práticas sociais diversas historicamente

específicas.” Desse modo, o corpo está sempre submetido a uma leitura particular

derivada de conteúdos sexuais, étnicos, geracionais, políticos, econômicos,

estéticos, dentre outros. Nesse caso, pode-se falar de corpos masculinos e

femininos. Desse ponto de vista, os “corpos gendrados” significam corpos

impregnados de gênero e de todos os outros processos que subjetivam os sujeitos e

constroem suas identidades.

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Compreendendo, portanto, os seres humanos como seres complexos e

inteiros submetidos a determinações de ordem biológica, psicologia e social,

historicamente produzidas, pode-se retomar as proposições de Joan Scott (1993, p.

17) e compartilhar com a assertiva de que gênero é “[...] um meio de decodificar o

sentido e de compreender as relações complexas entre diversas formas de

interação humana.” E nas formulações de Gênero, pode-se incluir a leitura do corpo

como generificado.

Reportamo-nos aos ensinamentos de Stuart Hall (2001, p. 9), quando fala do

declínio da compreensão de identidades como fixas e advoga a existência de

múltiplas identidades:

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados.

As palavras do autor conduzem à afirmação de que a condição feminina

visibiliza, além das diferenças entre a vivência do feminino e do masculino, a

existência de muitas mulheres diferentes, singularizadas por questões culturais,

econômicas, corporais, de localização geográfica, de período histórico, dentre

outras possibilidades. São, portanto, mulheres múltiplas, plurais, cuja identidade é

atravessada por questões de sexo, de gênero, de geração, de etnia, de profissão,

de classe social, dentre outras possibilidades. É o que afirma Sandra Harding

(1993), quando se refere à inexistência de um homem universal e,

conseqüentemente, também à inexistência de uma mulher universal, e Rosi Braidotti

(2002), quando se refere ao nomadismo feminista.

Inscrito na teia discursiva que produz os seres humanos, às identidades

femininas correspondem posições-de-sujeito que cada um assume e com as quais

se identifica, como o feminino — atravessado por uma gama de outros discursos

que, concomitantemente, situa-lhes em todas as outras dimensões do tecido social;

da mesma forma, pode-se pensar nas identidades masculinas.

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1.2.3 Vivência do masculino

Os Estudos de Gênero constituíram-se, inicialmente, com o objetivo de dar

visibilidade às questões da mulher e de suas relações com o mundo, tendo em vista

sua invisibilidade social na estrutura das sociedades patriarcais. O desenvolvimento

e aprofundamento dessa temática, no entanto, permitiu que o foco dessas

discussões se centrasse na compreensão da rede dinâmica, simbólica e discursiva

que rege as relações entre homens e mulheres. Problematizar as questões

masculinas, portanto, tornou-se necessário, embora os Estudos de Gênero, ainda

hoje, mantenham o peso de suas investigações na esfera feminina.

Marku Monteiro (2006, p. 2) argumenta que, na década de 70 do séc. XX,

como exposto anteriormente por Guedes (1995), o contexto social urbano era

propício para questionamentos sociais, tendo em vista a redemocratização e

distensão política no país, que possibilitou a insurgência de debates sobre as

identidades e as sexualidades, ancoradas, sobretudo, no fortalecimento do

movimento feminista. E diz:

Tanto o movimento feminista quanto o homossexual questionaram seriamente o papel do homem e as hierarquias entre os diferentes grupos. Tanto o feminismo quanto o movimento homossexual vão questionar o patriarcado, a superioridade do homem sobre outros grupos, a obrigatoriedade do heterossexualismo e o modo como o homem relacionava-se consigo, com outros homens e com as mulheres.

Uma certa masculinidade padrão (homem branco, heterossexual, bem

sucedido), historicamente inquestionada, adquiriu características universalizantes e

a-políticas e foi minada pelo discurso das minorias (mulheres, gays, negros), para

quem o ser homem não tem esse mesmo significado. Surgiram daí questões

referentes à identidade masculina, que precisavam responder o que é mesmo ser

homem. Era necessário verificar como os homens se viam, como se representavam,

como construíam suas identidades.

Nesse particular, reitera-se o posicionamento defendido nesta tese, sobre

identidade, a qual se constitui nas redes simbólicas e discursivas que formatam os

sujeitos e produzem subjetividades. Assim como as mulheres, os homens estão

imersos no social, sendo produtores e por eles produzidos, submetidos aos jogos de

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poder que circulam entre os grupos e que promovem relações de dominação,

subordinação e resistência, como propõe Michel Foucault (1979, 2001a).

Fala-se, portanto, de identidades, múltiplas, plurais, como referiram

Boaventura Souza Santos (1996) e Stuart Hall (2000, 2001), conquistadas e

negociadas no permanente embate cotidiano das relações sociais e lingüísticas, e

nega-se quaisquer concepções que defendam a identidade como substância,

atributo fixo ou herança genética.

Pedro Oliveira (1998) em um estudo intitulado Discursos sobre a

Masculinidade promove uma crítica a estudos que se sucederam aos

questionamentos sobre o ser homem e os distingue em dois grupos, quais sejam: os

discursos vitimários, entre os quais abrigam-se aqueles de cunho tradicional, que

legitimam o status quo da posição hierárquica masculina no contexto das relações

sociais; e os discursos críticos, que admitem, numa apropriação do legado feminista,

que as relações entre homens e mulheres são de cunho social, historicamente

construídas, permeadas pelas dimensões do poder, incorporando as formulações de

Joan Scott (1993) e também a leitura foucaultiana de relações de poder e discurso

na análise que efetuam.

Ao discurso vitimário, Pedro Oliveira (1998) atribui posicionamento de autores

que, fundamentados em teorias psicológicas ou na tradicional visão sociológica de

papéis sociais, consideram o homem vítima de sua condição masculina. Afirma que

demarcam uma visão de homem determinista e apriorística, concebido e explicado

por condições externas a ele, às quais não tem ingerência e nem controle. A

identidade concebida nessa formulação é, portanto, permanente, e uma vez

adquirida, permanece imutável pelo resto da vida.

Com relação à fundamentação psicológica para o discurso vitimário, o autor

evoca Nancy Chodorow (1978), cujo texto considera emblemático, e avalia que sua

contribuição a esse posicionamento resume-se a uma idéia muito simples:

As mulheres na posição de mães são as primeiras pessoas que, mantendo contato freqüente com os filhos servem como base de referência para a identificação de meninos e meninas. Com o posterior desenvolvimento das crianças, existirá, de acordo com o sexo, diferentes conseqüências dessa primeira identificação. Os meninos terão que lutar para se desfazer dela e criar uma outra completamente diferente. A nova identidade será frágil e tal fato acarretará uma personalidade com reduzida capacidade de relacionamentos, inseguranças e barreiras em torno do ego masculino. Como as meninas não terão que efetuar tal ruptura, o desenvolvimento da

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identidade feminina é mais natural e tranqüila, evitando maiores conflitos. (OLIVEIRA, 1998, p. 99).

Os desdobramentos que adeptos desse pensamento elaboraram puderam ser

usados inclusive para justificar comportamentos de força e violência na postura do

homem diante do mundo, inclusive contra as mulheres. Consideramos que é um

posicionamento psicologista, oriundo de uma concepção de homem, de mundo e de

psicologia a-crítica, a-temporal e a-histórica, que remete ao próprio sujeito e a suas

micro-relações familiares a causa de sua conduta em quaisquer contextos.

Desconsidera, pois, as questões sociais na constituição do sujeito e apresenta o

sexo masculino como o sexo frágil que, prisioneiro dos ditames prescritos, não pode

se libertar da condição natural de sua existência.

A teoria sociológica clássica, por sua vez, prossegue Pedro Oliveira (1998)

argumentando, também fundamenta o discurso vitimário porquanto atribui aos

papéis sociais uma característica de prescrição absoluta, não havendo alternativas

divergentes para eles, conforme discutiu-se no início deste capítulo. Deste ponto de

vista, o homem também não tem implicação e nem responsabilidade sobre sua

conduta, pois, para cumprir seu papel social, precisa provar continuadamente sua

condição de macho, reproduzindo as prescrições socialmente impostas. Assim

sendo, é negada qualquer possibilidade de conflito. Pode-se atribuir ao sistema

capitalista, às relações de trabalho, ao sistema de ensino, à dinâmica familiar ou a

quaisquer outros problemas a responsabilidade pelo comportamento masculino,

sendo o homem vítima dessas orientações, às quais precisa cumprir e não lhe cabe

questionar e transformar.

O “novo homem” é uma proposição feita por Sócrates Nolasco (1993, p. 173),

o qual apresenta-se como uma resposta às inquietações que a teoria feminista

estaria provocando nos homens, levando-os a refletirem sobre sua condição

existencial. Diz o autor:

Seria conveniente situar o processo hoje vivido pelos homens para além do que se passa entre eles e as mulheres, mas não necessariamente a partir da relação entre ambos. A relação do homem com o trabalho é complexa, como também o é com seus amigos e filhos.

[...] O projeto que se apresenta para um homem busca, em nível individual, integrar o que ele pensa com o que sente e faz, e que, a partir de suas vivências, possa encontrar formas mais suaves de individualizar-se. Coletivamente, os homens têm procurado, mediante a organização de grupos de discussão, avaliar questões referentes à sexualidade, violência,

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paternidade, identidade social e “doenças de fuga” (álcool, drogas, estresse e suicídio) como indicadores de uma identidade que não os satisfaz.

Como se pode observar, proposições como esta pretendem, como argumenta

Pedro Oliveira (1998), apenas flexibilizar o fardo que os papéis sociais prescritos

imputam aos homens, mantendo-os na mesma posição hierarquicamente

privilegiada, sem questionar a arena de poderes que perpassa as relações entre

homens e mulheres, historicamente constituídas. Em se tratando de uma “solução”

individual, funciona para alguns indivíduos, notadamente aqueles de camadas

sociais mais favorecidas, que têm acesso a informações e formas alternativas de

lidar consigo oriundas de ensinamentos das ciências sociais e humanas, não

fazendo eco para populações menos favorecidas, que, via de regra, valorizam as

posições “machistas” dos homens nas relações com as mulheres.

O discurso crítico, por sua vez, apóia-se nos estudos de Robert Connell

(1995), que insere o conceito de masculinidade no âmbito dos estudos de Gênero.

Para ele, a masculinidade nada mais é do que uma posição nas relações de gênero,

na qual as práticas e seus resultados produzem efeitos nas experiências pessoais e

sociais de homens e mulheres. Nessa perspectiva, masculinidade não é uma

categoria estática, nem universal, mas uma forma histórica de exercer o masculino

sujeita a variações de tempo e espaço. Descarta, portanto, conceitos como homem

natural, universal e portador de essência pré-estabelecida.

Robert Connell (1995) distingue quatro tipos de masculinidade e assevera que

existe uma masculinidade hegemônica, em torno da qual três outras organizam-se: a

cúmplice, a marginalizada e a subordinada. Por masculinidade hegemônica, o autor

compreende aquela que representa um perfil estereotipado de homem, valorizado

socialmente, disseminado em determinada cultura em determinado tempo/espaço,

que representa posições nas relações de gênero e que cultua a força, a virilidade, a

competição, dentre outros atributos. Refere-se, pois, à hegemonia de um dado

padrão cultural relacionada à dominância cultural em dado momento.

A masculinidade cúmplice diz de um tipo de posição, na qual seu adepto

desfruta de todas as vantagens que a posição patriarcal confere-lhe, porém tenta

escamotear essa posição não declarando sua adesão a ela. A marginalizada refere-

se a posições de inferioridade em relação à hegemônica, porquanto refere-se a

indivíduos diferenciados por questões de raça ou de classe social. Como a

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masculinidade hegemônica exige um padrão hetero de preferência sexual, a

subordinada nomeia posições homossexuais que coloca seus adeptos em condição

de inferioridade, não apenas aos homens, mas também às mulheres.

Há que se considerar que sendo a masculinidade um exercício cotidiano das

relações dos homens consigo e com os outros e com as outras, existe entre esses

tipos de masculinidade um embate característico das relações de poder, como

propõe Michel Foucault (1979). O poder existe, acontece nas micro-relações entre

os sujeitos, produzindo um saber que constrói as relações, posto que engendra as

relações de dominação de uns sobre os outros. Conforme assegura Foucault (1979,

p. 141-142):

Não podemos nos contentar em dizer que o poder tem necessidade de tal ou tal descoberta, desta ou daquela forma de saber, mas quem exerce o poder cria objetos de saber, os faz emergir, acumula informações e as utiliza [...] O exercício do poder cria perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos do poder [...] Não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre o poder.

E é esse jogo que preside as relações sociais dentre elas às relações entre os

sexos. Ari José Sartori (2001), em pesquisa realizada sobre a participação feminina

no universo sindical, pôde perceber uma relativização dos tipos de masculinidade

acima citadas, na prática de operários. Conclui que elas podem coexistir em um

mesmo indivíduo em diferentes situações de sua vida. Mesmo que a masculinidade

hegemônica seja considerada um padrão idealizado para todos os homens, há

aqueles que criam alternativas em suas relações cotidianas. Existem homens que

não são homofóbicos ou que incorporaram os apelos que as novas posições sociais

das mulheres impõem e, por conseguinte, podem adotar comportamentos próximos

de masculinidades subalternas que convivem com seus posicionamentos de

masculinidade hegemônica numa apropriação particular.

O homem, categoria naturalizada através dos tempos, ou os homens, visto

que são múltiplos e plurais, assistem suas privilegiadas posições tradicionais sendo

questionadas. No dizer de Robert Connell (1995), isso ocorre em função das novas

configurações sociais proporcionadas pela oposição das mulheres aos referenciais

patriarcais, das relações de produção que reordenam novas formas de inserção das

mulheres no mundo do trabalho e da flexibilização da sexualidade representada

pelas alternativas lésbicas e gays.

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Na construção das identidades femininas e masculinas há que se pensar

como se engendra gênero, considerando que.os sujeitos constroem suas

identidades como efeitos do discurso, assumindo posições que marcam suas opções

na esfera social. Frente à diversidade de discursos que estão postos na vivência

diária de cada um, homens e mulheres estão em permanente disputa para definir

suas posições de sujeito e com elas ir tecendo suas identidades (de mulher, de

homem, de psicólogo, de psicóloga, de profissional, de estudante, de mãe, de filha,

de consumidora, dentre tantas outras). Novamente, retorna-se ao pensamento de

Jane Flax (1991, p. 220), que assegura: “[...] as relações de gênero entram em

qualquer aspecto da experiência humana e são elementos constituintes dela.” E,

nesse particular, incluir a questão da escolha, da construção e do desempenho de

uma profissão.

1.3 IDENTIDADES PROFISSIONAIS

Pode-se considerar o trabalho como uma categoria básica na relação do ser

humano com o mundo, considerando-o como fator estruturante do modo social e

humano de existência, fruto das relações sociais, nas quais a humanidade produz

seus meios de vida. Como já haviam ensinado Marx e Engels (1982, p. 9): “[...] tal

como os indivíduos manifestam a sua vida, assim são eles. O que eles são coincide,

portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como

produzem.”

A despeito dos questionamentos sobre a importância do trabalho na

contemporaneidade e as problematizações que são elaboradas sobre a teoria

marxista, pode-se afirmar que o mundo do trabalho e as categorias profissionais são

contextos produtores de subjetividade de onde emergem configurações identitárias

tecidas no interjogo das identificações e diferenças que promovem sentidos, por

meio do discurso, conforme se discute ao longo desta tese. No caso do trabalho e

da formação profissional, pode-se falar em identidades profissionais,

compreendendo-as como as posições que o sujeito assume, com base nas práticas

discursivas às quais está exposto e que expressam a forma como determinada

profissão impregnou sua vida, de modo a lhe proporcionar uma percepção particular

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de mundo e determinados modos de agir diante do real. Está implicado nesse

processo um movimento de construção, desconstrução e re-construção de

significados que a profissão ou a formação profissional proporcionam; não apenas

aquisições teórico-conceituais e procedimentos técnicos e metodológicos, mas, além

disso, formas de compreender o mundo, os seres humanos e a profissão.

Quando se fala de profissão, é necessário que se delineie um tipo de trabalho

especializado, teoricamente fundamentado, com recursos técnicos e metodológicos

definidos, partilhado por um grupo de pessoas que se denomina e se reconhece

como “iguais”. Para Fernanda Pereira e André Pereira Neto (2003), o

reconhecimento de uma profissão exige um conhecimento estruturado e

institucionalizado, além da estruturação de seus interesses em consórcios

profissionais que regulam e controlam a atuação daqueles que partilham desse

mister. Para os autores citados, deve existir um controle interno da profissão,

exercido mediante a fiscalização das condutas profissionais, que devem se balizar

no código de ética de cada profissão. É necessário, portanto, um reconhecimento

oficial do Estado, por meio da regulamentação legal do exercício profissional.

Embora o estudo das profissões seja um campo específico da Sociologia, no

qual não é pretensão deste trabalho aprofundar-se, é importante demarcar o que

Maria da Glória Bonelli (1999) coloca como temáticas importantes desta área.

Refere-se, a autora, às relações entre a profissão, o Estado e a política, às

concepções de profissão e aos debates internos sobre seus conteúdos ideológicos,

além da força social da profissão, seu grau de enfraquecimento, a autonomia

profissional e a repercussão na sociedade.

Fica explícito que é no terreno das disputas, no atravessamento do saber-

poder que se forjam as identidades profissionais. Nestas, há um forte conteúdo

político, em particular, quando se fala no processo de inserção social nas

sociedades capitalistas, cujas relações são hierarquizadas e excludentes. Falar de

profissões remete à pirâmide social, na qual estão distribuídas as profissões.

Existem aquelas de maior prestígio social e melhor remuneração que se sobrepõem

a outras, cujo saber e prática são consideradas menos qualificadas socialmente.

Nessa configuração, existem profissões, subprofissões, emprego, subemprego,

concentração de renda, profissões masculinas, profissões femininas, profissões que

curam outras que cuidam, profissões que exigem o exercício do pensar outras que

são mecânicas, dentre outras possibilidades.

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Em uma sociedade marcada por uma divisão sexista, tributária de uma lógica

de dominação patriarcal, as profissões consideradas femininas são aquelas nas

quais se deseja e espera que a mulher possa exercê-la, aproveitando seus “dotes

naturais femininos” derivados de suas funções maternas.

Assim como a identidade de gênero começa a se construir desde o

nascimento, quando se constata as características sexuais externas de meninos e

meninas, as identidades profissionais também têm sua raiz na infância, quando, de

acordo com os padrões de sociabilidade androcêntrico, as crianças recebem

tratamento diferenciado e aprendem as normas e valores da sociedade com relação

à vida coletiva de seu grupo e da sociedade da qual fazem parte.

É no cotidiano das relações familiares e, posteriormente, nos demais grupos

de socialização como escola, igreja, vizinhança, amigos, dentre outros, que as

crianças interagem e reproduzem a divisão sexual das relações sociais. Neles

aprendem desde as diferenças na distribuição das atribuições dos afazeres

domésticos até a forma como lidar com emoções e sentimentos por meio do uso de

brinquedos e modalidades diferentes de brincadeiras de meninos e meninas. Os

meninos podem desenvolver brincadeiras em que a violência, a agressividade, a

competitividade e até a transgressão são tolerados e até estimulados enquanto o

recato, a docilidade, a calma e a delicadeza são exigidos das meninas.

No decorrer do desenvolvimento, as mulheres são direcionadas pela vivência

social a cultivar os “dotes femininos”, que se direcionam para os cuidados com o lar,

o casamento e a criação de filhos.

Guacira Louro (1997, p. 96), ao falar do magistério como profissão feminina,

defende:

Já que se entende que o casamento e a maternidade, tarefas femininas fundamentais, constituem a verdadeira carreira das mulheres, qualquer atividade profissional será considerada como um desvio dessas funções sociais, a menos que possa ser representada de forma a se ajustar a elas.

Nesse raciocínio, pode-se ampliar esse entendimento para outras profissões

que são exercidas predominantemente por mulheres, como é o caso da Psicologia.

Há que se considerar que a complexidade do mundo contemporâneo,

associada às conquistas das mulheres e ao cenário do mundo produtivo mutante e

polivalente, oferece as condições para que as mulheres estejam ressignificando a

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questão das profissões e das carreiras profissionais. Entretanto pesquisas como a

de Elizete Passos (1997) sobre as presenças masculinas e femininas na

universidade apontam para uma predominância do quantitativo de mulheres em

profissões da área de ciências humanas, invertendo-se esta tendência quando se

trata de profissões da área de ciências exatas.

O cenário das profissões, em que se constroem permanentemente as

identidades profissionais, é marcado pela questão da disputa, do poder. Estão em

jogo, além das profissões masculinas e femininas, questões outras que derivam

dessa primeira separação, quando se atribui valor e prestígio a umas em detrimento

de outras, o que se revela na forma como são remuneradas ou prestigiadas pela

sociedade. Além disso, dentro de cada profissão há fronteiras simbólicas que

hierarquizam saberes e fazeres.

Como se pode perceber, uma idéia de harmonia entre grupos profissionais ou

mesmo dentro de um mesmo segmento é ilusória, porquanto a vivência profissional

dentro de um grupo ocupacional é marcada por tensões e conflitos que aderem a

valores determinados que os subdividem e instalam fronteiras para se preservar e

demarcar seus espaços internos e externos.

É neste terreno de forças, de disputa, de jogo de interesses que a dinâmica

saber-poder, no contexto social, forja a construção de sentidos. No entendimento de

Michel Foucault (1979, p. 75), em sua conversa com Giles Deleuze:

[...] seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de que revezamentos e até que instâncias, freqüentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui.

A construção de identidades supõe sempre o reconhecimento da diferença.

No campo das profissões isso está presente de forma muito marcante nos sentidos,

valores e regras que tecem as relações inter e intra profissões e constroem saberes

e práticas inerentes aos discursos peculiares de cada segmento. Nessas situações,

saber e poder nivelam-se na construção de sentidos possíveis para as posições de

sujeito. O saber sempre é relativo, nunca absoluto e constitui-se em objeto de

barganha nas lutas políticas e correlações de força entre os diversos tipos de

discursos que circulam no “mercado profissional”. É no jogo do discurso que se

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estabelece quem ocupará posições sociais de maior representatividade social e

também quais as profissões mais valorizadas, mais respeitadas e melhor

remuneradas.

Estudar identidades profissionais em psicologia é algo muito peculiar, pois

refere-se a uma profissão que desde sua constituição apresenta questões

ambivalentes quanto à definição de seu objeto de estudo, à diversidade de

abordagens teórico-metodológicas, aos campos de atuação profissional e à clientela

atendida. Além do mais é uma profissão exercida majoritariamente por mulheres.

Para se constituir como ciência, rompe com uma tradição filosófica e

incorpora uma racionalidade instrumental para desenvolver pesquisas

experimentais; enquanto profissão, promove uma formação nas ciências humanas e

uma prática profissional que tem a medicina como um parâmetro. Além disso,

oferece um vasto leque de possibilidades de atuação profissional caracterizado por

contextos diversificados. Pode ser exercida na área da saúde, na da educação, no

campo do trabalho, no jurídico, nos esportes, dentre outras possibilidades. Entre

muitas profissões da área das ciências humanas é a única cujo profissional pode

obter o status de profissional liberal, como assegura a Lei nº 4.119/62, que

regulamenta o exercício da profissão. Ao ser escolhida predominantemente por

mulheres, pode-se afirmar que se trata de uma profissão feminina.

O Catálogo Brasileiro de Ocupações (BRASIL, 2006e) considera os

psicólogos como um grupo base identificado com a numeração 0-74, e segue

classificando-os como (0-74.10) psicólogo, em geral, (0-74.15) psicólogo do trabalho,

(0-74.25) psicólogo educacional, (0-74.35) psicólogo clínico, (0-74.45) psicólogo do

trânsito, (0-74.50) psicólogo jurídico, (0-74.55) psicólogo do esporte, (0-74.60)

psicólogo social e (0-74.90) outros psicólogos. No que concerne à descrição de

psicólogo, diz:

Os trabalhadores deste grupo de base estudam a estrutura psíquica e os mecanismos de comportamento dos seres humanos. Desempenham tarefas relacionadas a problemas de pessoal, como processos de recrutamento, seleção, orientação profissional e outros similares à problemática educacional e a estudos clínicos individuais e coletivos. Suas funções consistem em: elaborar e aplicar métodos e técnicas de pesquisa das características psicológicas dos indivíduos; organizar e aplicar métodos e técnicas de recrutamento, seleção e orientação profissional, proceder à aferição desses processos, para controle de sua validade; realizar estudos e aplicações práticas no campo da educação (creches e escolas); realizar trabalhos em clínicas psicológicas , hospitalares, ambulatoriais, postos de saúde, núcleos e centros de atenção psicossocial; realizar trabalhos nos casos de famílias,

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crianças e adolescentes, sistemas penitenciários, associações esportivas, comunidades e núcleos rurais. (CÓDIGO CBO, 2006, p. 1).

Observe-se que há uma definição geral para um saber que orienta a

profissão, qual seja o entendimento de como funcionam os seres humanos. A

seguir delineiam-se várias áreas de inserção do psicólogo na sociedade. As

transformações do contexto produtivo, enquanto uma dinâmica que envolve

questões econômico-sociais e tecnológicas, formatam novas possibilidades

ocupacionais, nas quais profissões caem em desuso, outras são inventadas e

ainda outras re-criadas. A Psicologia não está imune a essa trama do tempo e,

conseqüentemente, suas possibilidades profissionais também estão continuamente

se renovando e se recriando.

O Conselho Nacional de Saúde, por meio da Resolução nº 218, de 06 de

março de 1997 (BRASIL, 2006d), reconhece as profissões de nível superior que

compõem a área da saúde12 e nelas inclui a Psicologia. Tal resolução justifica-se,

dentre outros motivos, pelo fato de que:

• a 8ª Conferência Nacional de Saúde concebeu a saúde como "direito de

todos e dever do Estado" e ampliou a compreensão da relação saúde/doença como decorrência das condições de vida e trabalho, bem como do acesso igualitário de todos aos serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde, colocando como uma das questões fundamentais a integralidade da atenção à saúde e a participação social [...] (BRASIL, 2006d, p. 1, grifo do autor).

Está ainda relatada a necessidade de consolidar o Sistema Único de Saúde e

a importância da ação interdisciplinar nesta área.

Há uma tradição dos Cursos de Psicologia abrigarem-se em Faculdades da

área das Ciências Humanas, tendo em vista que o MEC incorporou essa profissão

nesta área, mesmo que o maior peso na formação e a atuação do psicólogo tenha

se constituído como o modelo clínico tradicional13, o que exigia, para o

funcionamento do Curso, a instalação de uma Clínica Escola, denominada “Serviço

de Psicologia”, que funciona nos moldes de atendimento médico de consultório.

12 Fazem parte deste grupo ocupacional, além dos Psicólogos, Assistentes Sociais, Biólogos,

profissionais de Educação Física, Enfermeiros, Farmacêuticos, Fisioterapeutas, Fonoaudiólogos, Médicos, Médicos Veterinários, Nutricionistas, Odontólogos e Terapeutas Ocupacionais.

13 Consultório privado para atendimento psicoterapêutico individual para pessoas com problemas pessoais.

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O Curso estudado nesta tese, no entanto, está sediado em uma Faculdade de

Medicina que há 54 anos dedica-se a formar profissionais da área da saúde, sendo

um tradicional reduto de ensino superior nesta área, o que poderia suscitar questões

relacionadas à construção de identidades desses alunos e alunas. Há que se

considerar que uma instituição de Ciências Humanas tem todos os elementos para

formar uma cultura mais voltada para as artes e as humanidades, enquanto as

instituições de saúde trazem o peso da doença, porquanto, numa visão tradicional,

via de regra estão empenhadas em lidar com os enfermos, as doenças e a cura.

A construção das identidades profissionais, como a construção de quaisquer

outras identidades, de acordo com os posicionamentos que se defende neste texto,

constroem-se na interlocução do sujeito com o mundo, quer no plano individual, quer

no coletivo. E a Psicologia, de qualquer sorte, pela própria multiplicidade em que

convive desde sua constituição como ciência e como profissão, aprendeu a realizar

diversificados diálogos.

A psicologia, acredita-se, possibilitou desde sempre a coexistência de

múltiplas e mutantes identidades. Quando se fala do psicólogo organizacional, do

clínico, do hospitalar, do educacional, para citar alguns, não se está falando da

mesma coisa, embora se trate do mesmo profissional, que teve, em princípio, a

mesma formação, pelo menos a básica. Ao invés de psicólogo, fala-se de

psicólogos. Considerando que as identidades são históricas, fluidas e constituídas

na rede discursiva que produzem os sentidos, estes, produzidos em diferentes

momentos e contextos, dizem de movimentos de afirmação, resistência ou

transformação de determinadas práticas realizadas com base nas interpelações

discursivas. As identidades são forjadas na teia do social, do mesmo modo e com

igual intensidade com que se produzem as diferenças, ambas constituídas pelas

relações de poder (HALL, 2000; 2001; WOODWARTH, 2000; SILVA, 2000;

GUARESCHI; BRUSCHI; MEDEIROS, 2003; BUTTLER, 2003; SOUZA SANTOS.

1996 dentre outros).

As identidades definidas nas redes discursivas são consideradas como

produto do discurso. Discurso, nessa perspectiva, é entendido como prática,

conforme propõe Michel Foucault (1999), em sua Teoria do Discurso, que não

enfatiza discurso do ponto de vista lingüístico ou como um significado de palavras,

mas como um conjunto de práticas que produzem efeitos no sujeito.

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Importa demarcar que o termo discurso neste trabalho refere-se a uma

apropriação das formulações foucaultianas que afirmam que o discurso produz o

sujeito, tal como o fazem as formulações teóricas que se abrigam sob os Estudos

Culturais. Nesse particular, os discursos ou práticas discursivas, como refere Michel

Foucault (1999), não são pensados como uma dimensão isolada, como se fossem

apenas atos lingüísticos, mas formam-se consorciados com todas as outras relações

dos seres humanos na arena social, estabelecendo conexões com os

acontecimentos de ordem técnica, política, econômica e social que circunscrevem as

experiências humanas.

Como afirma Michel Foucault (1999, p. 193):

[...] as formações discursivas não têm o mesmo modelo de historicidade que o curso da consciência ou a linearidade da linguagem. O discurso [...] não é uma consciência que vem alojar seu projeto na forma externa da linguagem; não é uma língua, com um sujeito para falá-la. É uma prática que tem suas formas próprias de encadeamento e de sucessão.

Assim sendo, não é possível separar os acontecimentos discursivos dos não-

discursivos, constituindo-se essa separação em uma questão apenas semântica. Os

acontecimentos de ordem técnica, política, econômica e social, comumente

pensados como externos aos saberes, do ponto de vista foucaultiano, devem ser

considerados como inseparáveis e interdependentes. Nessa perspectiva, podemos

inserir a questão da construção das identidades profissionais que se debatem na

arena social em vários aspectos da realidade, em nível individual e coletivo, nas

disputas pelo poder e por prestígio social.

Como se argumentou anteriormente, o poder tem um caráter produtivo. Nesse

momento, enfatiza-se o poder como produtor de saber, tendo em vista que existem

(poder e saber) numa relação de mutualidade, porquanto as relações de poder

constituem campos de saberes e estes, por sua vez, constituem-se em relações de

poder. E pode-se afirmar que o que nomeia uma profissão é um campo de práticas e

um conjunto de conhecimentos e capacidades profissionais advindos do saber que

caracteriza determinado mister.

Como as relações cotidianas dos sujeitos são atravessadas, em qualquer

instância, pelas relações de poder, o indivíduo é concebido tanto como efeito como

produtor de poder. Para Michel Foucault (1999), o sujeito produz-se nas relações de

poder como um efeito do discurso. O sujeito não tem autonomia sobre seu discurso,

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porquanto este se materializa pelas posições de sujeito que definem os discursos

“[...] pela situação que lhe é possível ocupar em relação aos diversos domínios ou

grupos de objetos.” (FOUCAULT, 1999, p. 59). Sendo assim, o sujeito não faz o que

quer, mas aquilo que lhe é possível, condicionado às posições que ocupa em

determinado tempo-espaço, subordinado a uma ordem disciplinar determinada. É,

portanto, mediante as práticas discursivas forjadas nas práticas sociais que o ser

humano transforma-se em sujeito do discurso, assumindo posições discursivas

impregnadas das marcas do histórico e do social.

A fixação em determinadas posições de sujeito é possível pelo recurso da

performatividade, conceito proposto pela teórica feminista Judith Butler (2001). Para

esta autora, o discurso não narra fatos ocorridos no passado, mas formata

acontecimentos, na medida em que, por meio de exercícios de repetição, vai

proporcionando identificações sucessivas, que fazem com que o sujeito seja

interpelado pelo discurso, assumindo posições por meio das quais fala de si e

reconhece aquelas pelas quais é falado. Trata-se, portanto, de uma construção que

se efetiva pela repetição de práticas discursivas (falas e atos) que estabelecem

correspondência e reproduzem normas sociais vigentes, dentre elas aquelas

relacionadas às profissões..

Judith Butler (1993, p. 155) afirma que a performatividade deve ser

compreendida “[...] não como um ‘ato’ pelo qual o sujeito traz à existência aquilo que

ela ou ele nomeia, mas ao invés disso, como aquele poder reiterativo do discurso

para produzir os fenômenos que ele regula e constrange.” E considera que este é o

efeito mais produtivo do poder.

Compreendendo o trabalho como uma prática de significação que produz

modos de ser e sentir, numa relação social e de poder, as instituições de trabalho

produzem saberes, ditos, mitos, ritos que são segredados e compartilhados pelos

pares. Admitindo como verdadeira a assertiva de Boaventura Souza Santos (2001),

de que as identidades são identificações em curso, pode-se considerar a educação

superior como um lócus privilegiado para a construção de identidades profissionais.

Nela estão em jogo a função social da profissão, o compromisso com a coletividade

e as questões éticas.

Por meio dos discursos, os grupos constroem fronteiras simbólicas que

marcam as especificidades profissionais, diferenciam-se das demais profissões e

demarcam a atuação profissional no contexto social. O discurso profissional expõe a

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disputa dos saberes e as ideologias subjacentes que estão inscritas nessas relações

de poder.

Em se tratando de um estudo sobre a construção de identidades profissionais

em psicologia, notadamente no âmbito de um curso de formação de uma profissão

feminina, há que se pensar não apenas nos aspectos formais das interações

próprias do ambiente escolar, mas nos aspectos ideológicos que direcionam o

processo curricular e produzem os discursos pelos quais os sujeitos se nomeiam

psicólogos. Disso se tratará nos capítulos subseqüentes.

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Pra começar vou falar dos papéis, de como eu coloquei os papéis.

Dois papéis em intersecção, um me representando e o outro representando a

psicologia, que tem momentos que a gente se encontra,momentos em comum

e tem momentos meus além da psicologia e da psicologia além de mim,

claro!

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2 FORMAÇÃO SUPERIOR EM PSICOLOGIA

No capítulo precedente, discorreu-se sobre a temática da Identidade considerando-a

como construída discursivamente, com base nas posições que determinados sujeitos

assumem na teia social na qual estão inseridos. Enfatizou-se os desdobramentos referentes

às identidades de gênero e identidades profissionais.

Neste capítulo, a discussão girará em torno da formação superior em Psicologia,

articulando-a com a construção de identidades profissionais e de gênero. Para tanto, optou-

se por discorrer sobre a criação dos cursos de Psicologia no Brasil, os pressupostos que

regem a implantação dos currículos desses cursos e apresentar algumas concepções,

enfatizando aspectos relevantes do currículo oculto que interessam ao estudo que se

empreende.

Importa, neste trabalho, realizar um olhar retrospectivo sobre a Psicologia para

atender a alguns objetivos. Em primeiro lugar, compreender como o percurso da psicologia

brasileira está atrelado aos movimentos científicos que se desenvolveram na Europa e nos

Estados Unidos, reproduzindo os padrões idealistas e positivistas de ciência em

determinado momento histórico; em segundo, situar este percurso na história social e

política do país, reconhecendo como a Psicologia se fez presente, acompanhando e

refletindo o modelo de sociedade vigente. Em terceiro lugar, identificar a multiplicidade de

campos de atuação que deram origem à profissão de psicólogo e como estes ampliaram-se

e diversificaram-se.

Esses dados são considerados importantes e funcionam como pano de fundo para

compreender-se como um Curso de Psicologia singular organiza-se e dispõe de uma

estrutura curricular para a formação de uma profissão considerada feminina, fornecendo

condições objetivas e subjetivas para a construção de identidades profissionais.

2.1 UM POUCO DA HISTÓRIA

A Psicologia, como profissão e formação acadêmica, no Brasil, foi formalizada

em 1962, pela Lei 4119, sancionada em 27 de agosto e publicada no Diário Oficial

da União, em 05 de setembro de 1962. Foi regulamentada pelo Decreto nº 53.464,

de 21 de janeiro de 1964, em atendimento à pressão que a organização social e

política dos profissionais da Psicologia fazia pelo reconhecimento de seu campo

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profissional. A partir da vigência desta Lei, a Psicologia passou a existir como

profissão. A comissão que regulamentou a lei também elaborou o Currículo Mínimo

para implantação dos Cursos de Psicologia no país e estabeleceu sua duração, pelo

Parecer 403/1962 (CRP, 1994; ESCH; JACÓ-VILELA, 2001).

Há 44 anos, portanto, o sistema formal de ensino brasileiro empenha-se em

formar psicólogos, mediante cursos regulares do ensino superior. Nesse período,

essa formação transitou pelos caminhos e descaminhos do próprio processo

histórico, fazendo interlocuções com as conquistas da ciência, com os movimentos

políticos, com as crises econômicas, com os avanços tecnológicos, dentre outros.

A respeito da história da Psicologia no Brasil, Marina Massimi (2004) defende

que existe uma psicologia brasileira matizada com peculiaridades inerentes ao nosso

processo histórico e a condições sócio-econômico-culturais. A autora reflete sobre

as intersecções entre a História da Psicologia brasileira e a História da Psicologia

internacional dizendo:

[...] trata-se de um único processo possibilitado por uma rede de relações, de comunicações, de intercâmbios, que estabeleceram-se fortaleceram-se – em alguns momentos até em forças da ocorrência de circunstâncias históricas específicas, como as guerras e os processos migratórios, mas que, de todo modo, expressam um movimento característico e original da cultura brasileira, a saber a capacidade de abertura às diversidades e às novidades do mundo e o dinamismo de apropriação das mesmas através de suas próprias específicas modalidades e necessidades. (MASSIMI, 2004, p. 13).

A despeito de reconhecer-se que o saber psicológico é tecido — desde os

primórdios, na filosofia clássica, com os gregos, quando se indagavam sobre a

natureza humana — para atender aos objetivos deste trabalho, reporta-se à

constituição da Psicologia como ciência no séc. XIX. Este saber é o resultado

daquele determinado momento histórico e dos avanços do conhecimento científico

até então.

O pensamento moderno provocou uma ruptura com as idéias antigas e

medievais, nas quais os homens pertenciam a Deus e cujo conhecimento produzido

sobre os seres humanos, inicialmente abrigado no campo da filosofia, aos poucos foi

sendo transferido para o domínio da religião, que teve um predomínio sobre as

idéias filosóficas. Em contrapartida, o pensamento iluminista concebeu o homem

como um indivíduo livre, racional e autônomo. Ademais, o advento das máquinas

favoreceu o nascimento de um novo mundo, o da precisão (BOCK, 1999).

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Sob a influência cartesiana da separação mente-corpo e das idéias contianas

de ciência foi possível um grande progresso nos estudos da fisiologia e ciências

congêneres, possibilitando que os sentidos pudessem ser estudados e analisados. A

Psicologia, que acumulou um saber filosófico sobre o homem, nesse contexto,

desencadeou um movimento de adesão às ciências naturais, porque poderia

quantificar seus estudos. Sobre esse momento, Ana Bock (1999, p.57) comenta:

As condições materiais da sociedade estavam dadas: as revoluções burguesas haviam colocado abaixo todos os dogmas da Igreja. O homem era visto como livre e autônomo; o mundo como finito, em movimento, sem hierarquia e que poderia ser transformado; a ciência estava colocada como a grande saída para os impasses do pensamento filosófico e a razão, como a construtora do conhecimento que partia daquilo que era experimentado. O mundo material, com suas novas formas de produção, exigia as revoluções no âmbito das idéias. Era preciso acreditar no movimento, na transformação, no homem livre. Era preciso desestabilizar o mundo finito e hierarquizado do cristianismo, para que as revoluções burguesas pudessem se consolidar.

Isso acontece em meados do séc. XIX, quando o meio científico destacava o

valor da ciência como o único caminho verdadeiro para legitimar o conhecimento.

Das ciências humanas era exigido rigor científico, o que se traduzia na adoção do

método das ciências naturais — a Física. E os estudos de fenômenos considerados

psicológicos foram avalizados pela ciência, quando passaram a ser estudados pela

Fisiologia, Neuroanatomia e Neurofisiologia e diziam respeito à base neuronal de

processos como as sensações, as percepções, a memória e o pensamento, dentre

outros, com o título amplo de consciência. Nesse momento, ocorreu uma mudança

no foco do trabalho; os fenômenos não eram mais estudados em sua essência, mas

em sua funcionalidade, por meio da quantificação.

Estava pronto o momento de a psicologia atingir o status de ciência e isso de

fato ocorreu em 1879, tendo como marco a criação do Laboratório de Psicologia na

Universidade de Leipzig, pelo cientista alemão Wilhelm Wundt (que também

intitulou-se primeiro psicólogo) juntamente com seus alunos e seguidores. A

Psicologia, então, rompeu com os laços originais que tinha com a Filosofia e foi se

abrigar no lastro das ciências naturais. Traçou então um novo caminho,

descortinando parcerias científicas que proporcionaram novos desdobramentos e

possibilidades de estudo e intervenção (FIGUEIREDO, 1991).

Essa reviravolta nos estudos daquilo que anteriormente convencionou-se

chamar de alma ou espírito, pertencente ao campo da filosofia e que se constituiu

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nos elementos da dimensão subjetiva dos seres humanos, que passou a ser

estudado no plano biológico, valorizando-se o sistema nervoso e o cérebro,

provocou um conflito no seio da psicologia. Luis Figueiredo (1991, p. 22) assim se

refere a esse momento:

[...] a ciência psicológica tenta-se constituir, sendo obrigada a, simultaneamente, reconhecer e desconhecer seu objeto. Se não o reconhece não se legitima como ciência independente e, podendo ser anexada à medicina, à pedagogia e à administração, ou seja, às técnicas ou às suas bases teóricas, como a biologia e a micro-sociologia. Se não o desconhece, não se legitima como ciência, já que não submete aos requisitos da metodologia científica nem resulta na formulação de leis gerais com caráter preditivo. Abre-se então um campo de divergências e oposições que não tem nada de acidental [...]

Mas a não linearidade da história e a complexidade característica dos seres

humanos, que permite uma simultaneidade de interpretações, inquietações, estudos,

descobertas e posicionamentos, possibilitaram, que quase ao mesmo tempo, em

que as ciências sociais e humanas lutavam por conseguir foro de ciência (final do

séc. XIX), que o paradigma científico hegemônico até então vigente — que pregava

a existência de um mundo objetivo independente das pessoas, em que os

fenômenos da ciência deviam ser mensurados, quantificados e generalizados em

leis universais — fosse questionado. O mundo científico percebeu, então, que

existiam outras formas igualmente legítimas de fazer ciência. Nela, a diversidade e o

particular ganharam espaço e reconheceram-se as diferenças (HALL, 2001; MORIN,

2001; SOUZA SANTOS, 2001; SCHNITMAN, 1996; VAITSMAN, 1995)

A complexidade e a vastidão do campo em que se estudam os fenômenos

psicológicos e a diversidade de abordagens que se pode lançar mão para deles se

aproximar, possibilitaram descortinar-se a existência de múltiplas psicologias. Estas

se configuram como uma diversidade que abriga referenciais teóricos e abordagens

metodológicas distintas, com objetos de estudo e objetivos diferenciados que não

confluem para uma unicidade, visto que abriga não apenas formulações diferentes

entre si, mas pontos de vista inconciliáveis porque antagônicos (BOCK, 1999;

CARPIGIANI, 2000; LANE; CODO, 1984).

É importante lembrar que a diversidade que se instalou na psicologia desde

seu reconhecimento como ciência e nos 127 anos que a separam dos estudos da

psicofísica desenvolvidos por Wundt e seus contemporâneos, foi possível à

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Psicologia consolidar-se como um campo científico de conhecimentos ao mesmo

tempo em que a aplicabilidade desse conhecimento propiciou que se reconhecesse

a profissão daqueles que trabalham com a Psicologia.

2.1.1 Antecedentes à criação dos primeiros cursos

Tomando como parâmetro os estudos de Isaías Pessotti (1988) sobre o

desenvolvimento da psicologia brasileira, pode-se considerar que houve quatro

grandes momentos de constituição e difusão das idéias psicológicas no Brasil, as

quais o autor intitula de período pré-institucional, institucional, universitário e

profissional.

Como período pré-institucional, Isaías Pessotti (1988) considera o período

que tem início no Brasil colônia até a criação dos primeiros cursos de educação

superior no país, em 1833. Nesta época, havia uma identificação da Psicologia com

a Filosofia; a produção científica que versava sobre a Psicologia era fragmentada e

oriunda de textos de diversos campos do conhecimento. Os temas abordados

situavam-se em torno de causas da loucura, do controle das emoções, da formação

da juventude, dentre outros congêneres e eram escritos por filósofos, juristas,

jornalistas ou profissionais de outras áreas do conhecimento, cujas obras eram

impressas na Europa, tendo em vista que ainda não havia imprensa no Brasil.

A esse respeito, Mitsuko Antunes (1998, p.18) revela:

Os autores são brasileiros, com exceção de alguns que, embora tenham nascido em Portugal, aqui passaram a maior parte de suas vidas. Em geral, tiveram formação jesuítica e cursaram universidades européias, particularmente a Universidade de Coimbra. A maioria desses autores exercia função religiosa – eram preponderantemente jesuítas – ou política, tendo, vários deles, ocupado importantes cargos na colônia ou na metrópole.

O segundo momento, qual seja, o institucional, inicia-se com a criação das

primeiras faculdades brasileiras, notadamente os dois cursos de Medicina (no Rio de

Janeiro e na Bahia), em 1833. Segundo Isaías Pessoti (1988, p. 21): “[...] é nessas

instituições e em escolas de magistério que se inicia a formação de um saber

psicológico brasileiro em moldes acadêmicos.” Os textos produzidos nessa época,

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sob a forma de manuais para uso didático, eram elaborados pelos docentes ou

confeccionados como trabalhos de conclusão de curso denominados “teses de

doutorado” (BUETTNER, 1990). De acordo com esta autora, os textos oriundos da

Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro ocupavam-se das ligações da Psicologia

com a Neurologia e a Psiquiatria, enquanto as teses da Bahia orientavam-se para a

pesquisa da aplicação social da Psicologia, contemplando as áreas da Criminologia,

Psicologia Forense e Higiene Mental.

Observe-se que no próprio movimento de constituição do saber considerado

como saber psicológico havia uma variedade de discursos que coexistiam

simultaneamente e configuravam diferentes identidades, disputadas pelos poderes

oriundos de campos disciplinares distintos, produzidos em diferentes regiões

demográficas, embora abrigados em Cursos de Medicina.

Como este período tem uma duração aproximada de cem anos, nele ocorreu

uma série de acontecimentos que consolidaram a psicologia como uma prática

profissional no interior de três campos distintos: a medicina, que caracterizava a

clínica psicológica; a educação; e as instituições de trabalho.

Com relação à medicina, de acordo com Mitsuko Antunes (1997), além das

teses acima referidas, há a criação do Laboratório de Psicologia no Hospital

Nacional de Alienados, a criação da Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro,

ambos no Rio de Janeiro; o reconhecimento da Psicologia como ciência afim da

Psiquiatria pela Liga Brasileira de Higiene Mental; a realização de Jornadas

Brasileiras e Seminários Brasileiros de Psicologia; a edição de revistas; a criação de

gabinetes de Psicologia junto a clínicas psiquiátricas; além da formação de grupos

de estudos em Psicologia Aplicada, compostos por médicos, educadores e

engenheiros, dentre outras iniciativas não relacionadas. Projetos semelhantes não

se restringiram apenas ao Rio de Janeiro, mas estenderam-se a outros estados

brasileiros.

Mitsuko Antunes (1997, p. 35), ao analisar o contexto da produção dessas

idéias psicológicas no Brasil do séc. XIX, assegura que estas buscavam

[...] respostas às necessidades que se diversificaram e se impunham pelos novos tempos. As transformações econômicas, com suas conseqüências para o incremento do processo de urbanização, acabaram por trazer à tona novos problemas ou a explicitação de problemas antigos, os quais o país não se encontrava preparado para resolver. Nesse contexto, a Medicina e a Educação foram chamadas a contribuir para a solução de problemas,

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incluindo-se aí a preocupação com os fenômenos psicológicos em várias de suas dimensões.

Em outra direção desenvolveram-se ações que também se revelaram de

cunho psicológico, no que diz respeito à associação da Psicologia com a Educação.

A primeira delas reporta-se à introdução das disciplinas psicológicas nos currículos

das Escolas Normais, por força da Reforma Benjamim Constant, em 1890. Existem

referências à introdução dos ensinamentos da Psicologia (Psicologia e Lógica) nos

cursos anexos à Faculdade de Direito e à criação da disciplina “Noções de

Antropologia, Psicologia e Lógica” na 6ª série dos ginásios do estado de São Paulo

(BUETTNER, 1990). No Rio de Janeiro, foi criado o Laboratório de Psicologia

Pedagógica no Pedagogium14. Existe ainda registro de outras medidas, referentes à

criação de Laboratórios Experimentais e Centro de Desenvolvimento de Testes e

Medidas Psicológicas no interior de São Paulo, da Escola de Aperfeiçoamento

Pedagógico de Belo Horizonte, em Minas Gerais, e outras iniciativas no Ceará e em

Pernambuco.

As Escolas Normais constituíram-se, de fato, o lócus onde foram gestadas

idéias e preparados os profissionais capacitados para trabalhar na área da

psicologia, inclusive com a publicação de compêndios15 e livros que disseminaram

essas influências em várias cidades brasileiras.

Sob a ótica de Mitsuko Antunes (1998), a associação do pensamento

psicológico com os empreendimentos educacionais representa o foco do

desenvolvimento das idéias psicológicas no Brasil. Segundo a autora, a educação foi:

[...] a principal base sobre a qual a psicologia emergiu da condição de ciência, tendo sido por seu intermédio quando, em grande parte, os conhecimentos produzidos na Europa e nos Estados Unidos chegaram ao Brasil e, por suas características, foi no seu interior que mais claramente a psicologia revelou-se na sua autonomia teórica e pratica. (ANTUNES, 1998, p. 89).

No campo do trabalho, é possível identificar, no dizer de Mitsuko Antunes

(1997), que as primeiras iniciativas foram localizadas no Liceu de Artes e Ofício de

14 Segundo Glória Buettner (1990) o Pedagogium era uma espécie de academia e museu pedagógico

com uma produção voltada para as aplicações psicológicas na educação sem o compromisso com a prática médica.

15 Material produzido para subsidiar o ensino de determinada matéria.

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São Paulo, nos idos de 1920, e no Instituto de Organização Racional do Trabalho

(IDORT), quando da utilização dos primeiros testes psicológicos no Brasil.

O terceiro momento marcante do desenvolvimento da Psicologia no Brasil, de

acordo com a classificação de Isaías Pessotti (1988) intitula-se “período

universitário” e teve início por volta de 1930, quando foram criadas universidades

brasileiras, dentre elas a Universidade de São Paulo (USP).

Carmem Taverna (1997, p. 12) refere-se a esse período dizendo:

Com o desenvolvimento da indústria e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, a partir de 1930, uma nova etapa na vida nacional é marcada. Um novo estilo de governo foi inaugurado, caracterizado pelo nascimento do populismo no Brasil, identificado por buscar a mobilização controlada das massas em proveito das classes dominantes. O nacionalismo, maior expressão dessa ideologia, constituiu-se por meio de partidos políticos, tecnocratas e militares engajados no projeto desenvolvimentista.

Em 1930, foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública. Com base em

uma reforma empreendida no sistema de ensino, foi criado o Conselho Nacional de

Educação, organizado o ensino superior e adotado o regime universitário. Foram

criadas cátedras de Psicologia equivalentes àquelas já consolidadas nas áreas da

Medicina e do Direito, permitindo à Psicologia um desenvolvimento desvinculado da

utilização médica e da aplicação escolar, já tomando lugar como ciência autônoma

(PESSOTTI, 1988; TAVERNA, 1997).

De acordo com Glória Buettner (1990), esse padrão federal possibilitou que,

em 1945, na USP, os cursos da disciplina Psicologia se tornassem obrigatórios nos

quatro anos do curso de Filosofia e nas várias licenciaturas. A formação de

psicólogos, como uma formação de nível superior, entretanto, continuava sendo

realizada em cursos como o de Medicina, Pedagogia, Filosofia e Ciências Sociais.

Havia, portanto, profissionais que exerciam funções próprias da psicologia e

como a profissão ainda não havia sido reconhecida, sua formação se dava em

contextos acadêmicos diferentes, o que proporcionava identificações diversificadas

com a profissão, sugerindo a existência de múltiplas identidades, considerando-se

identidade como discurso, como propõe Stuart Hall (2000 e 2001), conforme

abordado no capítulo anterior.

Esse momento, como se pode perceber, reafirma uma multiplicidade de

possibilidades para a apropriação do saber que a psicologia oferece, ao mesmo

tempo em que reproduz a cisão do saber da filosofia com aquele saber da ciência,

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porquanto a formação dos profissionais poderia ser realizada tanto na área da

medicina quando das ciências humanas. E isso reafirma também a separação entre

formação e atuação, teoria e prática.

Reporta-se a esse período o movimento de organização dos “psicólogos”,

reunindo profissionais que trabalhavam com a Psicologia e que se consorciaram

para a criação da Sociedade de Psicologia de São Paulo, em 1945. Esta Sociedade,

de acordo com a publicação do Conselho Regional de Psicologia – 6ª. Região (CRP,

1994) Uma Profissão Chamada Psicologia, editou uma revista — Boletim de

Psicologia —, promoveu debates, reuniões científicas, cursos de extensão,

seminários e participou da organização de congressos tanto no Brasil como no

exterior. A atuação desta sociedade proporcionou que outros estados se

mobilizassem para fundar associações com finalidade similar e, em 1954, foi criada

a Associação Brasileira de Psicólogos (ABP), que passou a representar o Brasil

junto à Internacional Union of Scientific Psychology (CRP, 1994).

Informa Glória Buettner (1990) que, em 1953, ocorreram dois eventos

significativos para a Psicologia, quais sejam: a Associação Brasileira de Psicotécnica

do Rio de Janeiro encaminhou ao Ministro da Educação um memorial que versava

sobre a regulamentação da profissão de psicólogo e sobre a formação regular no

ensino superior; em São Paulo, foi proposta à congregação da Faculdade de

Filosofia Ciências e Letras da USP a criação de um curso de Psicologia. Este curso

foi aprovado em 1957 e começou a funcionar em 1958, mesmo ano em que um

projeto de lei sobre a criação dos cursos e regulamentação da profissão era

discutido na Câmara de Deputados, mas não foi aprovado.

Cristiane Esch e Ana Maria Jacó-Vilela (2001) relatam, ainda, os embates

travados entre alguns projetos elaborados pela Associação Brasileira de Psicologia e

o Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP) com a Comissão de

Educação e Cultura e a Comissão de Ensino Superior, notadamente no que

concerne à regulamentação do exercício da Psicologia Clínica. Esta, que até hoje é

socialmente considerada o exercício mais nobre da Psicologia, aquela que confere

ao psicólogo e à psicóloga o status de profissionais liberais, era exercida por

médicos, o que significa dizer que a psicologia era equiparada à medicina e permitia

aos profissionais identificações com o exercício da cura e da restauração da saúde

mental daqueles que procuravam os consultórios de psicologia. Esse fato colocou a

profissão na fronteira entre o cuidar e o curar, provocando embates entre os

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profissionais da saúde, como discute Elizete Passos (1997). Além do mais,

profissionais liberais são considerados aqueles que exercem seu mister de uma

forma independente, em seu espaço profissional privado e personalizado, sem

quaisquer vínculos empregatícios com instituições públicas ou privadas.

Como os novos cursos em vias de aprovação conferiam aos psicólogos

egressos as prerrogativas para o exercício da clínica psicológica, retirava-se do

âmbito da medicina a exclusividade na realização desse tipo de atendimento, o que

provocou muita polêmica. Esta disputa remetia à hierarquia social das profissões,

em que a medicina ocupava lugar de destaque entre as de maior prestígio e

reconhecimento social. Naturalmente, esses profissionais não estavam dispostos a

abrir mão dos privilégios que este lugar lhes conferia.

Os pleitos acima, associados à pressão realizada pelas entidades

representativas dos psicólogos e da Psicologia junto à classe política, concorreram

para a regulamentação da profissão e a criação dos Cursos de Psicologia, em 1962.

Como fruto de uma trajetória irregular, composta pela permanente disputa de

distintos campos do saber, com uma prática disseminada por diferentes espaços

sociais e formada por profissionais oriundos de formações diversas, portadores,

cada qual, de seu discurso particular, é regulamentada a profissão de psicólogo. São

definidos os parâmetros para sua formação, em princípio, como um profissional

generalista, que pudesse atuar em quaisquer instâncias já definidas como campos

de atuação propícios para psicólogos e psicólogas, conforme já discutido.

Como diz Carmem Taverna (1997, p. 16): “[...] consolida-se a atuação

profissional já estabelecida nas modalidades educacional, clínica e aplicada ao

trabalho, assim como amplia-se e também consolida-se o ensino da psicologia nos

cursos superiores.” Este fato marca, segundo Isaías Pessotti (1988), o início do

Período profissional da Psicologia.

2.2 UM CURRÍCULO PARA A PSICOLOGIA

A Lei n. 4.119, de 27/08/1962, que regulamentou a profissão do psicólogo, e a

Resolução de 19/12/1962, conjuntamente com o Parecer 403/62 do CFE (2006),

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instituiu o Currículo Mínimo16 para os Cursos de Psicologia apresentava algumas

peculiaridades, pois havia uma proposta para dois níveis de formação e a criação de

três cursos: o bacharelado, a licenciatura e a formação de psicólogo. Além disso, a

escolha do elenco das matérias tentava privilegiar conteúdos que, de alguma forma,

pudessem subsidiar as três áreas consolidadas da Psicologia, referidas

anteriormente (Clínica, Educação e Trabalho), na perspectiva da formação de um

profissional generalista.

O bacharelado consistia em um “núcleo comum” com matérias de caráter mais

geral, obrigatório para a profissionalização de todos os alunos. Agregado a esse

núcleo comum podia configurar-se a formação em licenciatura, desde que fossem

cumpridas as matérias pedagógicas obrigatórias para este fim, fixadas no Parecer

292/62 do Conselho Federal de Educação. À formação de psicólogo, além do núcleo

comum, era exigido um outro Currículo Mínimo, com a obrigatoriedade de um estágio

supervisionado, duas matérias comuns além de mais três outras a serem escolhidas,

dentre uma oferta de sete, selecionadas pela instituição promotora do curso.

Assim sendo, estabelecido pelo Parecer 403/92 (CFE, 2006), do Conselho

Federal de Educação, cujo relator foi o Prof. Valnir Chagas, o Currículo Mínimo para

os cursos de Psicologia, que vigorou a partir de 1963, orientava que ao Bacharelado

compreendiam sete matérias: Fisiologia, Estatística, Psicologia Geral e

Experimental, Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia da Personalidade,

Psicologia Social e Psicopatologia Geral. À Licenciatura acresciam-se, além

daquelas designadas para o bacharelado, as matérias pedagógicas. Para a

obtenção do diploma de Psicólogo, eram exigidas, além das citadas anteriormente e

pertencentes ao bacharelado, as matérias Técnicas de Exame e Aconselhamento

Psicológico, Ética Profissional e mais três matérias dentre as seguintes: Psicologia

do Excepcional, Dinâmica de Grupo e Relações Humanas, Pedagogia Terapêutica,

Psicologia do Escolar e Problemas de Aprendizagem, Teorias e Técnicas

Psicoterápicas, Seleção e Orientação Profissional e Psicologia da Indústria. Além

disso, era exigido um Estágio Supervisionado com 500 horas. A duração do Curso

era de quatro anos para Bacharelado e Licenciatura e cinco para a formação de

16 Considera-se Currículo Mínimo um elenco de matérias determinadas pelo MEC, as quais todos os

cursos superiores do país deveriam seguir. Significa o mínimo de matérias obrigatórias para o funcionamento de determinado curso. A elas subordinadas, foram criadas as disciplinas de cada curso.

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psicólogo, estando incluído o estágio. O Parecer não prevê as ementas, os

conteúdos e nem a carga horária de cada uma dessas matérias (CFE, 2006).

Os Cursos de Psicologia tiveram, portanto, um tratamento diferenciado por

parte do MEC. Diferentemente de outras formações profissionais da área das

Ciências Humanas17, foi instituído mais um ano para a formação desse profissional,

cujas matérias exibem o peso da intervenção, porquanto voltadas para o campo de

atuação, o que evidencia, mais uma vez, a separação entre teoria e prática.

Observando-se o elenco de disciplinas proposto, percebe-se uma clara opção

por uma formação técnica, supervalorizando o conhecimento psicológico em si, em

detrimento da interlocução com outras áreas do conhecimento. A ausência da

Filosofia e da Sociologia é percebida e compreendida pela ênfase no viés científico

da Psicologia, como ciência recentemente reconhecida.

Na prática, embora a proposta do Currículo Mínimo pretendesse formar um

profissional generalista, que pudesse atuar nas diversas áreas já configuradas para

a psicologia (a escola, o campo das organizações de trabalho e a clínica), não havia

uma produção intelectual consistente na área, visto que se consolidara por meio do

fazer. O status de profissão liberal que a lei assegurava contribuiu sobremaneira

para uma ênfase na formação clínica. Esta, da forma como foi difundida,

caracterizava-se pelo atendimento psicoterapêutico realizado em consultórios

particulares, numa perspectiva resolutiva e de ajustamento para indivíduos com

problemas.

As identidades que estes cursos conferiam podem ser identificadas como

aquelas do psicólogo tradicional, conforme referido em capítulo precedente. Além do

mais, oferecia todas as condições para ser exercido por mulheres, como profissão

feminina, ou seja, uma profissão de ajuda, para acolher e cuidar do sofrimento do

outro, para ser exercitada no ambiente privado do consultório e que permite uma

flexibilidade de horário tal que tornava possível a conciliação dos afazeres

domésticos com os compromissos profissionais.

A década de 60 do séc. XX assistiu à edição da primeira Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961, e,

posteriormente, a Lei n.º 5.540, de 28 de novembro de 1968, que tratava

especificamente do Ensino Superior. Esta, que ficou conhecida como a lei da

17 Pedagogia, Sociologia, História, Letras e as Licenciaturas, cursos com quatro anos de duração.

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“Reforma Universitária”, instituiu, dentre outras inovações, o vestibular unificado, o

ciclo básico, a matrícula por crédito, a criação de órgãos colegiados e a organização

em departamentos. Propunha a concentração em sistemas comuns disponibilizados

para todos, o que teve repercussões na própria formação acadêmica dos alunos de

todas as áreas, porquanto fragmentava cada vez mais o ensino, como fruto não

apenas de um ideário tecnicista, mas também fortemente marcado pelo momento

político nacional.

Nas sociedades ocidentais, a segunda metade do séc. XX, em especial a

década de 60 é particularmente fértil em acontecimentos que vão provocar

mudanças significativas nos modos de perceber, sentir e viver as sociedades. O

movimento da contracultura, enquanto movimento pacifista de cunho político,

caracterizado por uma espécie de desobediência civil, colocava em dúvida valores

centrais vigentes e instituídos da cultura ocidental e visava desmistificar as

contradições tanto do capitalismo quanto do socialismo da época.

O início dos anos 1960, no Brasil, foi efervescente no que se refere ao debate

político, ideológico e cultural. Intelectuais e políticos de diversos matizes, sejam

conservadores, liberais, nacionalistas, socialistas e comunistas, expunham seus

projetos e podiam defender suas idéias. Havia, porém, um movimento conservador

que pretendia elevar o país à categoria de moderno e desenvolvido, estabelecendo

parcerias externas de subalternidade e mantendo determinadas posições de

privilégio, ao qual as forças consideradas progressistas impunham-se como

empecilho. Os embates daí advindos, num contexto complexo, em que essas forças

se confrontavam historicamente, foram o pano de fundo para o golpe militar de 1964.

Mitsuko Antunes (1997, p. 45) analisa esse período dizendo:

Era, pois, uma nova sociedade que se queria construir, calcada no ideário liberal, sendo necessário para esse empreendimento a construção de um “homem novo”; é nesse contexto que novos conhecimentos e práticas se faziam necessárias, tendo sido a Educação um de seus principais instrumentos e a Psicologia uma das principais ciências de base para essa realização.

Argumenta esta autora que a ideologia da modernização, que regia os

princípios políticos e econômicos para o país, incentivava as iniciativas tecnocratas

que pudessem promover o desenvolvimento, a eficiência e a produtividade, num

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clima em que as medidas de exceção legitimavam uma política repressiva de cunho

ditatorial.

Observa-se, portanto, que a psicologia como uma profissão torna-se

reconhecida no Brasil e os primeiros cursos superiores são autorizados a funcionar

em um momento político em que forças conservadoras assumiram o comando do

país e da educação, impingindo uma concepção tecnicista ao processo ensino-

aprendizagem. É admitido, por princípio, que a educação é um processo apolítico,

para o qual não são necessárias muitas reflexões, impingindo um maior peso ao

fazer em detrimento do pensar. A respeito do ensino superior no Brasil e à reforma

Universitária de 68, Carmem Taverna (1997, p. 22) argumenta:

O ajuste da universidade ao padrão de desenvolvimento econômico, na perspectiva técnico-administrativa, na qual a eficiência e a produtividade eram sinônimos de modernização, obturou o esquema de dominação política que acabou por produzir a real perda da autonomia da universidade. Mais uma vez, na história da educação brasileira, as tradições conservadoras ganham o controle e o poder.

A reforma Universitária empreendida, de fato, reafirmou o caráter

fragmentado dos currículos, assim como compartimentalizou a Universidade, criando

espaços de especialização estanques, que não mantinham interlocuções com áreas

afins, centralizou em uma elite dirigente as decisões sobre organização acadêmica e

criou, dessa forma, barreiras de acesso ao conhecimento e seus desdobramentos

político-sociais.

Houve incentivo à criação de cursos universitários na esfera privada. Estes,

sem contar com quadros docentes adequadamente preparados e sem a tradição da

pesquisa científica, centralizaram sua formação na aplicação técnica do

conhecimento, contribuindo para reforçar a separação entre o saber e o fazer; os

movimentos sociais progressistas arrefeceram; os posicionamentos políticos

contrários à maioria dirigente foram proibidos e reprimidos; supervalorizou-se o

saber técnico. Essas iniciativas, nefastas a um regime político democrático e que se

contrapõem a um espírito universitário concebido como a universalidade das idéias,

por certo tiveram interferências na formação de gerações de profissionais, dentre

eles, os psicólogos e as psicólogas.

É nessa direção que a psicologia era ensinada e aprendida, como um saber

independente que atribui ao homem e a sua história pessoal a responsabilidade por

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seu “destino”, desconsiderando sua constituição social. Assim sendo, numa

perspectiva individualizante, caracterizava-se por uma prática profissional técnica e

sócio-politicamente neutra.

A marca identificatória da profissão era o exercício clínico, privado e realizado

em consultórios particulares. Esse modelo hegemônico para a profissão, inclusive,

contaminava as demais áreas de atuação em maior ou menor escala, que tentavam

reproduzir este padrão de atendimento, conforme discutem Rosemary Achcar e

Antonio Bastos (1994). Nesse período, já se verificava a predominância de mulheres

nesse exercício profissional (ROSEMBERG, 1984).

2.2.1 Sobre algumas concepções de currículo

A concepção de currículo que orientou a implantação dos primeiros cursos de

Psicologia, tal como se descreve, inclui-se naquele tipo que se chama de tradicional

tecnicista. Pode-se considerar o currículo, nessa perspectiva, como uma forma de

expressão do pensamento científico moderno aplicado à área da educação. Nele, há

um conjunto de diretrizes, definidas e fixadas a priori, que resultam em conteúdos

determinados e previamente selecionados e seqüências rígidas de atividades, às

quais os professores e os estudantes devem ser submetidos. Esta disposição

demonstra que está vinculado aos ideais da utilização do método experimental que

compartimentaliza o saber e o separa em pequenas porções para melhor ser

compreendido e assimilado (SILVA, 1999).

Além disso exibe a lógica taylorista18 de organização administrativa regida

pelos princípios da fragmentação que se impõe sobre o ambiente organizacional,

com a divisão estanque de tarefas e fragmentação de conteúdos que não se

conectam entre si. Obedece a uma epistemologia, na qual a relação do

conhecimento se dá pela ação do outro sobre o sujeito. Numa perspectiva idealista,

considera-se que o “sujeito” possui um conhecimento em sua própria essência e que

este precisa ser-lhe revelado ou, no viés empirista, supõe-se que inexiste no sujeito

18 Taylorista como aplicação dos conceitos da Administração Científica como preconizada por

Frederick Taylor em seu livro Primer of scientific management. New York: D. Van Nostrand, 1920.

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qualquer conhecimento e este será impresso em sua vida pela ação externa daquele

que detém o conhecimento e tem a função de transmiti-lo.

Tomaz Silva (1999) esclarece que Franklin Bobbit, autor do livro The

curriculum19, publicado em 1918, propunha que as escolas funcionassem como as

empresas comerciais e industriais, especificando prévia e precisamente os

resultados desejados e estabelecendo formas de controle e mensuração para se

assegurar do atingimento desses resultados. O currículo, nessa perspectiva,

configurava-se como uma questão de organização. Este modelo de currículo, no

dizer de Tomaz Silva (1999), seria consolidado definitivamente com a publicação do

livro de Ralph Tyler20, em 1949, no qual os estudos sobre currículo centravam-se em

torno das idéias de organização e desenvolvimento, mantendo a ênfase na questão

técnica.

A esse respeito, Roberto Macedo (2002, p.69, grifos do autor) assim se

manifesta:

A questão, faz-se mister alertar não está no ato de planejar enquanto necessidade de organizar ações educativas, a organização é vital; tão pouco no desconhecimento do sujeito que se constitui também num itinerário. O problema central está na política de redução da ação do currículo em níveis apenas do traçado e do culto a um seguir solipsista.

É verdade que, embora a visão técnica tenha se tornado cada vez mais

hegemônica, na época, educadores outros como John Dewey, em 1902, defendiam

uma concepção de currículo diferente. Segundo Tomaz Silva (1999, p. 23), ele

considerava que “[...] a educação não era tanto uma preparação para a vida

ocupacional adulta, como um local de vivência e prática direta de princípios

democráticos”. Nesse entendimento, está implícita, na construção curricular, a

valorização das experiências e dos interesses dos educandos.

A despeito de John Dewey, em 1902, ou seja, muito antes de Bobbit, ter

publicado seu livro The Child and the curriculum com orientação divergente da citada

anteriormente, a concepção mecanicista conseguiu maior adesão e visibilidade

naquele momento, nos estudos sobre a educação.

19 “Livro considerado o marco no estabelecimento do currículo como um campo especializado de

estudos” (SILVA, 1999, p. 22). 20 O livro, na versão original americana, foi publicado com o título Basic Principles of Curriculum and

Instruction. No Brasil, há uma tradução publicada pela Globo Editora de Porto Alegre, em 1974, sob o título Princípios Básicos de Currículo e Ensino (SILVA, 1999).

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Enquanto o trabalho de Tomaz Silva (1999) discorre sobre a influência

americana no currículo, as pesquisas de Ivor Goodson (2002) ao recuperar as

origens do currículo, reportam-se ao séc. XVI e à educação praticada na Europa,

para assegurar que a vinculação que se estabelecia entre currículo e prescrição

estava assentada nas idéias de Calvino21, quando este falava do contexto que

produz o conhecimento social e a aplicação desse conhecimento às classes e às

salas de aula. Numa associação direta, esta é a origem da relação disciplina-

currículo. “Dentro desta perspectiva percebe-se uma relação homóloga entre

currículo e disciplina: o currículo era para a prática educacional calvinista o que era a

disciplina para a prática social calvinista.” (GOODSON, 2002, p.32).

Ivor Goodson (1995) esclarece que, etimologicamente, a palavra currículo

deriva da palavra latina scurrere, que significa correr, e refere-se a curso ou carro de

corrida, enquanto Tomaz Silva (1999) faz alusão a pista de corrida, permitindo

compreender-se as implicações daí advindas, que dão ao currículo o significado de

um curso que deve ser seguido. Nessa perspectiva, fica assegurada ao currículo,

uma função prescritiva, de antever o que uma pessoa vai se tornar.

Assim sendo, as concepções tradicionais do currículo, tributárias das idéias

de Bobbit e Tyller, centraram seus interesses em categorias tais como: objetivos,

planejamento, eficiência, organização. Nessas concepções, a relação ensino

aprendizagem dá-se numa direção única, na qual o professor transmite e assegura o

conhecimento do aluno; a metodologia expressa-se nas aulas do tipo conferência ou

na atitude bancária — para usar a terminologia de Paulo Freire (1983); e os

conteúdos abrangentes e universais devem ser treinados e memorizados para

serem avaliados pelas respostas corretas, numa supervalorização do certo e do

errado.

Uma breve análise desses pressupostos, à luz de formulações teóricas que

questionam o pensamento científico moderno, revela uma concepção de homem

como ser abstrato, a-histórico, a-temporal, com os desígnios de sua vida

previamente entregues ao comando de outrem. A escola, ao separar os conteúdos e

submetê-los a uma seriação de complexidade crescente, instituindo as disciplinas e

ordenando-as em uma grade curricular, privilegia uma relação de aprendizagem em

que o professor ensina, transmite seu saber, ou seja, transfere o saber para o outro.

21 John Calvin (1509-1564), um dos principais reformadores protestantes do século XVI (GOODSON,

1995).

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Além de atender a um modelo de instituição moderna, trata o ser humano como

incapaz, submetido a possibilidades pessoais e intelectuais ditadas de fora dele.

Alfredo Veiga Neto (1996) assegura que a instituição do currículo não atendia

apenas às necessidades organizacionais de uma educação escolarizada, mas ia

muito além, para ser produzido e produzir uma forma de pensar caracterizada como

própria da modernidade, envolvendo vários aspectos da realidade como o

econômico, o social, o cultural, o geográfico, o político, o religioso, dentre outros.

No caso dos currículos de Psicologia, aderindo ao pensamento de Veiga-Neto

(1996), as questões dos seres humanos são pensadas mediante uma lógica simples,

no entendimento moriniano do termo, que significa fragmentada,

compartimentalizada, em uma relação linear de causa e efeito que não reconhece a

multiplicidade de fatores que constituem os fenômenos humanos e não problematiza

a constituição social dos fenômenos psicológicos, entendendo-os com base na

história pessoal de cada um, responsabilizando-os por eles. Configura, pois, uma

visão reducionista para a diversidade e complexidade da psicologia.

Esta concepção, tributária do ideário moderno de cunho positivista ou idealista

de homem e de sociedade, apoiava os profissionais da psicologia em seus

posicionamentos profissionais da clínica psicológica, porquanto partilhavam da idéia

de que, sendo o ser humano dotado de uma natureza humana, esta tornava-o um

sujeito autônomo e responsável por si. Cabia, pois, ao psicólogo clínico, reconduzi-lo

ao estado “natural”, que a natureza humana já havia predeterminado ao nascer, de

acordo com o exposto por Stuart Hall (2001), quando se refere às concepções de

identidade, conforme abordado no capítulo precedente.

No final da década de 1970 e nos anos 1980 houve, entretanto, um

movimento social e político que aos poucos provocou um retorno gradual do país ao

regime democrático. A isso não se pode atribuir uma causa única ou assentar em

decisões individuais. A abertura política concretizava-se na sociedade por meio de

uma multiplicidade de acontecimentos que se sucediam nas esferas social, política,

cultural e econômica. Manifestava-se de diversas formas, como no movimento das

“Diretas Já”; no retorno ao país das pessoas cassadas pelo regime militar, que

estavam exiladas em diversos lugares do mundo; no aparecimento de novas

temáticas abordadas pelo cinema e pelo teatro; no declínio do chamado “milagre

brasileiro” na esfera econômica; no surgimento do sindicalismo autônomo no ABC

paulista; nas reflexões sobre a condição social das mulheres, dentre muitos outros.

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Aos poucos, saindo de um período de passividade, a sociedade foi pontuando

insatisfações e desejos, para os quais foi possível instalar novas lógicas nas leituras

da realidade social e cotidiana, em função, inclusive, da suspensão da censura, que

proporcionou o acesso a outras formas de conhecimento e a autores críticos da

realidade. Reportam-se também a este período a introdução dos estudos de Gênero,

no Brasil, conforme referido no capítulo precedente.

O trabalho de Paulo Freire que se iniciou na década de 40 do século XX e foi

interrompido em 1964, quando foi preso e exilado, representou um marco importante

e decisivo nas teorizações sobre educação e currículo com repercussão não apenas

no Brasil mais com reconhecimento fora do país, embora não fosse sua pretensão

ser teórico desta área. Em 1967, mesmo no exílio, publicou no Brasil o seu primeiro

livro Educação como prática de liberdade e posteriormente escreveu a Pedagogia do

Oprimido que só foi publicado no Brasil em 1974 embora já houvesse sido publicado

em outros idiomas. Esse trabalho reveste-se de uma importância tal que influenciou

a produção e as práticas educacionais subseqüentes. Assegura Freire que existem

dois tipos de pedagogia, a primeira, a pedagogia dos dominantes, constitui-se numa

prática educativa de dominação; a outra, a pedagogia do oprimido, precisa ser

incentivada e realizada, a fim de que a educação possa efetivar-se como prática da

liberdade. Trata-se de um trabalho de conscientização e politização, sendo uma

pedagogia construída com os sujeitos e não aplicada neles, a fim de que a

consciência crítica da opressão possibilite a luta pela transformação da realidade.

Um estudo realizado por Demerval Saviani (1987) sobre a marginalização de

crianças relativamente à escolarização (falta de acesso ou abandono), no qual

analisa diversas teorias sobre educação e defende que existem duas formas de

entender as relações educação-sociedade, agrupando-as em dois pontos de vista

distintos. O primeiro considera essas duas instâncias independentes, atribuindo à

escola uma função de equalizadora de questões sociais, delegando-lhe, poderes

para construir uma sociedade igualitária, evitando fatores desagregadores. No

segundo, advoga que existe uma interdependência entre educação e sociedade,

esta dividida em classes antagônicas que se enfrentam em um campo de forças

onde se produz a vida material. A educação, portanto, reproduz as condições

materiais da vida social. Num contraponto a essas posições, propõe uma teoria

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crítica da educação, cuja função seria garantir condições de acesso e um ensino de

qualidade para todas as camadas da população brasileira.

Essa proposição reflete um movimento de reação, entre muitos educadores22,

do qual Saviani é apenas um deles, à visão tecnicista que impregnava todo o

sistema educacional brasileiro. Questionamentos ao modo tecnicista de conceber o

currículo dão lugar a problematizações a respeito dos pressupostos que regem a

ação educativa. A educação deixa de ser analisada como uma questão meramente

organizacional e passa a ser entendida como uma instituição que faz parte do

aparato das classes sociais dominantes, sendo utilizada para disseminar seus

interesses e objetivos. É, portanto, ideológica, considerada um efetivo instrumento

de controle social. Possui uma dimensão cultural que instrumentaliza as pessoas

para a vida social, mas esconde a dimensão política, por meio da qual os grupos ou

classes que a controlam dirigem suas práticas e seus efeitos no rumo desejado. Em

outras palavras, embora aparente ser uma ação neutra de transmissão de

conteúdos, a educação, ao priorizar determinados conteúdos, eleger determinadas

metodologias e definir formas para a relação ensino-aprendizagem, reproduz e faz

circular valores, normas e símbolos orientados à consecução de objetivos sociais

nem sempre declarados (SAVIANI, 1987).

Entram em cena as leituras marxistas da realidade e os conceitos subjacentes

como ideologia, classe social, relações sociais de produção, capitalismo, dentre

outros, numa clara adesão dos educadores brasileiros às formulações da Teoria

Crítica da Escola de Frankfurt.

Os posicionamentos dos brasileiros são, na verdade, fruto de reflexões sobre

as questões da Educação brasileira, porém refletem o que estava sendo discutido

nos meios educacionais da Europa e dos Estados Unidos. Tiveram um papel

decisivo nessa nova abordagem do processo educativo, alguns movimentos que

aconteceram quase simultaneamente em diferentes centros culturais, como o

“movimento de reconceptualização”, nos meios educacionais americanos, as

análises de Althusser, Bourdieu e Passeron e também as de Boudelot e Establet,

nas formulações da Sociologia francesa, as contribuições do inglês Michael Young

na Sociologia da Educação que se estudava na Inglaterra e a Pedagogia de Paulo

Freire no Brasil (SILVA, 1999).

22 Entre eles, Jamil Cury, Neidson Rodrigues, Moacir Gadotti, Bárbara Freitag, dentre outros.

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98

No movimento acima descrito, há uma franca oposição ao modelo de

currículo tradicional, tecnicista, e provocou uma reviravolta no entendimento do

fenômeno educativo, que deixou de ser considerado uma questão organizacional e

passou a ser visto como uma questão política. Evidencia-se a interdependência da

educação com a sociedade, desmistificando-se a idéia de que a educação é uma

ação neutra e universal.

As teorias que se abrigam sob o rótulo amplo de “Teorias Críticas” inspirados

numa crítica a teoria marxista dos fenômenos educativos, numa adesão aos

princípios da Escola de Frankfurt, exibem um esforço de apropriação da Teoria

Social Crítica à área da educação.

Bruno Pucci (2003, p. 55) esclarece:

A Teoria Crítica não se propõe a desenvolver uma teoria educacional específica. Pretende sim, a partir de suas análises sobre os problemas sociais do mundo ocidental, especificamente dos problemas culturais, trazer luzes e enfoques novos à concepção dialética da educação que vem sendo construída, por muitas mãos e mentes, a partir de Marx.

Assim, a análise dos processos educativos, sob o crivo de uma crítica

marxista ao modelo capitalista de sociedade, visava analisar o momento histórico e

descortinar possibilidades de transformação, tanto da educação quanto da

sociedade, haja vista que a escola tradicional, enquanto instituição de natureza

ideológica e instrumental para reprodução dos interesses da classe dominante,

funcionava como um reforço aos interesses da preservação da sociedade

burguesa.

O legado deixado por esses estudiosos da educação, em especial os

trabalhos de Michael Apple (1989, 1982) e Henri Giroux (1986), dentre outros, foram

extremamente importantes porque instituíram, no seio do debate educativo,

categorias outras que passaram a povoar o universo teórico e influenciar a prática da

educação, tais como ideologia, capitalismo, emancipação, manipulação, reprodução

cultural, currículo oculto dentre outros.

2.2.2 Currículo oculto

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99

Como se discute ao longo deste capítulo, os desdobramentos teóricos da

teoria marxista foram o pano de fundo para que diversos educadores

desenvolvessem suas teorizações com o propósito de desmistificar os

posicionamentos despolitizados do enfoque tecnicista do paradigma tradicional do

currículo. Há, nestas formulações, uma clara intenção de analisar e expor as

relações que existem entre a educação e a sociedade, especificamente no que diz

respeito à produção/reprodução da sociedade capitalista, apontando a escola como

espaço privilegiado de reprodução social.

Há um consenso dos educadores que compõem a Escola Crítica de que a

escola é um espaço de reprodução das desigualdades sociais, na medida em que

esforços são empreendidos para analisar e dar visibilidade à forma como isso

ocorre, mesmo porque, envolvendo as relações capitalistas, sempre contraditórias,

permite perceber que o mesmo espaço que proporciona a reprodução também

permite a resistência.

Michael Apple (1989, 1982) é um dos teóricos de peso que se debruça sobre

essa questão, tendo influenciado de forma decisiva o olhar sobre a escola, quando,

em seu livro “Ideologia e Currículo”, tornou clara a forma como a ideologia perpassa

o cotidiano escolar, por meio das ações explícitas do currículo e também daquelas

que subjazem e estão presentes na forma como se organiza o trabalho didático.

Neste são considerados os sistemas de avaliação com prêmios e castigos, a seleção

do conteúdo a ser trabalhado, o tipo de saber que se veicula, os textos

selecionados, os discursos, dentre outras estratégias. Em suas formulações, o autor

trouxe à baila a noção de Currículo Oculto.

Henry Giroux (1986, p.70) corrobora com as teses de Apple (1989, 1982) e

afirma que as escolas, ao funcionarem como uma instância mediadora entre a

sociedade e a consciência do indivíduo, processam “[...] não apenas o conhecimento

mais também as pessoas.” O autor ressalta a força do currículo oculto, descrevendo-

o como “[...] as normas, valores e crenças imbricadas e transmitidas aos alunos

através de regras subjacentes que estruturam as rotinas e relações sociais na escola

e na vida da sala de aula.” (GIROUX, 1986, p. 71).

Reportando-nos ao Currículo Mínimo proposto para os Cursos de Psicologia,

conforme analisou-se anteriormente, reconhece-se o peso instrumental que este

currículo propunha e verifica-se que isto resultava numa desvinculação do

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profissional com seu contexto, assim como com aqueles aos quais prestava

serviços. Falando do Currículo Oculto, os valores que perpassavam a formação

colocavam os profissionais no modelo clínico de atendimento a pessoas com

problemas, supervalorizando o atendimento clínico, privado, dual, reparador. Era a

visão tradicional da Psicologia, em que os alunos eram instrumentalizados apenas

para esse mister, conforme discute-se ao longo deste trabalho. Era uma perspectiva

de reprodução de um modelo de forma a-crítica, em que a produção de novos

conhecimentos era minimizada, sendo isso comprovado pela inexistência de

atividades de pesquisa, que não eram estimuladas.

O currículo oculto demonstra a ideologia da escola, ou seja, de forma

silenciosa, exibe as normas e valores que norteiam todo o trabalho escolar e a

ideologia, do ponto de vista de Michel Apple (1989), não é apenas um conjunto de

crenças, mas um conjunto de significados internalizados, oriundos das práticas

proporcionadas pelas relações sociais, que, por sua vez, constroem o pensamento

hegemônico e propicia à classe dominante perpetuar-se nessa posição superior. O

discurso ideológico cumpre, portanto, o papel de ocultar a divisão, a diferença, a

contradição, na medida em que oferece aos educandos uma visão de sociedade

homogênea, sem divisões, sem antagonismos.

O currículo oculto tem a função de transmitir essa ideologia que naturaliza os

fenômenos sociais, enquanto o papel da escola crítica é desvendar a trama que

constrói essa sociedade desigual, configurando-se como um espaço de

desenvolvimento da consciência crítica e da luta pela igualdade social.

Ao estudar as concepções de fenômenos psicológicos entre psicólogos

brasileiros, Ana Bock (1999) argumenta que as práticas psicológicas dominantes têm

um caráter ideológico de escamotear a realidade quando, desde a formação, os

psicólogos e as psicólogas aprendem a naturalizar os fenômenos psicológicos,

considerando os seres humanos como a-históricos, responsáveis por seu próprio

desenvolvimento, e a considerar sua intervenção profissional como neutra. São

estimulados a acreditar que sua prática auxilia o indivíduo a encontrar seu próprio

caminho ou as verdades que lhes são próprias e particulares, que por algum motivo

se desvirtuaram do curso natural, sem vinculação a quaisquer interesses sociais ou

disputas políticas inerentes à constituição dos seres humanos e da sociedade.

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O currículo oculto, entretanto, é um conceito controvertido para as discussões

atuais, que buscam uma análise complexa23, em detrimento de uma explicação

simplista e linear de causa e efeito, para os fenômenos psicossociais. Gestado no

seio das teorias críticas do currículo, o conceito de currículo oculto buscava entender

a ideologia dominante e desvendar as forças de opressão que compunham a escola.

Sabe-se, entretanto, que, hoje, novas teorizações sociais, dentre elas as releituras

marxistas, estão empenhadas em compreender os fenômenos sociais como

multiplamente determinados, reconhecendo tanto sua multiplicidade quanto sua

diversidade, ultrapassando a idéia de que a sociedade é regida apenas pela luta de

classes. Essa perspectiva singulariza os fenômenos, reconhecendo a existência de

sujeitos múltiplos e plurais.

Neste trabalho, particularmente, tem-se interesse de discutir a noção de

Currículo Oculto, por compreendê-lo como construtor de subjetividade e de

identidades, visto que formata atitudes e valores dos sujeitos da aprendizagem; e

isto está afinado com os propósitos desta tese de doutoramento. Para além de

desvendar ideologias, o currículo oculto também pode encobrir/revelar as dimensões

claras/obscuras de classe social, raça, gênero, etnia, religiosidade, geração, enfim,

dimensões outras que configuram as identificações/diferenciações que compõem os

seres humanos, os grupos, as instituições, as comunidades, as nações, forjando

identidades.

Roberto Macedo (2002, p. 35) afirma a força do currículo oculto quando diz:

“[...] precisamente nos âmbitos da formação não vista, não dita, que o currículo vai

se revelar mais potente na constituição das ordens sociais.” O autor advoga a

necessidade de se criar aparatos críticos “[...] capazes de desconstruir as grandes e

sutis reificações que o currículo traz embutido no modo que cultiva a concepção, a

organização, a implementação e a institucionalização de avaliação dos saberes e

competências.” (MACEDO, 2002, p. 35).

Como a questão de interesse nesta tese é entender como os alunos

constroem identidades profissionais na vivência curricular da formação de uma

profissão feminina, o currículo oculto apresenta-se como relevante, posto que está

presente nos discursos como prática, como propõe Michel Foucault (2001), e 23 Análise complexa no sentido que Edgar Morin (2001) atribui ao termo complexo, ou seja, de que é

possível entender os fenômenos humanos a partir dos diferentes elementos que o constituem, considerando-os como inseparáveis e interdependentes. Morin (2001) entende que a complexidade representa a união entre a unidade e a multiplicidade.

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possibilita que os alunos assumam determinadas posições em detrimento de outras

nos jogos de poder que se forjam no âmbito da formação.

2.2.3 Implicações das teorizações críticas no Currículo da Psicologia

O Currículo Mínimo do Curso de Psicologia, conforme apresentado

anteriormente, alinhado com as concepções teórico-metodológicas tecnicistas,

constituiu-se em um conjunto de disciplinas que privilegiavam um fazer técnico para

atuação profissional, sem uma perspectiva crítica que pudesse recriar novas

possibilidades de inserção social da profissão.

O status de profissão liberal que a lei assegurava, como se discute, contribuiu

sobremaneira para uma ênfase na formação técnica e clínica que supervalorizava o

atendimento psicoterapêutico individual realizado em consultórios particulares e

reproduzia o modelo médico numa perspectiva curativa e de ajustamento de

indivíduos doentes ou com problemas.

A década de 80 do século XX — quando os Cursos de Psicologia já estavam

consolidados e regulamentados há 20 anos — constituiu-se no palco de um

momento efervescente da psicologia brasileira, que colocava na ordem do dia um

movimento de avaliação de sua caminhada até então. A formação tecnicista

praticada nos cursos de graduação foi alvo de muitos questionamentos dentro do

ambiente acadêmico que, por meio de professores e pesquisadores, esteve

empenhado em articular a formação de psicólogos com os novos rumos da

sociedade brasileira e com os avanços que o conhecimento científico proporcionava.

Já havia um contexto que favorecia essa reflexão, além das transformações sociais

em curso, qual seja, novas configurações para a atuação do psicólogo e a

necessidade de se discutir a produção de conhecimento e a ampliação de novas

práticas profissionais.

Data de 1979 a publicação do texto de Silvio Botomé, A quem nós Psicólogos

Servimos, de Fato, e em 1988 foi publicado o resultado da primeira grande pesquisa

nacional sobre o perfil do psicólogo brasileiro no livro Quem é o psicólogo brasileiro

patrocinado pelo Conselho Federal de Psicologia juntamente com os Conselhos

Regionais. Pode considerar-se estes dois textos como marcos importantes para as

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reflexões dos psicólogos sobre si mesmos enquanto categoria profissional e

enfatizar que a temática em jogo nestas publicações reflete preocupações com

questões da identidade profissional.

Houve uma proliferação de estudos e pesquisas sobre essas indagações na

época. Apresentam-se alguns deles, veiculados pela revista Psicologia Ciência e

Profissão. Trata-se de veículo de informação patrocinado pelo Conselho Federal de

Psicologia, distribuído gratuitamente e postado a domicílio para todos os psicólogos

inscritos nos Conselhos Regionais de Psicologia do país que, na década de 1980,

dedicou três números ao tema em foco. No número 2/84 trouxe como destaque da

capa o seguinte texto: Em debate A formação do psicólogo e como subtópico indaga

o que é atuação psicológica. O número 2/85 oferece o tema para que serve a

pesquisa em psicologia e se reporta diretamente à formação, posto que questiona o

lugar da pesquisa nos cursos de Psicologia. Por fim, o número 1/89 dedica-se aos

dilemas da formação do psicólogo.

Ana Carvalho (1984), em artigo intitulado Atuação psicológica – alguns

elementos para uma reflexão sobre os rumos da profissão e da formação, numa

clara articulação entre formação e atuação profissional, analisa as dificuldades

demonstradas pelos psicólogos que participaram de sua pesquisa em incorporar

novas práticas, diferentes daquelas experimentadas durante o curso, como possíveis

de serem consideradas de caráter psicológico. A autora demonstra preocupação

com o que chama de formação técnica e esclarece que esta é “[...] entendida como o

treinamento do profissional no uso de instrumentos prontos, designados para cada

situação específica de trabalho.” (CARVALHO, 1984, p. 8). Desta forma, critica os

cursos de Psicologia que havia estudado, avaliando-os como instrumentais e a-

críticos, atribuindo à estrutura curricular, com a fragmentação de conteúdos

descontextualizados da realidade, a responsabilidade de não permitir que os alunos

recriem uma psicologia, mas limitem-se a repeti-la.

Neste mesmo número da revista — 2/84 — a Política Educacional e a

Formação Profissional do Psicólogo é discutida na transcrição de trechos de

entrevistas sobre aspectos relevantes da formação, realizadas com profissionais

reconhecidos no meio acadêmico paulista, entre professores e psicólogos24. Nesta

24 Demerval Saviani, Maria Helena Souza Pato, Maria do Carmo Guedes, Teresa Maria Pires de

Azevedo Serio, Isaías Pessotti, Paulo Roberto Martins Maldos, Ana Mercês Bahia Bock e Sigmar Malvezzi.

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matéria da revista, Paulo Maldós (1984, p.31) argumenta que, como resultado de

uma política educacional comprometida com os interesses “burgueses” da

sociedade, “[...] é limitado ao estudante de psicologia a possibilidade de experienciar

a realidade social brasileira, a cultura das grandes maiorias [...]” Isto restringe o

aprendizado ao debate teórico realizado em sala de aula. O autor prossegue,

afirmando que distanciados da realidade brasileira e mantendo-se da mesma forma

como foram criados em 1962, os currículos dos Cursos de Psicologia privilegiavam

uma formação para a área clínica, restrita ao atendimento em consultório individual

privado.

A psicóloga Tereza Sério refere-se às articulações que se fazem entre prática

social e prática educativa, defendendo que os currículos estanques e

compartimentalizados refletiam as práticas sociais dominantes na sociedade.

Sigmar Malvezzi (1984, p. 31) corrobora esse entendimento, quando diz: “[...] o

sintoma de que a escola está absolutamente alienada é o fato dela ter um currículo

rígido que não tenha espaço para cursos optativos.”

Fica evidente, nesses posicionamentos, o quanto os currículos dos Cursos de

Psicologia direcionaram a formação para a construção de identidades profissionais

identificadas com pressupostos tradicionais de ação reparadora a males atribuídos a

sujeitos individuais. Nessa perspectiva, atrela seus interesses àqueles que

trabalham para a manutenção do status quo da sociedade, sem compromisso com

sua transformação, posto que não questionam os determinantes sociais de

problemas psicológicos.

Dentre outros argumentos e análises, torna-se importante destacar o

posicionamento de Maria Helena Patto (1984, p. 33) neste debate, que vislumbra

uma possibilidade criativa para o psicólogo, quando afirma: “[...] queremos

transformar o psicólogo num cientista do humano e não um técnico em Psicologia.”

A autora destaca a emergência do potencial transformador do profissional da

psicologia, quando lhes for possível compreender as relações de força e poder que

regem as relações sociais e desenvolver métodos de intervenção por meio dos quais

possa lidar com essas dimensões. Isso significa, segundo a autora citada, incorporar

uma literatura crítica à formação que privilegie as dimensões sociais, políticas,

econômicas, ou seja, históricas da constituição dos seres humanos e da sociedade.

No ano seguinte, a mesma revista, mais uma vez discutindo a formação,

mediante o artigo de Silke Weber (1985), responsabiliza o Currículo Mínimo por

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privilegiar o aspecto profissionalizante dos Cursos em detrimento de uma postura

investigativa de produção de novos conhecimentos.

Questões relativas à pesquisa em psicologia são aprofundadas neste número

da revista, na sessão Em debate, que transcreve uma Mesa Redonda realizada na

XV Reunião Anual de Psicologia, em Ribeirão Preto (SP). Este evento reuniu três

pesquisadores brasileiros25 e discutiu os fundamentos filosóficos da pesquisa e suas

relações com a pesquisa básica e aplicada, tecnológica ou científica, com a ação

política e os fins a que se destinava, dentre outros aspectos. Há uma visível adoção

de modelos de pesquisa experimental para o estudo de questões da psicologia, o

que denota o peso da formação tecnicista e os reflexos da adesão ao modelo

positivista de ciência na definição do foco do Currículo Mínimo, conforme

argumentou-se anteriormente.

Seguindo a linha de informar e discutir questões relacionadas à formação dos

psicólogos, a revista Ciência e Profissão, em 1989, editou um número temático,

intitulado Os dilemas da formação do Psicólogo. No Editorial, refere-se a um estudo

feito pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, que realizou uma

pesquisa em 16 Faculdades de Psicologia, encontrando os seguintes resultados

sobre currículo:

a) é um currículo fundamentalmente teórico, em que a formação prática corresponde, em média, a cerca de 11% da carga horária total; b) os conteúdos e práticas são dirigidos fundamentalmente para formação do psicólogo clínico (25% da carga horária total); c) além da Clínica, apenas duas outras áreas — Educação e Empresa — são contempladas (em média 7% da carga horária total para cada uma delas); d) os estágios geralmente concentram-se no último ano, sendo que o pouco de organização existente também se dá na área Clínica; e) na maioria dos cursos há um grande descompasso entre as disciplinas teóricas e os estágios; f) nos cursos particulares (a maioria) praticamente inexiste a atividade de pesquisa. (EDITORIAL, 1989, p.4).

Observando os resultados desta pesquisa, pode-se perceber a evidente

contaminação dos princípios fragmentários do currículo tradicional tecnicista.

No mesmo número da revista, a matéria intitulada Currículo: quais mudanças

ocorreram desde 1962?, traz o depoimento de Sylvia Leser de Mello26 (1989), no

25 Isaías Pessotti, Jairo Eduardo Borges de Andrade e João Cláudio Todorov. 26 Essa pesquisadora, em 1975, realizou um estudo, pioneiro no Brasil, sobre a Psicologia como

profissão, o qual, provavelmente, inspirou outras iniciativas de peso que se sucederam, inclusive de âmbito nacional.

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qual a psicóloga esclarece que, embora muitos esforços tivessem sido feitos para

modificar o Currículo Mínimo, ao longo dos anos, ele mantinha-se como havia sido

originalmente concebido, mesmo porque as proposições pretendidas não

contribuíam para uma melhora qualitativa da proposta original. Posiciona-se

considerando como o maior problema da formação a realização dos estágios,

porquanto utilizam pacientes como instrumento de aprendizagem, e levanta

questões éticas relativas ao assunto. Questiona ainda a redução do atendimento

psicológico à clínica privada individualizada e às práticas tradicionais da psicologia,

propondo aproximações mais amplas com a esfera social, e critica o modelo de

pesquisa norte-americano transplantado para o Brasil no início da formação do

curso.

A despeito de José Medeiros (1989) argumentar sobre algumas propostas de

modificação curriculares esboçadas desde 1977, nas quais havia preocupações com

exclusão ou inclusão de disciplinas, alteração de nomenclatura, inclusão e exclusão

de pré-requisitos, remanejamento de disciplinas dentro do currículo, dentre outros

assuntos, percebe-se que a formação em psicologia esteve cristalizada, mantendo-

se praticamente inalterada desde então.

Os cursos de Psicologia, conforme se discute ao longo deste capítulo,

instalou currículos articulados a interesses políticos de classes dominantes, assim

como veiculou um saber ascético e despolitizado, trabalhando com uma concepção

de homem abstrato e de fenômenos psicológicos como intrapsíquicos e universais

(BOCK, 1999). Além do mais oferecem todas as condições para a estruturação de

uma profissão feminina, nos moldes estipulados por uma sociedade regida sob a

égide patriarcal, sem nenhum posicionamento crítico sobre a questão.

Nessa perspectiva, as teorias psicológicas tributárias do pensamento

iluminista que aderiram ao modelo de ciência natural para obter foro de ciência no

final do século XIX, foram apropriadas pelos psicólogos de uma forma psicologista,

qual seja a de que o mundo subjetivo dos seres humanos tem uma vida própria,

descolada de outras instâncias da vida, e explicam-se por si só.

A escola, como instância privilegiada na construção de identidades, tem uma

dupla função: construir valores e conhecimentos. No curso superior, na formação

profissional, esses objetivos escolares são supervalorizados, pois se referem à

construção de um projeto de vida no qual são construídos sentidos sobre os modos

de pensar, sentir e vivenciar uma profissão. E isso acontece mediante um jogo

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complexo de processos de negociação de valores e sentidos que transitam pela

cultura profissional, pelos conteúdos específicos, pelas práticas profissionais, todos

imersos em jogos de poder, que resultam na adesão a um modo peculiar de

compreender o mundo em forma de discurso.

O conhecimento e a compreensão das singularidades imanentes a uma

profissão podem emergir de contextos diversos, escolares ou não. Na vivência

acadêmica, entretanto, estes permanecem subjacentes à política educacional, à

gestão do ambiente acadêmico, aos conteúdos escolhidos, às práticas pedagógicas,

à ideologia dos professores, aos papéis que lhes são atribuídos e exigidos, dentre

outros. E isso compõe o que anteriormente discutiu-se como Currículo Oculto.

É inegável que os currículos dos cursos de Psicologia, impregnados de uma

concepção tecnicista de currículo em seu viés mais conservador, a despeito de

iniciativas mais progressistas, foram responsáveis pela formação de várias gerações

de psicólogos. Suas atuações profissionais refletem a forma como foram formados e,

por conseguinte, como se situam profissionalmente na sociedade e como contribuem

com a divulgação de uma imagem social da profissão, considerada feminina.

A grande modificação proposta para os currículos do Curso de Psicologia vai

ocorrer de fato com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº

9394/96), que propõe reformulações no ensino superior e edita as Diretrizes

Curriculares Nacionais para todas as modalidades de cursos superiores do país.

A década de 90 do século XX, nos meios acadêmicos da Psicologia, assistiu

a algumas iniciativas que se traduziram em ações propositivas de mudança como

resultado da autocrítica produzida na década anterior.

O Conselho Federal de Psicologia, em 1992, convocou todos os

coordenadores de Cursos de Psicologia do país para discutir a formação. Dos 103

convocados, 98 compareceram ao evento intitulado Encontro Nacional com

Gestores de Cursos de Psicologia e Conselho Federal de Psicologia, que teve a

duração de três dias — 31/07 a 02/08 — e como produto redigiu um documento

conhecido como a Carta de Serra Negra. O objetivo do Encontro era identificar

diretrizes para o funcionamento dos cursos e promover encaminhamentos para

reformas curriculares, tanto que foram discutidos princípios norteadores para a

formação acadêmica do psicólogo, e a forma como esses princípios poderiam ser

contemplados nos currículos e nos estágios (CFP, 2006). Os sete princípios que

estão contidos na Carta de Serra Negra (CFP, 2006, p.1), são listados a seguir:

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1) desenvolver a consciência política de cidadania, e o compromisso com a

realidade social e a qualidade de vida; 2) desenvolver atitude de construção de conhecimento, enfatizando uma

postura crítica, investigadora e criativa, fomentando a pesquisa num contexto de ação-reflexão-ação, bem como viabilizando a produção técnico-científica;

3) desenvolver o compromisso da ação profissional quotidiana baseada em princípios éticos, estimulando a reflexão permanente destes fundamentos;

4) desenvolver o sentido da universidade, contemplando a interdisciplinaridade e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão;

5) desenvolver a formação básica pluralista, fundamentada na discussão epistemológica, visando a consolidação de práticas profissionais, conforme a realidade sócio-cultural, adequando o currículo pleno de cada agência formadora ao contexto regional;

6) desenvolver uma concepção de homem, compreendido em sua integralidade e na dinâmica de suas condições concretas de existência;

7) desenvolver práticas de interlocução entre os diversos segmentos acadêmicos, para avaliação permanente do processo de formação;

Essas discussões em nível nacional prolongaram-se em um evento também

promovido pelo Conselho Federal de Psicologia consorciado com os Conselhos

Regionais, dois anos depois, em 1994, quando da realização do 1º Congresso

Nacional Constituinte da Psicologia em Campos do Jordão (SP), cujo propósito foi

instalar uma nova forma de gerenciamento das ações dos Conselhos com o

estabelecimento de metas trienais. Esse primeiro encontro incluiu discussões

complementares àquelas realizadas em Serra Negra.

A nova Lei da Educação foi aprovada sob o nº de 9394/96 (BRASIL, 2006a) e

em seu texto propõe modificações no funcionamento do ensino superior. Dentre

elas, institui Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para todos os cursos superiores

do país. Para redigi-las, foram convocadas Comissões de Especialistas que levaram

em consideração os princípios da Lei e os anseios de mudança de cada categoria

profissional.

Segundo o documento do MEC, as DCN foram instituídas com o objetivo de

Conferir maior autonomia às IES na definição dos currículos de seus cursos, a partir da explicitação das competências e as habilidades que se deseja desenvolver, através da organização de um modelo pedagógico capaz de adaptar-se à dinâmica das demandas da sociedade, em que a graduação passa a constituir-se numa etapa de formação inicial no processo contínuo de educação permanente. (BRASIL, 2006b, p. 1).

No caso dos psicólogos, a comunidade acadêmica foi convidada a participar

por meio de uma consulta nacional sobre teses importantes a serem incorporadas à

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formação. Em 1997, foram criadas comissões de especialistas em cada área, para

escreverem os respectivos documentos. Em maio de 1999, foi oferecida aos

psicólogos a primeira versão das Diretrizes Curriculares Nacionais, elaborada pela

Comissão de Especialistas nomeada pelo MEC, reformulada para uma 2ª versão em

dezembro do mesmo ano.

A aprovação, entretanto, demorou de acontecer, pois um movimento político

vigoroso, organizado pelo Sistema Conselhos, opôs-se ao texto das DCN e,

organizado em torno do Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia27, posicionou-

se contra, encaminhando carta ao Ministro da Educação, em 2001, e elaborando

uma nova versão, que foi encaminhada ao MEC como substitutiva à primeira, em

2002. Como resultado deste embate político foi feita uma negociação para um texto

final de consenso,finalmente aprovado pela Resolução n° 8 do Conselho Nacional

de Educação e da Câmara de Educação Superior, datada de 7 de maio de 2004 e

publicada no Diário Oficial da União de 18 de maio do mesmo ano (BRASIL, 2006c).

As DCN, como o próprio texto orienta no Art. 2° — “[...] constituem as

orientações sobre princípios, fundamentos, condições de oferecimento e

procedimentos para planejamento, a implementação e avaliação do curso.”

(BRASIL, 2006b, p.1) —, trazem muitas inovações ao currículo dos Cursos de

Psicologia, dentre elas: institui uma formação única a de psicólogo; não nomeia

matérias ou disciplinas, mas delimita conhecimentos, habilidades e competências a

serem adquiridos e desenvolvidos, agrupados em torno de eixos estruturantes28;

define que a identidade do curso é conferida por um núcleo comum; cria as ênfases

curriculares; define a formação do professor de psicologia como um projeto

pedagógico específico e diferenciado; sugere metodologias diversificadas para o

27 O Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia é formado pelas instituições listadas a seguir. À

época do encaminhamento da nova proposta de Diretrizes Curriculares, porém, nem todas já faziam parte do Fórum. Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP); Associação Brasileira de Orientadores Profissionais (ABOP); Associação Brasileira de Psicologia Jurídica (ABPJ); Associação Brasileira de Neuropsicologia (ABRANEP); Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE); Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO); Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP); Associação Brasileira de Rorschach (ASBRo); Conselho Federal de Psicologia (CFP); Conselho Nacional de Entidades Estudantis de Psicologia (CONEP); Federação Nacional dos Psicólogos (FENAPSI); Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP); Sociedade Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento (SBPD); Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar (SBPH); Sociedade Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT); Sociedade Brasileira de Psicologia Política (SBPP); Sociedade Brasileira de Psicologia e Acupuntura (SOBRAPA).

28 Fundamentos Epistemológicos e Históricos, Fundamentos teórico-metodológicos, Procedimentos para a investigação científica e a prática profissional, Fenômenos e processos psicológicos, Interfaces com campos afins do conhecimento e Práticas profissionais (BRASIL, 2006 c).

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processo ensino-aprendizagem; desconcentra o estágio e os distribui ao longo do

curso em dois níveis — básico e específico; e mantém a exigência da implantação

do Serviço de Psicologia.

Nesta tese de doutoramento, em que se propõe o estudo da construção de

identidades profissionais em Psicologia, mediante a vivência acadêmica curricular

de estudantes de um Curso de Psicologia específico, esse olhar retrospectivo, na

perspectiva da historicidade da constituição da profissão no Brasil, revela-se

importante porque importa compreender os processos ou as lutas que os psicólogos

e as psicólogas brasileiras, enquanto coletivo, tiveram ao longo do tempo, para que

se pudesse configurar esta profissão nos moldes que se percebe nos dias de hoje. A

busca de novos caminhos só é possível quando se estabelece uma relação com as

dimensões sociais e políticas de passado, presente e futuro, considerando

importantes as relações sociais que se estabeleceram neste tempo-espaço.

Após este estudo retrospectivo, que se coloca como lastro para o

entendimento da Psicologia e da profissão neste momento histórico, no próximo

capítulo dar-se-á uma atenção especial ao Curso em estudo e à instituição que o

mantém e serão descritas sua proposta pedagógica e as condições que oferece

para a construção de identidades profissionais singulares.

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Eu gosto muito desse lugar de educador. Gosto muito de aprender com os alunos.

Gosto de embarcar com eles nesta viagem... Eu sei que mais na frente alguns de vocês vão ajudá-

los a botar o pé no chão.

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112

3 ESTRUTURA E PROPOSTA DO CURSO DE PSICOLOGIA – CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA29

Após a análise do desenvolvimento da Psicologia enquanto ciência e a

constituição da formação e da profissão numa perspectiva da historicidade,

conforme elaborou-se no capítulo anterior, no presente capítulo apresenta-se o

Curso de Psicologia onde se realizou o presente estudo. Para tanto, descreve-se as

condições que a instituição oferece e proporciona para a construção das identidades

de seus estudantes, na qualidade de instituição de ensino com experiência e

tradição na área das ciências da saúde. Apresenta-se a proposta curricular do Curso

de Psicologia e as modificações introduzidas desde a implantação, em 2000, por

força das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), articulando-as com concepções

contemporâneas de currículo que o consideram como discurso e como artefato de

gênero.

3.1 O CURSO DE PSICOLOGIA

Trata-se de uma instituição que há 54 anos dedica-se à educação superior,

voltada para a área da saúde. Seu objetivo é assim definido:

[...] promover a formação, atualização e o aperfeiçoamento dos profissionais da saúde e áreas afins ou emergentes, contribuindo para o desenvolvimento social, econômico e cultural da região e do país, a elevação da qualidade de vida do homem e a preservação do ecossistema. Dedica-se ao ensino e a pesquisa como formas de inserção e contribuição com as ciências e com a comunidade. Enquanto núcleo de Ensino Superior tem como objetivo principal o ensino, a pesquisa e a extensão para o aperfeiçoamento da Medicina, da Saúde Pública e Ambiental e das Ciências em geral. (FBDC, 2005, p. 10).

Criada em 1952, por um grupo de lideranças médicas formadas por docentes

com experiência e dedicação às ciências da saúde, com o propósito de organizar e

29 Na elaboração deste capítulo, foram consultados os seguintes documentos da FBDC/EBMSP:

Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) e o Projeto Pedagógico do Curso de Psicologia.

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manter uma instituição destinada inicialmente à formação de médicos foi

gradualmente ampliando seu âmbito de ação, procurando oferecer oportunidades de

ensino, pesquisa e extensão em diferentes especialidades profissionais na área de

saúde. Fundada em 1952, foi autorizada pelo Decreto n. 32.495, de 31 de março de

1953, e reconhecida pelo Decreto n. 40.559, de 23 de abril de 1958, tendo como

mantenedora uma pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, de caráter

científico, educacional, assistencial e filantrópico.

No momento, oferece cinco cursos de nível superior, além da Psicologia, a

saber: Medicina, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Odontologia e Biomedicina.

pretende implantar, em 2006, o Curso de Enfermagem.

A Psicologia entrou nesta instituição não apenas como mais um curso de

graduação, mas, e acima de tudo, como uma nova forma de perceber o ser humano

e de lidar com educandos que deverão desenvolver-se profissionalmente, com a

responsabilidade de trabalhar pela promoção da saúde. Isso concretizou-se em duas

ações distintas. A primeira diz respeito à implantação do Núcleo de Atenção

Psicopedagógica (NAPP), atividade de extensão que oferece atenção

psicopedagógica a sua comunidade acadêmica e desenvolve projetos de pesquisa

com temas pertinentes à saúde mental e à psicopedagogia; e a segunda refere-se à

ampliação da disciplina Psicologia Médica, que fazia parte do currículo do 3º ano de

Medicina e hoje é uma disciplina que acompanha toda a formação do Médico do 1º

ao 5º ano, além da ampliação da carga horária da disciplina Psicologia, também, nos

demais cursos da Fundação,

Essas iniciativas expressam a compreensão que, hoje, essa instituição

demonstra ter de Saúde, superando a visão mecanicista de homem e apontando

para o reconhecimento dos aspectos sócio-emocionais que estão na gênese e

evolução das doenças. Isso significa rever concepções tradicionais da medicina, que

reduzem o ser humano a um corpo, cujo processo de adoecimento é apenas

biológico, e que tem como objeto de estudo o corpo, as lesões e as doenças e

reconhecer que a doença instala-se num corpo que é simbólico e determinado por

condições históricas. O adoecimento, nessa perspectiva, não se reduz à esfera do

pessoal, mas faz parte de um contexto mais amplo, complexo e multideterminado,

definido pelas dimensões pessoais e sociais do adoecer.

A saúde, nessa perspectiva, não é entendida como um fenômeno isolado,

individualizado, particularizado, mas o resultado da interação de diversas condições

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e fatores nos quais está inserido o ser humano. Fala-se das condições materiais,

sociais, econômicas, biológicas, afetivas, psicológicas e, inclusive, das dimensões

política e jurídicas que regem a sociedade e circunscrevem a vida dos seres

humanos, delimitando a existência de condições objetivas e subjetivas nas questões

relacionadas à saúde e à doença.

A Resolução de n. 218, de 06 de março de 1997, do Conselho Nacional de

Saúde, órgão que integra o Ministério da Saúde, inclui a Psicologia no rol das

“profissões de saúde de nível superior”. Com este ato, legitima uma ambivalência no

trato dessa profissão pelos órgãos governamentais, haja vista que o Ministério da

Educação (MEC), por meio do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas

Educacionais “Anísio Teixeira” (INEP), inclui a Psicologia no elenco das ciências

humanas. Esses aspectos denunciam as contradições características da Psicologia

na delimitação de seu campo de estudos, tributárias da cisão entre os saberes das

humanidades, próprios da filosofia, e a adoção dos saber das ciências da saúde,

para obter fórum de ciência, em finais do século XIX.

O Curso de Psicologia sediado em uma instituição de saúde, rompe com o

lócus tradicional em que se dá essa formação no Brasil, ou seja, em Faculdades de

Filosofia ou de Ciências Humanas. Esse fato, por si só, confere singularidades a

este curso, no que tange à construção de sua identidade assim como de seus

estudantes.

O Curso teve seu funcionamento aprovado em 1998, porém foi implantado no

vestibular de dezembro de 1999 e iniciou sua primeira turma em março de 2000. A

admissão do aluno é feita mediante processo seletivo vestibular, com dois ingressos

anuais de 50 alunos por semestre, e, havendo vagas remanescentes, por meio de

processo seletivo de transferência seguindo calendário semestral da instituição.

A despeito da proliferação de novos cursos autorizados pelo Ministério da

Educação desde a Reforma Universitária, em 1968, este curso é o quarto a iniciar-se

na Bahia, que tinha, até então, nesta área, uma trajetória singular.

O primeiro Curso de Psicologia da Bahia30 foi criado em 1968 e integrou-se à

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia como

resultado de uma série de fatores que confluíram para seu funcionamento. O 30 Os dados referentes a este assunto foram retirados de um artigo de circulação interna produzido

por alunos do Curso de Psicologia da FBDC/EBMSP, intitulado A criação do primeiro curso de Psicologia da Bahia que integra a pesquisa Educadores e educadoras de Psicologia da Bahia: Gênero e moralidade em questão, realizada sob a coordenação da profa. Dra. Elizete Silva Passos.

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primeiro deles, diz respeito à criação do Instituto de Orientação Vocacional (IDOV)

que, desde 1958, prestava atendimento à população em geral, no que concerne à

orientação psicológica e terapia de apoio, seguindo o modelo de funcionamento do

ISOP. O IDOV também desenvolvia atividades de pesquisas relacionadas com o

trabalho que desempenhava e, com a criação do Curso, passou a funcionar como o

Serviço de Psicologia do Curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências

Humanas (FFCH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

A par disso, em decorrência do desenvolvimento econômico baiano, na

época, proporcionado pela implantação de Pólo Industrial em Aratu e do Pólo

Petroquímico em Camaçari, que acelerou o processo de industrialização, ficou

evidente a necessidade de se formar profissionais qualificados para atuar no

processo de recrutamento e seleção de pessoal com as respectivas avaliações

psicológicas, além da necessidade de que a universidade pública assumisse o papel

de formador de profissionais da psicologia, no intuito de evitar a prática do

charlatanismo e qualificar o atendimento psicoterapêutico realizado por profissionais

outros que não dispunham de formação adequada, manifestada por um abaixo

assinado dirigido ao MEC.

Até 1998, o Curso da Universidade Federal da Bahia era o único Curso de

Psicologia funcionando em território baiano.

O Projeto Pedagógico do Curso de Psicologia onde se realizou a pesquisa foi

originalmente concebido entre os anos de 1997 e 1998, sob a inspiração do

Currículo Mínimo, quando obteve, em dezembro de 1998, autorização para

funcionar. Por decisão da instituição, o Curso só foi implantado no processo seletivo

de dezembro de 1999, iniciando, efetivamente, sua primeira turma em março de

2000.

Data desta mesma época as discussões, em âmbito nacional, da proposta de

Diretrizes Curriculares para os cursos de Psicologia, cujo processo de aprovação foi

relatado no capítulo precedente. O impasse advindo deste embate, que só foi

solucionado em fevereiro de 2004, com a aprovação de uma proposta de consenso,

provocou uma série de problemas para os cursos recém–implantados, tendo em

vista que foram autorizados a funcionar com um projeto baseado no Currículo

Mínimo, e deveriam ser reconhecidos, antes de concluir a primeira turma, de acordo

com critérios determinados pelas DCN, tendo em vista que os parâmetros utilizados

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pela Comissão de Avaliadores do MEC já contemplavam aspectos pertinentes às

proposições das Diretrizes.

Foi necessário, então, empreender modificações na proposta original, na

implantação do currículo do curso, desde a primeira turma de 2000, de forma que as

orientações das DCN pudessem ser incorporadas, enquanto estava sendo discutido

e elaborado coletivamente, sob a orientação de consultores, um novo Projeto

Pedagógico para o Curso.

Quando da visita da Comissão Verificadora do MEC para reconhecimento do

Curso, em novembro de 2003, o Curso vivia uma situação singular de transição com

as oito turmas até então implementadas, como se pode observar no quadro a seguir:

Ingressos em 2000.1 e .2,

Ingressos em 2001.1 e .2 Ingressos a partir de 2003

Proposta curricular original (C.M.) até o 8º semestre; Modificações na proposta de Estágios (Est. Básicos I, II e III ao longo do curso e Est. Específico no 9º e 10º semestres); Introdução da disciplina “Diagnóstico e Intervenções em Psicologia” no 8º semestre; Introdução das ênfases curriculares com Estágios Específicos (9º e 10º); Introdução de Trabalho de Conclusão de Curso

Nova proposta curricular com adaptações, ou seja, com um novo rearranjo curricular onde as disciplinas introduzidas foram incorporadas ao longo dos semestres e integralizadas até o 5º semestre.

Nova proposta curricular conforme anexo C

Quadro 1 – Transição do currículo nas turmas do Curso de Psicologia em 2003

Havia, no grupo que assumiu a implantação do curso, o reconhecimento do

caráter eminentemente tecnicista do currículo original, o que incitou, desde o início,

ações que pudessem minimizar os efeitos da segmentação e compartimentalização

dos conteúdos. Esse tipo de currículo incita a formação de profissionais também

tecnicistas, pouco criativos e pouco críticos, porquanto assimilam conhecimentos

desconectados entre si e descontextualizados de seu tempo/espaço.

Com o intuito de formar profissionais com um perfil diferente daquele, ou

seja, comprometidos com as questões sociais de seu tempo e aptos a criarem

novas possibilidades para intervenções da Psicologia e dos psicólogos, numa

perspectiva crítica e criativa, foram introduzidas algumas modificações no currículo

e na forma de lidar com o conhecimento, haja vista que a estrutura curricular

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aprovada não poderia ser, a priori, modificada. Foram introduzidas ações

interdisciplinares em cada semestre, a partir do 1º, com uma operacionalização

viabilizada pela adoção de reuniões mensais e sistemáticas com os professores de

cada semestre, individualmente, a fim de criar um diálogo dentro de cada período.

Em seguida, criou-se também um diálogo dentro de uma cadeia de disciplinas de

semestres diferentes (eixos estruturantes), a fim de tentar situar os conteúdos no

tempo-espaço e desenvolver atividades práticas contextualizadas. Além disso, a

obrigatoriedade no oferecimento de disciplinas optativas no 4º semestre

oportunizou que se pudesse assimilar a proposta das DCN de proporcionar ao

aluno experiência de estágio durante todo o curso, sendo possível implantar

Estágios Básicos.

Ademais um estudo mais detalhado da estrutura original do currículo permitiu

o reconhecimento da opção por uma concepção teórico-metodológica

comportamentalista para a formação dos psicólogos, e a análise do ementário

proporcionava a identificação de conteúdos clássicos sem uma interlocução com as

produções contemporâneas. Além do mais, não contemplava a diversidade teórico-

metodológica que a formação em psicologia exige.

Isso significa que esse currículo tecnicista, estruturado de uma maneira tão

tradicional, formaria profissionais a-críticos e reprodutores de um padrão profissional

tradicional já bastante questionado pelo coletivo da psicologia nacional, como

discutiu-se no capítulo precedente. Além disso cristalizava o olhar teórico em apenas

dois aportes teórico-metodológicos da Psicologia (psicanálise e behaviorismo),

privando o aluno de defrontar-se com a extensa gama de possibilidades que a

Psicologia oferece para ancorar suas leituras e suas práticas, com fundamentos

filosóficos e epistemológicos diferentes.

Como a instituição definiu como princípio formar profissionais generalistas,

que pudessem exercer seu mister em quaisquer campos de atuação, a reformulação

curricular impôs-se como necessária e pertinente.

Com relação à estrutura administrativa do currículo, as disciplinas e os

semestres estavam entrelaçados em um sistema de requisitos que não favorecia a

livre iniciativa do aluno em nenhuma circunstância, pois todas as disciplinas

possuíam pré-requisitos e transformavam-se em pré-requisitos para as

subseqüentes. No 3º e 7º semestres, havia duas barreiras — as disciplinas Temas

Integrados I e Temas Integrados II — que impediam a progressão dos alunos,

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porquanto exigiam que, para cursá-las, o aluno houvesse sido aprovado em todas as

anteriores, e ato contínuo, transformava-se em pré-requisito para todas as

subseqüentes (ver Estrutura Curricular no Anexo B).

A respeito dos estágios supervisionados, realizados no último ano, a proposta

do Currículo Mínimo exigia que, em cada semestre (9º e 10º), o aluno freqüentasse

três estágios diferentes, o que significava que, em um ano, depois de uma formação

com peso teórico, fragmentada e descontextualizada, o aluno percorresse seis

campos de estágio distintos, numa adesão a concepção de prática como aplicação

da teoria e numa fragmentação que não permitia ao estudante sequer compreender

o que seria a atuação do psicólogo em contextos de prática, empobrecendo

sobremaneira a leitura da realidade e as articulações teoria-prática.

As discussões que se sucederam desde a implantação da primeira turma

sobre a viabilização do Curso numa perspectiva menos tradicional foram a base que

permitiu, num esforço coletivo, que modificações fossem introduzidas e

consideradas na elaboração de um novo Projeto Pedagógico para o Curso. A

despeito do reconhecimento de que o fato de estar sediado em uma instituição de

saúde determina aspectos da formação dos profissionais da psicologia na

construção de suas identidades, na perspectiva da formação do profissional

generalista, na reformulação do currículo, foram introduzidas modificações

referentes a:

reordenação do fluxograma de integralização das disciplinas com revisão

dos conteúdos curriculares e das bibliografias;

criação dos eixos temáticos;

redimensionamento de cargas horárias com eliminação, condensação ou

desdobramento de algumas disciplinas e inclusão de novas com

conteúdos mais atualizados;

introdução do trabalho monográfico de conclusão de curso;

criação das ênfases curriculares.

modificações na proposta do estágio curricular obrigatório, subdividindo-o

em Básico e Específico;

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criação das Atividades Complementares com uma diversidade de

possibilidades para novas formas de estudo (Grupos de Estudos,

Disciplinas Optativas, Oficinas, Monitoria, incentivo a apresentação de

trabalhos científicos em eventos).

O questionamento de Gênero foi introduzido no Curso desde a primeira

turma, quando foi oferecida uma disciplina optativa no 4º semestre, sob o título de

Sexualidade e Gênero e permaneceu quando da introdução dos Seminários sobre

Sexualidade e Gênero, no 4º semestre, obrigatória para todos os alunos, após a

reformulação curricular. Além do mais, essa é considerada temática de peso na

disciplina Psicologia Social II no 3º semestre; aliás, os seminários têm a proposta

de aprofundar os temas já levantados no semestre anterior.

3.1.1 Proposta Curricular do Curso

Em se tratando de uma instituição que tradicionalmente lida com as questões

da saúde e considerando o peso que a formação em saúde dá a doença, foi

necessário, no âmbito do Curso de Psicologia, discutir uma concepção de saúde que

a compreendesse como o resultado da interação de diversas condições (materiais,

sociais, econômicas, biológicas, afetivas, psicológica, políticas, jurídicas, dentre

outras), nas quais está inserido o ser humano. Dessa forma, relativizou-se o peso do

viés curativo, em prol de uma perspectiva preventiva em saúde.

Esse recorte, inclusive, é privilegiado por uma corrente teórica da Psicologia

Social que compartilha desse entendimento de saúde (BOCK, 1999), considerando o

psicólogo como promotor da saúde e a Psicologia como promotora de saúde. Isto

significa apreender a saúde como um conjunto de condições criadas coletivamente,

que permitem a continuidade da própria vida em sociedade. Essas condições dizem

respeito a alimentação, moradia, saneamento, educação, lazer, dentre outras que

propiciam ao ser humano a saúde física e psicológica. Assim sendo, fala-se da

função social da Psicologia e dos psicólogos.

Com relação à função social dos psicólogos e da Psicologia, é necessário

demarcar a especificidade do psicólogo como o profissional que lida com a

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subjetividade humana e que precisa incluir questões objetivas da existência humana

à subjetividade dos indivíduos, compreendendo seres humanos como concretos,

que possuem um lócus espaço-temporal, são regidos por normas sócio-econômicas

e culturais e produzem suas ações e relações, suas idéias e representações na

intersecção de seu mundo pessoal com o mundo coletivo.

O Projeto Pedagógico do Curso (FBDC, 2003, p. 4) destaca desafios que a

formação em psicologia precisa enfrentar para responder às demandas da

contemporaneidade, propondo que uma formação universitária deva “[...] nortear-se,

cada vez mais, pelas exigências de um profissional crítico, construtor de saber,

sujeito de um processo de aprendizagem contínuo e integrado com outros

conhecimentos e, eticamente preocupado com os novos compromissos sociais.”

Considera como desafios:

• Superar o modelo de formação dominante com ênfase tecnicista;

• Apresentar um saber teórico-prático organizado em torno de uma formação generalista assegurando-lhe uma visão interdisciplinar;

• Articular formação científica e formação tecnológica em diferentes contextos sociais;

• Estruturar uma prática pedagógica coerente com espaço de superação dos desafios supramencionados. (FBDC, 2003, p.4).

Estão contemplados no Projeto Pedagógico do Curso alguns pressupostos da

ação educativa que o Curso propõe-se a praticar, pela indagação sobre qual

psicólogo pretende formar, para que tipo de sociedade e as contribuições que esses

profissionais poderão dar à coletividade. Nesse particular, refere-se à concepção de

homem que preconiza, ao entendimento da escola como o lugar privilegiado para

formação de profissionais para a democracia, considerando esta como uma forma

de vida e não apenas como governo político, e destaca a construção de valores

éticos e estéticos.

Estão contemplados no Projeto Pedagógico (FBDC, 2003, p. 5), objetivos

gerais:

• Formar psicólogos cidadãos que atuem como agentes transformadores na construção de uma sociedade mais democrática e menos desigual, intervindo com seres humanos nas dimensões psicossocial, psicodinâmica, institucional e comunitária;

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• Formar psicólogos comprometidos com a promoção da saúde e com a dignidade da vida dos seres humanos.

E como objetivos específicos (FBDC, 2003, p. 5-6):

• Entender/incorporar uma prática pluralista, crítica e transformadora,

construtora de novas possibilidades profissionais, a partir de reflexões sobre a realidade histórico-social;

• Compreender a função social da Psicologia e do Psicólogo nas ênfases selecionadas;

• Apreender a multiplicidade de determinações dos fenômenos psicológicos assim como a possibilidade de múltiplos níveis de intervenção.

Com relação ao perfil profissional, o Projeto Pedagógico propõe “[...] a

formação de um profissional pluralista para uma atuação generalista, crítico e

sintonizado com as demandas da contemporaneidade.” (FBDC, 2003, p. 6). Define

competências gerais para a área da saúde, para a Psicologia e para as ênfases

curriculares que elege para seu Curso.

Como competências gerais para a Psicologia, relaciona:

• compreender as múltiplas determinações dos seres humanos;

• entender como estes constroem o seu universo simbólico;

• incluir as dimensões histórico-sociais no universo dos processos psicológicos;

• compreender a sociedade como uma rede de significados simbólicos – como produção e produto da atividade humana;

• identificar, na concepção de saúde e doença, a complexa rede de fatores que promovem a saúde, reconhecendo as dimensões bio-psico-sociais da produção da saúde e dos distúrbios psíquicos;

• identificar o psicólogo como profissional que tem compromisso social e ético com a sociedade em que vive e atua. (FBDC, 2003, p. 7).

Como definiu duas ênfases, seguindo as orientações das DCN, quais sejam,

Práticas de Psicologia em Saúde e Práticas de Psicologia em Trabalho e

Organizações, considera, com relação à primeira, que “[...] o foco desta ênfase será

o ser humano e a saúde nas dimensões preventiva, curativa e reabilitadora, com

múltiplas possibilidades de configuração e intervenção.” (FBDC, 2003, p.7). E

agrupou em torno dessa ênfase tanto o trabalho do psicólogo junto a instituições de

saúde quanto ao trabalho clínico que se caracteriza pelo atendimento de consultório.

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A definição por uma ênfase em saúde deve-se à própria vocação da

instituição para a área da saúde, que viabiliza não apenas uma diversidade de

campos de práticas em várias áreas da saúde tanto preventiva como curativa e

reabilitadora, mas, além disso, proporciona a interlocução com outros campos do

saber da saúde, como a medicina, a terapia ocupacional, a fisioterapia, a

odontologia e a biomedicina, o que efetivamente acontece.

Com relação a Práticas de Psicologia em Trabalho e Organizações, O Projeto

Pedagógico (FBDC, 2003, p. 8) delimita que o foco desta ênfase é “[.....] o ser

humano, as relações de trabalho, o processo produtivo e o contexto de trabalho” e

também se refere às múltiplas possibilidades de configuração e intervenção.

Com este entendimento, o Curso propõe-se a promover uma formação (FBDC, 2003, p. 9-10):

→ generalista, consistente e abrangente;

→ ativa no sentido de compreender o aluno como construtor de seu conhecimento, estimulando a postura do agir-refletir-agir;

→ centrada em atitude científica e criativa no sentido de estimular o olhar curioso e investigativo, avaliando o que estuda e o que faz pensar, criticar, analisar, reformular, inventar;

→ que permita compreender as determinações econômico-sociais dos fenômenos psicológicos;

→ que proporcione interlocução (teoria e prática) com outros profissionais de outras áreas de Saúde através de atuação em equipe multiprofissional;

→ que amplie as ações profissionais do psicólogo de curativa/individual/ privada para preventiva/grupal/social;

→ que proporcione acesso à multiplicidade de aportes teóricos e de metodologias investigativas e de intervenção inerentes ao mosaico teórico-conceitual que propõe a Psicologia, de forma crítica e reflexiva;

→ com vivências de atividades curriculares que atendam a leituras interdisciplinares dos processos e fenômenos psicológicos, além de procedimentos de intervenção;

→ com situações supervisionadas de intervenção (práticas e estágios) onde o aluno e usuários possam exercitar serviço ético adequado.

Para tanto, a proposta curricular contempla Eixos Estruturantes “básicos,

específicos, e práticos” que se desdobram nos eixos temáticos propostos pelas

DCN: “Fundamentos Epistemológicos e Históricos; Fenômenos e Processos

Psicológicos Básicos; Fundamentos Metodológicos; Procedimentos para

Investigação Científica e Práticas Profissionais; Práticas Profissionais e Áreas Afins

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contempladas no Currículo” — a estrutura curricular agrupada em torno dos eixos

temáticos assim como por semestre encontra-se no Anexo B.

A proposta metodológica do Curso de Psicologia a fim de garantir uma

coerência entre concepção, princípios, fundamentos e características do PP se auto-

refere como favorecendo “[...] o exercício dos pressupostos éticos, democráticos, de

contextualizações, conectados interdisciplinarmente, articulando teoria e prática,

contemplando temas emergentes de forma transversal e multirreferencial.” (FBDC,

2003, p. 63). Para atingimento desses objetivos, propõe “[...] ações e atividades

metodológicas que ensejam ao aluno: participação efetiva, dinamismo, flexibilidade,

crítica, criticidade, compromisso e responsabilidade.” (FBDC, 2003, p. 63) que

possam proporcionar uma formação atualizada e humanizante, indicando o exercício

de:

• uma prática contextuada;

• a utilização de procedimentos metodológicos de caráter emancipativo, indispensável ao exercício de tomada de decisões;

• interação precoce com a comunidade a partir do 1º semestre;

• abordagem por eixos temáticos em detrimento de conteúdos disciplinares isolados;

• articulação teoria/prática, observando-se o caráter, natureza e especificidade dos conteúdos da área/disciplina, sugerindo enfoques mais sistêmicos;

• utilização de procedimentos metodológicos que favoreçam a reforma do pensamento que detenham a fragmentação do conhecimento, procurando educar/ensinar/aprender de forma mais sistêmica, que favoreçam a conexão, a religação de conteúdos, disciplinas e áreas de estudo; e

• a interdisciplinaridade como forma de organização do trabalho acadêmico, ou seja, o estabelecimento de intercomunicação efetiva entre as disciplinas. (FBDC, 2003, p. 63).

Com relação à sistemática de avaliação, o PP adverte a necessidade de se

rever posicionamentos autoritários que transformam a avaliação em mecanismo de

submissão e dependência, em prol de atividades avaliativas que favoreçam a

autonomia intelectual e a participação do estudante.

Fazendo uma análise comparativa entre o currículo original do Curso de

Psicologia elaborado à luz dos princípios do Currículo Mínimo, e o novo Projeto

Pedagógico, inspirado nas proposições das Diretrizes Curriculares, verifica-se que

houve um avanço significativo, no que se refere à compreensão do processo ensino-

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124

aprendizagem com adoção de práticas inovadoras como o agrupamento de

disciplinas em Eixos temáticos (transversais), a introdução de Atividades

Interdisciplinares, Atividades Complementares, Estágios Básicos e Específicos,

Trabalho de Conclusão de Curso, articulação teoria-prática em diversas disciplinas,

dentre outros. Além do mais, esse currículo foi construído com o envolvimento de

toda a comunidade acadêmica da Psicologia da Bahiana, mediante reuniões

periódicas do grupo que formulou o Projeto com os consultores e o coletivo de

professores e alunos. Pode-se verificar, porém, que ainda há uma segmentação

muito grande no currículo, com fragmentação dos conteúdos e uma seriação

peculiar aos currículos tecnicistas.

3.1.2 Construção de identidades neste Curso de Psicologia singular

A proposta desta tese é compreender como os alunos deste Curso de

Psicologia singular constroem identidades profissionais em Psicologia, com base na

vivência curricular decorrente da formação superior. Importa identificar e analisar

quais são os conhecimentos e valores que os alunos constroem e com quais

posições de sujeito se identificam para se autonomear psicólogos ou psicólogas.

Como referido anteriormente, o discurso da Psicologia é plural e, por vezes,

possui posições inconciliáveis entre si. O campo das práticas é também

diversificado, abrindo-se múltiplas possibilidades de atuação. A própria constituição

da psicologia como ciência já provocou cisões na tradição com a filosofia para

assumir um discurso iluminista de ciência e hoje incorpora contribuições de

formulações críticas e pós-críticas em seus aportes teóricos. O mercado de trabalho

oferece possibilidades de prestígio e remuneração bastante diversificadas para os

profissionais. Entre estes há um exercício que se considera o mais “nobre” e que dá

ao psicólogo e à psicóloga o status de profissional liberal, outros que exigem uma

vinculação assalariada em instituições públicas e privadas, e ainda outros que

despontam atualmente no cenário social, no qual o profissional pode ser autônomo

em diversas áreas, embora sem exercer a clínica privada do consultório.

No plano teórico, há teorias consideradas mais profundas ou mais consistentes,

outras consideradas menos consistentes e, nesse particular, estão em jogo distintas

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125

concepções de homem, de mundo e de psicologia. Diferentes epistemologias para

distintas formas de conceber a Psicologia. Eis um território de disputa, de

contestação, de questionamentos! De saberes, de poderes! Como nos ensinou

Michel Foucault (2001), o saber e o poder são mutuamente dependentes, pois não

há saber que não seja vontade de poder e nem poder que não se utilize do saber.

Politizar o currículo, hoje, significa problematizá-lo à luz de referenciais

teóricos que possam compreender as múltiplas determinações às quais está sujeito,

ultrapassando o aspecto econômico e político para incluir as dimensões étnicas,

raciais, religiosas, éticas, estéticas, lingüísticas, de gênero, geração, de tempo,

espaço, dentre outras. É, acima de tudo, abandonar as concepções naturalizantes

dos fenômenos sociais e humanos forjados na teia de relações sociais concretas e

simbólicas para exibir e compreender o interjogo de forças que configuram uma

sociedade contraditória e excludente. Como argumenta Katryn Woodward (2000,

p.20): “[...] não existe mais uma única força, determinante e totalizante, tal como a

classe no paradigma marxista, que molde todas as relações sociais, mas, em vez

disso, uma multiplicidade de centros.”

A universidade, como qualquer outra escola, constitui-se num espaço cultural

e educativo que produz uma cultura, no qual interagem os mecanismos de controle

da sociedade que inscrevem particularidades nos sujeitos. Por meio dela os agentes

sociais e políticos pensam a si mesmos, as instituições, as relações de poder, as

relações de dominação assim como a resistência e a transformação.

O currículo escolar não é neutro! Ele atende, sempre, a alguns interesses

particulares e está sempre imbricado com as relações de poder entre a sociedade e

a escola, o que lhe confere uma dimensão política. Na Escola Crítica, fala-se do

poder da ideologia, que produz os currículos e que reproduz as desigualdades

sociais e as assimétricas possibilidades de grupos distintos terem acesso a

oportunidades sócio-culturais de prestígio e sucesso.

Deste ponto em diante, deseja-se incluir uma outra dimensão das relações de

poder que perpassam a escola, considerando, além do poder da luta de classes,

aqueles poderes relacionados à cultura e à linguagem, analisando os micropoderes

que a povoam, à luz de formulações foucaultianas. Isso significa incluir manifestações

culturais dos diferentes grupos sociais que coexistem na escola, qual seja, os

étnicos, de gênero, de geração, de opção religiosa, dentre outros, que exibem a

diversidade e multiplicidade do ambiente escolar e transformam-no em uma arena

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de disputa, em que estão em jogo interesses de grupos distintos e antagônicos. E

isso remete a uma concepção de Cultura, a qual Stuart Hall (1980) afirma como

constitutiva da vida social, como um território de lutas e contestações, no qual são

delimitados grupos que produzem sentidos e sujeitos.

Uma questão central no presente trabalho diz respeito à construção de

identidades profissionais em psicologia, com base no processo curricular de um

curso de Psicologia. Deste modo, pretende-se analisar os discursos produzidos por

alunos e professores sobre a vivência curricular, como construtora da identidade de

psicólogo ou psicóloga, analisando a Psicologia como profissão feminina. Parte-se

do princípio de que as práticas discursivas curriculares são produtoras de identidade,

impregnadas de significação que dão o sentido às posições de sujeito que modelam

práticas e as transformam, na incessante e inacabada construção da identidade

profissional.

A maioria das pessoas escolhe uma profissão ou define suas preferências por

determinadas profissões com base em sua história de vida e nas possibilidades que

o mundo real e concreto oferece-lhes em determinados momentos históricos.

Algumas profissões deixam de existir, outras são recriadas, algumas outras surgem

das demandas específicas do momento tecnológico de uma determinada sociedade;

algumas são apropriadas para serem exercidas por homens e outras por mulheres.

Este fato, muito particular, remete a uma série de justificações, como o tipo de saber

que veicula, o uso ou não da força física, o ambiente na qual precisa ser exercida,

ou quaisquer outros argumentos. Todos, no entanto, podem ser resumidos àquela

diferença que subdivide a humanidade em dois grupos: o masculino e o feminino.

Desde que nascem, as crianças são tratadas de forma diferente, a depender

de seu sexo biológico. A sociedade oferece diferentes formas de lidar, tanto física

quanto emocionalmente, com os meninos e as meninas que vão sendo introjetadas,

por cada um, de forma imperceptível.

Pode-se até dizer que o “treino” das profissões inicia-se quando da escolha

das brincadeiras, na tenra infância, quando as meninas ganham bonecas, berços,

fogões e panelinhas de presente e são estimuladas a ajudar suas mães nos

afazeres domésticos enquanto aos meninos são oferecidos presentes, brincadeiras

e jogos que estimulam a competitividade, a força física e a agressividade.

Embrionariamente aí estão, as professoras, as enfermeiras, as donas de casa, as

empregadas domésticas, as psicólogas e também os bombeiros, os pescadores, os

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aviadores, os empresários, os executivos, os engenheiros, os físicos, dentre outras

profissões.

A escola, nesse intento, tem papel fundamental, não apenas nas séries

iniciais, mas durante todo o percurso escolar dos alunos e alunas. Os valores

relacionados à hierarquia de gênero, na escola, perpassam o cotidiano escolar

independente do nível da educação formal que se pratica. A educação tem se

revelado um campo fértil para a reprodução das desigualdades sociais e nela se

insere a desigualdade de gênero.

Guacira Louro (1997, p. 57) afirma:

Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende disso. Na verdade, a escola produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação distintiva. Ela se incumbiu de separar os sujeitos – tornando aqueles que nela entravam distintos dos outros, os que a ela não tinham acesso. Ela dividiu também, internamente, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização. A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental moderna começou por separar adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela também se fez diferente para os ricos e para os pobres e ela imediatamente separou os meninos das meninas.

Concebida inicialmente para acolher alguns – mas não todos – ela foi, lentamente, sendo requisitada por aqueles/as aos/às quais havia sido negada. Os novos grupos foram trazendo transformações à instituição. Ela precisou ser diversa: organização, currículos, prédios, docentes, regulamentos, avaliações iriam, explícita ou implicitamente “garantir” – e também produzir – as diferenças entre os sujeitos.

Gabriela Castellanos (1994) refere que aqueles espaços onde os gêneros

parecem menos relevantes são, na verdade, aqueles em que ele é mais pertinente.

E isso vale para a escola. Tomaz Tadeu Silva (1999, p. 97) afirma: “[...] o currículo é,

entre outras coisas, um artefato de gênero: um artefato que, ao mesmo tempo,

corporifica e produz relações de gênero.” Ao discutir a relação entre gênero e

currículo, o autor esclarece que, enquanto reflete uma epistemologia dominante, o

currículo representa uma cosmovisão masculina. Sabe-se que onde existem

diferenças estão implicadas as relações de poder. Por isso, a questão do conteúdo

escolar é importante; a seleção deles pode indicar quais divisões sociais estão

sendo privilegiadas e legitimadas, assim como a das metodologias, as formas de

avaliação e a gestão das relações entre as pessoas. Se for mais conservadora, a

escola, vai reforçar, naturalmente, as discriminações sociais, sexuais e raciais, a divisão

entre o trabalho intelectual e o braçal, a importância da autoridade do professor. Se

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for mais inovadora, abrem-se possibilidades para questionamentos e novas

perspectivas instalam-se. A escola, certamente, poderá estar mais voltada para a

incorporação das transformações sociais e mais atenta às necessidades do aluno.

A formação profissional, nas práticas cotidianas acadêmicas do Curso de

Psicologia que se estuda e também das não acadêmicas, aquelas de suas vidas

social e privada, possibilita aos estudantes apropriarem-se de determinados

discursos que produzem sentido frente à profissão.

O fato de estar situado em uma instituição de saúde, por si só, já produz uma

marca identitária nos estudantes, especialmente dentro de uma Faculdade de

Medicina, que, como é de domínio público, constitui-se na profissão mais valorizada

socialmente na área da saúde. Partilhar desse espaço físico e simbólico também

traz repercussões na forma como os alunos de Psicologia se percebem, porquanto a

instituição formadora com tradição e credibilidade social construída ao longo de sua

história no ensino superior provoca uma respeitabilidade e uma repercussão social

que conferem prestígio e destaque social a seus alunos.

Além do mais, o Campus onde o curso está situado abriga simultaneamente o

Pavilhão de Aulas, um Ambulatório Docente Assistencial com uma grande

diversidade de clínicas médicas, uma Clínica de Fisioterapia, outra de Terapia

Ocupacional, além do Serviço de Psicologia, todos em funcionamento com

atividades docentes e assistenciais, freqüentadas por pacientes, profissionais,

estudantes, professores e funcionários. As áreas de convivência comum, como

biblioteca, cantina, saguão e estacionamento, são compartilhadas por todos, numa

convivência marcada pelo “ambiente da saúde”. Os acessos às salas de aula são

prioritariamente utilizados por alunos e professores, porém, nas demais

dependências, o trânsito de pacientes ou usuários dos serviços é realizado

livremente, numa convivência entre todos. Neste cenário, pode-se perceber que

circulam e disputam-se discursos desses distintos saberes, demarcando suas

fronteiras simbólicas e até físicas de ocupação dos espaços que formam uma cultura

singular para um Curso de Psicologia.

Com esse vasto campo de práticas e outros proporcionados pela própria

instituição em suas dependências em outros campi, ou mediante convênios próprios

ou da instituição, é muito fácil para o Curso viabilizar e para os estudantes de

Psicologia transitar pela área da saúde e aprenderem a valorizar o exercício clínico

na perspectiva curativa, reparadora. Afinal, na relação saúde-doença, para os

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profissionais com os quais convivem no espaço escolar diariamente, a doença

sempre tem o peso maior e é necessário enfrentá-la para remediar e curar.

Na estrutura curricular do Curso e na escolha do corpo docente foi levada em

consideração a multiplicidade e diversidade da psicologia, havendo profissionais

com orientações teóricas de diversos matizes do mosaico teórico-conceitual da

psicologia. E isso também constitui-se em elemento fundamental da cultura que se

constitui com o curso.

A diversidade de grupos que compõem a cultura do Curso de Psicologia em

estudo possibilita a reflexão sobre a questão da multiculturalidade, compreendendo-

a como as complexas e polêmicas articulações que se dão entre a cultura e o

currículo e representam as transformações culturais que estão se dando nessa

transição do século XX para o XXI nas sociedades ocidentais. O novo ambiente que

se cunhou de pós-modernidade, questiona não apenas a tradição iluminista do

currículo tecnicista, mas também os postulados da teoria crítica, por considerá-los

reducionistas.

Teresinha Fróes Burnham (1998) considera o currículo como processo social,

cujo papel principal é contribuir para o acesso dos alunos a diferentes referenciais

de leitura de mundo e de vivências que os constituam como sujeitos de sua história

pessoal e da sociedade, A autora entende a escola como uma complexidade, cuja

ótica multirreferencial permitirá uma abertura para a convivência da diversidade e da

multiplicidade, permitindo “[...] o olhar por diferentes óticas, a leitura através de

diferentes linguagens, enfim, a compreensão por diferentes sistemas de referência.”

(FRÓES BURNHAM, 1998, p. 44). Cultiva, portanto, o espaço para a convivência e a

valorização de vários tipos de linguagens, de valores, crenças, peculiaridades dos

diversos grupos sociais que convivem na escola, fazendo a interlocução com todos

esses tipos diferenciados de saberes.

Gimeno Sacristán (1995, p.83), por sua vez, advoga um currículo multicultural

que pretende “[...] fazer da escola um projeto aberto, no qual caiba uma cultura que

seja um espaço de diálogo e de comunicação entre grupos sociais diversos”, onde

os interesses dos vários grupos culturais sejam representados. Gimeno Sacristán

(1995, p. 88) adverte:

Quando entendemos a cultura não como os conteúdos-objetos a serem assimilados, mas como o jogo de intercâmbios e interações que são estabelecidos no diálogo da transmissão-assimilação, convém estarmos

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conscientes de que em toda experiência de aquisição se entrecruzam crenças, aptidões, valores, atitudes e comportamentos, porque são sujeitos reais que lhes dão significados, a partir de suas vivências como pessoas.

Num exercício de aproximação, pode-se recorrer a essas formulações para

compreender a cultura e o currículo do curso de Psicologia que se discute, buscando

elucidar alguns embates entre os discursos que se estabelecem no âmbito da

instituição. Pode-se enumerar desde a disputa pelas posições de prestígio e poder

que as profissões de saúde têm entre si e também em relação a outras áreas

profissionais até aqueles que caracterizam os saberes próprios das correntes

teóricas da psicologia, sem esquecer o peso da presença feminina nessas

profissões, o que configura Gênero, e as questões de classe social, raça e opção

religiosa, dentre outras, presentes no dia-a-dia de todos.

O advento das formulações pós-estruturalistas e as teorizações dos Estudos

Culturais que tentam compreender a complexidade e as contradições inerentes a

formas culturais distintas de vivenciar a vida cotidiana, tentando entendê-las não

apenas como instrumentos de dominação, mas também de resistência e

transformação (ESCOTEGUY, 2003), possibilitaram a brecha para o entendimento

do currículo como discurso.

Nessa perspectiva, o currículo é entendido e problematizado como uma

narrativa que produz significados e pode legitimar o privilégio e o poder de grupos

dominantes, conter processos de luta e significado de grupos marginalizados ou

fomentar diversidades e reconhecimento de grupos que lutam para afirmar seus

posicionamentos. E isso estrutura identidades. Os significados produzidos pelos

currículos, portanto, não fixam necessariamente identidades hegemônicas, mas

diversificadas e plurais.

O discurso como prática social, como propõe Foucault (1999 e 2001b), não

pode ser entendido separadamente das práticas não discursivas. Interpela os

sujeitos a ocuparem determinadas posições sociais, com base na identificação com

determinados discursos que vão dizer exatamente o que se é e o que não se é ou

não quer ser, em dado momento. Por meio da análise desses discursos, é possível

compreender como determinadas identidades foram forjadas e abre-se a

possibilidade de construir novas identidades, mediante narrativas diferentes, plurais,

e contra hegemônicas.

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Considerando o currículo como discurso atravessado por determinantes

culturais dentre eles gênero, em oposição à linearidade e compartimentalização do

currículo tecnicista como representante legítimo da concepção tecnicista de

educação, pode-se convocar o conceito de complexidade31 de Edgar Morin (2001)

como uma possibilidade para ultrapassar o descompasso que se interpôs entre as

agências formadoras, as concepções contemporâneas do conhecimento e as

modificações sociais, com vistas à formação de seres humanos mais críticos e

criativos, dotados de um aparato teórico-metodológico capaz de enfrentar os

desafios e as incertezas colocados pelo cotidiano. Foi nessa perspectiva que se

introduziram as modificações do curso em tela, conforme já discutido neste capítulo.

A complexidade, do ponto de vista moriniano, é vista como uma alternativa

para vencer a questão da fragmentação do conhecimento. Supõe que se faça uma

reforma do pensamento, conforme propõe em seu livro A cabeça bem feita (MORIN,

2000). Esta reforma, entretanto, passa necessariamente pela reforma da Universidade

e necessita aderir ao pensamento complexo que liga e enfrenta a incerteza.

O pensamento que une substituirá a causalidade linear e unidirecional por uma causalidade em círculo e multirreferencial; corrigirá a rigidez da lógica clássica pelo diálogo capaz de conceber noções ao mesmo tempo complementares e antagonistas, e completará o conhecimento da integração das partes em um todo, pelo reconhecimento da integração do todo no interior das partes. (MORIN, 2001, p. 93).

O pensamento complexo, que se traduz em teorias, práticas, discursos,

atitudes, é aquele que distingue, relaciona, une, dialoga e reconhece a

multiplicidade. Não separa o sujeito do objeto e os inclui em um contexto sistêmico.

Para Morin (2001, p. 96), a reforma do pensamento é

[...] paradigmática, e não programática: é a questão fundamental da educação, já que se refere à nossa aptidão para organizar o conhecimento [...] é ela que permitiria a adequação à finalidade da cabeça bem-feira; isto é, permitiria o pleno uso da inteligência. Precisamos compreender que nossa lucidez depende da complexidade do modo de organização de nossas idéias.

Considerando que a educação escolar, em qualquer nível de ensino, não

transmite apenas conhecimentos, mas fabrica sujeitos, produzindo identidades

31 Para Morin (2001, p. 89): “Complexo é o que é tecido junto.”

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profissionais, étnicas, religiosas, raciais, de gênero, dentre outras, enquanto

produtora de sentidos proporciona uma multiplicidade de sentidos possíveis de

serem atribuídos aos sujeitos e a suas práticas escolares.

São esses sentidos, atribuídos pelos alunos do Curso de Psicologia em

questão à construção de suas identidades profissionais de psicólogos e psicólogos,

que se constituem no foco dos capítulos seguintes, nos quais serão descritos e

analisados os dados da pesquisa realizada.

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Eu acho que se eu ficasse aqui a manhã toda eu ia botar um monte de coisa nessa folha,

mas acho que também é legal ficar espaço em branco, que é a possibilidade de construção, ainda.

E aí, eu sou essa interrogação, esse momento,

como é para a gente se ver nesse momento...

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4 A PSICOLOGIA E O SER PSICÓLOGO – POSICIONAMENTOS PRÉVIOS

O presente capítulo propõe-se a apresentar as concepções que os alunos do

Curso de Psicologia em foco têm da Psicologia e da profissão ao ingressar no

Curso, com base na análise de um questionário respondido no primeiro dia de aula

de cada semestre. Construído com questões abertas, este instrumento pretende

verificar o entendimento que os alunos demonstram ter sobre a Psicologia e a

profissão, da forma como é elaborada no senso comum. Era necessário aplicá-lo no

primeiro dia de aula porque se desejava que não houvesse, nesse momento,

nenhuma interferência do Curso para instrumentalizar o aluno sobre o tema.

A despeito de não ter sido construído com o propósito específico desta tese,

compunha um banco de dados sobre o curso e pôde ser utilizado como ponto de

partida para o desenvolvimento deste estudo, porquanto atendia aos requisitos para

ser considerado o marco zero da pesquisa. As respostas dos alunos foram um dado

decisivo na constituição da pesquisa, pois, com base nesse instrumento, verificou-

se, mediante a realização de Grupos Focais, como alguns alunos ressignificaram

essas concepções no decorrer do processo curricular que vivenciaram na formação

universitária.

Foi realizada, portanto, a condensação e análise das respostas destes

questionários, que somavam 151 e diziam respeito a alunos ingressos em oito

semestres de 2000 a 2003. Nele, os alunos puderam evidenciar suas concepções

sobre a psicologia e a profissão de psicólogo e psicóloga, além de referirem seu

investimento pessoal na profissão. A análise dessas respostas constitui-se no

conteúdo deste capítulo.

4.1 CARACTERIZANDO OS SUJEITOS

Como referido anteriormente, ao decidir fazer esta pesquisa, tomando como

campo empírico um Curso de Psicologia singular, fez-se necessário delimitar um

universo de turmas a ser estudado, tendo em vista que o Curso continua a funcionar

e que o ingresso de novos alunos ocorre semestralmente, de forma ininterrupta.

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Como relatado na introdução, considera-se, para efeito do presente estudo, as oito

primeiras turmas do curso, desde sua implantação em 2000 até 2003. Convém

esclarecer que os alunos que responderam ao questionário fazem parte das

mesmas turmas que foram convidadas a participar dos Grupos Focais. O

preenchimento do questionário, anônimo, teve um caráter compulsório, pois foi

respondido por todos os alunos presentes no primeiro dia de aula. A participação

nos Grupos Focais, entretanto, foi uma adesão dos alunos ao convite da

pesquisadora. As turmas subseqüentes a 2003 não foram consideradas no universo

desta pesquisa porque ingressaram após a condensação e análise dos

questionários.

Entre 2000 e 2003, com oito entradas de vestibular, o Curso de Psicologia

matriculou 387 estudantes, sendo 332 (86,69%) do sexo feminino e 55 (13,31%) do

sexo masculino. Desse universo de alunos, havia 151 questionários respondidos, os

quais foram tabulados e são aqui analisados. Dentre estes 126 foram respondidos

por mulheres e 25 por homens, o que perfaz 80,16% e 19,84%, respectivamente, do

total da amostra de 151 sujeitos que responderam ao questionário.

De acordo com a Tabela 1, podemos verificar que se trata de um grupo de

estudantes muito jovens, com quase 70% deles na faixa etária entre 16 e 19 anos de

idade. Observe-se que, em se tratando de questionário inicial, este dado refere-se à

idade de ingresso no Curso.

Tabela 1 – Faixa etária dos estudantes

Com relação ao perfil sócio-econômico, pode-se verificar que a grande

maioria desses alunos pertence a famílias que possuem renda familiar acima de dez

salários mínimos, conforme Tabela 2. Um dado curioso é que, em torno de 50%

IDADE Masculino % Feminino %

16 a 19 anos 17 68,00% 88 69,84% 20 a 23 anos 6 24,00% 31 24,60% mais de 24 anos 1 4,00% 7 5,56% Não respondeu 1 4,00% 0 0,00%

Total 25 100,00% 126 100,00%

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136

deles informam que os pais (44,3% pai e 45,6% mãe) possuem nível superior de

educação; 20% colocam a profissão do pai como empresário, sem especificar nível

de instrução, enquanto apenas 9,9% referem-se à mãe como dona de casa.

Tabela 2 – Renda familiar dos estudantes

RENDA FAMILIAR Masculino % Feminino %

02 salários mínimos 1 4,00% 1 0,79%

03 a 05 salários mínimos 2 8,00% 20 15,87%

05 a 10 salários mínimos 4 16,00% 21 16,67%

mais de 10 salários mínimos 18 72,00% 75 59,52%

Não respondeu 0 0,00% 9 7,14%

Total 25 100,00% 126 100,00%

Considerando os dados da matrícula (86,69%) e a proporção de alunas que

responderam ao questionário (80,16%), pode-se afirmar que o afluxo de alunas a

este Curso de Psicologia corrobora estudos anteriores que configuram a Psicologia

como profissão feminina (ACHCAR; BASTOS, 1994; CASTRO; YAMAMOTO, 1998;

CFP, 1988, 1992; 2001, 2004; PASSOS, 1997; SANTOS, 1999).

A pesquisa de Elizete Passos (1997) sobre “Gênero e Universidade”,

realizada na UFBA, levantou dados de matrícula referentes ao período de 1974 a

1994, que permitiram afirmar a existência, de fato, de profissões com preferência

masculina ou feminina. Este fato define a existência de profissões marcadas pelas

diferenças de Gênero. Nos achados dessa pesquisa a autora pôde verificar, no

Curso de Pedagogia, que 95% dos alunos matriculados eram do sexo feminino,

enquanto apenas 5% pertenciam ao sexo masculino. Essas proporções repetiam-se

nos Cursos de Secretariado (98% e 2%), Enfermagem (96% e 4%), Nutrição (97% e

3%) e invertiam-se no Curso de Engenharia Mecânica. Neste, no mesmo período,

99% dos alunos matriculados pertenciam ao sexo masculino, enquanto apenas 1%

era do sexo feminino. Mantêm-se proporcionalidades semelhantes no Curso de

Engenharia de Minas (95% e 5%) e Engenharia Elétrica (93% e 7%). Situam-se

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ainda como Cursos, cuja presença feminina constitui-se menos de 20% do total de

alunos, o Curso de Engenharia Civil (16%), Física (15%) e Agronomia (18%).

Esses dados apontam para a forma como as sociedades ocidentais têm

produzido desigualdades fundadas nas diferenças, em especial na de gênero,

oriundas do modelo de razão moderna que produz a separação entre sujeito e

objeto, público e privado, cultura e natureza, razão e emoção, objetivo e subjetivo,

dentre outras dicotomias, estabelecendo uma relação de hierarquia e submissão do

segundo elemento ao primeiro.

Seguindo esta lógica, numa sociedade regida por uma ordem patriarcal32, as

profissões ditas masculinas priorizam o desenvolvimento do raciocínio lógico, do

pensamento abstrato, guiadas pela razão e pela força que poderão dar ao homem

as possibilidades de realizar conquistas, de exercer posições de mando e poder, tal

como se espera do homem ocidental, enquanto para as mulheres estão destinadas

as profissões que se identificam com seus “dotes naturais”. São, portanto,

“apropriadas” para elas, aquelas profissões que proporcionam a continuidade do lar,

preferencialmente exercidas em ambiente fechado, onde são necessárias

qualidades “inerentes” à maternidade e ao cuidado com o lar e com os outros,

incluindo, como o outro de maior peso, os filhos.

No caso do Curso de Psicologia da UFBA, no período de 1974 a 1994, a

pesquisa de Elizete Passos (1997) revela que 18% dos alunos matriculados eram do

sexo masculino, enquanto 82% eram do sexo feminino. Esses dados permitem

afirmar que a Psicologia é uma profissão marcada pelo estigma de Gênero.

Considera-se que a Educação promovida por agências de formação,

quaisquer que sejam, não possuem, em si, atributos que possam qualificá-las como

masculino ou feminino, ou como veiculadoras de um saber superior ou inferior. As

profissões consideradas masculinas ou femininas estão impregnadas da construção

histórico-social do ser homem e do ser mulher em determinada sociedade, exibindo

a marca de Gênero.

4.2 ANALISANDO DADOS DO QUESTIONÁRIO INICIAL

32 Patriarcado – teoria social que postula uma forma de hierarquia social, em que os homens são os

detentores do poder e as mulheres estão a eles subordinadas, numa relação em que a autoridade social é exercida por meio dos papéis de pai e de marido.

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138

O Questionário (Anexo A), aplicado aos alunos, no primeiro dia de aula, não

foi intencionalmente elaborado para coletar dados para esta pesquisa singular.

Pretendia conhecer o entendimento demonstrado pelos alunos sobre a Psicologia e

a profissão, uma vez que estavam se candidatando à profissão de psicólogo e

ingressavam em um curso superior de Psicologia. Havia também o interesse inicial

de registrar os motivos referentes à escolha profissional e à expectativa futura de

atuação, dados que deveriam compor um banco de informações sobre o Curso, para

posterior análise.

Em se tratando de um questionário com perguntas abertas, procedeu-se a

uma primeira tabulação que, se considerada de forma de linear, apresenta respostas

soltas. A análise das respostas, entretanto, revelou-se mais consistente quando se

desconsiderou a seqüência das perguntas, da forma como haviam sido organizadas,

agrupando-as em três categorias, a saber:

• caracterização da profissão – perguntas: 1) O que é a Psicologia?; 3) O

que é para você ser psicólogo?; e 8) Quando você acha que deve procurar

um psicólogo?;

• caracterização do profissional – perguntas: 4) Para você o que faz um

psicólogo?; 9) Onde trabalha o psicólogo?; 6) O psicólogo trabalha com...;

7) Que qualidades pessoais você acha que um psicólogo deve ter?;

• investimento pessoal na profissão – perguntas: 10) Por que você escolheu

ser psicólogo?; 11) Em que área/atividade você pretende trabalhar como

psicólogo?

É importante esclarecer que a questão nº 2, sobre o fato de conhecer algum

psicólogo, não foi agregada à análise da caracterização da amostra dos estudantes,

enquanto a de nº 5 (Quando pensa em psicólogo, você lembra...) foi desconsiderada,

em função da multiplicidade de associações que suscitou nos alunos, o que

impossibilitou juntá-la a qualquer uma das três categorias definidas para análise.

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139

Os dados estão desagregados em masculino e feminino, a fim de tornar mais

evidente o recorte de Gênero.

4.2.1 Visão da profissão

Ao caracterizar a Psicologia, os estudantes que ingressaram no Curso, em

sua grande maioria (89,6% para mulheres e 96% para os homens), consideraram a

Psicologia como ciência, mas entenderam diferentemente seu objeto de estudo. Os

alunos referiram-se ao estudo do comportamento, da mente, das relações humanas,

da psique, da alma, dentre outras respostas.

Fica evidente a existência de uma multiplicidade de possíveis objetos de

estudo para a Psicologia, o que traz, de alguma forma, a historicidade do

desenvolvimento desta ciência ou, pelo menos, a inexistência de uma compreensão

única para o que seja esta ciência. Considerando-se que o termo psicologia deriva

da junção de dois vocábulos gregos (psyché e logos), cujo significado é o estudo da

alma, o objeto da Psicologia evoluiu e diversificou-se, desde que o saber da filosofia,

passou pela adesão ao modelo positivista, para obter foro de ciência no século XIX,

até os dias de hoje. Neste período de civilização ocidental, a Psicologia vem

deslocando e incorporando outros objetos de estudo, ampliando seu leque de

interesses e evidenciando a complexidade que a constitui.

Com relação ao objeto de estudo, então, a Psicologia, historicamente, pode

ser definida de várias formas: como estudo da alma (na perspectiva da filosofia), da

consciência (para a psicofisiologia e a psicofísica), do comportamento (na

perspectiva da psicologia behaviorista), da subjetividade humana (nos estudos de

orientação psicanalítica), das relações humanas (do ponto de vista das teorias de

fundamentação humanista), dos fenômenos psicológicos (na perspectiva sócio-

histórica), dentre muitas outras possibilidades.

Sabe-se que esses objetos de estudo configuram, além de momentos

históricos diferentes para o desenvolvimento da ciência psicológica, correntes

teóricas distintas, que estabelecem uma tensão no seio da Psicologia, visto que,

inspirados num modelo de conhecimento positivista, travaram ou ainda travam

muitos embates, aspirando cada qual ser a “verdade” da psicologia.

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140

E hoje, ancorados em um paradigma de ciência que advoga a existência de

“verdades” como fenômenos complexos, circunscritos a questões espaço temporais

e submetidos a múltiplas determinações, e o conseqüente reconhecimento da

multiplicidade e aceitação da diversidade, pode-se falar da Psicologia como uma

ciência cuja identidade é conferida por um mosaico teórico-conceitual em permanente

tensão e movimento (BOCK, 1999; CARPIGIANI, 2000; LANE; CODO, 1984).

A despeito desta complexidade e diversidade teórica que orienta a práxis do

psicólogo, e que extrapola os ambientes que congregam psicólogos para uma

visibilidade social, a Psicologia, enquanto profissão, é predominantemente

identificada com o exercício clínico realizado em consultório particular, na

perspectiva de um atendimento “curativo/resolutivo” para problemas de ordem

“psicológica/privada” de pessoas com dificuldades pessoais.Esta é uma posição que

pode ser considerada hegemônica para a representação social do trabalho do

psicólogo. E isso é verificado nas respostas dos questionários dos estudantes,

notadamente quando se analisam duas perguntas (o que é ser psicólogo e quando

se deve procurar um psicólogo) em conjunto.

No Gráfico 1, está caracterizado o psicólogo como profissional de ajuda, com

aproximadamente 70% do total de respostas de ambos os sexos, quando se utilizam

os verbos ajudar e entender.

0,00% 5,00% 10,00%

15,00%

20,00%

25,00%

30,00%

35,00%

40,00%

45,00%

50,00%

Ajuda (ajuda / auxilia / orienta / esclarece)

Ajuda e entende

Entende (compreende / connhece)

Resolve

Cuida

Ouve

Cura

Outros

Não respondeu

Fem. Masc.

Gráfico 1 – Psicólogo - profissional de ajuda

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141

Verifica-se, no entanto, na perspectiva masculina, que a ajuda está associada

ao cuidar, mas também a uma vertente resolutiva e até de cura, o que se diferencia

do entendimento das mulheres, para quem a ajuda está mais associada ao

compreender e ao ouvir. Essa concepção de ajuda fica mais evidente quando se

observa que a procura ao profissional da psicologia deve ocorrer, do ponto de vista

dos estudantes, quando surgem problemas de natureza subjetiva que as pessoas

(candidatos a atendimento psicológico) não conseguem resolver sozinhas e buscam

um profissional para auxiliá-las. Em suas respostas, dentre outros depoimentos

semelhantes, afirmam que se deve procurar um psicólogo:

[...] quando se está desestabilizado emocionalmente. [...] quando o problema está além da compreensão de pessoas sem experiência no assunto. [...] quando se precisa de alguém para ajudar a se entender, a se encontrar.

Essas evidências apontam para uma concepção de profissional da psicologia

do ponto de vista tradicional, como o profissional da clínica, que atua numa área

curativa, visto que deverá ajudar a solucionar ou resolver problemas, tal como no

modelo médico. Nesse particular, os depoimentos apontam para um entendimento

da clínica como sinônimo de prática psicoterápica em consultório. A esse respeito,

Rosemary Achcar e Antonio Bastos (1994, p. 249) esclarecem:

Uma atuação centrada no indivíduo voltada para mensurar atributos psicológicos e para solucionar ou amenizar problemas ou distúrbios psicológicos tem dimensões básicas que definem o que se chama atuação clínica em psicologia. A força que tal tipo de intervenção exerce na definição da identidade do profissional de psicologia extrapola, largamente, o que se convencionou chamar de área clínica e atravessa a atuação do psicólogo em diversos outros contextos de trabalho.

E isto quer dizer que este modelo estereotipado, de fato, povoa o imaginário

social da profissão e é alimentado pelos posicionamentos dos próprios psicólogos.

Branco (1998) concorda com esse pensamento, acrescentando que a referência do

consultório é tão importante para a construção da identidade do psicólogo que,

quando não trabalha no consultório, ele tem dificuldade na construção de suas

identificações como profissional.

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142

Este dado revela-se muito importante, porque demonstra como se dão às

relações entre os psicólogos e a sociedade. Aponta também para a maneira como

os cursos de formação têm trabalhado para manter uma posição quase hegemônica

da psicologia, privilegiando um modelo biomédico de prática psicoterápica, em que

estão em jogo, numa relação linear, a “cura” para a “doença” ou a “solução” para o

“problema”. E esta, enquanto visão reducionista para a clínica, o é também para a

diversidade de possibilidades de atuação do psicólogo, especialmente no cenário

social que se esboça na sociedade contemporânea, com novas configurações que

incitam a criatividade para desbravar novos campos de trabalho e criar práticas

inovadoras.

A referência do consultório como um dado muito importante para a construção

da identidade do psicólogo, referida por Rosemary Achcar e Antonio Bastos (1994) e

Maria Tereza Branco (1998), revela-se com igual peso para uma ocupação feminina,

porquanto a clínica atende aos ideais sociais do trabalho da mulher que, via de

regra, precisa dividir suas atribuições profissionais com as tarefas domésticas, entre

elas, a de cuidar dos filhos. É a atividade no consultório, porém, como profissional

autônomo, sujeito a todas as prerrogativas e encargos exigidos pela legislação

desse tipo de trabalho, que confere ao psicólogo e à psicóloga o status de

profissional liberal, assegurado pelo Parecer 403/62 (CFE, 2006).

O exercício clínico em consultório privado revela-se a prática preferida pelos

psicólogos e psicólogas, conforme pesquisas realizadas em âmbito nacional e

anteriormente referidas; este é também o projeto idealizado pelos alunos que

ingressam nessa formação no Curso de Psicologia em foco.

Em se tratando de trabalho autônomo, que pode ser realizado em qualquer

turno, inclusive à noite, permite uma grande flexibilidade de horário, favorecendo os

arranjos domésticos, mesmo que não proporcione proventos substantivos à

profissional e, nesse particular, propicia que a renda da mulher possa ser

considerada como renda complementar no orçamento doméstico, não sendo

decisiva ou determinante do padrão de vida familiar. Neste sentido, corrobora o que

diz Luiz Scorzafave (2005) sobre a participação da mulher no Mercado de Trabalho.

Via de regra, do ponto de vista da família tradicional, cabe ao homem, quando

presente na vida familiar e dividindo o mesmo domicílio, a função de provedor,

podendo a mulher ajudar na renda familiar, desde que não decline de cumprir suas

obrigações de esposa e mãe (SAFFIOTI, 1992).

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143

Em 1989, em uma edição dedicada à discussão de questões relacionadas ao

ensino da Psicologia, intitulada Os Dilemas da Formação do Psicólogo, Antonio

Bastos e Paula Gomide (1989, p.7-8), a respeito da psicologia como profissão

feminina, defendem: “[...] esse dado é importante para a compreensão de vários

aspectos ligados ao exercício profissional, como por exemplo, o entendimento das

mulheres do que seja uma profissão complementar a sua atividade principal – o

casamento [...]”

Referindo-se a aspectos salariais das psicólogas, os autores citados afirmam

que, embora sendo profissionais liberais autônomas, a renda das psicólogas

brasileiras não se diferencia de outras profissões consideradas femininas, que numa

sociedade estruturada sob a égide masculina, são desvalorizadas no mercado de

trabalho. E sobre carga horária dedicada ao trabalho, Antonio Bastos e Paula

Gomide (1989) sustentam que a média de carga semanal trabalhada pelas

psicólogas é inferior à da média de outras profissões no Brasil.

Estudos realizados por Luiz Guilherme Scorzafave (2001), a respeito da

participação das mulheres no Mercado de Trabalho, utilizando-se da Taxa de

Participação na Força de Trabalho (TPFP), indicam que a decisão das mulheres em

entrar na força de trabalho está condicionada a fatores outros alheios a si própria e

que dizem respeito a suas condições familiares. Argumenta o autor: “[...] a renda de

outros membros do domicílio, o número de filhos pequenos, a presença de adultos

no domicílio, e a posição da mulher na família são fatores que influenciam tal

decisão.” (SCORZAFAVE, 2001, p. 5).

Essa assertiva, quando confrontada com os dados até agora analisados,

configura a psicologia como uma profissão feminina.

4.2.2 Aspectos relevantes do profissional

Das perguntas do questionário, quatro contemplam dados que se referem ao

profissional da psicologia. A análise conjunta permitirá caracterizar este profissional

do ponto de vista dos estudantes. Trata-se das perguntas: “o que faz o psicólogo”;

“onde trabalha o psicólogo”; “o psicólogo trabalha com...”; “quais são as qualidades

pessoais que o psicólogo precisa ter?”

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144

Como referido anteriormente, para que um fazer profissional seja considerado

como uma profissão, é necessário que se delineie como um trabalho especializado e

seja teoricamente fundamentado, além de se balizar em proposições éticas e ser

regulamentado oficialmente pelo Estado, como propõem Fernanda Pereira e André

Pereira Neto (2003).

Os estudantes da pesquisa em foco, ao ingressarem no Curso de Psicologia,

em conformidade com o que anteriormente responderam sobre a profissão,

caracterizam o psicólogo como profissional de ajuda, conforme se pode verificar no

Gráfico 2:

0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00% 70,00% 80,00%

Ajuda

Ajuda-se

Cuida

Cura / recupera / soluciona

Pesquisa / estuda

Não respondeu

Outros

Fem. Masc.

Gráfico 2 – Psicólogo: um profissional da ajuda

Observe-se, porém, que a ajuda, do ponto de vista masculino, está associada

a uma perspectiva de cura, recuperação e resolução. Alguns depoimentos

masculinos enunciam:

O psicólogo, com bases empíricas, procura solucionar problemas individuais ou sociais de aspecto psíquico, comportamental etc. Orienta, ajuda, muitas vezes, reconstrói a vida.

A perspectiva clínica da Psicologia revela uma característica peculiar dessa

profissão que a coloca na fronteira entre o cuidar e o curar, como pode ser

constatado em levantamentos realizados em outras pesquisas. Essa proposição, a

princípio, coloca a profissão da psicologia num terreno de disputa, em que estão em

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jogo os poderes de quem cura em oposição às tarefas de quem cuida, conforme

discute Elizete Passos (1997). De acordo com Joan Tronto (1997), as profissões que

assumem características de “cuidar de” referem-se a tarefas que não podem mais

ser realizadas no âmbito familiar, mas identificam-se com os atributos femininos.

Questionados sobre onde trabalha o psicólogo, as respostas dos estudantes

estão representadas no Gráfico 3:

0,00% 5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00%

Hospitais

Clínicas

Consultório

Empresas / Organizações

Escolas

Ong´s

Outras áreas

Fem. Masc.

*Nesse gráfico foram considerados os números de ocorrência

Gráfico 3 – Psicologia – áreas de atuação

É interessante observar que, neste aspecto, homens e mulheres possuem, de

fato, informações sobre as áreas tradicionais de atuação da psicologia, mas nenhum

homem referiu-se à possibilidade do psicólogo trabalhar em ONG. Essa resposta,

provavelmente, decorre da idéia popular que se tem desse tipo de instituição como

prestadora de serviços gratuitos a populações carentes, revestindo-se de uma nova

roupagem para instituições de caridade. E não faz parte do que se espera de um

homem nordestino, que ele realize profissionalmente trabalhos assistencialistas de

caridade. Isso é coisa de mulher!

Uma análise mais detalhada do gráfico, entretanto, revela que quase 50% das

respostas apontam para uma atuação clínica, seja em consultório, clínicas ou

hospitais, consolidando o posicionamento da psicologia no viés individualizado,

privado e também curativo e reparador, conforme discutido anteriormente. A clínica,

que mais uma vez aparece como a grande demanda dos estudantes que aspiram a

psicologia como profissão, demonstra o sonho do consultório privado, onde os

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pacientes terão acolhida para seus segredos e sofrimentos mais intensos, com

possibilidade de resolutividade. Considere-se ainda que é o trabalho no consultório

que dá à Psicologia o status de profissão liberal e isto tem um impacto muito positivo

na sociedade, conferindo prestígio social aos profissionais.

As respostas dos alunos e alunas sobre o ser psicólogo evidenciam certa

fantasia sobre o suposto “psicólogo clínico”. Indica provavelmente que deve estar

sendo representado, tal como era exercido no início da profissão, nos idos de 1970,

conforme definem Rosemary Achcar e Antonio Bastos (1994), quando explicitam o

modelo hegemônico que caracteriza a atuação do psicólogo no Brasil. Segundo os

autores, há o predomínio das atividades clínicas, marcadas pela atuação em

consultório particular, com dedicação parcial de tempo, no exercício psicoterapêutico,

preferencialmente dirigido à clientela adulta e de classe média.

Ana Bock (1999), entretanto, ao discorrer sobre a história da Psicologia no

Brasil, assegura que a partir da década de 1980, nos meios psicológicos brasileiros,

já havia uma tentativa de reinventar o psicológico. Refere-se a um questionamento

deflagrado pelas entidades representativas da psicologia para discutir a função

social da psicologia e da profissão, redefinindo seu lugar na sociedade

contemporânea. Nesse particular, Eliane Moura (1999) adverte sobre a necessidade

de se redefinir o modelo de atuação de psicólogos, a fim de ultrapassar os limites

restritos do consultório. Isso também levou João Ferreira Neto (2004, p.163) a falar

sobre um modelo estereotipado de profissional ou seja: “[...] um modelo de prática

liberal autônoma, individual, voltada para as classes médias e altas em consultórios

particulares.” E assegura este mesmo autor que, nos dias de hoje, a clínica

psicológica vem sendo redefinida com base nas novas práticas profissionais e

propõe que ela seja pensada não mais como área de atuação, mas como uma

atitude, como ethos.

Quanto ao objeto de trabalho de psicólogos, os estudantes que responderam

ao questionário posicionaram-se, em torno de 50% para ambos os sexos,

explicitando que psicólogos trabalham com pessoas, incluindo pessoas que

necessitam de ajuda, seguindo-se, em ordem decrescente, trabalho com a mente

humana, com o comportamento, com as relações, dentre outras respostas.

É no item referente às qualidades pessoais que o psicólogo deve possuir,

entretanto, que se revela, com maior intensidade, o peso da profissão feminina. Nas

respostas dadas pelos estudantes, pode-se verificar que há diversos aspectos

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avaliados. Algumas respostas referem-se às qualidades na ação profissional; outras

ao modo de ação profissional, aos aspectos éticos, à competência técnica e também

a aspectos pessoais. Na computação dessas respostas, foi considerado o número

de ocorrência de cada categoria citada pelos alunos e não há uma correspondência

de uma resposta para cada estudante.

Observa-se, no Gráfico 4, que a paciência aparece, nas respostas do grupo,

como a qualidade mais citada, porém, nas respostas masculinas, a paciência vem

acompanhada, em ordem decrescente, por saber ouvir/ ter atenção, equilíbrio, saber

falar e ter imparcialidade. Nas escolhas femininas, entretanto, sobressaem, junto

com a paciência, saber ouvir/ter atenção, compreensão, e sensibilidade; esta última

sequer foi citada pelo sexo masculino.

0,00% 5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00% 30,00%

Paciência

Saber ouvir / ter atenção

Compreensão

Sensibilidade

Imparcialidade

Equilíbrio

Calma

Ser observador

Competência

Ser ético

Saber falar

Inteligência

Vontade de ajudar

Responsabilidade

Sinceridade

Ter senso crítico

Simpatia

Ter amor ao trabalho

Fem. Masc.

Gráfico 4 – Qualidades pessoais do Psicólogo

Os alunos estão falando de atributos socialmente definidos como masculinos

e femininos, sem se darem conta disso, porém, evidenciam o peso de Gênero na

visão que atribuem ao profissional e à profissional. Historicamente, homens e

mulheres posicionam-se socialmente de forma assimetricamente diferente, em

decorrência dos significados simbólicos atribuídos à diferença sexual, e isso está

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relacionado a Gênero. Esses Estudos asseguram que é no âmbito do social que se

constroem e se reproduzem as relações de desigualdade entre os sujeitos, levando-

se em conta as condições de acesso aos recursos da sociedade e às formas de

representá-los simbolicamente. Na sociedade capitalista ocidental, consoante Elizete

Passos (2001, p. 160), a desigualdade entre os sexos tem sua origem na sociedade

patriarcal

[...] que inculcou no sexo masculino a idéia de supremacia sobre o feminino, sobre o mundo e seu destino. Eles são vistos como mais inteligentes, capazes de formulações racionais ilimitadas, assim de uma liberdade que os autoriza a conquistar o mundo e as pessoas, estabelecendo com elas uma relação de mando e poder.

A noção de poder implicada nesse modelo falocrático de superioridade

masculino assenta-se nos estudos realizados por Michel Foucault (1999; 2001a).

Este autor define o poder como uma relação social e afirma que o poder não existe,

mas existem práticas e relações de poder.

Observe-se que nas respostas dos estudantes, características de sensibilidade,

simpatia e amor pelo trabalho são atributos citados apenas pelas mulheres, o que

leva à suposição de que estas estudantes estão referindo-se aos “dotes naturais” da

mulher e confirmando que a psicologia é uma profissão para mulheres.

Esses dados podem ser analisados do ponto de vista de Joan Tronto (1997,

p. 188), que estabelece a diferença entre o “cuidado com” e o “cuidado de”,

porquanto o “cuidado com” refere-se a uma perspectiva geral e, de maneira

habitual, é aquele a que os homens dedicam-se quando cuidam da profissão, da

natureza etc. O “cuidado de” exige, no entanto, uma abnegação, na qual o objeto

cuidado torna-se o centro, sendo aquele que é exercido pelas mulheres. Impõe que

a pessoa esteja disposta a trabalhar, a se sacrificar, a gastar tempo e energia e

mostrar envolvimento emocional.

4.2.3 Investimento pessoal na profissão

Questionados sobre os motivos pelos quais escolheram a profissão de

psicólogo e psicóloga, os alunos e alunas, sinteticamente, posicionaram-se da

seguinte forma:

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0,00% 5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00% 30,00% 35,00% 40,00% 45,00%

Vocação / identificação com a profissão

Desejo de ajudar pessoas

Desejo de ajudar-se

Interesse em estudar / entender (ocomportamento, as pessoas, a mente)

Descobrir o que se passa "dentro" dooutro

Está em dúvida

Outros

Não respondeu

Fem. Masc.

Gráfico 5 – Por que escolheu ser Psicólogo?

Um contingente razoável de alunos, em torno de 40%, declarou-se

vocacionado para a Psicologia ou sente-se identificado com os atributos conferidos a

essa profissão. Observando-se as respostas dos estudantes do curso em foco,

porém, quando a maioria manifesta identificação com a profissão, as respostas

masculinas atribuem o maior peso, além da vocação, ao interesse em estudar e

entender o comportamento e a mente das pessoas, seguido do desejo de ajudá-las

Já no universo feminino, a preferência das alunas revela que a vocação é seguida

do desejo de ajudar o outro, de entender o comportamento e a mente e também do

desejo de realizar a auto-ajuda. Observe-se que os homens não se referem à

possibilidade da auto-ajuda.

Confrontando esses resultados com a pesquisa de Mauro Magalhães et al

(2001), realizada no Rio Grande do Sul, observa-se que há uma correspondência

entre as respostas que eles encontraram e as do nosso questionário, como é

possível verificar na declaração dos autores: “[...] os motivos apresentados para a

escolha da profissão foram: desejo de ajudar (75%), busca de crescimento pessoal

(20%), fascínio pelo conhecimento psicológico (62,5%) e busca de competência

interpessoal (22,5%).” (MAGALHÃES et al, 2001, p. 17). E esclarecem que esses

motivos não apareciam de forma estanque, mas estavam sempre entrelaçados.

Depreende-se da análise dos questionários dos alunos a vocação ou

identificação direcionada para a ajuda ao outro que se encontra em situação de

sofrimento. Este é, obviamente, um sofrimento psíquico, o que denota, mais uma

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vez, a presença marcante do modelo clínico tradicional no imaginário dos alunos,

conforme discutido, e pode ser ilustrado com os seguintes depoimentos:

[...] sou encantada em relação ao ser humano, seu comportamento, seus problemas da subjetividade e ajudar as pessoas em relação a isso, é o que eu quero. [...] porque me identifico muito com a Psicologia e tenho verdadeira paixão e admiração por tal. [...] porque percebi que tinha vocação para ouvir pessoas, ajudar em seus problemas, dividir suas alegrias e dúvidas e auxiliar no que puder para que as pessoas as quais ouço tenham um bem-estar.

Os estudantes de psicologia, no momento de sua escolha profissional e

ingresso no curso, vislumbram uma futura atuação profissional de modo coerente

com aquela visão tradicional que demonstram ter da psicologia e do psicólogo, como

se pode observar no Gráfico 6, que demonstra a área em que gostariam de

trabalhar. Reconhece-se que esta questão, no momento inicial do curso, mostra uma

escolha prematura, apenas calcada no imaginário sobre a profissão, mas pode-se

constatar o fascínio da clínica, do atendimento individual na perspectiva

resolutiva/curativa, nas escolhas referentes às áreas clínica e hospitalar/saúde.

0,00% 5,00% 10,00% 15,00% 20,00% 25,00% 30,00% 35,00%

Clínica

Clínica e * ....

Hospital / Saúde

Organizações

Educação

Pesquisa

Área social

Jurídica

Esportes

Não sabe / não decidiu

Outros

Não respondeu

Fem. Masc.

Gráfico 6 – Área que pretende trabalhar

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151

Somando-se as respostas referentes à Clínica, Clínica33 e Hospital/Saúde,

tem-se em torno de 80% das respostas masculinas e 40% das respostas femininas.

Tendo em vista que tanto a Psicologia Hospitalar quanto aquelas que se abrigam

sob o rótulo de Saúde Mental podem ser consideradas desdobramentos da

Psicologia Clínica, conforme Maria Tereza Carvalho e Jader Sampaio (1997), mais

uma vez aparece, de forma contundente, o peso de gênero.

Os alunos do sexo masculino escolheram apenas a área identificada com a

clínica e a pesquisa, coerente com as respostas do quadro anterior, quando afirmam

que desejam estudar a mente das pessoas e com o perfil social desejável para o

homem. Esta é considerada a área em que o psicólogo pode exercer domínio sobre

o outro que busca ajuda e, supostamente, o faz do mesmo modo que o médico.

Assim como o paciente entrega sua vida ao médico para curar seu corpo, o paciente

da psicologia entrega sua vida para o profissional “resolver”, “dar solução”, “aliviar o

sofrimento, os males, as dores da alma, do espírito” ou até curá-las. Além de ser o

campo de trabalho que confere maior prestígio social aos profissionais da psicologia,

aí reside um suposto poder que o saber peculiar da profissão confere, na

perspectiva do senso comum, ao psicólogo e às psicólogas. Os homens aspirantes a

psicólogos, portanto, admitem trabalhar em outras áreas de atuação, pois, conforme

visto anteriormente, há conhecimento, por parte deles, de diversas possibilidades

profissionais, porém, para eles, isso só será possível sem abrir mão do exercício

clínico.

As mulheres, por sua vez, indicam que poderão trabalhar em outras áreas

profissionais, dentre elas, as áreas emergentes da Psicologia, como jurídica, social,

esportes, o que demonstra coragem de criar, de investir no novo e de ousar, em

sintonia com o movimento das mulheres na sociedade atual, que busca superar os

limites dos posicionamentos tradicionais impostos pela sociedade patriarcal. Quando

da associação da atuação clínica com outras formas de atuação, porém, as

mulheres fazem a escolha de maior peso na atuação hospitalar, como pode ser

verificado no Gráfico 7:

33 Refere-se a dados dos alunos nos quais escolhem trabalhar em outro campo de atuação

juntamente com a Clínica e esse dado será melhor explorado no quadro seguinte

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0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00% 70,00% 80,00% 90,00%

Clínica e Hospital

Clínica e Organização

Clínica e PNEE

Clínica e Grupo

Clínica e Ensino

Fem. Masc.

Gráfico 7 – Opções de área de atuação a serem exercidas concomitante ao trabalho clínico

Como se sabe, o hospital é o espaço privilegiado do saber médico, onde este

exerce a liderança dos profissionais da saúde e conduz o tratamento dos enfermos

sob a prerrogativa de que, com seu saber, hierarquicamente superior aos demais,

proporciona a cura. O psicólogo, assim como os demais profissionais de saúde que

atuam nos hospitais, a despeito de possuir seu saber específico, diferenciado,

inclusive, do saber médico, exerce o cuidado necessário e complementar ao poder

da cura, exclusivo do médico.

Aparece, nesta questão, a fronteira do cuidar e do curar que caracteriza o

embate entre as profissões (PASSOS, 1997). Para Michel Foucault (1999), o poder

não tem um lócus específico para ser reconhecido, mas é disseminado pela

estrutura social. O poder é funcional, porque exercido por alguém em relação a seu

par complementar que, por sua vez, está respaldado em prerrogativas que as

normas sociais lhe conferem. O poder não se caracteriza por uma relação de força,

mas num jogo que circula entre as pessoas e os grupos, nos quais os

posicionamentos podem ser de cumplicidade ou de resistência. No campo

profissional, demarca fronteiras físicas e simbólicas, que delimitam profissões de

maior e menor prestígio e reconhecimento social.

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153

4.3 TRAÇANDO UM PERFIL

Os dados analisados permitiram pensar em um perfil dos estudantes que

ingressam no Curso de Psicologia que estamos estudando. Trata-se de jovens da

classe média, média/alta da sociedade baiana, com idade predominante que varia

de 16 a 19 anos, que convivem com os pais, tiveram acesso ao ensino superior,

sentem-se vocacionados para a Psicologia e o fazem com o desejo de ajudar

pessoas com problemas, no exercício clínico da psicologia. Como identificam o

psicólogo como profissional de ajuda, acreditam que é necessário ser paciente e

desenvolver a escuta para atender o outro. A grande diferença é que este perfil

comum delineia psicologias diferentes para homens e para mulheres, determinadas

pelo viés de Gênero.

Os homens desejam ajudar as pessoas na condição de psicólogos clínicos ou

pesquisadores da psicologia. Nesse particular, poderão usar sua capacidade de

raciocinar, de decidir, de comandar, tendo equilíbrio, sabendo falar e sendo

imparciais. As mulheres, por sua vez, desejam ser psicólogas e também desejam

ajudar as pessoas, desenvolvendo habilidades “naturais” da mulher. No exercício

clínico ou em qualquer outra área de atuação, declaram que necessitam exercitar a

compreensão e a sensibilidade. E ambos sentem-se fascinados pela Psicologia!

Neste trabalho sobre a construção de identidades profissionais em Psicologia,

esses dados revelam o posicionamento dos alunos como uma identidade idealizada,

pressuposta, utilizando o termo de Antonio Ciampa (1987; 1994), como algo a ser

conquistado e adquirido como atributo.

Partilha-se, entretanto, de um entendimento de identidade como um processo,

como um movimento contínuo de diferentes e sucessivas identificações que se

interpõem entre as pessoas, num jogo infinito de igualdade e diferença, aproximação

e distanciamento, que permite, por meio do discurso, que se reconheçam os iguais e

os diferentes, como ensina Stuart Hall (2000). E é esta a proposta desta tese.

As identidades, portanto, são construídas mediante diferentes atravessamentos,

sendo históricas, fluidas e mutantes. Neste sentido, a vivência acadêmica

universitária constitui-se em espaço privilegiado para a construção das identidades

profissionais, tendo em vista que a escola utiliza-se de diversificadas estratégias

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para produzir conhecimentos relacionados a um projeto particular, no caso deste

estudo, a construção de identidades em Psicologia.

Uma das funções da escola é possibilitar que o aluno possa produzir sentidos

para o mundo que habita, por meio dos discursos que viabiliza e favorece. Na

formação profissional, esses discursos, como refere Michel Foucault (2001a),

formatam não apenas aquilo que se é, mas aquilo que se torna.

De posse desse material, que sinaliza para o entendimento prévio dos alunos

sobre a Psicologia e a profissão, nos capítulos subseqüentes, verifica-se, do ponto

de vista dos estudantes e à luz dos aportes teóricos escolhidos para fundamentar o

trabalho, como essas concepções vão sendo ressignificadas durante o curso.

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Eu fiz aqui uma borboleta, que é o símbolo da transformação, eu te falei que eu tô me

transformando...

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156

5 VIVÊNCIA CURRICULAR – CONSTRUINDO AS IDENTIDADES

Como se discute ao longo deste trabalho, a proposta desta tese é

compreender a construção de identidades em Psicologia de estudantes de um curso

singular, com base na vivência acadêmica do processo curricular, considerando,

nesta construção, a psicologia como uma profissão feminina. Trata-se de

compreender a formação de psicólogos e psicólogas, do ponto de vista dos alunos,

tentando elucidar os caminhos e descaminhos pelos quais aproximam-

se/distanciam-se do que acreditam ser o profissional ou a profissional da psicologia.

No capítulo precedente, analisou-se um questionário respondido pelos alunos

no primeiro dia de aula do Curso, com foco no entendimento que demonstravam ter

sobre a Psicologia e a profissão. Ficou evidente que seus posicionamentos diziam

respeito àqueles conhecimentos que se elabora no senso comum e que coincide

com a imagem social da profissão.

Neste capítulo, pretende-se discorrer sobre a forma como esses estudantes

ressignificam suas concepções, influenciados pela vivência acadêmica do Curso, e

como esta vivência permite-lhes construir suas identidades profissionais. Nessa

perspectiva, a ótica de análise situa-se nos estudos contemporâneos sobre

Identidade, Currículo e Gênero.

Como se trata da análise dos dados coletados durante a pesquisa, é

importante demarcar, com relação ao campo empírico, que esta pesquisa teve dois

momentos distintos: o primeiro, diz respeito à condensação e análise do questionário

respondido pelos alunos no primeiro dia de aula e que foi objeto de análise no

capítulo anterior; e o segundo, constitui-se na realização de Grupos Focais com

alunos e professores, além da Análise Documental.

Tomando como referência as oito turmas já referidas, consideradas como o

universo de alunos da pesquisa, foram realizados cinco Grupos Focais — os alunos

foram convidados nas salas de aula, por semestre, e aderiram espontaneamente —

constituídos da seguinte forma: o primeiro grupo, do 10º semestre, contou com 4

alunas; o segundo, também do 10º semestre, porém outra turma, com 5 estudantes,

sendo quatro do sexo feminino e um do sexo masculino; o terceiro grupo, do 9º

semestre, contou com 7 alunos, sendo 1 homem e 6 mulheres; o quarto grupo, com

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estudantes do 7º semestre, contou com 6 estudantes, sendo apenas um do sexo

masculino; e o 5º grupo, também de concluintes (10º semestre — outra turma) com

5 alunas, foi constituído só de mulheres. Ou seja, dos 27 alunos que participaram

dos Grupos Focais, houve a participação de 3 estudantes do sexo masculino.

Com relação ao grupo formado por professores, convidados a participar e que

aderiram por sua livre vontade, contou-se com a participação de 9 professores,

sendo seis do sexo feminino e três do masculino.

A análise que se segue diz respeito aos posicionamentos dos alunos e

professores que participaram dos Grupos Focais e pretende explicitar como os

estudantes ressignificaram o entendimento que esboçaram sobre a Psicologia e a

profissão, assim como evidenciar as práticas curriculares que, durante o curso, do

ponto de vista deles, mais contribuíram para que pudessem sentir-se psicólogos e

psicólogas. As falas dos sujeitos serão identificadas por grupo; quando se refere a

um diálogo no grupo, os participantes serão distinguidos por um número

correspondente aos componentes daquele grupo.

5.1 AS PSICOLOGIAS – UMA MULTIPLICIDADE DE ABORDAGENS

A Psicologia, enquanto saber, parece exercer um fascínio sobre determinadas

pessoas. No entendimento do senso comum, identificam-na com a possibilidade de

compreender e explicar os problemas “existenciais” que afligem os seres humanos.

Segundo Ana Bock (1999b, p. 15): “[...] as pessoas, em geral, têm um domínio,

mesmo que pequeno e superficial, do conhecimento acumulado pela psicologia

científica, o que lhes permite usá-lo, na vida cotidiana, com vários sentidos.” Pôde-se

compreender, no capítulo precedente, como este saber direciona estudantes para a

escolha profissional da psicologia. Neste capítulo, procura-se constatar como este

saber, ao ser confrontado com o conhecimento científico acumulado, proporciona

novas sínteses que reorganizam tanto o pensamento quanto a assunção de

determinadas posições sociais.

Boaventura Souza Santos (2001), ao referir-se à ruptura do conhecimento

científico com o senso comum, quando aquele supervalorizou a mensuração, a

fragmentação dos saberes e a adoção de leis universais, advoga ser necessário, no

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atual patamar do desenvolvimento científico, uma nova ruptura, desta vez com esse

conhecimento legitimado pela modernidade. Considera que, enquanto a primeira

ruptura foi imprescindível para a construção das ciências, a segunda incorpora o

senso comum como base para o desenvolvimento da própria ciência, criando uma

nova relação da ciência com o senso comum, na qual é possível pensar em novas

formas de conhecimento.

A escola, como espaço multicultural, no qual coexistem grupos distintos, com

múltiplos discursos e formas de expressão, não pode e não deve desconsiderar

essas novas possibilidades de conhecimento. Assim sendo, pode valorizar o senso

comum, entendido como aquele adquirido como herança social que permite a

organização da vida cotidiana, e cumprir sua função social, ao fazer a mediação

desse saber com aqueles considerados científicos em seus múltiplos

posicionamentos e leituras disciplinares, utilizando-se de diversificadas linguagens,

que proporcionem leituras multi, inter e transdisciplinares da realidade.

Os alunos do Curso de Psicologia que se estuda, como referido

anteriormente, ao ingressarem no curso, o faziam com base em uma imagem social

da profissão, coerente com aquela que é veiculada pelo senso comum, e

esboçavam entendimento sobre fenômenos psicológicos e atuação profissional

coerentes com esta imagem que, socialmente, a prática profissional do coletivo de

psicólogos oferece à comunidade.

Havia, nas respostas que esboçaram, quase um consenso de que a

Psicologia é uma ciência que estuda o comportamento humano, a psique, as

relações humanas, a alma ou a mente. De maneira geral, uma diversidade de

objetos de estudo apareceu nas respostas dos alunos ao questionário, porém, a

maioria deles definiu-se por apenas um aspecto.

Como já abordado, a Psicologia configura-se como um mosaico, constituído

de concepções filosóficas e epistemológicas distintas, que formata orientações

teóricas diversificadas e desdobra-se em possibilidades de atuação profissional

diversas, tanto no que se refere a campos de trabalho como ao tipo de intervenção

que produz.

A vivência curricular expõe o aluno a essa diversidade e multiplicidade que

desconhecia ao ingressar no curso. Isso provoca algumas reações peculiares, como

é o caso de uma estudante do 4º grupo, que assim se manifesta:

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[...] quando eu iniciei, quando eu pretendi fazer psicologia, eu pensava a psicologia, algo bem único, tinha idéia de uma mesma coisa, eu não pensava nessa diversidade tão grande, de [...] porque nós somos diversos. Eu não tinha essa idéia dessa tamanha possibilidade, de tanta coisa que a gente pode fazer. Eu acho que também esse fato de ser tão característico do curso, deixa também a gente meio perdido.

Fica evidente, no depoimento da estudante, a complexidade que a psicologia

exibe quando se revela como multiplicidade. Acostumadas a raciocinar numa

perspectiva linear, a buscar causalidade única para os fatos, perseguindo a

“verdade”, como no ideário moderno de ciência, as pessoas desestabilizam-se

diante da multiplicidade, porque esta desconstrói um pensar sedimentado em

verdades únicas e práticas escolares e sociais tradicionais.

Não há como se pensar, hoje, que exista uma psicologia, ou ainda definir uma

orientação teórica única para a formação de alunos, privatizando um viés para a

aquisição do conhecimento. Há que se considerar que existem leituras para o

mundo, para os fenômenos psicossociais e a psicologia é apenas uma delas, dentre

tantas outras ciências, afins ou não. Além do mais, a Psicologia, por si só, não dá

conta de compreender esses fenômenos em sua complexidade. Há que se

consorciar com outros saberes, multirreferenciar o olhar para apreender os

fenômenos em suas várias dimensões.

Com a diversidade de possibilidades que a sociedade tem hoje, quando a

escola não é mais considerada o único transmissor do saber elaborado, e com a

diversidade teórico-metodológica que caracteriza a Psicologia, há que se cumprir a

função da escola, enquanto mediadora do saber, quando se proporciona ao aluno o

acesso às múltiplas possibilidades que a ciência oferece. Como recomenda Luiz

Cláudio Figueiredo (1991, p, 206), com relação à formação de psicólogos:

Uma história da psicologia (entendida como história dos conflitos, de suas origens na vida da sociedade e da cultura, de suas implicações teóricas, ideológicas e políticas) ainda por se fazer, teria função essencial na formação do psicólogo e deveria ser contemplada em todos os currículos de graduação.

Isso enseja que se reconheça a existência da multiplicidade, na qual

diferenças não remetem necessariamente à desigualdade, mas à constatação da

pluralidade em que podem coexistir, abrindo-se mão da busca de verdades

universais, múltiplos objetos de estudo e múltiplos discursos, determinados por

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critérios distintos e plurais que precisam ser entendidos em seus significados

contextuais, históricos e culturais.

Além disso, os objetos de estudos e discursos constituem-se em campos de

força e luta, em que os saberes e os poderes, mediante estratégias dos sujeitos,

podem ser confrontados, negociados, significados e ressignificados, como ensina

Michel Foucault (1999, 2001b).

A diversidade da Psicologia e a imagem social do profissional liberal

representada pelo atendimento clínico em consultório privado produzem fantasias

que estão presentes no imaginário dos estudantes e interferem em sua escolha,

como se pode observar no diálogo, reproduzido a seguir, entre uma aluna do 3º

grupo e a orientadora do grupo focal:

Aluna: Eu, quando entrei na faculdade, eu vim muito por essa fantasia, não sabia o que era a psicologia. Eu vim muito por essa questão de buscar, da fantasia da profissão, sabe, da idealização [...] Orientador: Como é essa idealização? Aluna: [...] eu achava lindo ser psicóloga [...] eu achava, sabe, tanto que primeiro, antes de entrar, tinha que ter uma pasta, tinha que me arrumar de tal forma, criava tudo [muitos risos] foi no 1º semestre, antes de entrar na faculdade [...] Orientador: Por que a pasta? Fazia parte da indumentária da psicóloga? Aluna: Era [...] tinha que ter uma pastinha [...] só faltava um óculos. Orientadora: Você achava que psicólogo fazia o quê? Aluna: Não sei [...] tinha aquela da clínica [...] tinha aquela formalidade, sabe.

A escolha da profissão, realizada cada vez mais cedo na estrutura de ensino

atual, leva, cada vez mais, os alunos a escolherem carreiras para as quais não têm

sequer uma idéia consistente do que seja. O curso superior tem a função de formar

profissionais, construindo uma profissão em bases concretas, analisando

criticamente as potencialidades que esta oferece, além das possibilidades que a

sociedade esboça. Instrumentalizar o aluno teórica e tecnicamente para a

intervenção profissional, incentivando a criatividade e instigando desafios que

possam concretizar-se em novas formas de atuação, capazes de responder às

novas demandas sociais, econômicas e políticas que se desenham na sociedade

contemporânea.

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Pôde-se verificar, entretanto, que o Curso de Psicologia em foco investiu em

descortinar para os alunos a diversidade que constitui essa ciência, como ilustra o

depoimento de uma aluna do 3º grupo:

[...] está se falando da dificuldade de estar se definindo o fazer da Psicologia, porque ela é muito múltipla, tem múltiplas formas de estar agindo ali, em lugares diferentes, múltiplas formas de fazer. Assim como ela tem múltiplas abordagens, então ela pode ter olhares diferenciados sobre a mesma coisa, a Psicologia. A gente tá aqui e passa pelos nossos olhos várias abordagens e que vêem o fenômeno de uma maneira diferenciada ou às vezes de maneira complementar, então, por ela ser múltipla, talvez essa dificuldade de dizer a Psicologia é isso. Não é só uma coisa, ela é várias coisas. Até a forma como a Psicologia foi construída, ela vem lá da Filosofia, vem da Fisiologia, vem da prática da Medicina, ela se originou de várias práticas, então ela tem esse olhar muito múltiplo mesmo [...]

A complexidade e a vastidão do campo em que se estudam os fenômenos

psicológicos e a multiplicidade de abordagens de que se pode lançar mão para deles

se aproximar — que configuram a Psicologia como uma diversidade que abriga

referenciais teóricos e abordagens metodológicas distintas, com objetos de estudo e

objetivos diferenciados, como se discute ao longo deste trabalho — não confluem

para uma unicidade, visto que abriga não apenas formulações diferentes entre si,

mas pontos de vista inconciliáveis, porque antagônicos (BOCK, 1999; CARPIGIANI,

2000; FIGUEIREDO, 1991).

Considerando que a multiplicidade da Psicologia instala-se no próprio

momento em que se constituiu como ciência, quando teve que abrir mão de seus

fundamentos filosóficos e aliar-se a uma concepção moderna de ciência, Luis

Figueiredo (1991, p. 22) busca explicar historicamente essa questão, dizendo:

[...] a ciência psicológica tenta se constituir, sendo obrigada a, simultaneamente, reconhecer e desconhecer seu objeto. Se não o reconhece não se legitima como ciência independente e, podendo ser anexada à medicina, à pedagogia e à administração, ou seja, às técnicas ou às suas bases teóricas, como a biologia e a micro-sociologia. Se não o desconhece, não se legitima como ciência, já que não submete aos requisitos da metodologia científica nem resulta na formulação de leis gerais com caráter preditivo. Abre-se então um campo de divergências e oposições que não tem nada de acidental [...]

Desse embate surgiram muitas psicologias... e a despeito da diversidade que

a constituiu como ciência, consolidou-se como um campo sistematizado de

conhecimentos científicos. Ao mesmo tempo, a aplicabilidade desses conhecimentos

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proporcionou que se reconhecesse como possuidores de uma profissão aqueles que

trabalham com a Psicologia.

5.2 SENTIR-SE PSICÓLOGO, SENTIR-SE PSICÓLOGA

Apropriar-se do discurso que enuncia o psicólogo ou a psicóloga é da esfera

da construção de identidades, porquanto dá, a cada estudante em particular, o

sentimento de pertencer a um coletivo compartilhado de representação de si e de

suas funções ocupacionais, de forma tal que impregna sua própria história de vida e

delimita possibilidades concretas de atuação.

Reitera-se o entendimento de identidades como construídas no discurso,

como processo que se movimenta num permanente ir e vir característicos das

construções inacabadas, conforme se discute ao longo deste trabalho.

Nos depoimentos coletados durante a realização dos Grupos Focais, os

estudantes do Curso de Psicologia em foco referem-se à construção dessas

identidades como uma questão processual, que vai sendo construída ao longo do

curso. Destacam que há momentos em que se reconhecem e outros nos quais não

se reconhecem psicólogos/psicólogas, e também momentos em que se reconhecem

porque são reconhecidos pelos outros. Dito de outra forma, em determinadas

situações, eles falam de si; em outras, eles são falados por outrem. Há, ainda, outros

relatos de modificações na própria forma de perceber a si, aos outros e ao mundo.

Os estudantes depõem que há uma distinção, para eles, entre o que se faz

dentro do ambiente escolar e o que se faz fora dele. Diz uma aluna do 3º grupo:

[...] quando a gente é estudante de psicologia, a gente só é psicólogo aqui dentro da faculdade. Outra, do 4º grupo, relata: [...] tem momentos tipo sala de aula, eu me sinto bem aluna [...] tem alguns momentos que eu me sinto nada [...] nada, mas tem momentos que já tem uma posição mais clara das coisas.

Outra aluna do mesmo grupo declara:

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[...] a cada semestre eu me sinto mais psicóloga [...] no segundo, eu sentia, quando chegou no terceiro eu percebi que agora eu sou e no segundo eu não era, quando cheguei no quarto, eu percebi que agora eu sou e no terceiro não era, sabe?

Pode-se perceber, nas falas desses alunos, que a superposição de papéis

(estudante/profissional em formação) proporciona a alternância de momentos de

identificações/diferenciações distintos. A construção das identidades se dá não

apenas com base na idéia do idêntico, mas, predominantemente, da diferença,

daquilo que não se é. Katryn Woodward (2000, p. 67) fala da diferença “[...] como um

elemento central dos sistemas classificatórios por meio dos quais os significados são

produzidos.” E prossegue, demarcando que os sistemas simbólicos produzem as

estruturas simbólicas que conferem sentido e dão ordem à vida social, marcando as

diferenças, tais como, nós/eles, fora/dentro, sagrado/profano, masculino/feminino, e

tantas outras dicotomias referidas ao longo deste trabalho, constituem-se no campo

de forças que estruturam as relações de poder, daqueles poderes capilares de que

fala Michel Foucault (2001a).

As identificações com a profissão extrapolam o ambiente e a vivência

acadêmica, envolvendo os alunos e as alunas em um processo de significação e

ressignificação de si próprios na construção de suas identidades. Expressam isto os

depoimentos que relatam como o reconhecimento de si como psicólogos produziu

alterações em situações de suas vidas, em geral, impregnando, inclusive, a forma de

perceberem a si, ao outro e ao mundo. Veja-se o que diz uma aluna do 3º grupo:

[...] eu acho que isso assim se estendeu pra outras áreas da minha vida. Assim, o olhar passou a ser outro, a forma de atuar no mundo, ela se modifica, na medida em que você não só assimila os conteúdos, mas você passa a viver, você não tem como estudar os conteúdos da psicologia, fazer os estágios e não se identificar com isso.

Outra estudante do 1º grupo revela:

Desde o primeiro dia que eu entrei aqui que eu mudei. Mudei com relação ao papel mesmo de psicólogo que vai sendo construído desde o primeiro dia que a gente entra aqui!

E complementa a seguir, no próprio desenvolvimento das discussões no

Grupo Focal:

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É o que eu disse, eu não sou a mesma pessoa, mesmo, ninguém é a mesma pessoa depois de passar por um curso de Psicologia.

E esse posicionamento é compartilhado pelos demais membros desse grupo.

A assunção do discurso de psicólogo ou de psicóloga, entretanto, não é algo

que acontece de forma harmoniosa, pelo contrário, provoca embates da pessoa

consigo mesma para avaliar a pertinência ou não de sua adesão àqueles

enunciados, como pode ser observado no depoimento a seguir:

A questão que eu acho comigo, é que eu não me vejo ainda como psicóloga por medo, medo do que eu vou falar... assim... será que o que eu estou falando [...] porque primeiro, não sei se vocês percebem, todo mundo do nosso [...] tudo que a gente fala, as palavras que a gente fala se modificaram, ou seja, a gente começa a falar em processual. É isso! É assim: a nossa linguagem se modificou! A minha, no caso, quando eu era do primeiro semestre pra agora. A forma como a gente fala! É esse medo que eu tenho, entendeu? Esse medo de quando a gente acha normal falar dessa forma! Porque a gente tá aqui na Faculdade, a gente ouve os professores falando assim e, às vezes, qualquer coisa que a gente vê na rua, a gente, ah, deve ser porque a pessoa tem isso ou isso. Eu tenho muito medo disso, por isso que eu não me acho psicóloga [...]

Na inquietação desta estudante, sobre a qual fala com certa dificuldade, fica

evidente o discurso da Psicologia que lhe interpela e o quanto lhe dá medo assumi-

lo como seu. Quantos discursos estão concorrendo neste embate particular desta

aluna? Aqueles próprios da diversidade da Psicologia? Aqueles que diferenciam a

Psicologia de outras profissões? Aquele que fala da profissão feminina? Outros que

não temos, nesse momento, como identificar? É nesta arena que se debatem os

saberes-poderes aos quais se refere Michel Foucault (1999, 2001b).

De maneira geral, a vivência no Curso de Psicologia, mesmo do ponto de

vista da aquisição de conhecimentos, é impregnada por uma carga de afetividade,

tendo em vista que estuda fenômenos humanos que afetam a todos em maior ou

menor intensidade. O efeito dessa interferência em cada um, é verbalizado pelos

depoentes em momentos diferentes, como referem duas alunas do grupo 4, em

momentos distintos:

[...] eu acho que também não é um mar de rosas não [...] acho que o estudante de psicologia é o acadêmico que mais passa pela crise acadêmica. Eu mesma, no 3º semestre, passei uma crise terrível, crise de tudo, crise existencial, uma crise profissional, eu não sabia se era isso mesmo que eu queria. Eu queria abandonar o curso, porque ainda estava vendo muita teoria, não tava vendo nada do que eu queria. Então, acho que o aluno que mais passa isso é o estudante de psicologia,

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porque ele começa a se dar conta de várias coisas e começa a dar de cara com várias questões dele mesmo e aí ele passa por isso. Acho que não é esse mar de rosas todo que a gente tá falando não [...] A psicologia mobiliza questões assim da sensibilidade, mas também da tranqüilidade, da atenção, e também é uma coisa que mexe muito com o íntimo da gente, estudar psicologia. É uma coisa que não só pra sua formação profissional mas também na sua formação pessoal [...]

A questão da sensibilidade na profissão é um atributo que exacerba o viés

feminino da profissão, como discutido no capítulo anterior e aprofundado no

próximo, tendo em vista que é uma qualidade desejada e cultivada nas mulheres.

O discurso do psicólogo e da psicóloga, entretanto, pode evidenciar ganhos

na vida pessoal, a depender da forma como cada um se apropria dele e o utiliza a

seu favor no jogo das relações. É o que se pode depreender do diálogo apresentado

a seguir, travado entre alunas do 4º grupo:

Aluna 2: Isso fica bem claro nas discussões com os namorados [...] [risos] é muito interessante diálogo com namorado, assim, tem horas que [...] Aluna 3: [...] dá pra perceber coisas assim claras, meu Deus! Ele tá falando isso e não percebe! [risos]. Aluna 2: Ontem foi engraçado porque eu estava discutindo com o meu noivo [...] e aí, no meio do diálogo, no meio da minha fala, ele parou e me perguntou que palavra era aquela que eu tinha dito! Mas foi uma coisa assim [...] foi hilário, porque a gente tava naquele clima, chateada, falando, falando, e [...] chega a ser engraçado [...] Aluna 4: Isso não vale! Isso é pergunta de analista! [risos] [A aluna refere-se ao fato de que seu namorado também é estudante de psicologia]. Aluna 3: Aí já é perigo! Porque ele entende os termos que você fala [...]

Nessa perspectiva, a sensibilidade para perceber o outro, que a profissão

estimula, transforma-se em instrumento de poder. Carmem Grisci (1995) refere-se

ao poder do discurso das mulheres, aquele proferido dentro do lar, como semelhante

ao das benzedeiras, que não deve ser confiado aos ouvidos masculinos. Ficam

explícitos os jogos de negociação e poder que os sujeitos fazem entre si para

compartilhar, incluir ou excluir outrem. Isso é denunciado, quando a estudante fala

do perigo que há no fato de o namorado compreender os termos que ela usa em seu

discurso. Ora, se ele compreender tudo o que ela fala, o instrumento de poder que

esse saber confere perde o valor!

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As identidades são produzidas nas relações, em que os saberes/poderes

disputam os significados. É o significado que dá sentido às experiências de seres

humanos singulares ou coletivos e que denominam as pessoas ou os grupos. Como

afirma Kathryn Woodward (2000, p.18): “[...] todas as práticas que produzem

significados envolvem relações de poder, inclusive o poder para definir quem é

incluído e quem é excluído.” Nas estratégias utilizadas na disputa pelo poder, que

ocorre nas relações amorosas, ao que tudo indica, no caso dessas alunas, o

discurso das psicólogas tem uma cotação alta.

Ao longo deste trabalho, discute-se a construção de identidades como um

fenômeno relacional, múltiplo, historicamente construído, produto da interação

lingüística realizada pelas práticas discursivas. Assim sendo, narrativas se

interseccionam na produção de sentidos que os sujeitos atribuem a suas práticas,

considerando, além das dimensões objetivas, aquelas subjetivas, que incluem as

emoções, os afetos, o desejo e a vontade.

Depreende-se do diálogo das estudantes acima a processualidade imanente

à construção de identidades, explicitada na forma como se referem às mudanças em

seus próprios posicionamentos diante de fatos cotidianos, à alusão que fazem a uma

aquisição que não se situa apenas na esfera do cognitivo, mas extrapola para

assimilação de normas e valores que orientam a conduta de determinados grupos

identitários. Cada grupo estabelece seus códigos, normas, ritos, mitos que são

segredados e partilhados pelos pares e adotam um determinado jargão34 que

delimita os iniciados, os que podem ser incluídos e os que devem ser excluídos.

Fala-se de um determinado tipo de discurso que identifica pessoas sem que elas

anunciem formalmente qual o grupo que as denomina, naquele momento. O jargão

funciona como um código; as mensagens podem ser entendidas apenas por aqueles

que o dominam, permitindo uma comunicação rápida e demarcando um vínculo

entre as pessoas que dele compartilham.

É o que sente uma aluna do 4º grupo, ao se avaliar “iniciada” na profissão

pelo compartilhamento de discursos que valorizam o saber que a profissão detém e

socializa: 34 Para a palavra jargão, o Michaelis (1998) apresenta cinco significados. O primeiro fala de

linguagem ininteligível, sem sentido; o segundo, de línguas ou dialetos exóticos que não se entendem; o terceiro, língua ou dialeto híbrido, oriundo de uma mistura de línguas, tal como uma língua franca; o quarto refere-se à fraseologia peculiar a qualquer classe, profissão; e a quinta a calão, gíria. Neste trabalho, utiliza-se como sinônimo de linguagem peculiar a um grupo profissional.

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[...] eu me sinto psicóloga quando eu saio daqui da Bahiana, quando vou pra um Fórum, um congresso, um Seminário [...] chego lá e fico à vontade. Chego até a discutir algumas vezes [...] só tinha eu de aluna [...] eu fui bem recebida, eles me trataram como outra psicóloga [...]

Ao ser acolhida por seus pares, esta aluna sente-se nomeada por seus

interlocutores, confirmando o que ensina Bader Sawaia (2001) quando afirma que a

Identidade é uma categoria que classifica os iguais, os diferentes, os estranhos e os

exóticos.

5.3 ESTÁGIOS - VIVÊNCIA TEÓRICO-PRÁTICA

Do ponto de vista dos estudantes, ao longo do curso, a prática nos estágios

revela-se como aquela que oferece maiores possibilidades de proporcionar o

reconhecimento de si, como psicólogos e psicólogas, especialmente na interlocução

com o outro, que é usuário dos serviços onde o estágio se realiza. Vejam-se alguns

exemplos:

No momento em que eu marco com o meu paciente, que eu atendo o meu paciente, aí eu me sinto psicóloga. (Aluna do 3º grupo).

[...] é o contato com o paciente. (Aluna do 1º grupo).

Eu me tornei psicóloga quando eu fiz um estágio em Camaçari [...] eu comecei a atender [...] tinha paciente [...] tinha responsabilidade com aquela pessoa [...] tinha que ser ética [...] tinha que aplicar teste [...] (Aluna do 1º. Grupo).

Eu diria que talvez o passo diferencial que contribuiu para que hoje eu pudesse tá aqui dizendo, sou psicólogo, foi do 8º semestre pra cá, quando a gente começa a atender as pessoas. (Aluno do 5º. Grupo).

Conforme se discutiu no capítulo referente ao Curso de Psicologia, este se

estruturou tentando articular teoria-prática ao longo dos semestres. Nesse intento,

incorporou atividades práticas de estágio a partir do 5º semestre, sendo

desenvolvidos Estágios Básicos no 5º, 6º e 7º semestres, o Psicodiagnóstico no 8º e

os Estágios Específicos no 9º e 10º. A proposta dos Estágios Básicos é desenvolver

habilidades que possam constituir-se em competências na ação profissional. São

privilegiados, em cada um deles, a interlocução com usuários dos Serviços onde se

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realiza o Estágio, seja escola, posto de saúde, clínica, hospital, comunidade ou

qualquer outro equipamento social, em situações de efetivo contato com o público. O

fio condutor desses estágios é a realização de entrevistas com públicos diversos, em

situações diversificadas, com objetivos diferentes (história de vida, anamnese,

entrevista de acolhimento, entrevista em grupo, grupo temático, grupo de apoio,

utilização de escala ou testes, dentre outros), em que o estudante possa exercitar a

escuta peculiar ao trabalho de psicólogo.

Há, nessa estruturação curricular, o entendimento de que habilidades podem

ser exercitadas até se incorporarem às competências, considerando-as como o agir

de forma coerente e criativa diante de uma determinada situação (PERRENOUD,

1999). Nesse caso, essas atividades funcionam como momentos privilegiados para

os alunos adquirirem habilidades em lidar com pessoas, entrevistando, participando

de grupos, manuseando testes ou escalas, ao tempo em que se instrumentalizam

teoricamente sobre esse arsenal técnico, o qual se refere ao uso adequado do

instrumento e às possibilidades de sua aplicabilidade em situações do exercício

profissional.

O ensino superior tem a tradição de ser muito teórico, descolado da realidade,

centrado em uma prática eminentemente verbal de transmissão de uma verdade ou

ponto de vista do professor. Pode-se associá-la ao que Paulo Freire (1983) chama

de educação bancária. Além do mais, os currículos,via de regra, são concebidos do

ponto de vista tradicional, com disciplinas estanques, que mantêm pouco diálogo

entre si, com conteúdos seqüenciados em forma de complexidade crescente, com o

objetivo de antever e predizer qual o aluno que se deseja no final desse processo.

No caso deste estudo, qual o psicólogo e qual a psicóloga que se quer formar. Os

estudantes em foco estão respondendo que o currículo direciona-se para a formação

de um psicólogo do ponto de vista tradicional, ainda centrado no modelo biomédico

de atuação num viés clínico, pois o que os identifica é a atuação junto a pacientes.

Como referido anteriormente, sobressai, nesse atendimento clínico, do ponto de

vista tradicional, individual, privado e reparador, o “cuidar de” que propõe Joan

Tronto (1997), numa supervalorização da generificação da profissão como feminina.

Nesse particular, é interessante o depoimento de uma aluna do 2º grupo, que

havia realizado Estágio Básico I no Complexo Comunitário Vida Plena, no bairro do

Pau da Lima, um Posto de Saúde onde funciona um Projeto Saúde da Família, ou

seja, numa instituição comunitária, cujo interesse é a atenção básica à saúde, com

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forte matiz preventivo, cuja intervenção dos alunos de Psicologia é escrever a

história das famílias que participam do projeto, realizando uma coleta de história de

vida, no próprio domicílio. A aluna diz:

Acho que o meu primeiro paciente foi no Pau da Lima [...]

Observe-se que não se tratava de enfermo, pois não havia uma “queixa” a ser

investigada, nem existia nenhum tipo de intervenção conseqüente à própria

entrevista, mas a aluna referiu-se à pessoa que entrevistou para fazer a história de

vida como paciente.

Há que se considerar, porém, neste caso, a cultura médica que permeia a

instituição de ensino na qual o Curso está inserido, conforme discutiu-se em capítulo

precedente, e também a própria estruturação do Posto de Saúde onde este Projeto

de Saúde da Família é totalmente assumido por professores e alunos de todos os

Cursos da instituição, numa atividade conjunta. Além do mais, a história de vida

deve compor o prontuário das famílias dos pacientes no arquivo do Posto.

A introdução de Estágios Básicos e Estágios Específicos no Curso de

Psicologia, seguindo orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN),

rompe com esta dicotomia de prática como aplicação da teoria e partilha a idéia de

que a teoria e a prática só assumem significado quando relacionadas e quando

podem revelar-se uma na outra, instalando uma postura permanente de ação-

reflexão-ação, na construção de novas práticas geradoras de novos

posicionamentos teóricos e vice-versa.

O Projeto Pedagógico do Curso (FBDC, 2003, p. 20), no que concerne aos

Estágios, assim define esta atividade curricular: “[...] orientada, na qual o aluno

exercita habilidades na construção de competência para a prática profissional,

constitui-se em atividade privilegiada, dentre as outras, do currículo para a

construção do papel de psicólogo.” Nesse documento, enfatiza-se que o Estágio

Básico é estruturado para possibilitar ao aluno desenvolver competências básicas e

gerais do exercício profissional do psicólogo. Estas devem ser realizadas em

espaços diversificados, sob a supervisão presencial do professor orientador, em três

semestres consecutivos, do 5º ao 7º, com 54 horas/aula em cada um deles, o que

perfaz a carga horária total de 162 horas. Os alunos são subdivididos em grupos de

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até oito participantes e desenvolvem atividades consideradas fundamentais para o

exercício da Psicologia, independente do local de atuação.

O Estágio Específico, por sua vez, é profissionalizante propriamente dito.

Ocorre na seqüência ascendente, depois dos Básicos e da disciplina de

Psicodiagnóstico (8º), nos 9º e o 10º semestres. Nestes, o aluno deverá ter uma

atuação profissional orientada e supervisionada por professor habilitado, sendo esta

supervisão dimensionada, de forma que o professor/supervisor possa encontrar-se

semanalmente com seu grupo de alunos para atividades de supervisão e grupo de

estudo, podendo realizar visitas ao local de estágio, quando este se realiza fora das

dependências do Serviço de Psicologia, e atendimentos individuais, se necessário.

O número de alunos por supervisor de estágio é limitado a oito por grupo. Do aluno

é exigido o registro de atividades, do tipo diário de campo e o relatório final de

atividades.

Há, nestas proposições de Estágio, a intencionalidade de promover uma

interfecundação da teoria e da prática, não apenas nos aspectos conceituais e

instrumentais, mas, sobretudo, na leitura contextualizada e concreta da experiência,

que possa gerar leituras críticas e criativas de novas realidades.

No dizer dos alunos, os Estágios proporcionam uma série de vivências que

instigam ao questionamento sobre a profissão e o profissional, a fazer escolhas, a

ressignificar conceitos, a assumir discursos, dentre outros, como se pode observar

nos relatos a seguir, que dizem respeito à construção de suas identidades

profissionais.

Com relação a sua participação no Estágio Básico, diz uma aluna do Grupo 4

que está freqüentando o Estágio Básico III:

Eu me sinto um pouco de psicóloga, dando, pelo menos, essa oportunidade, por mais que eu não tenha essa habilidade de trabalhar ainda com essas questões. Eu me sinto impotente. Às vezes, surgem algumas questões que a gente, ai meu Deus! Tocou num ponto que me sinto impotente ainda, mas é um estímulo, a gente está se aperfeiçoando, tá melhorando, tá buscando conhecimento [...]

E essa angústia é também sentida na hora de realizar o Psicodiagnóstico,

como relata uma estudante do 2º grupo:

Eu lembro que quando a gente fez o estágio – eu falei pra profa. X antes de começar o estágio – eu ficava muito aflita..., será que eu já tenho condições, será que eu já

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sei de teoria, alguma coisa, o suficiente para estar lá? Está atendendo uma pessoa! Porque eu achava que eu ia ficar assim: a pessoa falando e eu: tá, porque isso! Porque aquilo! Porque o Édipo! [...] E aí depois que eu fiz o estágio é que eu fui perceber que eu já sabia, eu não tinha percebido que eu já sabia de algumas coisas, o quanto a gente já tinha de bagagem de todas as matérias, todos os estágios, que já estavam [...] não precisava ficar decorando, nem lembrando, já estava ali, na hora [...]

A angústia e a insegurança também se fazem presentes durante a realização

do Estágio Específico, como relata uma aluna do 2º grupo:

Nunca esqueço quando eu fui para o hospital, meu estágio, já agora de conclusão. Fui eu e X e a gente caiu de pára-quedas na UTI. No primeiro dia que a gente chegou, morreu um paciente na frente da gente. E eu tava lá, eu e ela assim, as duas grudadas, desesperadamente! E agora, o que é que a gente faz?

Considerando o currículo como construtor de identidades e entendendo que a

formação profissional no âmbito universitário pode promover momentos

diversificados de aprendizagem, em que os estudantes possam pensar a si mesmos,

as instituições e as relações sociais que permeiam essas instituições, o estágio

revela-se como a atividade que define contornos da experiência profissional,

proporciona o diálogo com a sociedade produtiva e configura os espaços

multirreferenciais de aprendizagem. Estes, no dizer de Teresinha Fróes Burnham

(2000), configuram-se como espaços para além dos limites geográficos da escola,

como uma rede na qual inter e intrasubjetivamente os estudantes podem conviver

com diferentes formas de organizar o conhecimento, assim como podem construir e

se reportar a diferentes referenciais para leitura da realidade. Diz a autora:

São necessários currículos que retirem os estudantes do confinado espaço da escola – isolado do mundo concreto em que vivem – e lhes permitam (vi)ver a riqueza e a multiplicidade de conhecimentos com que chegam à escola. É preciso valorizar seus saberes, suas formas de ver o mundo; construir pontes que favoreçam o diálogo entre o saber escolar e o conhecimento cotidiano dos indivíduos sociais, de qualquer idade. (FRÓES BURNHAM, 2000, p. 302).

O estágio convoca o aluno a conviver com a multiplicidade de culturas que

configuram o espaço social e oferece-se para a vivência multiprofissional e a leitura

interdisciplinar da realidade. Permite também que o aluno e a aluna vejam-se no

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papel profissional, como se pode observar a seguir, na fala de uma aluna do 1º

grupo:

[...] a gente estava selecionando pessoal [...] aí teve um dia que a psicóloga não foi [...] o pessoal da portaria [informava], você vai e fala com a psicóloga ali naquela sala. Aí o pessoal abria a porta e, quem tava lá atrás da mesa? Eu! Eu era a psicóloga, sabe?

Há um outro relato de uma aluna do 5º grupo que, no 9º semestre, vivenciou

dificuldades em seu Estágio Específico, pois teve que abrir mão do atendimento de

uma paciente com um quadro clínico difícil de ser manejado, mesmo com a

supervisão do professor. Fala de seu desapontamento e frustração diante da

impossibilidade de continuar com aquele atendimento específico e, na seqüência

seguinte, quando retoma a palavra, depõe:

[...] eu não me sinto psicóloga. Não me sinto, acho que tá faltando muito! Tô me sentindo um pouco perdida. Não sei o que eu vou fazer depois que eu me formar, não tenho nada garantido. Eu tenho a maior paixão por clínica, pela psicanálise, mas não sei como vai ser de imediato [...] quando eu me formar, eu não sei o que vai acontecer! Assim, a formação, a supervisão, precisa de análise, mas eu não me vejo ainda trabalhando.

Pode-se perceber, mais uma vez, no depoimento acima relatado, como, o

outro dá o parâmetro para o reconhecimento de si no desempenho profissional. É o

discurso do outro que interpela as pessoas e produz efeitos na própria forma como

elas se percebem. Recorre-se mais uma vez a Stuart Hall (2000, p. 109), segundo o

qual as identidades falam não apenas do que as pessoas são ou identificam-se, mas

aquilo em que se tornam:

[...] é precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas

Dessa forma, é possível a referência às posições de sujeito, aquelas com as

quais as pessoas identificam-se e marcam posições numa rede discursiva, numa

teia social e cultural determinada, mas sempre se fazendo, sempre inacabada. Isso

é que dá a dimensão da identidade em movimento — um processo que se faz e

refaz sem a pretensão de conquistar uma posição definitiva e nem buscar a essência

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— e permite o efeito performativo do discurso, de que fala Judith Buttler (2001), na

construção das identidades, porquanto o discurso produz os efeitos que nomeia.

O estágio, pela vivência prática em situações concretas, oferece ao aluno a

possibilidade de escolha, de assunção de discursos e de posições de sujeito,

quando o coloca diante de tarefas a serem realizadas e saberes a serem

partilhados. É o que nos revela o diálogo de duas alunas do 1º grupo:

Aluna 1: Eu acho que a minha mudança foi o estágio que eu fiz, que eu nem conhecia tanto [...] eu tinha muito o diferencial em saúde, não é que eu odiasse, mas eu sabia que eu não queria aquilo. O que aparecia mais era a clínica. Então eu já gostava de clínica de carteirinha, entendeu, porque eu não gostava tanto de hospital e de saúde e aí quando a gente foi fazer um trabalho com a profa. X, que a gente fez aquela disciplina, e que a gente foi a campo [...] aí eu comecei a gostar; aí, eu disse: Olha, legal esse negócio de empresa, de descobrir como é o RH. Aí eu comecei [...] deixa a clínica um pouquinho, deixa eu ver como é isso [...] aí eu comecei, aos poucos, a questão do contato mesmo, de você conhecer. Aluna 2: Eu, pelo menos, estou muito feliz de ter conseguido passar, eu acho, pelos estágios, porque tive oportunidade de estagiar em hospital aqui pela faculdade, em clínica, agora, e educação e RH fora da faculdade. Então eu posso dizer que eu vi muita coisa, passei por várias áreas, e foi mudando justamente na prática, o meu pensamento de fazer clínica ou mudar para educação [...] eu fiquei um ano e dois meses na escola, aí eu disse já deu aqui [...] surgiu à oportunidade de RH e eu falei, não, eu vou conhecer, eu só vou poder saber se é isso, experimentando. Como eu já tinha ido para o hospital e eu disse não. A única experiência realmente que valeu de hospital foi pra eu dizer que não, eu não quero trabalhar em hospital! Mas precisou eu ir para saber disso. Talvez se eu nunca tivesse, eu ia falar: ah, meu Deus, será hospital? E ia ficar esse grilo. Então é muito diferente quando você estuda uma coisa ou ouve falar de uma coisa e quando você vai experimentar.

Em se tratando de formação profissional, ao lidar com a profissão, o Curso

seleciona conteúdos, privilegia determinadas práticas, institui estratégias de

avaliação, define o tipo de intervenção que faz na comunidade, em suas atividades

de pesquisa e extensão, difunde uma determinada ética e, por isso mesmo, revela-

se como um ambiente acadêmico disseminador de normas e condutas, em seu

currículo explícito e oculto, permitindo ao aluno significar e ressignificar

ininterruptamente sua identidade profissional. O diálogo entre uma estudante do 3º

grupo e a coordenadora do Grupo Focal é ilustrativo:

Aluna: [...] quando eu entrei aqui, no primeiro dia de aula, me perguntaram: Porque você acha que você veio fazer psicologia? [...] E eu, porque eu sou muito amiga [...] alguma coisa do tipo, eu observo muito as pessoas, não sei o que, alguma coisa, eu não lembro mais minha resposta, mas foi alguma coisa nesse sentido. E, hoje, eu

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percebo assim [...] é um acolher, mas não é um acolher de [...] não é um acolher de amigo, é um acolher totalmente diferente. Como X falou, você não se envolve, você ajuda, você trabalha com aquela pessoa, mas você não se envolve. Isso eu tô ganhando muito aqui na clínica. Eu lembro que no primeiro estágio, do Pau da Lima [...] teve um problema que a mulher era toda triste [...] aí a gente queria ajudar a mulher de qualquer forma. E aí eu me coloquei hoje! Se eu fosse para o mesmo lugar, com a mesma mulher, eu seria completamente diferente. Seria outra reação, entendeu? [...] Eu lembro que eu e X, a gente quase chora na hora! A gente querendo botar a mulher no colo! E hoje, seria outra postura! E hoje, seria totalmente diferente! Seria de acolher também, mas acolher de uma outra forma e de um outro sentido [...] Coordenadora: Sem tentar resolver? Aluna: Sem tentar resolver. Ajudando para que ela resolvesse. No caso, se fosse um problema de ordem emocional, e ela se implicasse pra resolver, mas não como a gente estava querendo fazer antes.

É importante ressaltar a construção do aluno, durante o estágio, como uma

aprendizagem que se dá, de fato, na articulação da teoria com a prática, vistas como

interdependentes. Nos Estágios Básicos, há um deslocamento da sala de aula para

o local onde se realiza a intervenção, e esta é tematizada em cada encontro, à luz

dos referenciais teóricos que embasam aquela determinada ação profissional,

contextualizada no tempo e espaço, com a presença diária do professor. Os alunos

expressam que significam sua atuação nos espaços específicos onde ocorrem os

estágios. Suas transformações relativamente a amadurecimento são perceptíveis

para o grupo de professores, como depõe uma professora de Estágio Básico, em

seu Grupo Focal:

[vou] falar do Estágio Básico em Educação Especial, que eu acho uma das idéias mais brilhantes da grade curricular [...] Lidar com o sujeito especial! Isso pra mim é de uma riqueza imensa! Nesses 4 anos que eu dou a disciplina, a transformação do aluno de psicologia, quando chega na instituição de Educação Especial, onde ele se confronta [...] e poder perceber aquelas pessoas, que são pessoas que, apesar de diferentes, têm habilidades, têm competências, que merecem [...] Então, eu fico encantada, realmente, em ver os alunos, a reação dos alunos diante [...] no início dos estágios eles dizem, professora eu vim porque não tinha mais estágio pra mim no GACC, não tinha mais não sei aonde, e aí só tinha esse. E eu vim de qualquer jeito, mas eu morro de medo, não suporto lidar com isso! E você vê a transformação do discurso, a aproximação, um novo olhar para estas pessoas, entende, e isso pra mim foi um ganho muito bom, porque é um lugar onde o psicólogo precisa estar, foi relegado muito tempo, na história; o deficiente sempre esteve à margem, completamente sem qualificação [...] E os alunos de psicologia eles também estão entendendo que ali é um lugar de trabalho muito grande, muito promissor [...] a minha contribuição é essa, o olhar do futuro psicólogo para a diferença [...]

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Pode-se verificar o quão importante é a vivência concreta do estudante, na

interlocução com outros seres humanos em contextos da realidade social,

proporcionada pelos estágios. Estes, como espaços de aprendizagem, por sua

natureza prática, permitem não apenas a aquisição de conteúdos teóricos, mas de

valores, atitudes e compromissos que constroem identidades profissionais.

5.4 PSICOTERAPIA – UMA APRENDIZAGEM DE SI

Um fator interessante e peculiar ao Curso de Psicologia diz respeito à

exigência do aluno submeter-se a uma psicoterapia. Este foi um tema abordado em

todos os Grupos Focais como um recurso importante, indispensável até, para que os

alunos possam nomear-se psicólogos. Essa questão já havia sido referida no

Questionário Inicial, analisado no capítulo precedente, quando algumas alunas

expressaram que escolheram a profissão pelo desejo de ajudar a si mesmas.

Considera-se psicoterapia, neste trabalho, um recurso privilegiado para

qualquer pessoa entrar em contato com seus conteúdos pessoais, a fim de

compreender as formas como se vincula consigo, com a vida e com os outros.

Constitui-se, portanto, em um tempo/espaço de crescimento pessoal, que pode

proporcionar novas formas de se subjetivar diante do mundo. Por meio dela, a

pessoa tem a possibilidade de se conhecer de uma forma mais íntima e, com base

nos diálogos com sua história pessoal e suas possibilidades concretas, de

estabelecer formas diferenciadas e inovadoras de se comunicar consigo e com os

outros, além de redefinir padrões pessoais estereotipados de conduta.

Diz uma aluna do 2º grupo:

[...] o processo que o estudante de psicologia passa está totalmente ligado ao desenvolvimento pessoal dele. Então, os vínculos que ele faz na faculdade, as amizades, com quem você sai no final de semana pra falar de sua vida, chorar, isso tudo faz parte do curso, porque são nessas rodinhas também, na mangueira, que você também vai ampliando seu relacionamento, seu crescimento individual, suas relações vão se ressignificando, em casa, na família, você começa assim [...] não é só estudar! Você, o estudo, a sua vida é totalmente influenciada pela sua nova ótica!

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Decerto que a psicoterapia adquire peso relevante em uma profissão na qual

o profissional está implicado emocionalmente naquilo que faz e sua ação está

baseada na relação com o outro, com o qual estabelece uma relação de ajuda, e em

um curso que tem uma evidente predominância no desempenho clínico de seus

estudantes.

É necessário ressaltar, outrossim, que é este também o posicionamento do

grupo de professores. Em sua maioria, os professores acreditam que a psicoterapia

é necessária ao desempenho de psicólogos, especialmente quando este deseja

enveredar pelo caminho da clínica. Explicitam essa posição na sala de aula e/ou nas

atividades práticas e de estágio, quer encaminhando os alunos, quer sugerindo

como uma prática necessária. Acreditam que este trabalho pessoal favorece a

prática do diferenciar o outro de si e a ouvir este outro, sem que haja um

envolvimento afetivo. A Psicoterapia constitui-se, portanto, em um fator de peso do

Currículo Oculto deste curso, que é constituído, como propõe Henry Giroux (1986, p.

71), de “[...] normas, valores e crenças imbricadas e transmitidas aos alunos através

de regras subjacentes que estruturam as rotinas e relações sociais na escola e na

vida da sala de aula.”

Como diz uma aluna do 3º grupo:

O fato de que a gente, a maioria acaba indo fazer terapia, apesar disso não ser uma exigência legal, mas a gente faz porque precisa [...]

A psicoterapia permite que psicólogos consigam distanciar-se das situações

profissionais que se vê convocado a intervir, não as confundindo com suas próprias

situações e questões de ordem subjetiva. Não se trata de buscar a famosa

“neutralidade” do pesquisador ou do profissional, defendida pela ciência positivista.

O que importa, no desempenho do psicólogo e da psicóloga, é a história, os motivos,

os sentimentos, as emoções daquele que é atendido, sem que se faça nenhuma

comparação com a história, as emoções e os afetos de quem atende. Não se prega

uma postura neutra e nem indiferente, mas atenta, cuidadosa, teoricamente

fundamentada. Uma postura que não se confunda com o que se espera de um

amigo confidente, que toma partido das situações, mas de uma pessoa presente,

continente, que possa ajudar a pensar, refletir e decidir sem considerar a vida do

outro como sua, ou que aconselhe qual o melhor caminho, baseado em sua

experiência pessoal.

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Psicólogos são profissionais e em seu mister necessitam de uma

fundamentação teórica consistente para desenvolver sua escuta e compreender a

fala do outro, além do domínio de técnicas para intervir com os sujeitos, seja na

perspectiva individual ou coletiva. Isto em relação a aportes teóricos e técnicas de

intervenções coerentes, subordinados a uma concepção de mundo, de homem e de

psicologia.

Nessa perspectiva, há que se relativizar a questão da sensibilidade sugerida

por alunos e alunas como uma qualidade indispensável ao desempenho profissional,

especialmente aquela sensibilidade considerada própria da condição feminina, para

associá-la a outras que exigem o uso do raciocínio lógico e do abstrato na

articulação e combinação de idéias, hipóteses e teorias. Por não ter, na maioria das

vezes, instrumentos que se interponham entre si e o outro (sujeito individual ou

coletivo), os psicólogos e as psicólogas precisam trabalhar com seu aparato

intelectual e afetivo.

Não é possível atuar, em psicologia, de forma “eclética”. Há que se perseguir

coerência na forma de abordar o outro, evitando-se o risco de manipular pessoas e

situações, pois, da mesma forma que existem múltiplas psicologias, existem tantas

psicoterapias quantas sejam as correntes teóricas que compõem o mosaico técnico-

conceitual da psicologia. Dentre elas, não há que se buscar a “correta”, mas

identificar os pressupostos teóricos e metodológicos com os quais cada uma se

identifica para compartilhar tanto os benefícios da psicoterapia quanto as

possibilidades de atuação.

Relata uma aluna do primeiro grupo:

Sabe, a primeira vez que eu entrei em contato comigo, com as minhas coisas, foi na disciplina X, que a gente fez o Wartegg35 [...] tinha coisas que eu não queria ouvir naquele momento [...] aí a professora [...] me falou uma coisa que eu fiquei assim, isso não é verdade! isso não é verdade! E aí, foi quando começou a mobilizar as coisas [...] fui fazer terapia no meio do curso [...] quando chegou na aula da profa. X de Psicoterápicas [...]

É fato que o Curso de Psicologia possibilita muitas identificações e projeções

pessoais sobre o conteúdo estudado. Muitas disciplinas tratam de acontecimentos

do cotidiano. Parte de exemplos e atividades práticas reportam-se, muitas vezes, a

situações vividas por si ou por outras pessoas que os estudantes conhecem, ou 35 Teste psicológico de personalidade.

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fazem parte de situações por eles imaginadas, temidas, desejadas. É importante não

perder de vista que o enquadre educacional, a sala de aula, é muito diferente do

contexto terapêutico e não é prudente e nem ético confundi-los. A forma como os

conteúdos teórico-práticos são significados pelos alunos, entretanto, é da esfera da

subjetividade de cada um. Está em jogo a história de vida, os projetos para futuro, a

estrutura de personalidade, as situações traumáticas vivenciadas, as crenças, os

valores, os contextos que o envolveram, enfim todo o arcabouço que permite ao

sujeito diferenciar-se e reconhecer-se como único.

Ressaltando a importância da psicoterapia no processo de construção da

identidade, uma aluna do 4º grupo expressa:

[...] o curso de Psicologia em si, pra mim, fez uma diferença, pra minha pessoa, pra minha construção. Ele tem uma importância fantástica! Eu não sei até que ponto, às vezes eu me pergunto: Pôxa, será que eu tô fazendo psicologia pros outros ou pra mim mesma? Porque essa questão que X falou da terapia, como ajuda! Como ajuda a você unir. Fazer a terapia com o curso de psicologia que a gente faz, tem me completado assim, cada vez mais. Tem me ajudado a lidar com questões de uma forma completamente diferente. Tem me ajudado muito, mas aí, ao mesmo tempo que eu me pergunto isso, eu fico com medo. Será que eu estou preparada pra atender o outro ou estou me preparando pra mim mesma? As vezes, eu fico meio com medo dessa pergunta. Mas eu acho que, no fundo, no fundo, ser psicólogo começa aí! É você se conhecer, é você se perceber, é você saber lidar primeiro com os seus problemas. Eu acho que só aí a gente vai conseguir ser psicóloga! Quando você souber lidar com os seus próprios problemas, aí é que você está preparada pra lidar com os problemas dos outros.

Uma estudante do 2º grupo destaca a importância da psicoterapia como

requisito pessoal/ profissional junto com os demais contextos de aprendizagem, ao

expor:

Quando você tem contato com pessoas fora, instituição, contato com a dor do outro, muito tempo, assim, respeitar de fato [...] numa posição de profissional, de sensibilidade [...] vai te demandando uma terapia, um conhecimento maior sobre você, um trabalho individual fora da faculdade. E aí eu acho que esse trabalho, a terapia, esses estágios fora, até extracurricular mesmo, vai te dando uma postura frente à vida e frente ao curso de maneira mais madura.

Depõe ainda uma estudante do 4º grupo:

Eu estou no momento de repensar muitas coisas e também de trabalho meu mesmo. Estou começando a fazer psicoterapia, e tem uma coisa assim, se eu soubesse que era tão bom assim eu já teria começado desde o primeiro semestre. [risos] É sério, porque essa questão da prática com você, você fazendo [...] Veja, não é só pros

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outros! Porque a gente fica [...] os outros é que são pra fazer psicoterapia, a gente não! Mas com a gente, como é bom!

O viés clínico da Psicologia, restrito ao atendimento privado, de consultório

individual, é aquele campo de atuação eleito pelos alunos ingressantes no curso

como o mais adequado para o exercício profissional, conforme está registrado no

Questionário Inicial. Esta ação, com as prerrogativas de profissão liberal, reproduz o

modelo médico de atuação e tem-se revelado tanto na prática preferida pelos

alunos, na escolha de seus estágios, verificada anteriormente, como no viés

privilegiado que o curso adota para formar seus profissionais.

Importante, também, não esquecer que este curso de Psicologia, no qual

realizamos esta pesquisa, situa-se dentro de uma Faculdade de Medicina e que,

além disso, no campus no qual está localizado, coexistem no mesmo espaço um

Ambulatório Docente Assistencial, com várias clínicas médicas em funcionamento,

um Laboratório de Análises Clínicas, uma Clínica de Fisioterapia, uma Clínica de

Terapia Ocupacional, o Serviço de Psicologia e o Pavilhão de aulas. O clima que

permeia a instituição é sempre voltado para a assistência à saúde.

O peso da psicoterapia fica evidente na afirmação de uma professora que, em

seu Grupo Focal, quando se reporta a atuação do psicólogo como algo singular, na

qual o profissional é seu próprio instrumento de trabalho, diz: atuamos porque

existimos. Essa posição, portanto, reitera a psicoterapia como algo necessário e

indispensável, porquanto produz percepções de alunos, tal como expressa uma

aluna do 5º grupo:

É tudo muito sutil, é tudo que você não vê, é tudo que a você não pega, é tudo que você não controla [...] A pessoa só tá ali com sua fala, com sua atitude, e você, de alguma forma, age [...] há a ajuda [...]

Mesmo não sendo considerada uma estratégia formal de aprendizagem e

nem uma exigência do curso, os depoimentos dos alunos demonstram que, na

formação de psicólogos e de psicólogas, há um tipo peculiar de aprendizagem,

adquirido pela habilidade de lidar consigo, no que tange a suas potencialidades e

fraquezas, que deverá compor competências no trato profissional com o outro. Trata-

se de um conhecimento particular sobre si, de ordem subjetiva, que versa sobre os

sentimentos, traumas, frustrações, conflitos, encontros, desencontros, ou seja, da

forma como cada um se estrutura subjetivamente no universo que habita e convive.

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Há uma suposição de que o trabalho psicoterapêutico proporcionará uma qualidade

na ação do psicólogo, que pode ser adquirida para além das aquisições técnico-

conceituais.

José Gimeno Sacristán (1989, p. 22) propõe que o currículo seja “[...] a ligação

entre a cultura e a sociedade exterior à escola e à educação, entre o conhecimento e

a cultura herdados e a aprendizagem dos alunos, entre a teoria (idéias suposições e

aspirações) e a prática possível, dadas determinadas condições.” Ao incorporar a

psicoterapia como aprendizagem necessária ao desempenho profissional, pode-se

imaginar que pode e devem estar dinamicamente entrelaçados os conhecimentos,

as avaliações, as experiências, as responsabilidades, compromissos que formatam

as práticas discursivas e subjetividade dos sujeitos, incluindo e dando peso

relevante à subjetividade de cada um que, inexoravelmente, se faz presente no

ambiente educacional.

5.5 TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO: BUSCANDO O PESQUISADOR

Outro tópico ventilado pelos alunos sobre os aspectos relevantes que os faz

sentir-se ou não psicólogos/psicólogas, refere-se à elaboração do trabalho

monográfico de conclusão de curso. Este trabalho é uma exigência recente, feita a

alunos de Psicologia em geral, com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais, pois

não havia a tradição, na Psicologia, da realização desse trabalho final e nem de sua

apresentação pública. Dos alunos, era exigido apenas que apresentassem o

relatório do estágio profissionalizante. Pode-se perceber, portanto que essa

dicotomia teoria-prática perpassa a formação de psicólogos.

Na perspectiva do Currículo Mínimo, as disciplinas teóricas eram trabalhadas

nos quatro primeiros anos e o último era dedicado ao estágio, atividade em que se

aplicariam os conhecimentos adquiridos. Os alunos que optassem por fazer apenas

o bacharelado, estavam inclusive liberados do 5º ano. A conclusão de sua formação

se daria quando da conclusão das disciplinas do 4º ano.

Silke Weber (1985), ao discutir o Currículo Mínimo definido para os cursos de

Psicologia, ressalta que nele não há nenhuma preocupação com a pesquisa nem em

nível de disciplinas, nem de estágios. E revela que havia, naquela época, um

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equívoco com relação à realização de pesquisas em psicologia, como se essas

fossem possíveis, apenas, se realizadas em laboratórios e sujeitas a tratamento

estatístico. Afirma ainda que, naquela época — década de 1980 — a proliferação de

cursos em instituições privadas também concorreu para não valorização da

pesquisa, tendo em vista que estas ficaram praticamente restritas às instituições

públicas que formavam psicólogos e constituíram-se em centros de excelência.

Como a Psicologia tem uma tradição assentada no fazer, nas práticas

profissionais, os Cursos foram estruturando-se sem que houvesse uma preocupação

com a questão da pesquisa. Ademais, como os psicólogos, ao se decidirem por

aderir a uma determinada concepção teórica para orientar sua prática, prosseguem

seus estudos em grupos particulares de formação que não têm vinculação com a

Academia, não houve condições objetivas para que a pesquisa se tornasse um

investimento de peso nos cursos.

Silke Weber (1985) propõe que se pensem formas de estruturação do curso

que possibilitem ao estudante participar de um processo de construção de

conhecimentos, descobrindo que este advém de dúvidas ou questionamentos sobre

a realidade, cujo conhecimento existente não dá mais conta de compreendê-la.

Acredita a autora que só assim os estudantes poderão superar a condição de

consumidores de um conhecimento elaborado, para compreender o processo de sua

construção e, conseqüentemente, assumir posicionamentos mais críticos diante do

conhecimento.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Psicologia, aprovadas

pelo Parecer CNE/CES nº 62, de 19 de fevereiro de 2004, e homologado em 08 de

abril do mesmo ano, depois de uma longa disputa pelos aspectos que privilegiaria, e

como abordaria os princípios e os conteúdos inerentes a eles, dentre os quais, a

questão da pesquisa, propõem que esta seja incorporada à formação de psicólogos,

mediante uma prática sistematizada no curso. As DCN não destacam o pesquisador

em psicologia como um perfil independente. Definem que a meta central é a

formação de psicólogos voltados para a atuação profissional, para a pesquisa e para

o ensino da psicologia, declarando princípios e compromissos, dentre os quais,a

construção e o desenvolvimento do conhecimento científico em Psicologia é o

primeiro deles.

As DCN para os cursos de graduação em Psicologia, em seu Art. 4º, listam as

competências gerais que deverão ser operacionalizadas no currículo, por meio de

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eixos estruturantes (Art.5º), dentre os quais, relacionados com a pesquisa, destaca-

se as alíneas b e c:

b) Fundamentos teórico-metodológicos que garantam a apropriação crítica

do conhecimento disponível, assegurando uma visão abrangente dos diferentes métodos e estratégias de produção do conhecimento científico em Psicologia.

c) Procedimentos para a investigação científica e a prática profissional, de forma a garantir tanto o domínio de instrumentos e estratégias de avaliação e de intervenção, quanto a competência para selecioná-los, avaliá-los e adequá-los a problemas e contextos específicos de investigação e ação profissional. (BRASIL, 2006e, p.2).

Definem ainda competências (art. 8º), habilidades (Art. 9º) e alternativas

metodológicas (art. 19), às quais o curso pode lançar mão para operacionalizar a

pesquisa.

No Curso de Psicologia em estudo, a pesquisa é obrigatória para os alunos,

independente dos projetos institucionais aos quais podem engajar-se, é realizada no

fluxograma curricular tendo a disciplina Introdução a Metodologia Científica no 1º

semestre, Estatística aplicada a Psicologia no 4º, Metodologia da Pesquisa no 5º,

quando os alunos devem escrever um anteprojeto de pesquisa e Pesquisa em

Psicologia I e II no 6º e 7º, sendo que no 6º o estudante revê o seu anteprojeto ou

constrói um novo projeto de pesquisa, e no 7º vai a campo, realiza a coleta de dados

e elabora o relatório. No 8º semestre, o estudante, sob orientação, escreve o

trabalho de conclusão de curso (um artigo científico, para publicação) que deverá

estar baseado, preferencialmente, nesta pesquisa realizada no 7º e no 9º faz a

apresentação pública do mesmo, sob o julgamento de banca examinadora.

Uma professora, que ministra a disciplina Introdução a Metodologia Científica

no 1º semestre, entende a importância dessa cadeia, como verbalizou em seu Grupo

Focal:

Introdução a Metodologia Científica, como o título diz, é uma introdução sobre os tipos de conhecimento, sobre pesquisa, sobre regras, técnicas de documentação. Na verdade, é um ponto de partida pra gente tentar pensar sobre essa a transição do ensino médio para o ensino universitário. O que é que significa ser universitário? O que significa esse importante peso que é ser pesquisador? Acadêmico? O clínico? O que é que isso significa para quando chegar no TCC. No primeiro semestre desse ano foi muito interessante, porque eu levei para a sala todas as ementas do eixo metodológico e apresentei a ementa. Por que começar no primeiro? Porque é que a gente fez, eu nunca tinha feito isso. A gente começar a trabalhar essa cadeia. Isso é uma cadeia de pensamento, de lógica [...]

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E o TCC é considerado pelos alunos como um investimento de peso na

construção de suas identidades que, junto com outras práticas, confirma-os como

psicólogos/psicólogas, o que pode ser percebido no diálogo de duas alunas do 1º

grupo, quando falam disso:

Aluna 1 - No estágio [...] aqui na Clínica, aqui no Serviço de Psicologia, cruzou com o momento da monografia [...] tive a maior dedicação! [...] É agora, sabe, é hora de concluir meu curso! De ser, tipo assim, documento atestando que eu sou psicóloga, sabe? Então, concluir aquele trabalho, nossa, foi muito gostoso! E trouxe uma responsabilidade muito grande [...] Então eu acho que foram duas coisas que me fizeram ter um amadurecimento, uma responsabilidade, um compromisso com as pessoas que eu tô atendendo. O tema que eu tava abordando ali, um bocado de reflexões sobre aquilo. De todo o percurso da faculdade, escrever, eu acho que retomou muita coisa no processo de ser psicóloga [...] Aluna 2 - Essa coisa que X falou da monografia, o trabalho de conclusão, é fundamental! [...] eu encarei o trabalho de conclusão como um trabalho mesmo, de começo mesmo, porque foi, era o que eu queria, era aquilo que eu queria! Então, terminar, concluir o trabalho foi fundamental para compor essa identidade de psicóloga, esse momento [...] se cruza com o momento do psicodiagnóstico. Pra mim, foi o momento!

Na verdade, a implantação deste trabalho, no curso, tem sido uma construção

do coletivo de professores junto com os alunos. Em sendo muito novo para todos, pois

apenas dois professores haviam realizado trabalho de conclusão de curso em suas

graduações, a forma como o curso entende como deve sê-lo está sendo definida

nessa própria ação. Além do mais, os professores, a maioria com titulação de

mestrado, não tinha experiência de orientação de trabalhos científicos. Nessa

perspectiva, diz um professor que orienta TCC:

[...] algumas coisas daqui, a gente ainda está em construção, espaço de pesquisa. Espaço de TCC! É pesadíssimo de acontecer! Muito pesado! Muito puxado! A gente ainda está em construção, em um semestre! Às vezes, você necessita trabalhar mais com esse aluno, necessita ficar melhor. Quando se aproxima do TCC, a vida do aluno, a gente precisa estar com ele, precisa de 3, 4 encontros por semana! Tem coisas ainda e essas coisas são todas coisas árduas [...]

A despeito das dificuldades e de ser uma iniciativa muito nova para todos os

envolvidos, a avaliação que o coletivo — professores e alunos — faz desse processo

é de que a realização do trabalho de conclusão dá uma qualidade maior à formação.

Como são privilegiados temas de interesses dos alunos, em decorrência de seu

próprio projeto de pesquisa cursado anteriormente, acredita-se que estimule a

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problematização sobre a prática e possa contribuir para aquilo que se deseja

incentivar como educação continuada.

Consentâneo às ênfases curriculares do Curso e a preferência dos alunos

pelas áreas profissionais da Clínica e da Saúde, os temas por eles escolhidos para a

elaboração do TCC recaem sobre a área da saúde e da clínica, como pode ser

observado na Tabela 3:

Tabela 3 – Número de TCC elaborados pelos alunos do curso de Psicologia por área temática

Área Temática Semestres Total %

4.2 5.1 5.2 6.1 6.2

Educação 5 3 1 2 1 12 9,23%

Educação Especial

2 1 1 2 2 8 6,15%

Trabalho e Organizações

3 2 1 7 3 16 12,31%

Saúde 7 5 4 16 4 36 27,69%

Clínica 6 9 6 7 7 35 26,92%

Psicologia Social 2 4 6 6 5 23 17,69%

Total 25 24 19 40 22 130 100,00%

Considere-se que o TCC pode ser realizado tanto individualmente quanto em

dupla.e, em alguns casos, por até três alunos. Por isso não há uma correspondência

entre o número de alunos do curso e o TCC. Todos, porém, contam com um professor

orientador com carga horária semanal para acompanhá-los durante todo o semestre.

Pode-se verificar, na Tabela 3, que mais de 50% dos temas dos trabalhos

situam-se nas temáticas de Saúde e Clínica, como um reflexo da construção do curso

e da cultura acadêmica da instituição de saúde.

As temáticas específicas da área da saúde que têm a maior quantidade de

trabalhos referem-se à Psicologia Hospitalar, com 9 trabalhos, seguido pelo

atendimento a pacientes com câncer, com 6 ocorrências, e a temática da obesidade e

da saúde mental, com 4 TCCs cada uma delas.

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A despeito do Curso ter definido como ênfase, além da Saúde/Clínica, as

Práticas de Psicologia em Trabalho e Organizações”, esta conta com apenas 12,31%

dos trabalhos, enquanto 17% situam-se em temáticas relacionadas à Psicologia

Social, o que revela, de certa forma, o investimento do curso em diversificar o olhar

dos estudantes para questões psicossociais contemporâneas, para além da clínica.

Desses, podemos destacar questões de Gênero, com 6 trabalhos, de envelhecimento,

com 4 trabalhos, e a temática de Drogas, com 3, dentre outros de interesse da

Psicologia Social.

De maneira geral, atendendo a uma orientação generalista do Curso, existem

Trabalhos de Conclusão de Curso em todas as áreas da Psicologia e do trabalho de

psicólogos, existindo, inclusive, algumas temáticas inovadoras e de um apelo social

mais contundente. Há também trabalhos que se inserem na agenda de temas da

Psicologia do Trabalho e das Organizações e outros da área da Educação. Não

ocorre, porém, uma correspondência entre a área que o estudante faz estágio e a

escolhida para escrever seu TCC. Há o pressuposto, por parte dos alunos, de que,

como a psicologia é múltipla e existem muitas possibilidades de atuação em áreas

diversificadas, é melhor, para sua formação, transitar pelo maior número possível de

alternativas. Do ponto de vista deles, esse trânsito, ao dar uma visão panorâmica da

profissão, pode ajudar a enfrentar os desafios do Mercado de Trabalho.

Esse posicionamento, entretanto, não encontra eco nem na autora desta tese,

nem no grupo de professores. Entende-se que esta fragmentação não contribui para

uma formação profissional consistente. A estruturação curricular de cunho tecnicista,

que está na base do currículo, decerto pode ser considerada a mola propulsora que

induz os alunos a essa percepção estanque das áreas de atuação.

5.6 OUTRAS PRÁTICAS... A DIVERSIDADE NA FORMAÇÃO

A despeito dos alunos e alunas perceberem e verbalizarem sobre o

reconhecer-se psicólogo/psicóloga como uma aquisição processual que se

desenvolve ao longo do curso, nos Grupos Focais, outras práticas ou situações

específicas da relação ensino aprendizagem foram destacadas como nucleares para

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a formação profissional, como é o caso da importância da ética na profissão e o

contato com pacientes psicóticos na disciplina “Psicopatologia”.

Considerando o currículo como um espaço de poder, entendendo poder na

perspectiva foucaultiana de produzir desenvolvimento, de incitar ações proativas

diante da realidade, professores e alunos negociam conceitos, referências e práticas

necessárias à construção de uma profissão, esmiuçando aspectos significativos da

postura profissional que extrapolam o domínio de técnicas e conteúdos para se deter

em valores que orientam a atuação. Nessa perspectiva, emerge a ética na ação do

psicólogo como uma questão de peso, abordada por todos os grupos. O diálogo de

duas alunas no 2º grupo, quando discutem a ética na escuta do profissional, é

ilustrativo:

Aluna 1 – E a escuta é justamente diferente, porque você não ta só escutando a pessoa, você ta procurando compreender o que aquela pessoa tá dizendo. Eu acho que essa parte faz toda a diferença. Porque não é só a pessoa tá ali falando, falando sobre os problemas [...] Mas você vai tentar compreender que sentimentos há por trás daquela fala [...] Achei bonito foi o que Rogers36 disse. Rogers disse assim: captar a tonalidade das palavras, da voz, captar as cores do sentimento... Então, às vezes, a pessoa pode tá ali falando de uma determinada coisa [...] se você ouvir, simplesmente por ouvir, tudo bem, passa, mas se você realmente ouvir, buscando compreender aquela pessoa, você vai saber que tem muito mais coisas ali do que o que aquela pessoa tá dizendo. Aluna 2 – Eu acho importante essa questão da escuta, mas tem um outro aspecto também que é fundamental quando se escuta que é a questão da ética. O que você vai fazer com a escuta? [...] o que é que você vai fazer com isso? [...] você vai induzir ele? você vai desconstruir? você vai abrir ou fechar portas? Eu acho que essa questão da ética a gente tem que ter muito cuidado com o nosso olhar e o olhar do paciente, pra gente não impregnar o paciente com a nossa visão [...] é uma coisa que eu procuro sempre, quando eu coloco alguma coisa nos atendimentos clínicos. Eu pergunto: eu acho que, eu percebo ou eu vejo ou eu acho que dá pra fazer assim. você quer? você acha? você concorda? Não, se você não concordar tudo bem. Então, deixar também o paciente livre para [...] ele tá ali diante de você, ele tá pedindo ajuda por algum motivo. Isso aqui tem alguns aspectos que naquele momento ele não quer mexer e você deve respeitar, eu acho isso fundamental!

O Curso de Psicologia em foco, a despeito de determinar uma disciplina como

obrigatória no 7º semestre, intitulada Ética e Práticas Profissionais, definiu, em seu

Projeto Pedagógico, que a ética na Psicologia é um tema que deve perpassar todo o

currículo, sendo responsabilidade de todos os professores incluí-la em seu plano de

ensino e articulá-la com seus conteúdos e práticas desenvolvidos em sala de aula.

36 Carl Rogers, psicólogo americano, é considerado um teórico de peso na perspectiva humanista da

psicologia, que desenvolve a abordagem centrada na pessoa.

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Considera que a ética é algo construído no escopo de um projeto profissional,

levando em conta os valores que orientam não apenas a prática profissional, mas

extrapola para todas as relações e a própria conduta de cada psicólogo e psicóloga

durante sua vida. Nessa perspectiva, a ética deve ser exercitada nas relações que

se estabelecem no âmbito escolar, pela adesão a valores democráticos, e na

avaliação que se faz das práticas profissionais e sociais cotidianas, numa análise

das questões morais que permeiam a construção da sociedade.

Esclarece Elizete Passos (2000, p. 20, grifos da autora):

[...] a vida humana é constitutivamente moral, pois ela se estrutura em torno de valores. Os projetos de vida, sejam eles individuais ou coletivos, configuram-se a partir de ideais que outras coisas não são senão valores. Nossas ações, das mais simples às mais complexas, pressupõem escolhas que são feitas a partir do valor que elas tenham para nós.

Numa argumentação em que esclarece sobre a adoção do termo ética em

substituição a moral, a autora enuncia:

Os valores morais, diferentemente dos não morais, não possuem substrato material e só existem nos atos e produtos humanos, tais como: comportamentos, interações sociais, decisões tomadas, no produto e aplicação desses atos. Deles podemos falar em justiça, honestidade ou integridade, assim como em responsabilidade. Os valores morais são exclusivos dos seres humanos, pelo fato de pressupor que esses sejam responsáveis pelo que fazem e, para isso, que seus atos tenham se dado de forma livre e consciente. (PASSOS, 2000, p. 20-21, grifos da auutora).

A esse respeito, há um diálogo no 1º Grupo Focal, no qual se envolvem todos

os participantes do grupo:

Aluna 1: Tem que ser ética. Tem que ser uma pessoa acima de tudo ética. Engraçado que a gente deu Ética duas vezes37, na cabeça da gente: é pra quê dar Ética? não sei o quê ..Tem que ter, tem que ter, isso daí é fundamental! A questão da ética, uma pessoa que não tenha isso bem forte na sua personalidade [...] vai ser difícil [...] Aluna 2: Tem que ter respeito mesmo pelo que está fazendo, parece que é uma coisa simples, né? Aluna 3: E trabalhar sempre [...]

37 Como este grupo iniciou o curso no Projeto Pedagógico original, elaborado sob a orientação do

Currículo Mínimo, havia uma disciplina no 2º semestre intitulada Ética e outra no 6º nomeada Ética Profissional.

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Aluna 1: Uma coisa que eu acho também que o psicólogo tem que ter é responsabilidade. Não pode ser de forma alguma uma pessoa assim irresponsável quer dizer [...] Aluna 4: Assumir compromissos [...] Aluna 1: Assumir, exatamente! Não é que não possa ser irresponsável com outras coisas, mas a partir daquele momento que está exercendo o papel de psicólogo tem que ser uma pessoa responsável [...] Você perguntou se era ter paciente, no caso, para ser psicólogo. Não é ter paciente não, porque como X e X disseram é ser responsável pelo outro. Entendeu? Não é ter o paciente, que faz a seleção ou o laudo, ou a orientação na escola, ou o que seja. É você ser responsável pelo outro, e é isso que marca [...]

Essas colocações exibem, mais uma vez, o status e o peso que essas alunas

atribuem à psicologia como profissão feminina, embora não estejam se dando conta

disso, tendo em vista que esse aspecto tem sido uma questão pouco problematizada

no âmbito da Psicologia. Esse cuidado que assume o caráter de responsabilidade

pelo outro, dedicando-se a ele, tornando-o o centro do processo, é exatamente a

proposta de Joan Tronto (1997) sobre o “cuidar de”, que se contrapõe ao “cuidado

com”, que se realiza em uma ótica mais geral de cuidado com a sociedade e se

configura como um tipo de cuidado considerado masculino, que se preocupa com os

outros e com aspectos da realidade, mas o faz sem o envolvimento pessoal.

Essas colocações remetem ao que propõe João Ferreira Neto (2004), quando

sugere que a clínica na psicologia é um ethos, uma atitude diante das situações

profissionais. A Psicologia é uma profissão que lida com a subjetividade dos seres

humanos e em quaisquer lugares em que seja exercida, em maior ou menor escala,

depara-se e precisa manejar informações a respeito da intimidade de seus usuários.

Surge, portanto, uma questão fundamental a ser enfrentada: o sigilo profissional.

Este tema é abordado no Código de Ética Profissional dos Psicólogos (CFP,

2006b, p.13), em seu artigo 9º: “É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a

fim de proteger, por meio de confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou

organizações a que tenha acesso no exercício profissional.”

A questão da quebra do sigilo é tratada no artigo 10º, que autoriza essa

quebra em casos previstos em lei, devendo o psicólogo ou a psicóloga tomar esta

decisão na “busca de menor prejuízo”. O parágrafo único deste artigo orienta que

essa quebra deva se restringir a “[...] informações estritamente necessárias.” (CFP,

2006b, p. 13).

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Questões como estas são normatizadas no Código de Ética Profissional, para

serem seguidas por todos os profissionais do país. O primeiro Código de Ética

Profissional dos psicólogos foi criado em 1975, pela Resolução nº 8, de 02 de

fevereiro, do Conselho Federal de Psicologia, sendo revisto em 1977. Um novo

Código de Ética dos Psicólogos entrou em vigor em 27 de agosto de 2005, pela

Resolução nº 010/05, de 21 de julho de 2005 e entrou em vigor a partir do dia 27 de

agosto do mesmo ano, como produto de uma construção coletiva, resultado de

amplo debate nacional. Foram consideradas as novas e crescentes demandas

sociais por psicólogos, que geraram novos campos de atuação e incitaram a criação

e adoção de novas práticas psicológicas, decorrentes das transformações histórico-

sociais da sociedade contemporânea.

Um código de ética, como um conjunto de princípios que baliza a atuação

profissional, tem o objetivo de assegurar, tanto à sociedade quanto aos profissionais,

padrões de atuação, nos quais estão em jogo as relações com os pares, com a

sociedade e com a ciência. O novo Código de Ética dos Psicólogos trata a profissão

como uma totalidade, sem particularizar áreas de atuação ou referenciais teóricos

específicos, porém consegue ser amplo o suficiente para contemplar a diversidade

de possibilidades de atuação, a crescente inserção de psicólogos em contextos

institucionais diversos e a atuação em equipes multiprofissionais.

Elizete Passos (2000) refere que a deontologia, enquanto ética profissional,

caracteriza-se por um conjunto de normas e princípios que orientam as relações de

determinados grupos ocupacionais. Via de regra, segundo a autora, é utilizada

equivocadamente, como se tivesse um fim em si mesma, por ser apenas

considerada como código de prescrições, regras e interditos. E ressalta a

necessidade de reafirmar o compromisso de profissionais com o projeto global da

sociedade pelo respeito à dignidade do ser humano. A autora propõe uma ética

emancipatória, da justiça social, que priorize o bem comum no reconhecimento e

enfrentamento das desigualdades sociais. Elizete Passos (2000, p.33) incita a um

“[...] compromisso inalienável com a transformação social, com a construção de uma

sociedade mais justa e mais igualitária, onde a prática moral seja embasada no

respeito mútuo, na honestidade, na igualdade, na solidariedade e no amor.”

A formação profissional, dentre elas a que está sendo analisada, tem buscado

contextualizar a formação e, nessa iniciativa, descobrir campos de prática

importantes e necessários, numa relação de mão dupla com o contexto social, em

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que a ação dos alunos interfere nos espaços onde estão situados e gera nos alunos

reflexões sobre suas atribuições profissionais e embasamento teórico. A idéia é que

existem espaços que são quase “ambientes naturais” de se fazer psicologia, dada à

natureza da instituição e das práticas que lá se desenvolve. É o caso do

atendimento a pacientes psicóticos.

Os alunos das duas primeiras turmas38 do Curso de Psicologia tiveram a

experiência singular de freqüentar a disciplina de Psicopatologia no Hospital Juliano

Moreira, que funciona nos moldes de um Hospital Psiquiátrico tradicional. Sobre o

impacto de viver a experiência nesse hospital psiquiátrico, relata uma aluna do 2º

Grupo Focal:

[...] uma coisa que me marcou muito, assim, foi a disciplina de Saúde Mental [...] você ter que ir até o Juliano [...] eu me senti muito pequena quando eu fui até lá e ele [o professor] me fez refletir assim sobre essa prática [...]

Outra aluna do mesmo grupo concorda e depõe:

[...] aquela experiência me colocou assim em contato com uma realidade crua, sem maquiagem [...] ali eu perdi medos [...] foi pra mim uma experiência muito marcante, foi como seu eu tirasse vendas pra muitas coisas; eu perdi frescuras, ali, eu posso dizer [...] foi muito forte! Eu não iria assim de livre e espontânea vontade pro Juliano, mas, assim, pela proposta, eu aceitei e encarei [...] puxa vida, eu mudei a partir daquilo [...] eu mudei [...]

Temas como esses — psicóticos — trazem questões muito sérias

relacionadas com a inclusão/exclusão na sociedade capitalista. Refere-se à

problemática de excluídos que não “devem” ter acesso aos bens sociais, posto que

estão “inadaptados” para a convivência social; e a melhor saída é segregá-los em

“hospitais”, depósitos onde não ficam visíveis aos olhos de todos, todos os dias.

Há, na pauta da Psicologia Social brasileira, hoje, o reconhecimento de uma

sociedade desigual e um engajamento de psicólogos em lutas em prol daqueles que

são excluídos — dentre eles os negros, as mulheres, os homossexuais, os doentes

mentais, os deficientes — e a conseqüente criação de espaços de atuação

profissional que privilegiem essas questões, até recentemente subvalorizadas na

agenda de temas importantes para a Psicologia.

38 Nas turmas subseqüentes, essa forma de trabalho foi repensada e modificada, sendo transferida

para um Centro de Atenção Psicossocial, com visitas ao Hospital Juliano Moreira e ao Hospital de Custódia e Tratamento.

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Partilha-se do entendimento de que a atuação de psicólogos, em seus

diversos contextos de atuação, caracteriza-se pela possibilidade de criar espaços

em que os sujeitos possam expressar os sentidos que atribuem a suas experiências,

de forma crítica e criativa, em que o direito a voz seja assegurado a todos, o que

não acontece na realidade dos hospitais psiquiátricos tradicionais. Estes apesar de

ainda manterem uma estrutura e dinâmica de séculos passados, numa perspectiva

excludente, podem ser revitalizados com base em modelos assistenciais

substitutivos que, pela lógica do cuidado, possam incluir e reinserir socialmente os

usuários de seus serviços.

O isolamento dos pacientes, levado às últimas conseqüências, que segrega e

cronifica o portador de transtornos mentais, é o que provoca o impacto maior na

experiência das alunas. Aquelas que participaram do 1º Grupo Focal verbalizam

aspectos interessantes, porquanto, em alguns momentos, ressaltam como uma boa

experiência, que gostaram muito, mas que provocara reações fortes e adversas, o

que demonstra o peso de uma experiência sofrida e contraditória. Uma aluna diz:

O Juliano, foi ótimo, foi o ouro [...] O Juliano foi o melhor de experiência mesmo, o Juliano foi tudo! Eu acordava mal pra ir pra lá. Eu acordava muito mal. Eu disse: meu Deus do céu, se eu surtasse agora [...] eu não surto nunca mais.

Enquanto outra, fala:

Eu gostava de ir pra lá, mas eu tinha medo, e hoje eu não tenho mais [...] Outra diz:

Eu não tinha medo não, me perturbava! Foi uma coisa assim, de eu imaginar que o limite entre a sanidade e a loucura é um limite tão estreito [...] é isso que ficou na minha cabeça, é isso que eu pensava [...]

É importante para a formação profissional compreender como funciona a

sociedade em toda a sua dinamicidade sócio-historicamente constituída, a fim de

que os estudantes possam construir seus projetos profissionais comprometidos com

as questões sociais que envolvem sua profissão, numa confluência de saberes em

que o acadêmico dialoga com a sociedade num movimento de constituição mútua. É

nessa perspectiva, que o currículo pode ser visto como uma construção social do

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conhecimento, multicultural e multirreferencial (FRÓES BURNHAM, 1998;

SACRISTAN, 1995).

Observando os depoimentos dos alunos expostos até aqui, que trazem relatos

sobre a vivência acadêmica que lhes possibilita nomear-se ou não psicólogos e

psicólogas, pode-se depreender que eles compreendem a construção dessa

identidade como processual, que está se fazendo, e que deverá continuar se fazendo

e refazendo no transcorrer do tempo. Sobre esta questão, apenas um aluno depõe:

Na minha opinião [...] o que faz a gente se sentir psicólogo é exatamente o diploma, o título [...]

O discurso deste estudante leva à suposição de que a identidade, para ele, é

conquistada como um atributo, como algo que se cristaliza e pereniza como idêntico,

sem possibilidade de transformação. Fica evidente, portanto, uma concepção de

identidade tributária da concepção tradicional (moderna) de sujeito.

Tomaz Tadeu Silva (2000, p. 84) fala de dois movimentos que oscilam na

produção das identidades, a saber: o que tenta fixá-las; e o que tenta subvertê-las.

O autor argumenta a favor da impossibilidade de fixá-las, tendo em vista que é “[...]

uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato

performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente,

inacabada [...]” (SILVA, 2000, p. 96-97). Esse posicionamento é compartilhado por

Stuart Hall (2000, 2001).

5.7 PSICÓLOGOS E PSICÓLOGAS: PROFISSIONAIS DA ESCUTA

A concepção de identidade que se compartilha neste trabalho significa

identificações em curso, sucessivas e ilimitadas. Pressupõe uma contínua avaliação

do sujeito sobre si e sobre seus pares que, de uma forma viva e dinâmica, vai se

configurando de diversas formas, relacionadas ao momento e ao contexto que cada

pessoa vive no desenrolar de sua existência, nos discursos de que se apropria ao

falar de si e do mundo. Na verdade, são múltiplas identidades em processo

permanente de construção e desconstrução. Pode-se falar de identidade sexual, de

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identidade profissional, de gênero, de raça, de etnia, de religião, de nacionalidade,

de geração, dentre uma infinidade de outras identidades que se intercambiam e

fazem sentido tanto para cada um em particular quanto para os grupos aos quais se

identifica e se afilia, dando a cada um o sentimento de pertencimento.

Ao entrar no curso, como foi constatado no Questionário Inicial, analisado em

capítulo precedente, os alunos e alunas definiam o psicólogo e a psicóloga como

profissionais de ajuda, especificando que sua atuação consistia em ajudar as

pessoas que estivessem com problemas ou vivenciando situações de sofrimento.

Fica muito evidente também que esta ajuda seria profissional e qualificada e que ela

deveria se dar, de preferência, em atendimentos clínicos realizados em consultório

privado, naquela que se considera uma perspectiva tradicional para o exercício da

profissão de psicólogo e psicóloga.

Reportando-se aos posicionamentos que interferiram na escolha da profissão,

alunas do 2º grupo referem-se a:

Aluna 1 – As pessoas falam [...] psicólogo ele conversa né? como se fosse um amigo [...] [risos]. Aluna 2 – E amigo é aquele que dá conselho [...] Aluna 3 – É tipo assim, quando você, antes de você entrar na faculdade, escuta dizerem para você é, você devia fazer psicologia, você gosta de conversar, ouvir as pessoas [...] Aluna 2 – As pessoas gostam de falar dos problemas e eu gosto de escutar [...] Aluna 1 – Inclusive, eu, quando me perguntavam: porque você escolheu psicologia? eu respondia, todo mundo me procura pra ficar falando dos problemas e eu adoro ficar ouvindo. Falava isso, eu tinha 17 anos [...] Aluna 3 – Eu também, entrei na faculdade com 17 anos.

A análise desta questão do questionário inicial evidencia a relação que a

psicologia estabelece com a sociedade, para oferecer uma visão estereotipada de

atuação profissional, caracterizada pelo atendimento psicoterapêutico realizado em

consultório individual privado. Nele, as pessoas podem falar de seus problemas,

visto que o psicólogo ou a psicóloga é a pessoa privilegiada, que tem acesso a

conteúdos íntimos e privados daqueles que o procuram, buscando ajuda. Esse

exercício profissional é exatamente aquele que dá prestígio e poder ao profissional,

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haja vista que lhe confere o estatuto de profissional liberal, como já discutido

anteriormente, ainda que se trate de uma profissão feminina.

Na arena social, é notória a hierarquia entre as profissões. Aquelas que têm

uma predominância masculina e priorizam a ação e o uso do raciocínio lógico são

mais valorizadas socialmente, em detrimento daquelas voltadas para os

conhecimentos das humanidades e referem-se ao cuidado com os outros.

Embora a Psicologia configure-se como uma profissão feminina de ajuda na

perspectiva do “cuidar de”, do qual fala Joan Tronto (1997), e que exige o

compromisso e a responsabilidade pelo outro, os profissionais da Psicologia não

necessariamente se colocam em posição de subalternidade a outros profissionais,

posto que podem exercer seu mister com independência, no espaço privado do

consultório. Dessa forma, diferenciam-se de outras profissões femininas como a

Enfermagem, o Magistério de séries iniciais, o Serviço Social. Nessa perspectiva,

fala-se da dinâmica das relações de poder, em que se produzem saberes que

estruturam as possibilidades de ação profissional dos seres humanos, numa

configuração conjunta de saber-poder, referida por Michel Foucault (1979, 2001b).

É importante demarcar que a Psicologia, ao nascer como profissão no Brasil,

tinha bem delimitado seu viés clínico, assegurado inclusive pelo parecer do MEC nº

403/62, que regulamentou a profissão e instituiu o Currículo Mínimo para os cursos

superiores de Psicologia, ao “[...] assegurar à Psicologia a posição de relevo no

conceito das chamadas profissões liberais.” (CFE, 2006, p.1). Todavia era marcante

sua presença, desde a primeira metade do século XX, na área da educação, assim

como nas indústrias, mediante a utilização de testes psicológicos nas instituições

educacionais, nos serviços de seleção de pessoal, nos exames psicotécnicos de

motoristas e no sistema judiciário (CFP, 2005), conforme visto no Capítulo 2.

Durante o Curso, ao entrar em contato com a diversidade teórico-

metodológica da Psicologia e adentrar pelos caminhos da atuação profissional, os

alunos têm a possibilidade de ressignificar alguns conceitos e perceber a profissão

de um modo diferente. O que se verifica, no entanto, nos depoimentos coletados nos

Grupos Focais, é que, como o curso trabalha aportes teóricos diversificados, é

possível a alunos e alunas compreenderem o mosaico teórico-conceitual da

Psicologia e até transitar por alguns deles com desenvoltura. Eles têm conhecimento

também das múltiplas possibilidades de ação e inserção profissional, tanto no que se

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refere a campos tradicionais de trabalho de psicólogos quanto àquelas áreas

consideradas emergentes.

Com relação à escolha profissional, entretanto, o segmento que atrai o maior

número de alunos para o Estágio Específico é o da área clínica, com atendimento

individualizado em consultório privado, realizado no Serviço de Psicologia (a Clínica-

escola patrocinada pelo próprio Curso), mantendo aquele posicionamento

explicitado no início do curso e idealizado, como visto no Questionário Inicial.

A despeito do currículo do Curso privilegiar disciplinas que descortinam áreas

distintas de interesse de ação de psicólogos como a Psicologia Social, Psicologia do

Desenvolvimento Humano (bebês, crianças, adolescentes, adultos e idosos),

Psicologia e Educação, Psicologia e Saúde, Psicologia e Comunidade, além de

patrocinar Estágios Básicos em distintos espaços de atuação como em Projeto

Saúde da Família, Centro de Educação Especial, Grupo de Apoio a Criança com

Câncer, ambulatórios diversos, trabalhos em comunidade, hospitais, dentre outros, a

área clínica é aquela que se oferece como a mais atrativa para os estudantes

realizarem o estágio profissionalizante.

Acreditam os alunos que esse estágio, em particular, poderá possibilitar-lhes

o exercício de uma escuta que lhe será necessária e fundamental em quaisquer

espaços em que possam vir a atuar. E os estudantes, em adesão ao que lhes

ensinam seus mestres, consideram o psicólogo e a psicóloga como os profissionais

da escuta, que possibilitam a promoção da ajuda. Há, portanto, uma ressignificação

do entendimento do psicólogo e da psicóloga como profissionais de ajuda para

profissionais da escuta, embora a profissão continue sendo considerada como

profissão de ajuda.

Em atendimento à demanda dos alunos e como uma decisão do próprio curso

com relação aos Estágios Específicos, desde a primeira turma de alunos, a maior

oferta de vagas para os estágios recai na área clínica, privilegiando orientações

teórico-metodológicas diferentes, como é o caso de Psicanálise, Terapia Cognitivo

Comportamental, Gestalt Terapia, Psicoterapia Analítica Junguiana e Psicanálise

Infantil Winnicotiana. Como o Curso definiu duas ênfases curriculares, seguindo

orientação das Diretrizes Curriculares (Práticas de Psicologia em Saúde e Práticas

de Psicologia em Trabalho e Organizações), oferece ainda vagas para Estágio em

Hospitais/instituições de saúde e na área de Psicologia Organizacional e do

Trabalho. Para as quatro primeiras turmas, matriculadas com orientações do

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Currículo Mínimo, foram oferecidas vagas para Estágio na área da Educação, pois

aquele projeto assegurava Estágio nas três áreas tradicionais da Psicologia e

revelou-se como pouco atrativa para os alunos, em virtude, inclusive, do pouco

investimento que o Curso fez nesta área.

Com a reformulação do Curso, à luz das DCN, isso foi modificado, ficando

apenas as duas ênfases citadas: “Saúde” e “Trabalho e Organizações” O PPC,

entretanto, considera que a ênfase de saúde corresponde às áreas de clínica,

hospitalar e ambulatório.

Na Tabela 4 pode-se verificar a oferta e a escolha de vagas em Estágio

Específico nas seis turmas que até o momento da pesquisa chegaram ao 9º

semestre e, portanto, fizeram sua opção pelo citado estágio.

Tabela 4 – Opções de alunos para Estágios Específicos

ESTÁGIO Área Temática Semestres Total %

4.1 4.2 5.1 5.2 6.1 6.2 Psicanálise 6 3 7 5 4 2 27 11,20% Terapia Cognitiva Comportamental

7 7 5 8 4 4 35 14,52%

Psicologia Analítica 2 2 5 4 7 4 24 9,96% Gestalt Terapia 7 3 4 7 4 5 30 12,45% Psicanálise Infantil 7 7 4 3 3 24 9,96% Saúde 2 5 4 10 2 15 38 15,77% Trabalho e Organizações

10 8 5 11 11 9 54 22,41%

Educação 5 4 9 3,73% Total 39 39 37 49 35 42 241 100,00%

Considerando-se que os cinco primeiros itens da Tabela referem-se ao

trabalho clínico realizado no Serviço de Psicologia, pode-se constatar que 58,09%

dos estudantes do Curso de Psicologia em foco realizaram as disciplinas Estágio

Específico I e Estágio Específico II na Clínica de consultório, enquanto 15,77%

escolheram a área de Saúde (hospitalar e ambulatório), perfazendo um total de

73,86% de alunos na ênfase de saúde, consoante a formação tradicional da

psicologia e a cultura acadêmica da instituição de saúde. Veja-se a Tabela 5, que

apresenta uma síntese:

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Tabela 5 – Escolha de alunos para Estágio Específico - Síntese

Estágio / Área Total % Clínica 140 58,09% Saúde 38 15,77% Trabalho e Organizações 54 22,41% Educação 9 3,73%

Total 241 100,00%

Observando o Fluxograma Curricular (Anexo C), verifica-se que a área da

Educação não foi considerada de peso na construção do currículo, ficando as

disciplinas a ela relacionadas no início do curso, ou seja, 3º e 4º semestres, distante,

portanto, do momento da escolha do estágio, 8º semestre. As disciplinas das áreas

de Saúde e Trabalho e Organizações, entretanto, fazem-se presentes e

acompanham o aluno em semestres subseqüentes.

É importante esclarecer que no 8º semestre existe uma disciplina obrigatória,

intitulada Diagnóstico e Intervenções em Psicologia, na qual todos os alunos devem

ter uma experiência com o psicodiagnóstico, realizado com criança, adolescente ou

adulto, numa abordagem eminentemente clínica. Isto significa que, neste momento

do curso, todos os alunos lidam com um paciente/cliente no ambiente do Serviço de

Psicologia. Ademais, os Estágios Básicos são desenvolvidos em locais

predominantemente da área da saúde, desde quando pode aproveitar-se a estrutura

privilegiada da instituição. O Estágio Básico I realiza-se no Projeto Saúde da Família

do Complexo Comunitário Vida Plena e é obrigatório para todos os alunos. Os

demais são realizados em espaços diversificados, mas com peso na saúde, como é

o caso do Ambulatório Docente Assistencial de Brotas (gestantes, idosos e

cardiologia), Clínica de Fisioterapia e Serviço de Psicologia, Disciplina Saúde Mental

do Curso de Medicina e Serviço de Psicologia, Projeto Saúde da Família no

Candeal, Grupo de apoio a Criança com Câncer, Hospital Juliano Moreira, Centro de

Educação Especial da Bahia, Centro de Apoio Psicopedagógico, Escola

Especializada Wilson Lins, Secretaria de Desenvolvimento Social da Prefeitura,

Cedeca, dentre outros.

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Além do mais, dos 32 professores do Curso que são psicólogos,

independente de qual disciplina ministrem, 21 realizam atividades clínicas em seus

consultórios particulares o que, provavelmente, é do conhecimento dos alunos e cuja

experiência clínica, em algum momento, deve fazer-se presente na sala de aula.

Considere-se também o ambiente acadêmico impregnado dos valores e propostas

da saúde que a instituição escolar, por sua própria natureza, oferece. Decerto que

esses dados do currículo oculto interferem sub-repticiamente no direcionamento que

o curso dá à escolha da área de atuação do aluno.

Com relação à escuta, enquanto ferramenta profissional do psicólogo e da

psicóloga, convém ressaltar que não se esgota na perspectiva clínica individual de

sanar problemas, mas refere-se à possibilidade de ouvir quaisquer sujeitos, seja

individual ou coletivamente, em quaisquer contextos em que estejam inseridos. Essa

escuta permite que sejam consideradas expressões, tanto de idéias quanto de

desejos, dificuldades ou quaisquer outras e permite a percepção das limitações e

potencialidades de determinados grupos ou pessoas, reconhecendo habilidades,

saberes, competências, estimulando sempre o estabelecimento de vínculos entre as

pessoas e os grupos e a possibilidade de construção entre elas, para elas e de seu

entorno, inclusive, na promoção da qualidade de vida e na participação cidadã para

as transformações sociais. Há que se considerar, portanto, a especificidade do saber

do psicólogo que lida com a subjetividade dos seres humanos quer do ponto de vista

individual, quer coletivo (EIDELWEIN, 2006; ZANELLA, 2003).

A escuta, por si só, porém, não define a atuação do psicólogo. Some-se à

capacidade de compreender o dito e o não dito que subjaz aos discursos dos

sujeitos uma outra capacidade, a de observar de forma minuciosa os

acontecimentos e os contextos e problematizá-los à luz de referenciais teóricos que

permitam a compreensão da realidade. Considerem-se ainda fenômenos humanos e

sociais como multidimensionais, complexos, transversais, como ensina Edgar Morin

(1998, 2000, 2001). Para este autor, é necessário perceber as relações complexas

que se estabelecem entre texto e contexto e os múltiplos diálogos multi, inter e

transdisciplinares, cabendo à Psicologia desenvolver uma leitura complexa da

realidade, contribuindo para a re-ligação dos saberes.

A escuta do profissional da psicologia é considerado um tema tão importante

para os alunos e alunas que se fez presente em todos os Grupos Focais realizados.

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Uma participante do primeiro grupo referindo-se à habilidade de escutar como uma

aquisição processual no Curso, assim se expressa:

Aos poucos, mesmo sem a gente perceber, a gente vai aprendendo durante o curso, assim, a olhar o humano, a olhar o ser humano [...] até a se interessar por isso! Eu acho que é o principal! Então essa coisa de observar, de ouvir, eu acho que é principalmente estar interessado, de ter curiosidade, de ter interesse em ouvir, de ter paciência em ouvir. E isso vai surgindo sem que a gente perceba, dentro das matérias que a gente deu na faculdade, dentro dos livros de filosofia, dentro de qualquer coisa. Assim, quem não captou isso, não conseguiu apreender isso na faculdade, acho que não é um bom psicólogo.

Outra estudante, participante do segundo grupo, problematiza o que de fato

significa essa escuta do psicólogo:

[...] eu acho que a escuta é diferente. Que diferença é essa, ainda eu não tenho certeza, mas eu acho que é uma questão de não ter o julgamento, de não ter o não julgamento; não necessariamente significa que você tá lá apático, neutro, ele não tá falando pra uma parede, mas é uma disponibilidade pra escutar a pessoa [...]

A escuta psicológica, enquanto uma habilidade, não se limita ao exercício

profissional; ao ser incorporada ao cotidiano, extrapola o mister e perpassa as

próprias posições do sujeito em sua relação com o mundo. Pode-se destacar que as

ferramentas de trabalho do psicólogo envolvem, além da escuta e da observação,

sua capacidade de perceber e de relacionar fatos e teorias. Quando internalizadas,

não se dissociam dos sujeitos/profissionais psicólogos. É o que constata uma aluna

do 3º grupo, quando revela um fato de sua vida social:

Nós fomos visitar uma amiga em comum que tava doente. Essa amiga tava falando de questões da vida dela, pessoais e tudo e depois [...] a colocação que ela fez: pôxa, você tá, já tá tão diferente, você tá psicóloga! As suas colocações, até a sua forma de se reservar, você tá diferente!

O grupo de professores também faz alusão a essa escuta característica do

psicólogo, referindo-se a questões de relacionamento pessoal com companheiros,

filhos e outros, e também a momentos profissionais. Com relação à convivência

diária, muitas vezes, a superposição de papéis (mãe/psicóloga, namorado/psicólogo,

professora/psicóloga, amiga/psicóloga, dentre tantos outros) interfere nos discursos

e permite ao psicólogo ou psicóloga ter um entendimento diferenciado do diálogo

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que trava, mesmo sem haver uma intencionalidade previamente definida, como diz

um professor:

Você pode até ficar calado, mas já ouviu [...]

O objetivo da escuta psicológica, entretanto, enquanto ferramenta de trabalho,

é observar, escutar, compreender e interagir; é realizada de forma privilegiada nos

momentos de entrevistas. Os psicólogos, em suas mais diversas atuações

profissionais, utilizam a entrevista com as mais distintas finalidades. Esta técnica

permite o acesso aos dados dos clientes/pacientes, individuais ou grupais. Na

entrevista, é possível investigar a história pessoal, os conflitos, as representações,

aspirações, crenças, fantasias, mediante os mais diversos relatos sobre

acontecimentos vividos no real ou no imaginário. Significa que só o sujeito pode falar

de sua própria história e cabe ao profissional escutá-la para identificar necessidades,

inteirar-se das possibilidades/impossibilidades de seu momento existencial, a fim de

proceder orientações ou contribuir para amenizar situações de sofrimento ou

quaisquer outras.

A escuta psicológica, portanto, pode ser realizada nos mais diversos espaços

públicos, privados ou ONG, em quaisquer ramos de atividade produtiva ou

assistencial, sem a intenção de se configurar como um atendimento psicoterapêutico

ou uma terapia. Pode ser realizada de forma individual ou coletiva, quando sujeitos

que compartilham contextos sócioculturais podem confrontar razões singulares,

significar e ressignificar fatos e sentimentos pela socialização de experiências.

Caracteriza-se pela aceitação e pelo não julgamento, permitindo que a pessoa

atendida possa expressar seus mais diversificados sentimentos e situações de vida.

Não é necessariamente um atendimento psicoterapêutico, mas pode provocar

efeitos terapêuticos.

René Barbier (1998) fala da escuta sensível como uma possibilidade de

escuta necessária àqueles que lidam com fenômenos humanos. O autor esclarece

que este tipo de escuta segue a lógica da abordagem transversal por ele criada,

como uma teoria psicossociológica existencial e multirreferencial. Diz ainda:

A abordagem transversal procura esclarecer clinicamente e de acordo com um processo de pesquisa-ação existencial, ligada ao sentido da criação poética e da meditação espiritual, aquela transversalidade plural, a partir do

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imaginário e nos níveis concretos da pessoa, do grupo e da organização, pela expressão de seus produtos, de suas práticas e de seus discursos. (BARBIER, 1998, p. 172).

O autor caracteriza a escuta sensível, portanto, como aquela que não julga,

que é empática, que se assemelha mais a uma arte que a uma ciência e oferece

uma abertura holística para conectar-se com a totalidade do outro. Do ponto de vista

de René Barbier (1998), é uma escuta que deve ser usada por pesquisadores, por

educadores, psicólogos, terapeutas, por todos aqueles que desejam entender o

outro do ponto de vista que este outro coloca e revela, tentando compreender seu

universo afetivo e cognitivo, que se faz presente pelas idéias, valores, símbolos,

atitudes e comportamentos.

A aprendizagem da escuta diferenciada e qualificada, como ferramenta de

trabalho no Curso de Psicologia, entretanto, está condicionada ao aporte teórico que

cada linha de pensamento preconiza. Apóia-se em uma determinada concepção de

sujeito, de mundo e de Psicologia, com seus posicionamentos filosóficos e

epistemológicos peculiares.

Uma experiência com a aprendizagem da escuta em uma situação de Estágio

Básico é relatada por uma aluna do grupo 4, considerando uma pontuação da

professora:

[...] estou adorando este momento! é muito bom conversar! porque eu acho que é também um pouco o que a professora falou; a gente está proporcionando pra eles o que alguns profissionais da área da saúde não têm condições de proporcionar que é essa escuta [...]

Referindo-se à forma como é possível ir se apropriando desse escutar, diz

uma aluna do 1º grupo:

É tão engraçado! Eu lembro que quando a gente sentava antes para conversar, em barzinho, com os amigos, antes de fazer psicologia, eu ouvia já, porque sempre eu gostei de ouvir, tal, e ficava criando minhas hipóteses. Mas era uma coisa... eu achava minhas coisas e ficava pra mim. Quando eu comecei a estudar, comecei a ver assim, Freud principalmente, a gente começou a ter conhecimento aqui. Primeiro que a gente estudou foi Freud, depois foi Skinner também, né? Quando eu comecei a me dar conta, eu digo: oh rapaz, eu ouvi isso em algum lugar que eu li. Aí começou [...] Ah, ó pra isso! Chiii! Eu vi [nome da profa.] falando aquilo naquele dia. Olha, [nome da profa.] falou também de uma coisa assim! Aí eu comecei a ver que tinha um instrumento, que tinha a teoria que poderia servir pra eu tá [...] Aquilo dali me deu um poder que eu disse, pôxa vida, o poder do psicólogo! Aquela, a fantasia assim

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que todo mundo tem, psicólogo vai ficar observando, analisando. Mas tem um pouco disso mesmo, a gente nunca olha de uma forma [...]

A aluna refere-se ao poder do saber. É um determinado tipo de saber que vai

dar uma posição diferenciada ao psicólogo e à psicóloga, sobretudo permitir que ele

vá além no entendimento do que as pessoas falam, ou seja, permite entender o dito

e também o não dito dos discursos. É provavelmente por este aspecto que, no senso

comum, fala-se que o psicólogo analisa as pessoas ou sabe das pessoas como um

adivinho, um mágico etc.

Como se discute ao longo deste trabalho, do ponto de vista foucaultiano, o

saber, como estratégia de poder, delimita fronteiras simbólicas entre os seres

humanos e o conhecimento científico. Numa sociedade que se estrutura sob a

ordem patriarcal, é identificado como um símbolo do poder masculino. Resta

perguntar sobre o saber da Psicologia e das psicólogas.

Carmem Grisci (1995) considera que as mulheres detêm um saber que se

diferencia daquele próprio da condição masculina e assegura que este é tecido no

interior do espaço doméstico, numa espécie de resistência a sua condição de

excluída. Afirma que é no próprio lar que as mulheres tecem os fios da resistência e

declara: “[...] criam saberes populares que são passados de mulher para mulher.

São saberes envoltos em um discurso peculiar, carregado de metáforas,

personificado pelas benzedeiras, que dificilmente são confiados aos ouvidos

masculinos.” (GRISCI, 1995, p. 17).

Está embutida nesse saber a capacidade de escutar. Em se tratando de uma

profissão feminina, num esforço de aproximação, pode-se associar o saber da

psicologia a este saber feminino, ao qual se refere Carmem Grisci (1995). Ademais,

entende-se que a escuta diferencia os psicólogos de quaisquer outros profissionais.

A escuta, porém, é o instrumento privilegiado da clínica e não se pode

esquecer que os alunos do Curso de Psicologia em estudo fazem sua opção

profissional por esta área de atuação e a escola oferece as condições para

atendimento a essa demanda dos alunos. Apesar disso os elementos que definem

as profissões são criados e recriados ao longo do tempo no permanente movimento

de constituição dos seres humanos e da sociedade e a Psicologia também insere-se

nesse movimento de transformações do mundo contemporâneo, e seus contextos e

práticas vêm passando por significativas modificações.

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203

Analisando as transformações pelas quais vem passando a concepção de

clínica em Psicologia, Teresinha Feres-Carneiro e Ana Carolina Lo Bianco (2003, p.

100), no texto que produziram para o III Congresso Norte-Nordeste de Psicologia,

realizado em João Pessoa (PB), em 2003, firmam a seguinte posição:

Acompanhamos, então, as várias etapas porque passa a configuração da clínica em Psicologia e podemos tipificá-la através da passagem de uma prática dirigida ao atendimento diádico, exercido no âmbito privado, para um amplo espectro em que o psicólogo clínico está presente, não mais apenas nos consultórios, mas participando, nas instituições, nas comunidades, nas inúmeras frentes de trabalho em que se vislumbra a possibilidade de exercício e aplicação do conhecimento psicológico.

Prosseguem as autoras, argumentando que há uma mudança na concepção

de sujeito que, considerado natural e universal, era compreendido em uma realidade

intrapessoal e intrapsíquica, enquanto as novas configurações contemporâneas

concebem-no sócio-históricamente determinado pelas circunstâncias sociais,

históricas, políticas, econômicas e culturais, o que possibilita expandir suas

fronteiras da atuação para múltiplas direções, criando e recriando, cada vez mais,

novas possibilidades. Esse novo posicionamento levou João Ferreira Neto (2004) a

propor que a prática clínica em psicologia não seja mais pensada como área de

atuação, mas como uma atitude, como ethos.

É importante demarcar esses questionamentos como constitutivos da própria

profissão e dos profissionais que dela partilham e que elegem os discursos

produzidos para assumirem como seus e para serem por eles falados. Michel

Foucault (2001b) fala do discurso que forja os objetos, das posições de sujeito que

formatam identidades. Logo, a apropriação do discurso da psicologia situa-se nas

permanentes disputas entre os poderes e saberes, ancorados em concepções

teóricas e práticas que descortinam para os alunos possibilidades de prestígio e

poder, seja pelo domínio de determinado campo teórico, seja pelas possibilidades de

reconhecimento social pelo exercício da profissão, seja pela remuneração no

Mercado de Trabalho ou por quaisquer outros parâmetros valorizados pela

sociedade.

O espaço escolar constitui-se, portanto, em uma rede de relações, na qual

práticas discursivas formatam sujeitos singulares. É um campo de disputa de

poderes e de saberes, em que alunos e alunas constroem identidades profissionais,

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elaborando concepções sobre si, sobre os outros, sobre o mundo e sobre a

profissão. Ao longo deste capítulo foi possível verificar como os alunos que

vivenciam práticas curriculares compartilhadas em um currículo prescrito podem se

subjetivar de formas diferenciadas, exibindo novos posicionamentos diante do real.

Percebeu-se também quais práticas curriculares favorecem, do ponto de vista deles,

a construção de suas identidades profissionais. Identidades em construção

permanente, como sintetiza Boaventura Souza Santos (1996, p. 135), quando, ao

ensinar a olhar as identidades como “identificações em curso” assim se expressa:

Sabemos que as identidades culturais39 não são rígidas nem, muito menos imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso.

Com esse mesmo entendimento de Identidade, no próximo capítulo serão

aprofundados aspectos específicos do processo curricular que se referem ao

atravessamento de Gênero no Currículo e na construção dessas identidades

profissionais, demarcando depoimentos considerados relevantes para a

compreensão do tema.

39 Este terno é utilizado pelos teóricos que situam o estudo das identidades na perspectiva

contemporânea, para marcar que as identidades são sempre construídas no processo cultural.

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Cada um fez desse curso o seu curso.

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206

6 CONFIGURANDO GÊNERO

Com relação à análise dos dados empíricos coletados durante a pesquisa,

nos capítulos precedentes, abordou-se a construção de identidades profissionais em

Psicologia, privilegiando o entendimento que os alunos e as alunas têm da ciência e

da profissão e também a importância que atribuem a determinados aspectos do

currículo do Curso.

Neste capítulo, privilegia-se Gênero, analisando o atravessamento deste

determinante social no curso e avaliando como direciona a construção das

identidades profissionais, mesmo não havendo uma intencionalidade para isso. Com

relatos diferenciados, realizados por homens e mulheres, analisam-se os

posicionamentos que estes sujeitos demonstram ter quanto ao entendimento de

masculino e feminino.

Além do mais, como evidencia a Psicologia como uma profissão feminina,

exibe as peculiaridades que a distinguem de outras profissões femininas e de outras

também consideradas como profissões de ajuda.

6.1 PSICOLOGIA – PROFISSÃO FEMININA

A psicologia é considerada uma profissão feminina, tendo em vista o grande

contingente de mulheres que compõem este universo profissional no Brasil.

Pesquisas diversas, dentre elas aquelas patrocinadas pelo Conselho Federal de

Psicologia, que realizou o primeiro levantamento nacional entre 1985/87,

constataram que o número de psicólogas brasileiras chegava a 85% do total de

profissionais inscritos no Sistema Conselhos40 à época. Esses dados foram

ratificados posteriormente, em pesquisas realizadas pelo CRP/06 (1994), Rosemary

Achcar (1994), CFP (2001) e IBOPE/MQI (2004), também patrocinadas pelo CFP.

Esta última, realizada recentemente, em 2004, afirma que a maioria absoluta dos

40 Sistema que congrega todos os Conselhos Regionais de Psicologia (CRP) do Brasil, delimitados

por critério geográfico.

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profissionais da psicologia brasileira são psicólogas, ou seja, 91% do total é

constituído de mulheres, enquanto os 9% restantes são do sexo masculino.

Com relação ao quantitativo de mulheres como profissionais de psicologia na

Bahia, Manoelita Santos (1999), em Pesquisa para Mestrado na UFBA, realizou

levantamento de inscritos no Conselho Regional de Psicologia (3ª Região – Bahia e

Sergipe) e verificou que dos 2.109 inscritos no Conselho, até o ano de 1998, as

mulheres eram maioria, constituindo-se em 89,1% dos inscritos. A pesquisa de

Elizete Passos (1997), igualmente, identificou, em dados de matrícula no Curso de

Psicologia da UFBA, no período de 1974 a 1994, 82% de mulheres matriculadas.

Este resultado levou a autora a indicar a generificação de profissões no âmbito do

ensino superior.

A Psicologia como profissão feminina foi abordada pela primeira vez, no

Brasil, por Fúlvia Rosemberg (1984), que identificou a grande maioria de mulheres

psicólogas. A autora relacionou esse fato às possibilidades que a Psicologia,

enquanto atividade ocupacional, oferecia para adaptação no mercado de trabalho,

posto que as mulheres poderiam conciliar o trabalho profissional com os afazeres

domésticos e a maternidade. A psicologia funcionaria, nesse sentido, como uma

profissão complementar àquela principal, o casamento. A pesquisadora vincula esse

fato ao desenvolvimento da Psicologia no Brasil, considerando-a socialmente

acomodada, como reflexo da incipiente luta das mulheres naquele momento

histórico.

Não obstante a história não ser uma linearidade sucessiva de fatos, mas

acontecimentos que se precipitam em função de diferentes configurações de forças

em determinado tempo/espaço, dentre elas econômicas, sociais, culturais,

familiares, geográficas, Mitsuko Antunes (1998) considera que a difusão das práticas

da psicologia na educação, especialmente nas Escolas Normais, pode ter sido uma

das raízes da Psicologia como profissão feminina. Segundo a autora:

É possível dizer que essas escolas foram uma das principais portas para a penetração da Psicologia científica no país e para a definição do perfil dos profissionais que se tornariam especialistas em Psicologia, além de, no caso da Escola Normal de São Paulo, ter sido ela uma das mais importantes bases para que a psicologia se tornasse mais tarde disciplina universitária. (ANTUNES, 1998, p. 86).

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Outros fatores também podem ser evocados como mobilizadores, para que as

mulheres sintam-se atraídas pela Psicologia. Um deles, conforme se discutiu

anteriormente, situa a profissão na fronteira entre o cuidar e o curar, como se pode

constatar em levantamento realizado por pesquisas, a exemplo das realizadas por

Mauro Magalhães et al (2001) e Waldir Bettoi e Lívia Simão (2000), cujas

proposições colocam a profissão de Psicólogo num terreno de disputa, em que estão

em jogo os poderes de quem cura em oposição às tarefas de quem cuida, conforme

também discute Elizete Passos (1997). Ademais se revela de uma forma

contraditória, pois, como profissão feminina, tem as atribuições de cuidar dos outros,

tal como propõe o ideário patriarcal; e como profissão liberal, dá uma relativa

independência às mulheres, de poderem exercer seu trabalho com autonomia e

independência, sem submeter-se a outros profissionais e/ou a regimes de trabalho

que não lhes sejam convenientes.

Os estudantes e as estudantes deste curso que estudamos e que

participaram dos Grupos Focais, indagados sobre a presença maciça de mulheres

no curso e na profissão, apontam que a Psicologia é uma profissão feminina por

questões culturais, como se pode verificar no depoimento de uma estudante do 3º

grupo:

Eu acho que tem uma construção histórica e social a respeito disso, de que o homem, na sociedade patriarcal, ela cria a mulher pra ser esse, ser mais acolhedora, essa pessoa de que é ela que ouve, é ela que acolhe, ela é que é sensível [...]

Um diálogo entre duas alunas do 2º grupo, a seguir, ilustra este mesmo

posicionamento:

Aluna1: [...] a gente viu que essa coisa do cuidar é uma coisa muito materna mesmo. Feminina! Terapeuta quer dizer aquele que cuida e isso remete muito ao feminino. As mulheres geralmente são aquelas que cuidam dos filhos, dos pais idosos [...] Aluna 2: Isso vai de cultura! No oriente, o masculino, o homem, ele tem o saber e cuida! Tanto que quando as pessoas têm doença eles procuram os chamados xamãs. É um homem que conhece a natureza e sabe entre aspas o problema e a cura. Então eles têm isso! Aqui no ocidente já é mais essa questão mesmo [...] Aluna 1: [...] mas aqui no ocidente, na Psicologia, na enfermagem, é, até a fisioterapia, nutrição, pedagogia, a maioria são as mulheres.

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Está implícita nos discursos dessas alunas a idéia de cuidado na perspectiva

exposta por Joan Tronto (1997, p. 189):

[...] cuidar é uma atividade regida pelas mulheres tanto no âmbito do mercado quanto da vida privada. As ocupações das mulheres são geralmente aquelas que envolvem cuidados, e elas realizam um montante desproporcional de atividades de cuidado no ambiente doméstico privado.

Isso supõe “cuidar de” outros, no ambiente profissional e doméstico. Neste,

entretanto, essas tarefas são de sua competência exclusiva.

As profissões, quando consideradas masculinas ou femininas, estão

impregnadas da construção histórico-social do ser homem e do ser mulher em

determinado tempo-espaço. O entendimento de Gênero que se defende ao longo

deste trabalho, enquanto teoria social que articula conhecimentos para compreensão

do real, propõe-se a desvelar e desnaturalizar as relações que se estabelecem entre

homens e mulheres na sociedade ocidental, singularizando tanto os homens quanto

as mulheres em seus grupos de referência. A esse respeito, Sandra Harding (1993,

p. 9) esclarece:

O feminismo tem tido um importante papel na demonstração de que não há e nunca houve “homens” genéricos – existem apenas homens e mulheres classificados em gêneros. Uma vez que se tenha dissolvido a idéia de um homem essencial e universal, também desaparece a idéia de sua companheira oculta, a mulher. Ao invés disso, temos uma infinidade de mulheres que vivem em intrincados complexos históricos de classe, raça e cultura.

Nessa perspectiva, as relações de gênero podem ser compreendidas como

um dos eixos pelo qual se articulam as relações sociais, embora cada período

histórico, cada cultura, cada grupo, cada comunidade eleja suas formas particulares

de simbolizar as diferenças entre homens e mulheres. Ademais cada pessoa tem

seu jeito próprio de vivenciar sua experiência de gênero, embora submetida às

determinações sociais nas quais está imersa. Há tantas possibilidades que é

possível pensar que existem tantas formas de vivenciar o ser homem e o ser mulher

quantas sejam as pessoas, embora, ao falar de relações de gênero, esteja-se

falando das características atribuídas a cada sexo pela sociedade e pela cultura.

Fala-se, pois, de diferenças que se transformam em desigualdades na arena

em que se estabelecem hierarquias e disputas de poder do macho e da fêmea,

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admitindo-se, por princípio, que o cotidiano é o espaço significativo das relações

sociais. Enquanto relações, são perpassadas pelas instâncias de poder e

possibilitam a aquiescência, a resistência e a luta.

Um estudante do 5º grupo refere-se à psicologia como profissão feminina da

seguinte forma:

[...] porque as profissões, elas tem isso, estão associadas a estereótipos. Por exemplo, caminhoneiro só era homem! Então, agora, você encontra mulher dirigindo ônibus e você se assusta, ainda se choca quando vê uma mulher dirigindo ônibus. E X [refere-se à colega] falou um pouco: a psicologia tem essa coisa de cuidar, de ouvir pacientemente. Dentro dessa proposta da coisa clínica, o estereótipo do psicólogo é a psicologia clínica mesmo! Eu acho que essa coisa do cuidado, do ouvir, do acolher... Isso, historicamente, são funções que foram atribuídas às mulheres. As mulheres que foram preparadas pra cuidar das crianças, dos doentes, dos idosos, dos malucos, pra ouvir, pra acolher, pra ser paciente. Isso já tá que meio no inconsciente coletivo da cultura, do mundo. E as mulheres vão, e fazem, se identificam com isso também [...]

O discurso deste aluno passa a idéia de que tudo é natural. É assim mesmo,

sempre foi assim. Neste sentido, reproduzem-se as determinações sociais de uma

forma pré-estabelecida e a-crítica. Acontece que se estuda a construção de

identidades profissionais de um grupo de alunos e alunas singular, de uma profissão

feminina e sabe-se que o currículo é um espaço de poder. Como tal, engendra uma

disputa entre os conteúdos e discursos disseminados pela escola. Verifica-se,

portanto, nesse grupo em particular, que os discursos naturalizam a hierarquia de

gênero ou esse aspecto sequer é problematizado.

Trata-se de um curso que conta com 33 professoras/psicólogas que lidam

com os saberes-poderes que esta profissão confere no rol das profissões femininas

e liberais, reproduzindo a-criticamente a condição social desigual de gênero.

Entende-se, portanto, que se o currículo constrói identidades por meio do discurso,

também desconstrói e refaz identidades, demarcando fronteiras simbólicas, dentre

elas as de gênero.

É importante registrar, inclusive, que este tema até recentemente não era

valorizado entre os pares da Psicologia, sendo uma perspectiva, de fato,

naturalizada entre esses profissionais. Recentemente, o Jornal do Federal41. em sua

edição de maio deste ano de 2006, publicou uma breve matéria intitulada Psicologia

41 Jornal de publicação trimestral do Conselho Federal de Psicologia, postado a domicílio para

psicólogos brasileiros e disponível on-line.

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usa batom (CFP, 2005), numa clara referência à generificação da profissão. Esta

Instituição também patrocinou uma Mesa Redonda, o II Congresso Brasileiro

Psicologia, Ciência e Profissão, realizado em São Paulo, entre 5 e 9 de setembro de

2006, cujo tema foi a Psicologia como profissão feminina. Este assunto, até então,

não vinha sendo abordado pela Psicologia, sendo tratado por iniciativas isoladas,

sem uma repercussão nacional que imprimisse mais vigor às discussões.

No mundo do trabalho, existem profissões que são preferencialmente

escolhidas por mulheres e outras por homens. Essas escolhas encobrem a

assimetria de gênero, posto que apresentam as habilidades e conhecimentos

necessários ao desempenho profissional como qualidades ou fraquezas inerentes a

cada sexo. Reproduzem a hierarquia de gênero, veiculando valores, status e direitos

que têm como objetivo perpetuar uma posição de dominação, porquanto sabe-se

que qualquer um ou uma, homem ou mulher, pode desempenhar, a priori, os

mesmos trabalhos. Os critérios de escolha/seleção/eliminação podem ser

condicionados às oportunidades e preferências das mais diversas ordens.

Ana Castro e Oswaldo Yamamoto (1998), ao comentarem sobre a psicologia

como profissão feminina, recorrem a Martins (1981), para esclarecer que diversas

carreiras consideradas femininas concentram-se nas áreas das Ciências Humanas e

das Letras, em virtude do pouco investimento que requerem e da grande expansão

na oferta desses cursos superiores na rede privada. Insinuam que esse fato

oportuniza maior facilidade para o acesso das mulheres ou que esta artimanha

facilita-lhes esse acesso. Os autores baseiam-se em Celso Ferretti (1976), para

afirmar que as carreiras masculinas oferecem maior prestígio e remuneração em

relação às carreiras femininas. Além disso, ancorados neste último autor, expõem,

com relação às expectativas dos aspirantes às mais diversas carreiras, em uma

avaliação sobre suas próprias possibilidades, que as mulheres demonstram

expectativas mais baixas que os homens, o que, do ponto de vista deles, concorrem

para a configuração de carreiras femininas.

Observa-se que o texto acima carece de uma argumentação mais elaborada

sobre gênero, já que não lança mão de argumentos que abordem a questão

relacional de gênero, posto que, enquanto categoria analítica, deve dar conta de

compreender a trama das relações sociais subjacentes a um determinado grupo em

um tempo/espaço específico. Há, no texto, uma visão estereotipada da existência de

certa feminilidade na mulher, que teme a aproximação dos desafios intelectuais,

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refugiando-se em seus dotes “naturais” ligados provavelmente à emotividade e à

maternagem. Como uma das poucas iniciativas de analisar a Psicologia como

profissão feminina, o texto citado o faz de um ponto de vista conservador e até

preconceituoso, porquanto desqualifica as mulheres em suas capacidades

profissionais.

O conceito de gênero entende as noções de "masculino" e "feminino" como

construções sociais, abdicando da idéia de que a natureza é a responsável pela

grande diferença que existe entre os comportamentos e lugares ocupados por

homens e mulheres na sociedade. A assimetria de gênero, na esfera social, tem

privilegiado os homens, por não oferecer as mesmas oportunidades de inserção e de

exercício de cidadania para homens e mulheres. Historicamente, é dessa forma que

as sociedades se posicionaram, como afirma Michele Rosaldo (1995, p. 18): “Todo

sistema social usa fatos do sexo biológico para organizar e explicar os papéis e

oportunidades dos quais homens e mulheres podem desfrutar [...]”

6.2 UMA VISÃO DE MASCULINIDADE

Quando se fala de estereótipos, alude-se a idéias e comportamentos que se

repetem de forma automática, reproduzindo desigualdades sociais e legitimando

relações sociais assimétricas. Pode-se falar de estereótipos de gênero, de raça, de

etnia, de religião, enfim, de uma diversidade de circunstâncias que formam uma

sociedade plural, e que buscam eliminar essas diferenças na conquista de uma

hegemonia racial, sexual, de gênero, entre outras. Os estereótipos dizem de

conceitos aprendidos de forma unilateral e escamoteiam a realidade, trazendo

embutidos posicionamentos preconceituosos.

Estereótipos de gênero aparecem nos discursos dos alunos e alunas, sujeitos

da pesquisa, não apenas quando se referem às posições das mulheres, mas

também quando fazem alusão às expectativas sociais do desempenho masculino. É

o que está explícito em um diálogo de alunos do 5º grupo:

Aluna 1: Os homens... é difícil optarem por profissões que tem menos poder [...] Por isso eu acho o número de mulheres é maior... [na psicologia]

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Aluna 2: Homem é provedor da família e mulher é um complemento ao dinheiro da família [...] homem não pode ser sensível homem tem de ser insensível, tem que ser durão [...] Aluno: Tem que ser médico, tem de ser engenheiro, advogado, administrador [...]

Pode-se observar que os estereótipos são verbalizados tanto por alunos

quanto por alunas. E isso é fruto da perspectiva naturalizante de gênero.

Ari José Sartori (2001), que estuda sobre masculinidades, reporta-se a Robert

Connell (1995), para discorrer sobre o conceito de masculinidade, visto que este

autor postula a existência de quatro tipos de masculinidade nas sociedades

ocidentais: a cúmplice, a marginalizada, a subordinada, e a hegemônica.

O conceito de masculinidade hegemônica, no qual Ari José Sartori (2001)

ancora-se, refere-se a um perfil estereotipado que preconiza e revela os homens

como produtivos, ativos, fortes, competitivos, pragmáticos e capazes de realizar

trabalho físico e pesado de toda ordem. Apoiado em Vale de Almeida (1995),

Sartore (2001, p.196) diz que se trata de “[...] um modelo ideal, que, não sendo

atingido por nenhum homem, exerce poder controlador sobre homens e mulheres.”

Numa referência a seu próprio pai e a sua mãe, uma estudante do 4º grupo

fala de masculinidade quando diz:

[...] aí ele dizia assim: nesse momento eu não posso ser fraco. O fraco que ele queria dizer é: eu não posso demonstrar que eu estou sentindo dor, eu não posso demonstrar que estou fazendo isso, não posso demonstrar dessa forma, dessa e dessa. E isso me marcava muito, ele falava isso e demonstrava força e demonstrava... e aí minha mãe era completamente o oposto, era aquela pessoa que você podia ver ela sofrendo, quer dizer, eu pude ver [...]

O padrão educacional, tal como conhecemos, estimula essa diferenciação, na

qual, tanto as mulheres quanto os homens precisam ressignificar, em seu cotidiano,

os atributos que são considerados “próprios” não apenas da condição feminina como

da masculina. Espera-se, nos mais diferentes grupos sociais, que os homens

possam responder com desenvoltura às exigências que lhes são feitas neste modelo

de homem idealizado.

De qualquer sorte, essa expectativa de fortaleza e sucesso atribuída aos

homens, que é compactuada por homens e mulheres, tem presidido aquilo que se

denomina de relações desiguais e assimétricas de gênero, que subverte valores

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relacionados à ética, solidariedade, respeito, dentre outros que perpassam as

relações cotidianas entre os sexos.

Como ensina Sandra Harding (1993, p. 21):

[...] nenhum indivíduo do sexo masculino consegue renunciar aos privilégios sexistas da mesma forma como nenhum indivíduo de cor branca consegue abster-se dos privilégios racistas — as vantagens de gênero e raça advêm a despeito da vontade dos indivíduos que delas usufruem.

Assim como não se pode falar de uma mulher única também não se deve

pensar na existência de um homem universal, mas de homens múltiplos e plurais,

singularizados pelas circunstâncias que são determinantes de sua constituição como

sujeitos. Nessa perspectiva, pode-se falar de identidades masculinas. Tal como as

identidades femininas, as masculinas estão inscritas nas teias discursivas que

produzem os seres humanos e correspondem às posições-de-sujeito que cada um

assume e se identifica interpelado pela gama de discursos que circulam o tecido

social. Além do mais, submetido à performatividade, como proposto por Judith Butler

(2001, 2003), o discurso forja o sujeito, operando para estabelecer as formas de

pensar, sentir e agir adequadas para homens e mulheres. E o discurso dos homens

diz que não é permitido chorar, ser fraco, ter dúvidas etc., porque essas são

expressões femininas e o homem é diferente e superior, portanto, não pode sentir

como a mulher.

A psicologia, enquanto profissão, entretanto, é identificada como profissão

feminina, para a qual os atributos considerados femininos são indispensáveis no

desempenho profissional, como é o caso da sensibilidade. A respeito dos atributos

de um psicólogo/psicóloga no exercício profissional, diz uma aluna do 2º grupo:

É a sensibilidade; perceber o outro. Enquanto outra aluna do 4º grupo afirma:

Acho que a palavra chave é a sensibilidade.

A sensibilidade diz de uma capacidade de perceber o outro, de colocar-se no

lugar dele, de não ter juízos pré-estabelecidos, como enunciam essas alunas. Faz

uma conexão entre o ouvir e o observar e evoca a escuta, referida anteriormente, como

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a ferramenta, por excelência, do trabalho do psicólogo. A atitude, a postura e a

aceitação são fatores que propiciam a condição para que o outro se revele, desde

um primeiro contato, seja esse outro individual ou coletivo. Há, na interlocução, um

interjogo de subjetividades que estão postas, além do dito e do visto.

Na escuta psicológica, como referido no capítulo precedente, há a

possibilidade de ouvir e acolher quaisquer sujeitos, em suas histórias pessoais ou

coletivas, idéias, desejos, aspirações, dificuldades, realizações, dentre outras. É pela

escuta que se estabelecem os vínculos. Nela estão embutidos, além do escutar, o

observar, o compreender e o interagir com o outro na perspectiva de compreender

seu universo afetivo e cognitivo, que se presentifica pelas idéias, valores, atitudes e

comportamentos com os quais se vincula com a realidade.

A escuta, entretanto, enquanto ferramenta privilegiada do exercício clínico e

sendo este o foco curricular deste curso singular, embora não o faça de forma

explícita, depreende a existência de uma exacerbação das ditas características

naturais femininas na formação profissional. Observa-se que não há uma

intencionalidade pré-definida para isso, porém a naturalização da profissão feminina

proporciona uma omissão em problematizar a generificação do currículo.

A sensibilidade, que os estudantes e as estudantes enfaticamente

apresentaram como necessária ao exercício profissional, não é privativa das

mulheres, porquanto uma possibilidade e disponibilidade que independe de sexo

para aceitar o outro ou a outra como ele ou ela é, como se apresenta e como se

revela. Como as mulheres são sempre vistas como intuitivas, compreensivas e

conciliadoras, a sensibilidade cabe-lhes como natural. Os homens, no entanto,

considerados como pragmáticos, além de fortes e agressivos, não podem se deixar

enredar pela sensibilidade diante da vida prática, do cotidiano e também do

exercício profissional. Uma depoente do 2º grupo revela:

[...] quando você vê um homem com essas características [...] um homem intuitivo, é considerado um homem com a característica feminina de intuição como se a intuição fosse somente de mulher [...]

E prossegue com o mesmo argumento a respeito da sensibilidade nos homens.

Por considerarem a sensibilidade como uma qualidade imanente ao exercício

profissional da psicologia, os alunos reivindicam que os homens têm de desenvolvê-

la, embora a sociedade cobre-lhes um preço por isso, o que se verá mais adiante.

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No 2º grupo, há o depoimento de uma aluna que se refere às questões relacionadas

à sensibilidade do homem, da seguinte forma:

[...] é uma atrofia mesmo, na educação dos homens, a sensibilidade. O homem não pode nem chorar, quanto mais permitir que o outro chore na frente dele! Então, assim, é muito delicado um homem se colocar no lugar de ouvir, não julgar, não ser o homem o que vai comandar, entendeu? Permitir que o outro se expresse. A pessoa tem que quebrar muitas verdades dentro dele [...]

Colocada desta forma, a sensibilidade adquire características de maternagem

e sobrepõe-se e desqualifica características outras que os psicólogos e as

psicólogas precisam desenvolver para exercer com qualidade seu mister em

quaisquer espaços profissionais. Fala-se da capacidade de relacionar fatos e teorias

que exigem um treino da capacidade de análise e síntese próprias do raciocínio

abstrato, necessária ao atendimento de sujeitos individuais e coletivos.

Surge uma questão: se não se aprende a lidar com a multirreferencialidade,

como será possível lidar com a imprevisibilidade de eventos e com a complexidade

de fenômenos? É importante relembrar Edgar Morin (2000), quando fala da “cabeça

bem feita”. Reconhece-se a sensibilidade como necessária ao exercício profissional

de psicólogos e de psicólogas, porém, diante das possibilidades que a profissão

oportuniza e da complexidade do mundo contemporâneo, a sensibilidade reduz a

função social do psicólogo, porquanto sensibilidade e bom senso são necessários a

qualquer pessoa amadurecida em suas relações sociais. Não é necessário ser

psicólogo para ser sensível.

6.3 PROFISSÃO FEMININA... O QUE PENSAM OS HOMENS

Homens que concordam em adquirir características consideradas femininas

estão, na verdade, questionando e ressignificando o modelo hegemônico de

masculinidade referido anteriormente. Embora a grande maioria seja cúmplice em

sustentar um modelo de masculinidade hegemônica, Ari José Sartori (2001) adverte

que esta posição não se refere apenas ao comportamento dos homens, mas que

qualquer pessoa, homem ou mulher, pode adotá-la. E lança mão das palavras de

Vale de Almeida (1995) para afirmar: “[...] as masculinidades e feminilidades não são

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sobreponíveis respectivamente a homens e mulheres, mas são metáforas de poder

e de capacidade de ação e, como tais, acessíveis a homens e mulheres.”

(SARTORI, 1998, p. 221). Dos três homens que fizeram parte de três dos cinco grupos focais (um em

cada grupo) é possível verificar seus posicionamentos sobre a inserção e

participação masculina numa profissão feminina. Com relação ao grande contingente

feminino na profissão, diz o estudante do 3º grupo:

Eu quero me colocar exatamente começando a fazer a pergunta inversa: Por que é que há menos homens que mulheres no curso de Psicologia?

Há, em seu discurso inicial, uma perplexidade, uma indagação sobre a

ausência de homens na profissão. Isto leva a levantar-se hipóteses sobre as

características desta profissão situadas para além do cuidar e do ajudar. Como seu

depoimento foi interpelado por uma colega do grupo, quando retomou a palavra,

complementou :

E eu comecei a pensar e eu acho que a própria Psicologia começou me dando respostas a isso. A própria história da Psicologia, aquilo que eu aprendi aqui, que eu aprendi fora daqui, estão me dando respostas. Me dizendo que isso é uma construção mesmo, uma construção social, uma construção da história social da mulher, da história social do homem, da história da humanidade e que, papéis foram assim previamente definidos e esse percurso foi traçado. As pessoas me parece têm assim quase que repetido, uma repetição daqueles que são os cuidadores, sempre, as enfermeiras, as psicólogas, há sempre alguém para cuidar.

No complemento de seu discurso, entretanto, o aluno naturaliza, como o faz a

sociedade em geral e os demais estudantes, as prescrições para o desempenho

masculino e feminino, lançando mão da visão estereotipada de gênero que

naturaliza a psicologia como profissão feminina, conforme dicutiu-se na seção

precedente. É esse o procedimento que o Curso que se discute absorve quando não

problematiza a questão da profissão feminina junto com os alunos de uma forma

mais incisiva.

Aliás, no currículo do Curso, há uma disciplina intitulada Sexualidade e

Gênero, oferecida em formato de Seminários, para alunos de 4º semestre, com

carga horária de 36 horas, que trabalha com a fundamentação crítica de Gênero.

Ademais, na agenda de temas propostos pelas disciplinas Psicologia Social I e

Psicologia Social II, oferecidas no 2º e 3º semestres, são discutidas questões

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alusivas à inclusão e exclusão social. Nelas são expostos assuntos relacionados ao

compromisso social da Psicologia e incluídos temas da atualidade, como o

preconceito racial, sexual, gênero, luta antimanicomial, dentre outros. Os discursos

dos alunos, porém, estão sinalizando que essas iniciativas são desconsideradas

quando, na progressão do Curso, acontecem interferências teórico-práticas que

supervalorizam os procedimentos clínicos, em detrimento de uma leitura mais crítica

da realidade.

As condutas sociais prescritas pela sociedade para cada gênero, assim como

as funções que devem ser cumpridas por homens e mulheres são construções

sociais e podem ser estudadas para desconstruir as normatizações que asseguram

aos homens as prerrogativas da atividade e da independência, enquanto reservam

para as mulheres aquelas pertinentes à passividade e à dependência.

Jane Flax (1991, p. 230) ensina e orienta: “Como uma relação social prática, o

gênero pode ser entendido somente através de um exame detalhado dos significados

de ‘masculino’ e ‘feminino’ e das conseqüências de ser atribuído a um ou outro

gênero dentro de práticas sociais concretas.” O estudo sobre as relações de gênero,

nesse particular, assume a conotação política de desnaturalizar posições

cristalizadas de homens e mulheres.

Os homens que ingressam no universo profissional da Psicologia, a despeito

de sua condição masculina, são vistos por suas colegas como homens diferenciados

daqueles que se enquadram no padrão de masculinidade hegemônica. Um diálogo

entre alunos do 2º grupo refere-se a isso:

Aluna 1: É como se diz: são os alternativos. São os caras alternativos! A gente vê até pelos professores da gente que são psicólogos. A gente vê que não são homens comuns! Por exemplo [...] [cita nome de alguns professores]. Aluna 2: Um homem como aquele cara machão! X não é comum [...] Um homem machão geralmente vai pra área de exatas, ele fala muito em pegar mulher, sabe, em casar, carro, acho que é uma coisa bem machista mesmo. Já os homens [...] os psicólogos, e eu falo do meu terapeuta porque é homem, são realmente alternativos, como disse X são diferentes. Aluna 3: É isso! são diferentes! Aluno: Talvez sejam mais críticos, mais observadores [...] Aluna 1: Até os colegas da gente são diferentes! E na continuidade do diálogo do grupo, o aluno esclarece:

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Os homens são mais críticos, alternativos, estão buscando soluções novas para os problemas que a sociedade oferece quanto a questão das relações humanas. Estão tentando não seguir o padrão, não ser machão. Acredito também que o próprio desenvolvimento do feminismo mesmo tá contribuindo pra isso! As mulheres também não estão mais aceitando esses homens machões, não colaboradores [...].

Este aluno fala de si, fala da forma como subjetivou sua masculinidade. É

importante não perder de vista que empreendende-se um estudo sobre construção

de identidades profissionais e que esta, do ponto de vista que se defende, efetiva-se

na forma como se assumem determinados discursos que falam de cada um, assim

como daqueles pelos quais se é falado.

Além da masculinidade hegemônica, Ari José Sartori (2001) fala de uma

masculinidade subordinada, considerando-a aquela que está relacionada aos

homens sensíveis, tal como aqueles descritos pelos alunos e alunas que participam

desta pesquisa.

De certo modo, esse “homem sensível” é identificado como o contraponto da masculinidade hegemônica por sua postura diferenciada quanto à sexualidade, pela expressão de afetos e sentimentos, opondo-se no imaginário àquele homem durão, seguro. (SARTORI, 2001, p. 223).

Nesse particular, reafirma-se que as práticas do feminino ou do masculino

não são privativas, de forma estanque, de homens e mulheres genéricos, universais,

mas práticas singulares resultantes das posições de sujeito que cada um assume

nas práticas discursivas que constrói para interagir com o mundo. Fala-se aqui da

construção de identidades que se faz na intersecção da perspectiva individual com a

coletiva. O reconhecimento de si, por meio do discurso, da forma como cada um se

autonomeia e se posiciona diante dos outros, não se restringe à esfera do individual,

embora singular, posto que se faz na esfera do coletivo, do grupo que dá a

referência. E isso é válido para a construção de identidades profissionais.

Ao ingressarem no curso, os alunos são interpelados pela cultura e pelo

discurso que formata o psicólogo e a psicóloga, que se refere a um modo de ver o

mundo e a um modo de trabalho que institui significados para as práticas humanas e

para as práticas profissionais da Psicologia. O processo curricular, considerando não

apenas os conteúdos veiculados e vivenciados, mas as práticas que se instalam e a

relação que se estabelece no processo ensino-aprendizagem, é crucial na

apropriação dos valores, das normas, do ideal da profissão assim como daquilo que

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é rechaçado como prática inapropriada para o exercício profissional. À psicologia,

portanto, são atribuídos valores, posturas e atitudes femininas. Afinal, trata-se de

uma profissão exercida majoritariamente por mulheres.

Tal como refere Sandra Harding (1993), nenhum homem deseja abrir mão de

seus privilégios sexistas pelas vantagens que lhe proporcionam. Adverte, porém,

Pedro Oliveira (1998), que esses privilégios, em muitas situações, são sustentados

pelos posicionamentos das mulheres, que também desfrutam de situações de

privilégio quando apóiam os homens em suas manifestações de poder. Há que se

entender que as relações de gênero dão-se na cotidianidade, numa arena de disputa

regida pelo poder que circula de forma simbólica, como propõe Michel Foucault

(1979, 2001a). Na perspectiva foucaultiana, não se pode pensar no poder de uma

forma única, mas como prática social que funciona como se fosse uma rede, em que

aquele que detém o poder, o comando e exerce a dominação não é

necessariamente o mesmo em todas as circunstâncias de um mesmo grupo. O

poder é uma força que circula e pode ser exercida por todos os envolvidos, com

múltiplas roupagens e linguagens. Há sempre uma alternância entre quem domina e

quem se submete e estes assumem posicionamentos de resistência ou de

aquiescência.

As relações de cumplicidade e resistência sobre os posicionamentos de

psicólogos e psicólogas em suas vinculações com o saber e o exercício profissional

por certo permeiam todas as práticas curriculares do curso, compondo aspecto

relevante do Currículo Oculto. Some-se a essa questão a própria disputa interna que

as diferentes correntes teóricas da psicologia travam na perspectiva de considerar

seu discurso legítimo e mais valorizado socialmente.

O “novo homem” é uma proposição de Pedro Oliveira (1998), explicitando que

este vem surgindo, na contemporaneidade, em resposta a questionamentos do

feminismo, enquanto teoria e movimento social, que exibem a inadequação e

ineficácia de um modelo tradicional de masculinidade. O autor considera que o

modelo antigo serve de pano de fundo para que se projetem dois tipos básicos de

masculinidade: “[...] um emergente, que é considerado próprio do ‘novo homem’ e

baseia-se na capacidade de expressividade emocional, e o do homem tradicional,

inexpressivo e hipermasculino.” (OLIVEIRA, 1998, p. 108).

O “novo homem” emergente desponta neste trabalho como aquele alternativo,

referido anteriormente pelas alunas e aluno em depoimento citado. O psicólogo,

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nessa perspectiva, atende às formulações do tipo emergente, como pode ser

verificado nos depoimentos a seguir, colhidos em um diálogo no 5º grupo:

Aluna: [...] acho que tem uma coisa de uma vontade de ajudar o outro, de querer fazer algo pra que o outro consiga melhorar. Eu não sei, não sei se a palavra é bem essa — ajudar — mas tem um sentimento de que eu gostaria de fazer algo para ajudar aquela pessoa que está sofrendo [...] Aluno: Essa vontade é o que me leva a estudar psicologia! Isso que leva muita gente! No primeiro dia de aula, quando pergunta: por que psicologia? Ah, porque tenho vontade de ajudar as pessoas, porque eu gosto de cuidar das pessoas, porque gosto de ouvir. Acho que isso são características pessoais que encaixa um pouco nos requisitos necessários a profissão [...]

O estudante do 3º grupo, por sua vez, diz:

[...] então, eu posso falar por mim, enquanto homem, da seguinte questão: eu acredito, por exemplo, que eu vim fazer esse curso pelo desejo, pelo interesse, principalmente, pra conhecer mais essa possibilidade do ser humano, pra avançar mais nessa questão, nessa condição de aprender mais sobre o ser humano, saber mais quem é ele. Passava uma coisa de ser a respeito dele [...]

Conforme discute-se e na perspectiva de Pedro Oliveira (1998), o “novo

homem emergente”, aquele que pode valer-se de sua expressividade emocional,

nada mais é do que aquele que se permite chorar, sentir medo, admitir inseguranças

e problemas, exibir seus sentimentos e até pedir ajuda para suas dificuldades. Como

lhe é possível aprender com as mulheres, aprende a lidar com seus sentimentos e a

prestar atenção ao que lhe acontece na esfera subjetiva.

A posição masculina tradicional/patriarcal, ao negar ao homem o direito de

admitir suas fraquezas, priva-o do direito do humano de dialogar consigo na busca

de se conhecer e se reconhecer na dimensão da alteridade. Quando a hegemonia

masculina é interpelada pela força da resistência feminina, entretanto, captura

alguns homens para seu lado e interfere nos padrões das relações interpessoais.

A Psicologia, enquanto profissão, ajuda a promover modificações na forma de

vivenciar a masculinidade, como se pôde observar em depoimentos anteriores de

alunos. Isto, porém, também é percebido no depoimento de dois professores. Afirma

o primeiro:

Ser psicólogo, pra mim, primeiro me envolve e vai me envolver o tempo todo em transformação. Já mudei tanto por causa da Psicologia, que eu digo: meu Deus do céu! [...] tanta melhoria, não é? [...] tão mais bacana [...] me sinto tão mais maluco,

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me sinto tão mais legal. A Psicologia pra mim é isso, sabe? A Psicologia, quando ela chega, ela chega batendo na porta e querendo passar [...] Enquanto outro declara:

Hoje eu digo, meu Deus, eu poderia ter feito outra coisa, eu podia estar com minha vida mais estruturada, eu podia ter um emprego num escritório que eu entrasse, trabalhasse 8 horas, tudo certinho, tudo sem questionamento. E a psicologia já mexeu tanto na minha vida e continua mexendo de uma maneira tão maluca por que já é sem controle. Eu acho que hoje, mesmo que eu parasse de atuar como psicólogo, ela não sairia da minha vida. [...] Eu já não me permito mais determinadas coisas sem uma reflexão muito profunda. E isso é muito cruel, às vezes, com a gente mesmo! Porque tudo o que a gente quer, às vezes, é agir como um humano qualquer, no sentido de que, uma pessoa que simplesmente age e não reflete, não pensa no que está fazendo, e toca a vida. Mas isso, nunca acontece assim. A gente está sempre se perguntando, se colocando questões, não é?

Admitindo-se que o homem é um ser sócio-histórico, sujeito a múltiplas

determinações, as transformações pelas quais passam as concepções de

masculinidade derivam das próprias transformações históricas que se vivencia na

contemporaneidade. Dentre elas, pode-se citar a emergência do discurso feminista e

das lutas das mulheres que, como conseqüência, exige novos posicionamentos dos

homens, além da emergência de novos paradigmas sociais que abdicam de uma

visão iluminista de mundo e de ciência.

Entende-se que a compreensão de gênero como construção histórica permite

apreender que o ser homem e o ser mulher estão condicionados às transformações

culturais em dado tempo-espaço. Em cada sociedade e em cada época existem

modelos distintos do ser homem e ser mulher, com atribuições de funções sociais

diferenciadas, submetidas a valores, a regras, e a comportamentos deles

decorrentes. As identidades construídas na confrontação da igualdade com a

diferença permitem um jogo de inclusão-exclusão proporcionado pelas posições de

sujeito que cada um assume no discurso que o nomeia. Assim como existem

profissões masculinas que estão sendo buscadas por mulheres, como é o caso das

profissões da área de saúde, as profissões consideradas femininas também estão

sendo procuradas pelos homens. E a psicologia, como uma profissão recente, com o

saber que lhe é característico, captura tanto mulheres como homens, como diz o

aluno do 5º grupo:

Eu achava que era a profissão mais sedutora que existia na face da terra. Só gênio deve ser psicólogo! Que coisa maravilhosa é a natureza humana! Estudar isso!

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O conceito de gênero teoriza sobre as diferenças e permite pensar nelas sem

necessariamente transformá-las em desigualdades. E mais importante, sem que as

diferenças constituam-se em motivos para a discriminação. Os estudos mediados

por Gênero deixam explícitas a construção dos saberes e as relações de poder com

o intuito de desnaturalizar essas relações, tendo em vista que o poder, como

conjunto de forças que circula nas relações, move-se entre, contra, sobre ou com os

sujeitos sociais. Nessa perspectiva, é possível perguntar sobre cada parcela de

poder que cabe a cada grupo e como é vivenciada por eles.

No caso dos Psicólogos, exercer essa profissão num segmento profissional

dominado pelas mulheres revela um aspecto interessante da dinâmica de gênero,

posto que detentores de um saber compartilhado pelas mulheres, os homens

exercem seu mister profissional com base em sua posição de macho, socialmente

privilegiada. Diz uma aluna do 2º grupo:

Estudantes de Psicologia? Não sei se são mais valorizados, mas são valorizados. Bastante. Por que são raros.

Há, na fala da aluna, uma alusão à pequena quantidade de homens

exercendo a profissão de psicólogo e nenhuma conotação de valor sobre o saber da

psicologia como masculino ou feminino.

Heleieth Saffioti (1992),analisa as relações de gênero, advogando a favor de

uma lógica dialética que preside essas relações. A autora afirma que os

posicionamentos machistas não são privativos apenas dos homens, mas

compartilhado pelas mulheres, como se afirmou anteriormente. Defende que, em

ambos os pólos da relação existe poder, embora assimetricamente desigual entre

mulheres e homens.

Nesse contexto, o saber é por excelência um instrumento de poder, como

ensinam os textos foucaultianos.

Decerto o poder que o saber da psicologia proporciona àqueles que dele

compartilham pode ser supervalorizado pelos homens. Como discutido anteriormente,

aos homens não interessa contestar o modelo hegemônico de masculinidade,

porquanto confere-lhes privilégios sociais sobre as mulheres e também sobre os

portadores de condições discriminadas socialmente por sua origem étnica, condição

financeira ou por uma opção sexual contrária aos padrões dominantes.

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Quando os homens têm sua masculinidade sob suspeição, resta-lhes serem

reconhecidos como homossexuais ou como mulheres. E isso pode acontecer com

aqueles que flexibilizam as exigências da masculinidade hegemônica e aderem à

masculinidade subordinada de que fala Ari Sartori (2001). Os psicólogos, como

homens sensíveis, também vêem sua masculinidade questionada e equiparada à

homossexualidade. Em um diálogo no 3º grupo, essa questão aparece de forma

muito explícita:

Aluna 1: Eu acho que é uma coisa que as pessoas discriminam [...] o homem vir a fazer a psicologia [...] Aluna 2 : O homem acolhendo a questão do ouvir, do ser mais sensível etc., é boiola! Homem que vai mais pra essa linha do pensar, a sociedade coloca [...] Aluna 1: Todos são gays, as pessoas geralmente falam isso! Este assunto também é ventilado no grupo 4, quando uma aluna verbaliza: Essa coisa da gente ter essa idéia de que na psicologia é necessário ter essa sensibilidade e que pro homem isso não está posto ainda, bem, então ele vai. Vamos dizer que ele é muito sensível e que tá fazendo psicologia porque é uma pessoa altamente sensível. Então isso já dá margem a pensar dele outras coisas. Então eu acho que tem uma reserva por parte dos homens, talvez também em fazer psicologia, entendeu?

As formas como os homens devem relacionar-se consigo, com os outros

homens e com as mulheres, subordinadas ao ideário patriarcal, vêm sendo

problematizadas tanto pelos Estudos de Gênero como pelo movimento homossexual,

que questionam a suposta superioridade masculina sobre outros grupos.

Quando a conduta masculina é naturalizada com base em sua posição

historicamente construída, é atribuída ao homem uma posição de prestígio, poder e

mando que contribui sobremaneira para revitalizar e perpetuar os estereótipos

sexistas nas relações sociais, em quaisquer espaços que se operem, seja no âmbito

pessoal, social, profissional, e assim por diante.

Pedro Oliveira (1998, p. 110) refere-se a homens sensíveis, como são

identificados os psicólogos, da seguinte forma:

São homens que freqüentam divãs de psicanalistas (e fazem a festa dos vitimários apoiados na psicologização), que se dispõem a dividir as tarefas domésticas com suas esposas, principalmente quando estas também trabalham, que dividem também o cuidado com as crianças, enfim, que

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aceitam uma atitude mais igualitarista, já que não deixarão de ser valorizadas por “igualarem-se” às mulheres.

Não existe uma essência própria do homem que o coloque na posição de

superioridade, e nem da mulher que a conduza a uma posição subalterna, mas

“esquemas de verdade” historicamente construídos, como propõe Michel Foucault

(2001b), que estruturam as práticas cotidianas atravessadas pelas relações de poder

próprias da sociedade.

Pôde-se perceber ao longo deste capítulo que a masculinidade, assim como a

feminilidade, é criada e demonstrada com base na oposição com o "outro", posto

que fala-se de identidades que são formatadas na dialética que se estabelece entre

o igual e o diferente, na qual o diferente tem um grande peso. Como se fala de

construção de identidades em uma profissão considerada feminina, a compreensão

do conceito de gênero permitiu identificar valores atribuídos a homens e mulheres

que formatam discursos e orientam comportamentos decorrentes dessa construção.

Ficam claras as interferências desses valores no interior de um curso de formação

profissional, nas formas como os alunos e as alunas autonomeiam-se e percebem-

se entre si, assim como os direcionamentos que o curso toma ao naturalizar a

generificação da profissão e como isso pode interferir na vida cotidiana tanto de

estudantes como nas demais relações individuais e coletivas que estabelecem.

A identidade profissional amalgamada com a identidade de gênero produz

identidades em psicologia mediante os processos de subjetivação aos quais cada um

submete-se individual e coletivamente, ao adotar e assumir determinadas posições de

sujeito no discurso pelo qual é falado, assim como daquele que fala da profissão e das

circunstâncias que envolvem o fazer profissional na permanente disputa que as

situações do cotidiano lhe interpelam e sobre as quais tem que fazer escolhas.

Acredita-se que as análises procedidas neste trabalho tenham sido reveladoras

da questão proposta por esta tese, qual seja compreender como alunos de um curso

de Psicologia singular constroem suas identidades profissionais em Psicologia,

considerando-a como uma profissão feminina. Na seqüência, pretende-se fazer um

fechamento do trabalho, mediante algumas reflexões que emergem da análise dos

dados da pesquisa como relevantes e conclusivas da experiência em foco.

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REFLEXÕES

Ao elaborar esta tese, viu-se que este é um exercício constante de por em

ordem as próprias idéias, muito mais que ordenar e analisar dados. A redação do

texto final, assim como todos os outros momentos da pesquisa, exigiu tomadas de

decisão sobre o rumo que seria definido para o trabalho e esta direção estava sendo

apontada pelo próprio material sobre o qual trabalhava-se.

A natureza da pesquisa e a forma como foi conduzida apontava para o

rompimento da dicotomia teoria-prática, no que se refere à perspectiva positivista de

previsão e controle, em que se constrói a teoria para aplicá-la na prática,

entendendo-se que em todos os momentos da pesquisa trata-se da teoria e de

prática, que se interfecundam mutuamente.

Escrever esta parte final do trabalho, portanto, demandou uma enorme

reflexão sobre a forma de fazê-lo. Assim como aconteceu durante todo o desenrolar

da pesquisa, quando alternativas ofereciam-se como possibilidades para o rumo a

seguir, o que exigiu uma constante avaliação do percurso, agora também era

necessário o exercício de ponderar e decidir, dentre as possibilidades, um caminho

para finalizar. Afinal, escrever uma tese de doutorado não representa apenas uma

experiência intelectual, de construção de um objeto que se pretende apreender, mas

acima de tudo um investimento afetivo de implicação com este objeto e as

conseqüências de tê-lo escolhido para estudar.

Optou-se, portanto, por intitular esta parte da tese de Reflexões, em

detrimento de terminologias outras como Conclusões ou similares, na intenção de

considerá-lo, não como idéias que se fecham, que encerram uma pesquisa, mas

como um momento de abertura ou uma chave que abre novas proposições e novos

desafios a serem seguidos na caminhada da pesquisadora, como psicóloga e

educadora.

Estudar a construção de identidades em alunos de um curso superior de

Psicologia, o qual coordena-se, significou transitar o tempo todo pelas posições de

pesquisadora e de sujeito da pesquisa. Possível enquanto pesquisadora implicada

com a formação de novos psicólogos e psicólogas na perspectiva de uma contínua

transformação tanto no que se refere a avanços teóricos e técnicos quanto a

políticos da formação e da profissão.

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Este momento é, portanto, de avaliação de uma experiência intensa, no qual

optou-se por relatar o que de mais significativo revelou-se como experiência de

aprendizagem.

Em primeiro lugar é necessário demarcar a impossibilidade, já relatada, de

estabelecer um roteiro prévio para uma pesquisa desta natureza, posto que, quando

se dá voz aos sujeitos, seus depoimentos não são passíveis de controle prévio. A

pesquisa estruturou-se no constante diálogo entre o que os sujeitos colocaram e a

teoria. Deste modo, teoria e prática mantiveram-se indissociáveis.

Em segundo lugar, é importante escutar a voz desses sujeitos, compreendê-

las e posicionar-se diante delas numa perspectiva de transformação de uma

realidade que se faz explicitada. E a voz dos sujeitos desta pesquisa revelou

algumas questões particulares que se expõe a seguir.

Os alunos e as alunas do Curso de Psicologia identificaram a Psicologia como

uma profissão de ajuda, cujos profissionais, mediante uma escuta cuidadosa, ética e

teoricamente fundamentada, prestam ajuda àqueles que os procuram.

No momento em que ingressaram no Curso, esses estudantes idealizavam

formar-se em psicólogos e psicólogas clínicas, cujo mister deve ser exercido na

clínica privada de atendimento em consultório, numa reprodução do modelo de

atendimento médico, o que não se modificou substantivamente durante o curso.

Como verificou-se ao longo do trabalho, nos depoimentos dos estudantes e

nos dados relacionados à escolha de Estágios Específicos e às temáticas teóricas

para a realização do Trabalho de Conclusão de Curso, há uma cristalização dessa

posição, reproduzindo um modelo tradicional e considerado hegemônico para a

atuação de psicólogos.

Pode-se afirmar que se trata de um estereótipo reducionista de profissão

liberal que pratica atendimento clínico dual em consultório privado e, de forma

acrítica, corrobora os atributos de uma profissão feminina.

Pôde-se verificar o quanto gênero, de fato, configura-se como uma lente para

entender esta profissão. Desconstruir a lógica que a coloca em seu viés clínico,

implica em desconstruir a lógica que diferencia as mulheres com atributos de

delicadeza, sensibilidade e fragilidade, considerando-os pertencentes a uma certa

“natureza feminina”.

Quando se exacerba a sensibilidade como a atitude mestra que direciona

uma profissão, como foi colocado pelos sujeitos do sexo feminino desta pesquisa,

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corre-se o risco de reduzir a capacidade de simbolização ou de subestimar o uso do

raciocínio abstrato, empobrecendo a capacidade de estabelecer relações entre fatos

e idéias e de promover raciocínios articulados de forma complexa. Entende-se que

isto representa aquela capacidade maior, necessária e indispensável na atuação de

psicólogos e psicólogas em quaisquer contextos de trabalho, em especial na própria

clínica.

Considerando que os sujeitos se fazem pela rede discursiva, a generificação

da profissão, mediante o discurso da escola, na formação profissional, constrói

identidades, na medida em que, ao partilhar de determinados discursos, os sujeitos

vão construindo concepções sobre si, sobre os outros e sobre o mundo que os

orienta e define posições nas relações sociais e profissionais.

O que nomeia uma profissão é um campo de práticas e um conjunto de

conhecimentos e capacidades profissionais advindos do saber que caracteriza tal ou

qual mister. Sem dúvida uma psicologia atravessada por um viés clínico e

cristalizada em atributos conservadoramente considerados femininos não atende às

demandas do mundo contemporâneo.

Admitindo-se a escola como um lócus privilegiado de construção de identidades,

pode-se compreendê-la como uma rede de relações, na qual os sujeitos da

aprendizagem possuem saberes e referências que são utilizados para estruturar as

experiências educativas e o currículo, por meio de práticas discursivas que constroem

posições de sujeito na produção, elaboração, criação e recriação desses saberes.

A escola e o currículo são, portanto, espaços de poder. Entende-se poder

pela ótica foulcautiana, como aquele que impulsiona e gera novas práticas e circula

entre todas as pessoas, propiciando que alguns conhecimentos sejam considerados

importantes e válidos em detrimento de outros. Nessa perspectiva, o espaço escolar

é aquele em que o conhecimento formal é repassado e as relações de poder têm se

reproduzido.

A despeito de iniciativas inovadoras que impulsionam o diálogo com o mundo

produtivo e a interdisciplinaridade de ações e multirreferencialidade de saberes, o

currículo do curso estudado ainda apresenta uma fragmentação muito grande,

evidenciando a dificuldade de superar o conflito entre aprofundar níveis de

especialização e a formação generalista. Isso leva a uma visão cristalizada da

profissão, que não se renova ou se renova timidamente, a despeito das novas

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possibilidades que a sociedade contemporânea esboça e oferece em seu ritmo

dinâmico e contraditório.

Os alunos e alunas evidenciaram momentos e situações, nos quais puderam

perceber-se e sentir-se psicólogos e psicólogas, demonstrando o processo de

construção de suas identidades, revelando-a como uma aquisição processual que se

dá preferencialmente e de forma mais marcante nas situações de estágio (Básico,

Específico e Extracurricular), quando podem interagir com situações concretas da

vida social e profissional.

Outras práticas também se revelaram como nucleares na construção dessas

identidades com a confecção do Trabalho de Conclusão de Curso, que confere a

idéia da formalidade do título conquistado, e da psicoterapia pessoal, que habilita

subjetivamente ao exercício da escuta do outro. Afinal, o modelo de atuação

idealizado ainda é o da clínica tradicional.

Concorda-se que o psicólogo e a psicóloga são profissionais da escuta. Essa

escuta, porém, não pode ser entendida apenas como uma escuta clínica, de

consultório fechado, mas como uma atitude, um ethos que fundamenta a ação

profissional, como propõe João Ferreira Neto (2004). Dessa forma, há que se

repensar os espaços em que se exercita essa habilidade, extrapolando-se a

formação clínica tradicional. Necessário se faz ousar e criar nas novas demandas de

práticas, nas quais sejam inseridos os alunos, as estratégias de reflexão sobre a

escuta e seu exercício. Isto, porém, requer posicionamentos críticos dos formadores

e não apenas dos estudantes. É uma dimensão que passa fundamentalmente pela

cumplicidade e criticidade dos professores.

A identidade que a Psicologia possui, conforme discutiu-se ao longo desta

tese, é mutante, fluída, ora identificada com as ciências humanas, ora com as

ciências da saúde, consoante suas transformações históricas, como analisou-se no

corpo deste trabalho. Os aportes teóricos são filosófica e epistemologicamente

diversos e até divergentes, o que, de certa forma, deveria representar um avanço na

adesão ao pensar múltiplo e complexo. O que se verifica é que essa diversidade

teórica, mesmo não ignorada, movimenta-se em prol de uma unicidade na ação, o

que empobrece sobremodo as possibilidades reais de atuação e de criação de

novas estratégias de ação desses profissionais.

Ademais, a Psicologia, enquanto instituição, mantém-se dividida entre o fazer

e o pensar, porquanto ainda enfatiza duas psicologias, como ciência e como

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profissão, haja vista iniciativas do coletivo de psicólogos na promoção de encontros

científicos e edição de revista de circulação nacional, conforme referido

anteriormente. Acredita-se que essa dicotomia precisa ser enfrentada na perspectiva

de entendê-la enquanto mutuamente constitutiva, relativizando o peso do saber

acadêmico como saber superior, num rompimento com a posição iluminista de

ciência que fragmenta, hierarquiza e isola os saberes. Nessa perspectiva, trata-se de

multirreferenciar o olhar no diálogo com outros campos do conhecimento.

Partilha-se, neste momento, com a proposta de Edgar Morin (2000), no

sentido de reformar o pensamento para enfrentar os desafios do mundo

contemporâneo, posto que a formação profissional superior acontece ao mesmo

tempo em que se dão as transformações sociais, sendo necessário intensificar o

diálogo com a sociedade e com os saberes produzidos em todas as esferas do

social e não apenas com o saber acadêmico.

Necessário se faz desnaturalizar a Psicologia como profissão feminina.

Enquanto os psicólogos e as psicólogas, em especial a formação profissional, não

enfrentarem o viés de gênero na formação, desnaturalizando esta profissão como

feminina, o atendimento às crescentes e diversificadas demandas do mundo

contemporâneo no que concerne a posicionamentos políticos e criação/invenção de

novas formas de atuação e desbravamento de novos horizontes/campos de atuação

para o exercício da profissão, corre o risco de se fazer, como se percebe hoje, ainda

insuficiente.

Além disso, o mundo do trabalho na sociedade da informação exige

profissionais polivalentes, criativos e competentes na interação com o cenário social

que se revela instável e contraditório. Lidar com a complexidade — do ponto de vista

moriniano — faz-se exigência, em razão da quantidade de informações, das

diversificadas tramas que as relações de poder configuram na organização social, da

multiplicidade de discursos e da necessidade de dialogar com saberes distintos.

Como se viu ao longo desta tese, os discursos dos indivíduos e dos grupos

estabelecem fronteiras entre si, reconhecendo tanto os iguais quanto os diferentes.

Com base nesse entendimento, constrói-se o arcabouço para compreender como se

constroem Identidades. Reafirma-se o termo no plural, identidades, entendendo-as

múltiplas, versáteis, mutantes.

Investigar a construção de identidades profissionais em Psicologia, com base

na vivência acadêmica de um curso singular, tal como proposto nesta tese, conduziu

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a uma construção social impregnada de múltiplos fatores que interagem entre si e

negociam afetos e saberes que envolvem histórias e projetos singulares, na

construção coletiva de uma profissão. Em vista da variedade de condições que a

formação promove no universo escolar e das trocas que estabelece com o contexto

social, forjando múltiplos discursos, as possibilidades de investigação são infinitas.

Compreender a necessidade de ultrapassar uma visão estereotipada e

reducionista da profissão e reconhecer a necessidade de desnaturalizá-la como

feminina, além de superar um currículo fragmentado, parecem ser os grandes

ganhos de aprendizagem que este trabalho proporcionou. Estes são alguns dos

desafios que a formação em Psicologia precisa enfrentar!

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247

APÊNDICES

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248

APÊNDICE A

ROTEIRO DO GRUPO FOCAL

Você se sente psicóloga?

O que lhe permite dizer isto?

O seu momento neste curso (a prática em foco) ajuda ao ser psicóloga?

Quais os momentos do curso que contribuiram para afirmar isso (que é psicóloga)?

Por que você acha que a Psicologia é uma profissão que atrai tanto as mulheres?

Vocês acham que o currículo se direciona para as questões femininas? Como?

Quais são as qualidades pessoais e profissionais que o psicólogo precisa ter para

exercer a profissão?

O que é mesmo o trabalho do psicólogo?

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249

APÊNDICE B

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E PRÉ-ESCLARECIDO

Eu, ____________________________________________, carteira de identidade nº

______________, docente do Curso de Psicologia da FBDC/EBMSP, fui esclarecido

(a) de que estou participando de uma atividade grupal (grupo focal) para coleta de

dados para pesquisa científica intitulada” A construção de identidades profissionais

em Psicologia”, sob a condução da psicóloga e professora Maria Rosália Correia

Dias.

Declaro que a minha participação é voluntária e concordo que estarei contribuindo

para a pesquisa supra citada e também para o provável aprimoramento do Curso de

Psicologia em questão.

Para esta coleta de dados da pesquisa, o pesquisador e os docentes não serão

remunerados.

Data:

Assinatura do docente

Assinatura da pesquisadora

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250

ANEXOS

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251

ANEXO A – QUESTIONÁRIO INICIAL

Salvador, 02 de Agosto de 2004. Caro aluno: Este questionário faz parte de uma pesquisa que pretende levantar aspectos relacionados com a representação social da Psicologia e do psicólogo do ponto de vista dos alunos que estão ingressando no curso da FDC Pretende também investigar motivos referentes à escolha profissional e a expectativa de atuação futura. A sua contribuição é de extrema importância para o nosso curso. Esperamos que você se sinta inteiramente à vontade para expressar suas opiniões, pois essas respostas fazem parte de um banco de dados sobre o curso, serão registradas em computador e analisadas em conjunto.

NÃO É NECESSÁRIO QUE VOCÊ SE IDENTIFIQUE

QUESTIONÁRIO Dados demográficos 1. Sexo M _________ F _______ Idade ________ anos 2. Possui outra graduação em nível de 3º grau? Sim ________ Não __________ 3. Renda familiar: até 2 SM _____ de 2 a 5 SM _____ de 5 a 10 SM acima de 10 SM _____ 4. Profissão do pai ___________________ Profissão da mãe____________________ 5. Há psicólogo na sua família? Sim _________ Não_____________ Questões: 1. O que é Psicologia? 2. Você conhece algum psicólogo? 3. O que é, para você, ser psicólogo? 4. Para você, o que faz um psicólogo? 5. Quando pensa em psicólogo, você lembra ... 6. O psicólogo trabalha com ... 7. Que qualidades pessoais você acha que um psicólogo deve ter? 8. Quando você acha que se deve procurar um psicólogo? 9. Onde trabalha o psicólogo? 10. Por que você escolheu ser psicólogo? 11. Em que área/atividade você pretende trabalhar como psicólogo?

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252

ANEXO B - VISÃO DA ESTRUTURA CURRICULAR POR EIXO

SEMESTRES EIXOS ESTRUTURANTES 1º 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º 10º

Introdução à Psicologia

Bases Filosóficas História Contemporânea da Psicologia

- H. Psic. Br

P. D H I -P. DH II -P. DH III

P Social I - P. Social I

FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS E HISTÓRICOS

-T. Psicanal. - T. Hum/Fen. - I.Pens. Jung - Ética e Pratica Profissional

A E C I A E C II Personalidade T. Aprend. P.P.B

FENÔMENOS E PROCESSOS PSICOLÓGICOS BÁSICOS -Alteraç. F. e E.

Psic. I - Alteraç. F. e E. Psic. II

- Introd. a Met. Científica Metodologia da

Pesquisa Pesquisa em Psicologia I

Pesquisa em Psicologia II TFO FUNDAMENTOS

METODOLÓGICOS - Informática e

Psicologia Estatística

Medidas Aval. Psic. I Aval. Psic. II e III

Teo. Tec. Psicot. I Teo. Tec. Psicot. II e III

Grupos e F Grupais

Estágio Básico I Estágio Básico II Estágio Básico III

PROCEDIMENTOS PARA A INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E PRÁTICA PROFISSIONAL

Aval. Func. Do Comport.

Psic. Ciência e Profissão Psicologia. e

Educação Psic. e Com. Psic. Trab. e Org. I Psic. Trab. e Org. I

Psic. e Saúde

Diag. e Interv. em Psic. Interv. cont Saúde

Interv. cont. Trab. e Org. I

Interv. cont. Te Org. II

INTERFACES COM CAMPOS AFINS DE CONHECIMENTO

Tóp. Esp. em P

Filosofia Neurociências Sexo e Gênero Saúde Coletiva NeuropsicologGenética Etologia Psicofarmac.

PRÁTICAS PROFISSIONAIS

Sociologia Antropologia

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M a t r i z C u r r i c u l a r p a r a F o r m a ç ã o d e P s i c ó l o g o

AANNEEXXOO CC -- FFLLUUXXOOGGRRAAMMAA SSEEMMEESSTTRREESS

EBP 101

Bases Filosóficas da Psicologia

54h - 03

1º 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º 10º

EBP 102

Fisiologia Básica

72h - 03

EBP 103

Fundamentos de Sociologia

54h - 03

EBP 104

Genética Aplicada à Psicologia

54h - 03

EBP 201

Antropologia

54h - 03

EBP 202

Psico. do Desenv. Humano I

54h - 03

EBP 204

Neurociências e Comportamento

72h - 04

EBP 301

Análise Experimental do Comportamento II

72h - 03

EBP 302

Psicologia Social II

54h - 03

EBP 303

Psico. do Desenv. Humano II

72h - 03

EBP 304

Processos Psicológicos Básicos

72h - 03

EBP 401

Alt. das Fun. e Estr. Psicológicas I

72h - 03

EBP 402

Estatística Aplicada à Psicologia

72h - 03

EBP 403

Grupos e Fenômenos Grupais

72h - 03

EBP 404

Psico. do Desenv. Humano III

54h - 03

EBP 501

Alt. das Fun. e Estr. Psicológicas II

72h - 03

EBP 502

Estágio Básico I

54h - 02

EBP 503

Avaliação Psicológica I

72h - 03

EBP 504

Medidas em Psicologia

72h - 03

EBP 601

Estágio Básico II

54h - 02

EBP 602

Pesquisa em Psicologia I

72h - 03

EBP 603

Avaliação Psicológica II

72h - 03

EBP 604

Avaliação Psicológica III

72h - 03

EBP 703

Psico. do Trab. e das Organizações II

72h - 03

EBP 707

Teorias e Técnicas Psicoterápicas I

72h - 04

EBP 711

Pesquisa em Psicologia II

72h - 03

EBP 712

Sem-“Avaliação Func. do Comportamento”

36h - 02

EBP 802

Diagnósticos e Interv. em Psicologia

90h - 03

EBP 803

Teorias e Técnicas Psicoterápicas II

72h - 04

EBP 804

Teorias e Técnicas Psicoterápicas III

72h - 04

EBP 901

Estágio Específico I

252h - 07

EBP 903

Saúde Coletiva

72h - 04

EBP 904

Interv. em Contextos de Trabalho e Organizações I

72h - 03

EBP 905

Intervenções em Contextos de Saúde

72h - 03

EBP 001

Estágio Específico II

252h - 07

EBP 002

Tópicos Especiais em Psicologia

72h - 04

EBP 003

Neuropsicolgia

72h - 03

EBP 005

Interv. em Contextos de Trabalho e Organizações II

72h - 03

EBP 105

Informática e Psicologia

72h - 03

EBP 106

Introd. à Met. Científica

54h - 02

EBP 205

História Cont. da Psicologia

54h - 03

EBP 206

Seminários “Etologia”

36h - 02

EBP 305

Seminários -“História da Psicologia no Brasil”

36h - 02

EBP 306

Teorias da Aprendizagem

72h - 03

EBP 405

Psicologia e Educação

72h - 03

EBP 406

Seminários -“Sexualidade e Gênero”

36h - 02

EBP 505

Metodologia da Pesquisa

72h - 03

EBP 506

Seminários “Psicofarmacologia”

36h - 02

EBP 605

Psico. do Trab. e das Organizações I

72h - 03

EBP 606

Psicologia e Saúde

72h - 03

EBP 713

Ética e Práticas Profissionais

72h - 03

EBP 107

Introdução à Psicologia

72h - 04

EBP 108

Seminários-“Psicologia, Ciência e Profissão”

36h - 02

EBP 207

Psicologia Social I

72h - 04

EBP 213

Personalidade

54h - 03

EBP 307

Teoria Psicanalítica

72h - 04

EBP 407

Teorias Humanistas e Fenomenológicas

54h - 03

EBP 507

Psicologia e Comunidade

72h - 03

EBP 607

Seminários “Introd. ao Pensamento de Jung”

36h - 02

IINNGGRREESSSSOOSS AA PPAARRTTIIRR DDEE 22000033..11

EBP 212

Análise Experimental do Comportamento I

54h - 03

EBP 702

Estágio Básico III

54h - 02

EBP 805

Trabalho Final Orientado

36h - 02

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M a t r i z C u r r i c u l a r p a r a F o r m a ç ã o d e P s i c ó l o g o

1º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos 2º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos 3º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos

Bases Filosóficas da Psicologia EBP 101 Sem Pré-Requisitos Antropologia EBP 201 Sem Pré-Requisitos Análise Experimental do Comportamento II EBP 301 EBP 212

Fisiologia Básica EBP 102 Sem Pré-Requisitos Psicologia do Desenvolvimento Humano I EBP 202 EBP 107 Psicologia Social II EBP 302 EBP 207

Fundamentos de Sociologia EBP 103 Sem Pré-Requisitos Neurociências e Comportamento EBP 204 Sem Pré-Requisitos Psicologia do Desenvolvimento Humano II EBP 303 EBP 202

Genética Aplicada à Psicologia EBP 104 Sem Pré-Requisitos História Contemporânea da Psicologia EBP 205 EBP 101 Processos Psicológicos Básicos EBP 304 EBP 107

Informática e Psicologia EBP 105 Sem Pré-Requisitos Seminários – “Etologia” EBP 206 EBP 107 Seminários – “História da Psicologia no Brasil” EBP 305 EBP 205

Introdução à Metodologia Científica EBP 106 Sem Pré-Requisitos Psicologia Social I EBP 207 EBP 107 Teorias da Aprendizagem EBP 306 EBP 107

Introdução à Psicologia EBP 107 Sem Pré-Requisitos Análise Experimental do Comportamento I EBP 212 EBP 107 Teoria Psicanalítica EBP 307 EBP 107

Seminários-“Psicologia, Ciência e Profissão” EBP 108 Sem Pré-Requisitos Personalidade EBP 213 EBP 107

4º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos 5º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos 6º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos Alterações das Funções e Estruturas Psicológicas I EBP 401 Sem Pré-Requisitos Alterações das Funções e Estruturas Psicológicas II EBP 501 EBP 401 Estágio Básico II EBP 601 Sem Pré-Requisitos

Estatística Aplicada à Psicologia EBP 402 Sem Pré-Requisitos Estágio Básico I EBP 502 Co-Requisito EBP 503 / EBP 504 Pesquisa em Psicologia I EBP 602 EBP 505

Grupos e Fenômenos Grupais EBP 403 EBP 302 Avaliação Psicológica I EBP 503 Sem Pré-Requisitos Avaliação Psicológica II EBP 603 EBP 503 / EBP 504

Psicologia do Desenvolvimento Humano III EBP 404 EBP 303 Medidas em Psicologia EBP 504 Sem Pré-Requisitos Avaliação Psicológica III EBP 604 EBP 503 / EBP 504

Psicologia e Educação EBP 405 Sem Pré-Requisitos Metodologia da Pesquisa EBP 505 EBP 106 Psicologia do Trabalho e das Organizações I EBP 605 Sem Pré-Requisitos

Seminários-“Sexualidade e Gênero” EBP 406 Sem Pré-Requisitos Seminários-“Psicofarmacologia” EBP 506 Co-Requisito EBP 501 Psicologia e Saúde EBP 606 Sem Pré-Requisitos

Teorias Humanistas e Fenomenológicas EBP 407 EBP 107 Psicologia e Comunidade EBP 507 EBP 302 Seminários – “Introdução ao Pensamento de Jung” EBP 607 Sem Pré-Requisitos

7º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos 8º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos 9º SEMESTRE CÓDIGO Pré-Requisitos Estágio Básico III EBP 702 Sem Pré-Requisitos Diagnóstico e Intervenções em Psicologia EBP 802 EBP 503, EBP 603, EBP 604 Estágio Específico I EBP 901 EBP 502, EBP 601, EBP 702

Psicologia do Trabalho e das Organizações II EBP 703 EBP 605 Teorias e Técnicas Psicoterápicas II EBP 803 Sem Pré-Requisitos Saúde Coletiva EBP 903 Sem Pré-Requisitos

Teorias e Técnicas Psicoterápicas I EBP 707 Co-Requisito EBP 713 Teorias e Técnicas Psicoterápicas III EBP 804 EBP 407 DISCIPLINAS POR ENFÂSE: Pesquisa em Psicologia II EBP 711 EBP 602 Trabalho Final Orientado EBP 805 Sem Pré-Requisitos Intervenções em Contextos de Trabalho e Organizações I EBP 904 OPTATIVA Seminários-“Avaliação Funcional do Comportamento” EBP 712 Sem Pré-Requisitos Intervenções em Contextos de Saúde EBP 905 OPTATIVA

Ética e Práticas Profissionais EBP 713 Sem Pré-Requisitos

10º SEMESTRE Cód Pré-RequisitosEstágio Específico II EBP 001 EBP 901

Tópicos Especiais em Psicologia EBP 002 Sem Pré-Requisitos

DISCIPLINAS POR ENFÂSE: Neuropsicologia EBP 003 OPTATIVA Intervenções em Contextos de Trabalho e Organizações II EBP 005 EBP 904 (OPTATIVA)

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