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CONSERVADORISMO REACIONÁRIO E DESTRUIÇÃO CAPITALISTA DA AMAZÔNIA: resistência das classes subalternas e a cultura profissional crítica em Serviço Social Cristiana Costa Lima (Coordenadora da mesa) Doutora em Políticas Públicas (UFMA). E-mail: [email protected] Mariana Cavalcanti Braz Berger Doutora em Políticas Públicas (UFMA). E-mail: [email protected] Marina Maciel Abreu Doutora em Serviço Social (PUC/SP). E-mail: [email protected] EMENTA A retomada do conservadorismo reacionário no mundo e sua incidência no Brasil na reconfiguração do Estado neoliberal sob os grandes interesses do capital financeiro. Os desafios da construção da cultura profissional crítica em Serviço Social no contexto da flexibilização das relações de trabalho e negação de direitos sociais e do avanço do conservadorismo reacionário. O fetiche do desenvolvimento sustentável e a resistência dos afetados pela destruição capitalista frente aos grandes projetos na Amazônia. A incompatibilidade da lógica do sistema capitalista com o modo de ser e de viver de qualquer perspectiva que conviva com o meio ambiente natural. Desenvolvimento sustentável e setor energético na região amazônica brasileira.

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CONSERVADORISMO REACIONÁRIO E DESTRUIÇÃO CAPITALISTA DA AMAZÔNIA:

resistência das classes subalternas e a cultura profissional crítica em Serviço Social

Cristiana Costa Lima (Coordenadora da mesa)

Doutora em Políticas Públicas (UFMA). E-mail: [email protected]

Mariana Cavalcanti Braz Berger

Doutora em Políticas Públicas (UFMA). E-mail: [email protected]

Marina Maciel Abreu

Doutora em Serviço Social (PUC/SP). E-mail: [email protected]

EMENTA

A retomada do conservadorismo reacionário no mundo e sua incidência no Brasil na

reconfiguração do Estado neoliberal sob os grandes interesses do capital financeiro. Os

desafios da construção da cultura profissional crítica em Serviço Social no contexto da

flexibilização das relações de trabalho e negação de direitos sociais e do avanço do

conservadorismo reacionário. O fetiche do desenvolvimento sustentável e a resistência dos

afetados pela destruição capitalista frente aos grandes projetos na Amazônia. A

incompatibilidade da lógica do sistema capitalista com o modo de ser e de viver de qualquer

perspectiva que conviva com o meio ambiente natural. Desenvolvimento sustentável e setor

energético na região amazônica brasileira.

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A RETOMADA DO CONSERVADORISMO REACIONÁRIO SOB O CONTEXTO

DAS TRANSFORMAÇÕES DO CAPITAL E SUA INCIDÊNCIA NO BRASIL

Cristiana Costa Lima1

RESUMO: Análise do avanço do conservadorismo reacionário das classes dominantes brasileiras, a partir do movimento que resultou no processo de impeachment de Dilma Rousseff, via golpe jurídico-parlamentar-midiático de Estado, ocorrido em 2016. Objetiva-se demarcar os elementos essenciais para a investigação desse processo. Parte-se do entendimento de que o intenso movimento produzido pelas transformações ocorridas no mundo, no final do século XX e início do século XXI, têm apresentado grandes desafios à compreensão dos processos históricos de desenvolvimento da sociedade, ao mesmo tempo em que provocam profundas mudanças nas forças sociais em luta. Tais transformações constituem-se expressões da atual fase do capitalismo sob a hegemonia do capital portador de juros e da ideologia neoliberal.

Palavras-chave: Imperialismo. Capitalismo Dependente. Conservadorismo reacionário. Golpe.

ABSTRACT: An analysis of the progress of reactionary conservatism of the brazilian ruling classes, based on the movement that resulted in Dilma Rousseff's impeachment process, via a legal-parliamentary-mediatic coup d'état in 2016. It aims to demarcate the essential elements for the investigation of this process. It is based on the understanding that the intense movement produced by the transformations that occurred in the world in the late twentieth century and the beginning of the twenty-first century have presented great challenges to understanding the historical processes of development of society while causing profound changes in fighting social forces. Such transformations constitute expressions of the current phase of capitalism under the hegemony of interest bearing capital and neoliberal ideology.

Keywords: Imperialism, Dependent Capitalism, Reactive Conservatism, Coup,

1 INTRODUÇÃO

As indicações presentes nesse artigo têm como referência os estudos e pesquisas

realizados pelo Grupo de Estudo, Pesquisa e Debate sobre Serviço Social e Movimento

1 Doutora em Políticas Públicas (UFMA). E-mail: [email protected]

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Social (GSERMS). As análises aqui apresentadas partem do entendimento de que o intenso

movimento produzido pelas transformações ocorridas no mundo, no final do século XX e

início do século XXI, têm apresentado grandes desafios à compreensão dos processos

históricos de desenvolvimento da sociedade, ao mesmo tempo em que provocam profundas

mudanças nas forças sociais em luta.

Essas transformações nas relações sociais vêm se manifestando no Brasil desde

as Jornadas de Junho de 2013, quando emergiram um profundo acirramento da luta de

classes e um avanço do conservadorismo reacionário. Ambos constituem-se expressões da

atual fase do capitalismo sob a hegemonia do capital portador de juros (CHESNAIS, 2005) e

da ideologia neoliberal.

Assim, tendo como referência as indicações metodológicas de Antônio Gramsci,

segundo as quais, para análises das situações há que se entender “o problema das relações

entre estrutura e superestrutura” (GRAMSCI, 2002, p. 36), para que se possa chegar a uma

justa análise das forças. Para tanto, há que se “distinguir os movimentos orgânicos

(relativamente permanentes) dos movimentos que podem ser chamados de conjunturais (e

que se apresentam como ocasionais, imediatos, quase acidentais)” (GRAMSCI, 2002, p.

36).

Dessa forma, não se trata, pois, de analisar uma conjuntura conservadora frente ao

crescimento de movimentos sociais, partidos conservadores e Igrejas conservadoras; mas

significa entender que “os fenômenos de conjuntura dependem de movimentos orgânicos

[...]. Os fenômenos orgânicos dão lugar à crítica histórico-social, que envolve os grandes

agrupamentos, para além das pessoas imediatamente responsáveis e do pessoal dirigente”

(GRAMSCI, 2002, p. 36 – 37).

Eis o contexto no qual devemos nos debruçar para investigar o avanço do

conservadorismo reacionário no Brasil. Situá-lo como intrínseco ao movimento do próprio

capital em sua fase econômico-financeira de reformatação da vida cotidiana do trabalho e

de sua infoproletarização, que levam à busca de soluções imediatas para a crise do

emprego e da garantia da sobrevivência. É nesse vácuo que o conservadorismo ressurge

com força.

2 OS FATORES CONJUNTURAIS E ORGÂNICOS DE ASCENÇÃO DO

CONSERVADORISMO REACIONÁRIO NO BRASIL

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Em meio a um turbilhão de acontecimentos em todo o mundo, a extrema direita

avança frente a uma crise da democracia. Processos complexos cujas causas não são

aparentes e não podem ser reduzidas a uma única variável.

Do ponto de vista conjuntural, um conjunto de fatores políticos e econômicos

podem ser elencados para “justificar” o crescimento de uma extrema direita no Brasil,

personificada na eleição de Jair Messias Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), à

Presidência da República, em outubro de 2018.

O impeachment da Presidente Dilma Rousseff, em 2016, deu-se sob um golpe no

qual a institucionalidade brasileira era posta à prova ao colocar na Presidência da República

um governo interino repleto de denunciados, investigados e condenados pela justiça,

mesmo que, do ponto de vista do discurso, o objetivo fosse combater “a organização

criminosa orquestrada pelo PT, sob o comando do seu chefe maior, Luís Inácio Lula da

Silva”.

Tendo, então, o combate à corrupção2 como aparente motivação, a mídia

tradicional, especialmente a Rede Globo de Televisão, exerce um papel fundamental na

formação do consenso e mobilização das massas no acirramento da luta de classes,

capitaneando, desde a classe trabalhadora aos segmentos da classe média, o sentimento

antipetista que emergiu sobretudo da ameaçada a esses setores trazidas pelas políticas

minimamente de fortalecimento dos setores mais empobrecidos da sociedade, a partir da

garantia do emprego e da valorização do salário mínimo – elementos que retomaremos mais

à frente.

Mas o golpe não foi orquestrado apenas pela mídia, era preciso revesti-lo de

legalidade e institucionalidade. Para isso, Ministério Público e poder judiciário –

destacadamente a chamada “República de Curitiba”, com Sérgio Moro à frente – entraram

em cena. Nesse jogo teatral, o palco trouxe ao centro o político corrupto, representando o

“mal”, e o juiz do “bem”. O ápice desse processo com vistas à convencer amplas massas da

sociedade da necessidade de passar o país a limpo, deu-se no dia 16 de março de 2016,

quando o juiz Sérgio Moro autorizou – ilegalmente, o que lhe rendeu uma reprimenda do

STF, à época – a divulgação de escutas telefônicas relativas a conversas entre Lula e Dilma

2 A cerca da corrupção, concordamos com Armando Boito Júnior (2017), que assinala que, na

sociedade capitalista, a corrupção deve ser entendida como ideologia. “A ideia de corrupção é parte integrante e fundamental da ideologia política burguesa, mais precisamente da ideologia burguesa do Estado. Ela é produzida pelo aparelho de Estado burguês (BOITO JR, 2017, p. 02). Isso ocorre porque o Estado capitalista estabelece uma distinção entre recursos públicos e privados que é apenas formal, daí se origina a corrupção, mas, na prática, os recursos do Estado estão à serviço da classe capitalista. “Os elementos que dão origem à ideologia da corrupção são eles mesmos ideológicos, [...] e estão baseados na também concepção ideológica de duas normas básicas do Estado burguês – igualdade jurídica formal e abertura formal das instituições do Estado”. (BOITO JR., 2017, p. 05).

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com o propósito de provocar a comoção e o ódio da população, criando, assim, um

ambiente propício para votação do impeachment.

O ativismo político da Lava Jato preparou o espetáculo no qual toda a sociedade

brasileira parou para assistir o desfecho no dia 31 de agosto de 2016, com a cassação da

presidente Dilma Rousseff, por (supostos) crimes de responsabilidade, por pedaladas

fiscais; e por créditos suplementares sem autorização legislativa. Foi com “a substituição do

espaço público de debate pelo protagonismo dos meios de comunicação de massa”

(SOLANO, 2018, p.06) que o Brasil assistiu à farsa armada também com a participação dos

parlamentares.

No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx (2011) escreve que Hegel, em suas

obras, comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história

mundial são encenados duas vezes. “Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como

tragédia, a segunda como farsa.” (MARX, 2011, p. 25), assim, a farsa é pior do que a

tragédia. O golpe de Estado civil-militar de 1964 no Brasil foi uma tragédia, o golpe de

Estado midiático, jurídico e parlamentar de 2016 foi uma farsa. E, para coroar a farsa, a

partir do bloco parlamentar conhecido como “bancada da BBB3”, uma maioria se constitui na

Câmara dos Deputados e no Senado Federal, articulando e executando o golpe, com um

amplo apoio da maioria dos partidos do centro à centro-direita.

O golpe contou ainda com a atuação ativa de um movimento de juventude que, das

redes (sociais) às ruas e praças, consolidou-se com um viés conservador no Brasil, a partir

das manifestações de massa ocorridas no ano de 2013, com o claro intuito de disputa

ideológica para conformação de uma nova direita no país, fundamentada em um conjunto de

ideais liberais, de negação do Estado. Várias organizações começaram a participar desse

emergente movimento liberal brasileiro, com o desenvolvimento de novas formas de

sociabilidade na sociedade civil, originadas através das novas tecnologias, principalmente

em razão da internet. Dentre essas organizações, notabilizou-se com mais força o

Movimento Brasil Livre (MBL), construído a partir de uma organização transnacional, a

Students For Liberty, que atua no Brasil através de sua versão brasileira, o Estudantes Pela

Liberdade (EPL), financiado e promovido pela Atlas Network. Além do MBL, destacou-se

também o Movimento Vem Pra Rua (VPR) e o Revoltados Online (ROL) que, juntos,

realizaram grandes manifestações populares de rua, um espaço historicamente ocupado

pelas mobilizações de esquerda.

3 A bancada BBB reúne parlamentares representantes da “Bala” – deputados ligados à Polícia Militar

e às milícias; do “Boi” – grandes proprietários de terra ligados ao agronegócio; e da “Bíblia” – de Igrejas neopentecostais, em sua maioria conservadores reacionários que empunham bandeiras homofóbicas, racistas e misóginas.

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Tais organizações constituem-se como aparelhos privados de hegemonia, com a

finalidade de desempenhar um papel estratégico na conformação de uma ideologia e cultura

conservadora reacionária a fim de barrar a organização das massas rumo à garantia de

seus direitos e conquistas sociais e políticas.

Dentre esses fatores conjunturais, cabe destacar a reconfiguração social

brasileira, promovida pelos programas governamentais de transferência de renda, de

erradicação da pobreza, políticas de cotas, elevação real do valor do salário mínimo, o

aumento significativo das taxas de emprego, a expansão do crédito que modificaram a

morfologia das regiões periféricas do país, e foram capazes de elevar os rendimentos e o

padrão de consumo de muitas famílias. Essas medidas possibilitaram a afirmação de que a

classe média brasileira cresceu ou que surgiu “uma nova classe média no pais4”.

Ao nosso ver, não se trata de uma nova classe média, mas sim de uma classe

trabalhadora que passou a ter acesso a bens e consumo que antes não tinha. E, ela própria,

passa a acreditar que faz parte de uma nova classe média que se sente “traída” pelo PT ao

ver que as promessas de melhorias de suas condições de vida estavam ameaçadas, menos

pela profunda crise econômica do capital mundial e mais, muito mais, pela corrupção nos

governos petistas.

A questão é que essa nova classe trabalhadora se beneficiou com as políticas

públicas de corte social e econômica do governo do PT, mas, a classe média não foi

beneficiada com a mesma intensidade.

Assim, quando dizemos que se trata de uma nova classe trabalhadora, consideramos que a novidade não se encontra apenas nos efeitos das políticas sociais e econômicas dos governos petistas, mas também nos dois elementos trazidos pelo neoliberalismo, quais sejam: de um lado, a fragmentação, terceirização e „precarização‟ do trabalho e, de outro, a incorporação à classe trabalhadora de segmentos sociais que, nas formas anteriores do capitalismo, teriam pertencido à classe média (CHAUI, 2016, p. 18-19).

Durante o processo declínio de crescimento econômico do governo do PT,

contradições foram se gestando, o que vai contribuir para consolidação de uma cultura

conservadora reacionário. A classe média se sente ameaçada e deseja manter o seu padrão

de vida e consumo. Como ressalta Chauí (2016), a classe média, que é fragmentada e

instável, vive um sonho e um pesadelo: o sonho de ser parte da classe dominante; e seu

4 O debate em torno do crescimento da classe média brasileira nos últimos anos se deu a partir de

estudos coordenados por Marcelo Neri, presidente do IPEA nos anos de 2012 a 2014. Ele se baseia no chamado “Critério Brasil” e divide a sociedade brasileira em 4 faixas (AB, C, D e E), cuja definição se dá unicamente através da renda, ou seja, poder de consumo, posição na ocupação, investimento em educação, plano de saúde e carteira de trabalho assinada. A discussão sociológica em torno da definição de “classe média” é complexa e exige uma maior aproximação com a ampla literatura sobre a temática.

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pesadelo é tornar-se proletarizada. “Para que esse o sonho se realize e o pesadelo não se

concretize, é preciso ordem e segurança. Isso torna a classe média ideologicamente

conservadora e reacionária, e seu papel social e político é assegurar a hegemonia

ideológica da classe dominante” (CHAUÍ, 2016, p. 20). Assim,

Sob o mote da corrupção com forte apelo popular, o conservadorismo reacionário como ideologia e cultura ganhou expressiva força na sociedade, confrontando o partido que havia se constituído e se desenvolvido com o discurso da ética na política penetrou, destacadamente, a classe média e, como já demonstram estudos realizados por grupos de pesquisadores, nas camadas sociais mais vinculadas ao PT, as massas populares, compreendidas em uma composição ampla de sujeitos e segmentos das classes sociais em luta no cotidiano da vida social, cabendo destacar a penetração na juventude. (LOPES, 2018, p. 07).

O conservadorismo, como expressão da luta de classes, está presente na base do

pensamento e do modo de vida das classes dominantes brasileiras, na ideologia dessas

classes, como ocorre em todas as sociedades capitalistas contemporâneas. Mas a atual

vertente reacionária ganhou força e foi fundamental no acirramento da luta de classes no

Brasil (LOPES, 2018).

Se esses são elementos conjurais importantes para esboçar uma análise sobre

fatores que vão consolidando o golpe e a chegada da extrema direita ao poder, do ponto de

vista da análise estrutural é preciso apontar o que Ladislau Dowbor (2018) chama de

“Captura do poder pelo sistema corporativo”. Segundo ele,

A expansão dos lobbies, a compra dos políticos, a invasão do judiciário, o controle dos sistemas de informação da sociedade e a manipulação do ensino acadêmico representam alguns dos instrumentos mais importantes da captura do poder político geral pelas grandes corporações. Mas o conjunto destes instrumentos leva em última instância a um mecanismo mais poderoso que os articula e lhe confere caráter sistêmico: a apropriação dos próprios resultados da atividade econômica, por meio do controle financeiro em pouquíssimas mãos. As dinâmicas de poder político, econômico e cultural estão sendo reorientadas, gerando uma nova configuração que se trata de estudar. É o pano de fundo de uma sociedade em busca de novos caminhos de gestão. (DOWBOR, 2016, p. 01).

Contudo, é importante demarcar que o giro à direita que vamos enfrentar em todo

mundo é uma expressão da atual fase do capitalismo, caracterizada pela flexibilização das

relações de produção e de trabalho sob a hegemonia do capital financeiro.

Em “A era do capital improdutivo”, Dowbor (2017) mostra que hoje, no mundo, 737

grupos controlam 80% do universo corporativo, e que nesse universo 147 grupos controlam

40%, sendo três quartos deles bancos.

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Lembremos ainda que os dados do Crédit Suisse para 2016 mostram que oito famílias detêm um patrimônio igual ao da metade mais pobre da população mundial, resultado direto dos mecanismos financeiros, e o 1% mais rico controla mais da metade da riqueza mundial, ou seja, 1% tem mais patrimônio que os 99% de comuns mortais. (DOWBOR, 2017, p. 56).

A década de 1980 deve ser entendida como a era do conservadorismo. A

conclusão que chegamos é de que há um profundo movimento de todo o espectro político,

ideológico e cultural dos países do Ocidente numa inclinação à direita: “eis aí o grande

triunfo da burguesia imperialista. [...] a verdade é que nos cinco anos que vão de 1974 a

1979, tudo mudou dramaticamente na Europa e nos Estados Unidos, impondo-se um

conservadorismo cada vez mais beligerante”. (CUEVA, 1989, p. 32).

O que unifica as classes dominantes brasileiras, que são inteiramente submissas

aos Estados Unidos e aos demais estados imperialistas e que não tem nenhum

compromisso com o desenvolvimento do Brasil, é a manutenção do Brasil como parceiro

dos Estados Unidos, principalmente para garantir a tração de fluxos de capital. A questão

central posta pelos analistas da burguesia é de que o modelo econômico implantado pelo

PT, centrado no desenvolvimento a partir do mercado interno, está atrelado a uma política

de consumo de massa. À burguesia só interessa uma política de redução dos custos de

produção, obter alta taxa de lucros a baixos custos, sem ter que investir em tecnologia, em

altos salários, sem garantir direitos, enfim, o projeto burguês para o Brasil assenta-se em

relações de trabalho ainda pré-capitalistas.

A burguesia aposta na superexploração do trabalho. É também uma burguesia

rentista, que transforma seus ativos e seus bens em capital financeiro para especular nos

bancos e ganhar recursos gigantescos. É preciso atrair capital estrangeiro através de

privatizações, concessões, redução de direitos. A política externa brasileira baseia-se em

preservar a lógica rentista, colocar o desenvolvimento do país atrelado à atração de capitais

internacionais e, sobretudo, fazer com o pacto colonial funcione: o Brasil se acomoda à sua

condição de agroexportador de comodittes agrícolas e minerais e resume-se a importador

de produtos industriais. Configura-se, assim, uma cadeia de interesses da burguesia

agroexportadora e dos bancos.

Para que o Brasil permaneça de joelhos ao império é necessário impedir a chegada

ao poder de grupos desenvolvimentistas comprometidos com a defesa das nossas riquezas.

A atual fase do capitalismo sob a ideologia neoliberal e a hegemonia do capital financeiro

mantém os traços do subdesenvolvimento!

Antes de mais nada é preciso destacar que a Lava Jato abriu caminhos para a

entrega da Petrobrás para os americanos e para o capital internacional. Os Estados Unidos,

no interesse obstinado por controlar as reservas mundiais de petróleo, criam guerras ou

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motivam intervenções golpistas na política interna dos países, como fizeram no passado e

como estão fazendo agora com a Venezuela – que detém a maior reserva petrolífera da

América do Sul.

É essa movimentação orgânica do capital que serve de arcabouço para as

movimentações conjunturais que propiciam a emergência de movimentos sociais

intrinsicamente vinculados aos interesses do capital, por ele financiados, e sob sua lógica e

cartilha econômica direcionados. Ir à raiz desse processo é pressuposto para elaborar uma

correta avaliação dos movimentos de juventude, religiosos neopentecostais e de lideranças

que emergem à extrema direita. Se isso, estamos fadados à derrota. Nem subestimar, nem

superestimar o adversário que colocou a roda da história para girar. No caso brasileiro, para

trás...

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo sob um clima de ameaça à liberdade de cátedra, ao financiamento da

pesquisa na área das humanas e sociais, ao ataque ao ensino da Filosofia e da Sociologia,

não nos cabe qualquer recuo. Aprofundar a investigação desse fenômeno é condição

necessária para propor alternativas para seu enfrentamento. O papel dos intelectuais no

campo do pensamento crítico é elaborar reflexões que apontem as características desse

processo, buscando errar o mínimo possível nas caracterizações construídas. O movimento

do capital e sua expressão política – à extrema direita – é um fenômeno mundial, que se

enraíza nos principais países. No Brasil, não será diferente, embora sob condições mais

difíceis, visto que alcançaram o posto de comando da principal economia regional do

continente sul-americano.

REFERÊNCIAS

CHESNAIS, François. O Capital Portador de Juros: Acumulação, Internacionalização, Efeitos Econômicos e Políticos. In: A finança Mundializada. CHESNAIS, François (org). São Paulo, Boitempo, 2005. CHAUI, Marilena. A nova classe trabalhadora brasileira e a ascensão do conservadorismo. In: Por que Gritamos Golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Ivana Jinkings, Kim Doria, Murilo Cleto (org.). São Paulo: Boitempo, 2016.

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CUEVA, Agustín. (Org.) Tempos conservadores. Trad. Fátima Murad. São Paulo: Editora HUCITEC, 1989.

DOWDOR, Ladislau A captura do poder pelo sistema corporativo. http://dowbor.org/2016/06/a-captura-do-poder-pelo-sistema-corporativohtml/ Acesso em 29/04/2018. _________________. A era do capital improdutivo: Por que oito famílias tem mais riqueza do que a metade da população do mundo?São Paulo : Autonomia Literária, 2017. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Volume 3. Maquiavel. Notas sobre Estado e Política. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002. LOPES, Josefa Batista. Luta de Classe e o Avanço do Conservadorismo Reacionário no Brasil: resistência da classe trabalhadora e popular e a incidência no Serviço Social da ascensão do PT à Presidência da República ao golpe de Estado de 2016 Projeto de Pesquisa apresentado ao CNPQ, 2018. SOLANO, Esther. Crise da democracia e extremismo de direita. Análise Nº 42/2018. Friedrich-Ebert-Stiftung. Escritório Brasil, 2018 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

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OS IMPACTOS DA EXPANSÃO DO SETOR ELÉTRICO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA: o

fetiche do desenvolvimento sustentável

Mariana Cavalcanti Braz Berger5

RESUMO: Este texto analisa o fetiche do desenvolvimento sustentável e os impactos para os grupos sociais afetados pela destruição capitalista frente aos grandes projetos na Amazônia. A lógica do sistema capitalista é incompatível com o modo de ser e de viver de qualquer perspectiva que conviva com o meio ambiente natural para sobrevivência e manutenção própria. Nesse sentido, problematizamos o conceito de desenvolvimento sustentável, considerando o setor elétrico na região amazônica brasileira, a atuação do Movimento dos Atingidos por Barragens como expressão de resistência e as lutas sociais.

Palavras-Chave: fetichismo, desenvolvimento sustentável, amazônia, hidrelétrica.

ABSTRACT: This work analyses the texture of the sustainable development as a fetish. It considers the impacts of the destruction caused by the implementation of large capitalist projects for the traditional people at Amazon region. The capitalism is incompatible with their customs, whom lives together with nature and uses its resources to survive and self-sustain. Therefore, the concept of sustainable development is addressed, considering the electrical sector at the Brazilian amazon, the social struggle and the resistance of the Movimento dos Atingidos por Barragens.

Keywords: fetichism, sustainable development, amazon, hydroelectric.

1 INTRODUÇÃO

Na Amazônia brasileira, as hidrelétricas têm sido construídas no cerne de um

projeto do grande capital que afirma a promoção do desenvolvimento sustentável. A análise

dos impactos ambiental, social e econômico provocados por esses empreendimentos nos

oportunizam ultrapassar o campo abstrato por onde circula, muitas vezes, o debate sobre o

desenvolvimento sustentável.

5 Doutora em Políticas Públicas (UFMA). E-mail: [email protected]

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Diante da propagada necessidade de expansão da geração de energia elétrica para

o desenvolvimento capitalista contemporâneo, analisamos o fetiche6 do desenvolvimento

sustentável na particularidade da Amazônia no projeto nacional de expansão hidrelétrica.

Situamos o conceito oficial de desenvolvimento sustentável com destaque para a

sua vinculação aos interesses da manutenção do capital, considerando-o uma estratégia de

saída para crise (estrutural) capitalista, em seu aspecto ambiental. A Amazônia brasileira

representa um território que possui atrativos para cobiça da exploração e usurpação dos

recursos naturais pelos empreendimentos capitalistas, entre os quais o setor elétrico,

causando drásticos impactos no modo de ser e viver da população brasileira, sobretudo, dos

grupos sociais que sobrevivem desses recursos.

Desse modo, problematizamos a expansão da geração de energia elétrica na

Amazônia, considerando as racionalidades em confronto, os conflitos e as violações de

direitos humanos para a classe trabalhadora.

2 A INCONCILIÁVEL PROTEÇÃO AMBIENTAL NO MODO DE PRODUÇÃO

CAPITALISTA: O FETICHE DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Em seus estudos, Marx desvendou que as “relações de produção não surge[m] de

„hábitos‟, mas da estrutura interna da economia mercantil. O fetichismo é não apenas um

fenômeno da consciência social, mas da existência social” (RUBIN, 1987, p. 73). O

pensador alemão utilizou a expressão fetichismo ao tratar de um aspecto central do modo

de produção capitalista, segundo o qual as relações sociais que definem esse modo de

produção adquirem um certo caráter fantasmagórico e misterioso, que escapa aos homens

apesar de ter sido produto do agir humano.

Daí o nosso pressuposto de que sob a dominância do capital todas as relações

sociais são fetichizadas, desde a mercadoria. O fetichismo é inerente ao capitalismo e

impregna toda a sociedade, garantindo “a penetração do poder-sobre capitalista no núcleo

do nosso ser, em todos os nossos modos de pensar, em todas as nossas relações com as

outras pessoas” (HOLLOWAY, 2003, p. 80) e transforma essas relações em relações entre

coisas.

Na sociedade capitalista as relações entre as pessoas estabelecem-se pelas coisas

e através das coisas e os recursos naturais adquirem pelo agir humano características

6 O significado do termo fetiche em português remete a magia, feitiço, algo sobrenatural.

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sociais específicas e cada vez mais valiosas, tanto quanto todas as coisas de interesse do

mercado. Ao reproduzir o caráter fetichizado e pretensamente neutro da relação do capital

com o meio ambiente natural, as estratégias de enfrentamento impulsionadas pelo grande

capital à questão ambiental estão direcionadas ao propósito de reforçar as suas bases

hegemônicas e converter em seu próprio benefício os efeitos drásticos da produção

capitalista.

Apesar dos ciclos de crises, o capital vem demonstrando “êxito” em conseguir

formas de aumentar a produtividade do trabalho, a qual possui o propósito de produzir mais

mercadorias. Contudo, reconhecendo suas contradições em todas as esferas da vida social,

propõe “paliativos temporários”, como o desenvolvimento sustentável, com o objetivo de

centralizar o debate ambiental em temas superficiais. As saídas propostas à crise ambiental

vão em direção ao que Mészáros (2002, p. 613) denominou de “as falsas dicotomias –

como, por exemplo, „crescimento e colapso catastrófico ou equilíbrio global por meio de

crescimento zero‟ – como resultado de sua incapacidade de questionar o círculo vicioso do

sistema reificado do capital orientado para a riqueza”.

Ao mesmo tempo que se expandiram estudos e discussões a respeito do meio

ambiente natural, emergiu, posterior à Segunda Guerra Mundial, e tornou-se objeto

ideológico do Ocidente o debate sobre desenvolvimento. A concepção de desenvolvimento

capitalista encara a história como uma sucessão de etapas, na qual todos os países devem

seguir as respectivas fases: subdesenvolvidos, em desenvolvimento e desenvolvidos.

A ideia de acrescentar ao substantivo desenvolvimento o adjetivo sustentável

adveio da ideologia hegemônica do capital apresentada pelos países de capitalismo central

e suas organizações internacionais, como se fosse possível conciliar crescimento

econômico com a preservação dos recursos naturais. Na definição oficial estabelecida no

Relatório Nosso Futuro Comum, desenvolvimento sustentável significa o atendimento às

necessidades da atual geração sem comprometer as necessidades das gerações futuras

(WCED, 1987).

A formulação desse conceito é decorrente de um processo no qual o debate

ambiental alcançou visibilidade na agenda pública por meio de reuniões e acordos

internacionais. A crescente percepção da crise ambiental na década de 1960 resultou no

ano de 1968 na criação do Clube de Roma, “uma associação informal e internacional”, a

partir da qual “um grupo formado por „cientistas, educadores, economistas, humanistas,

industriais e funcionários públicos de nível nacional e internacional‟” (SANT‟ANA JÚNIOR;

MUNIZ, 2009, p. 259) produziram um relatório denominado Limites do Crescimento,

publicado quatro anos depois.

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O debate levantado pelo Clube de Roma e pela I Conferência Mundial sobre o Meio

Ambiente Humano, realizada no ano de 1972 em Estocolmo, através da Organização das

Nações Unidas (ONU), direcionava para os “principais problemas ambientais” por eles assim

tratados e considerados: industrialização e crescimento urbano e populacional. Eventos

como estes contribuíram para introduzir os assuntos ambientais na agenda de negociações

e para criar instituições, documentos e encontros de proporção mundial voltados à proteção

ambiental, como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) indicado

pela Conferência Mundial (SILVA, 2010).

No ano de 1983 foi criada a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento (CMMAD)7 que se reuniu quatro anos depois na Noruega. O produto de

maior visibilidade dessa Comissão, presidida na época pela primeira ministra Gro Harlem

Brundtland, foi o Relatório Nosso Futuro Comum, conhecido também como Relatório

Brundtland. Com mais de 30 anos de existência, destacamos a principal demanda do capital

posta no relatório: possibilitar a relação entre desenvolvimento econômico e conservação do

meio ambiente - expandida para toda a humanidade indistintamente - atrelada inclusive à

superação da pobreza nos “países em desenvolvimento”, de forma que proporcione

crescimento contínuo aos “países desenvolvidos”.

Segundo os apologistas do capital, o crescimento populacional e as aglomerações

humanas são as causas da questão ambiental em decorrência do impacto que exercem

sobre os recursos naturais do planeta Terra. O conceito vem gerando um apelo de

enfrentamento à questão ambiental, mas suas raízes estão situadas em um grupo bem

definido e alinhado com o projeto neoliberal e com a defesa das políticas de ajuste

macroeconômico.

Embora desde os anos 1970 tenham surgido negociações em todo o mundo com o

propósito de promover novas modalidades de desenvolvimento, sob ideais ecológicos, como

a proposta do desenvolvimento sustentável, a questão ambiental não galgou as mesmas

ações e estratégias nos diferentes países. Resultando em ideais, teorias, políticas e

atividades diferenciadas, consequentemente, com “soluções” sociais e tecnológicas

variadas.

Assim, enquanto a preocupação ambiental era discutida nos países de capitalismo

central, no Brasil não havia legislação à proteção do meio ambiente e o governo brasileiro

adotava publicamente, como na I Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente Humano, o

7 Esta comissão possuía como atribuições preparar a segunda conferência, e recebe na língua inglesa a denominação World Comission Environment and Development (WCED). Sant‟Ana Júnior e Muniz (2009, p. 260) chamam atenção à introdução do vocábulo desenvolvimento no seu título, “sinalizando para a perspectiva de associação entre preocupações ambientais e o desenvolvimento”.

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posicionamento de atrair indústrias potencialmente poluidoras. O padrão de

desenvolvimento ignorava a degradação ambiental, reforçando o processo de concentração

de riquezas, que promove nos países de capitalismo periférico um “desenvolvimento que

desenvolve a desigualdade” (GALEANO, 2009, p. 19).

Nesse rumo, o território da Amazônia tem sido objeto de exploração do suposto

desenvolvimento, o qual se manifesta por meio da incompatibilidade entre produção

capitalista e preservação ambiental.

3 A EXPANSÃO DO SETOR ELÉTRICO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA: DEMANDA DOS

GRANDES PROJETOS CAPITALISTAS

Na Amazônia brasileira existe uma natureza viva de esplendor que convive com

conflitos, violência, exploração, devastação e miséria. Consideramos importante a

compreensão das contradições dessa realidade para romper com as fantasias a respeito da

região. A Amazônia expressa, portanto, a unidade na diversidade.

A perspectiva de que a Amazônia é um território grandioso e desconhecido remete

historicamente à preocupação com a “segurança nacional”, o que justificaria a necessidade

de ser controlado. Entretanto, nem é o território um vazio nem são os recursos tão

desconhecidos. A respeito dos recursos da floresta existe o conhecimento acumulado por

pesquisadores e pelas populações locais, como a prática dos sistemas agroflorestais e o

conhecimento da medicina que contribui com a elaboração de remédios nos laboratórios. O

denominado saber tradicional subsidia tecnologias avançadas, como a biotecnologia

(GONÇALVES, 2005).

Os conflitos sociais vinculados à apropriação desigual das terras são expressões da

desigualdade política e econômica da sociedade brasileira. Na particularidade da Amazônia,

apesar da propagação da disponibilidade de terras, os conflitos demonstram a ganância, a

histórica distribuição desigual e que existe muita terra para poucos latifundiários.

A Amazônia cumpre função estratégica para expansão do capital, estando

vinculada às dinâmicas externas de possibilidades da acumulação capitalista através da

extração de matérias-primas, seja no contexto de predomínio da empresa seringalista; nos

denominados períodos desenvolvimentistas e desde a falência desse padrão aos dias

atuais. Em todos esses períodos históricos, definida como uma inserção subordinada ao

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capital, fortemente determinada pelas demandas exógenas, fundada em uma racionalidade

econômica que se apropria objetivamente da natureza como mercadoria.

Sobre os processos de acumulação primitiva permanente, afirmou Brandão (2010,

p. 48) que, no Brasil “todas as heterogeneidades estruturais e as diversidades produtiva,

urbana, social e ambiental estiveram subordinadas à lógica econômica da valorização fácil e

rápida, isto é, de natureza imediatista, rentista e patrimonialista”. Desse modo,

historicamente o desenvolvimento capitalista brasileiro possui um conjunto de rupturas e

conflitos que marcam um “complexo processo de desenvolvimento desigual de seus

espaços regionais e urbanos” (BRANDÃO, 2010, p. 50).

O padrão de desenvolvimento imposto e efetivado pelo grande capital em

articulação com o Estado e instituições multilaterais de crédito foi reforçado no território

amazônico nos períodos de ditadura empresarial-militar (1964-1985) quando também se

intensificaram os equívocos da noção da Amazônia como “vazio demográfico”, reserva de

recursos e fronteira a ser ocupada. Ruiu a política que dava sustentação às velhas

oligarquias regionais e as populações de trabalhadores tiveram que se defrontar com os

“novos” colonizadores.

Com o discurso de promover o desenvolvimento dessa região, os militares iniciaram

a construção de grandes programas e projetos: a Transamazônica; a Polamazônia

(Programas de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia); as hidrelétricas de

Coroacy Nunes (Amapá), Tucuruí (Pará) e Balbina (Amazonas); o complexo mínero

metalúrgico (Programa Grande Carajás8 e Albrás-Alunorte) e o projeto de celulose de Jari.

O Relatório de Estudos de Caso da Comissão Mundial de Barragens sobre a Usina

Hidrelétrica Tucuruí (CMB, 2000, p. 12), indaga: “Como explicar a concepção e a

implantação de rodovias e de uma grande usina hidrelétrica em plena selva, pouco habitada

e conhecida, e baseada em uma economia extrativista?”. As indústrias eletrointensivas de

capital privado subsidiadas pelo governo brasileiro, em associação aos capitais nacionais,

procuraram territórios onde a legislação ambiental fosse frágil ou inexistente, já que as

entidades ambientalistas dos países centrais estavam incorporando a pressão quanto ao

caráter poluidor dessas empresas - também as do ramo de papel e celulose, altamente

consumidoras de água e energia -, o que levou à redefinição da localização dessas plantas

em função dos subsídios dos governos e do restrito rigor da legislação ambiental.

8 A descoberta de minério na Serra do Carajás, em 1967, impulsionou a exploração de jazidas minerais da região (ferro, cobre, manganês, entre outras) e em articulação com o complexo Albrás-Alunorte demandaram a construção da hidrelétrica de Tucuruí, com a missão não declarada de dar suporte para esses dois projetos (MARQUES, 2007).

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O discurso oficial que reforçava (e reforça) a necessidade de construção de

hidrelétricas no país alega que há escassez de energia e ganha novas facetas a partir dos

anos 1990, quando o setor elétrico passou por uma reestruturação. O Plano Nacional de

Energia Elétrica aprovado nessa década teve como base a implantação de grandes

hidrelétricas.

Na década seguinte a demanda pela expansão das usinas hidrelétricas identificou,

a partir dos estudos de inventários hidrelétricos das bacias da Região Hidrográfica

Amazônica, “mais de 30 aproveitamentos hidrelétricos planejados nas bacias hidrográficas

dos Rios Tapajós, Teles Pires, Juruena e Jamanxim” (ANA, 2015, p. 19). Esse potencial

hidrelétrico considerado não aproveitado determinou nos planos de expansão que sejam

construídas grandes hidrelétricas na região Amazônica, associadas às hidrelétricas de

pequeno e médio porte nas demais regiões do país.

O Plano Decenal de Expansão de Energia 2024 prevê: “nas bacias da região Norte

e Centro-Oeste, os inventários hidrelétricos apontam projetos importantes que poderão ser

viabilizados nos próximos anos” (BRASIL, 2015, p. 87). Destarte, para a região Norte,

segundo a projeção desse plano, “ocorrerá a maior expansão hidrelétrica, devido à entrada

em operação de grandes empreendimentos” (BRASIL, 2015, p. 86), como “as usinas de

Belo Monte e São Luiz do Tapajós, com 11.233 MW e 8.040 MW de potência total,

respectivamente. Esses dois empreendimentos, somados, correspondem a 68% da

expansão hidrelétrica” (BRASIL, 2015, p. 84).

As construções de usinas hidrelétricas, sobretudo nessa região, são muito

controversas. Becker (2012, p. 785) faz uma indagação, que denomina de questão ética

para a sociedade e para o governo, “será tão grande o crescimento do consumo nos

próximos dez anos a ponto de necessitar de tantas hidrelétricas?”.

A “escolha” da Amazônia para realizar a expansão capitalista não é aleatória, está

de acordo com as diretrizes que o sistema lhe concebe, qual seja: de território propício para

acumulação de capitais (nacional e internacionais). Os seus recursos naturais servem de

alavanca para a instalação de megaprojetos na região, reservando-lhe o lugar na Divisão

Internacional do Trabalho como exportadora, sobretudo, dos setores: pecuária, minério,

energia, madeira e grãos.

Contudo, ocorre causando drásticos impactos para o modo de ser e viver da

população inserida na região com destruição da vida, dos recursos naturais e violação de

direitos humanos.

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4 OS IMPACTOS PARA OS GRUPOS SOCIAIS AFETADOS PELAS USINAS

HIDRELÉTRICAS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

A potência das usinas construídas aumentou significativamente, desde o final do

século XIX e início do XX, no mundo e no Brasil. A usina hidrelétrica Itaipu foi superada na

potência gerada pela Central hidrelétrica Três Gargantas no rio Yang-tzé, na China

(BENINCÁ, 2011). Essas obras interrompem o fluxo normal dos rios causando impactos

diversos. Quando o objetivo é transformar a água em energia os conflitos se acirram,

opondo os interesses entre as empresas e as populações locais (a serem expulsas

compulsoriamente) e os recursos naturais.

A complexidade dos projetos se manifesta na grandiosidade da obra, nos impactos

causados e também nos confrontos (de forças desiguais) inseridos na região diante do

antagonismo entre o controle dos recursos e potenciais naturais; a resistência em

permanecer no território e a reivindicação das medidas de compensação e mitigação sofrida

pelos afetados. A resistência a esses empreendimentos se expressa no contraponto e na

necessidade de desmontar a simulação e a perversidade das estratégias da

sustentabilidade, posto que a razão dos empreendedores difere da representada pelos

grupos sociais; fundada em um saber ambiental, questiona a racionalidade do capital

dominante na lógica das empresas.

A racionalidade do capitalismo em sua essência é irracional, já que prescinde dos

ciclos naturais e da vida ao mesmo tempo que, para satisfazer-se, os convertem em forças

destrutivas. Desse modo, Leff (2009, p. 308) argumenta que a racionalidade econômica

impõe restrições à racionalidade ambiental, de que há entre elas uma contradição dialética

e, portanto, é necessário para consolidação dessa a transformação da racionalidade

econômica.

As pessoas são impactadas de formas e em momentos diferentes e em todas as

etapas: antes, durante e depois da construção do empreendimento. Desde o anúncio da

obra9, passando pelos efeitos no decorrer da execução e com o enchimento e operação do

reservatório.

Concordamos com o entendimento do Movimento dos Atingidos por Barragens

(MAB) de que atingidos não são apenas os diretamente afetados pelas obras das

barragens, mas toda a população do país. São considerados impactados diretos e indiretos

9 Grupos e comunidades sentem-se ameaçados pelos projetos de barragens, independente das possibilidades concretas de sua implantação.

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os trabalhadores no canteiro de obras, nas instalações funcionais e residenciais, nas

estradas e nas linhas de transmissão, bem como os comerciantes, os professores da escola

inundada pelas águas, os trabalhadores que pagam pelas altas tarifas de energia e que

arcam com os investimentos públicos através do BNDES para essas obras (BENINCÁ,

2011). Em todos os aspectos, atingida é a sociedade brasileira, vez que “todo mundo

consome energia, então afeta todos os brasileiros.

A política energética do Estado brasileiro privilegia as multinacionais, que degradam

o meio ambiente, alteram a vida das pessoas e absorvem grandes somas de lucro, pois a

energia no Brasil para os consumidores individuais é uma das mais caras do mundo10.

A forma como têm sido construídas as hidrelétricas em nosso país resultam

há anos em nefastas violações de direitos humanos. Na luta árdua para abrir as

negociações e serem cumpridos os acordos com as empresas, os atingidos são duramente

violentados e criminalizados ao lutarem por seus direitos. As organizações e movimentos

sociais denunciaram a condenação de militantes do MAB em Tucuruí11:

A hidrelétrica de Tucuruí, construída ainda no regime militar, é um dos símbolos desse modelo e guarda um histórico de repressão à luta dos atingidos e violações de direitos que perduram até hoje, em que aqueles que foram atingidos viram suas condições de vida piorarem e que ainda são obrigados a lutar por direitos básicos.

O modo de produção capitalista desde sua origem sempre combinou processos de

violência entre os métodos da acumulação do capital, expressos por meio do “domínio de

bens públicos, assenhorear-se e apoderar-se de propriedades e patrimônios públicos e

privados em nome do progresso geral da sociedade são práticas regulares em toda a

história do capitalismo” (BRANDÃO, 2010, p. 45). Além disso, afirma Brandão (2010, p. 48),

os métodos de acumulação do capital são diversos, como:

A expropriação e supressão de camponeses, de atividades domésticas e de produções e distribuições solidárias. A geração de uma massa redundante de proletários destituídos de propriedade. Os subterfúrgios e mecanismos de exploração (territorial, de classe, de atributos naturais etc.). O uso do território e de seus recursos minerais, água, energia etc. até exauri-los. A apropriação do espaço urbano (de sua intra e interurbanidade) como locus privilegiado da acumulação espoliativa. Estes e muitos outros são mecanismos permanentes de expropriação, sustentados muitas vezes por Estados e organismos internacionais.

10 Segundo informações disponíveis em: http://www.valor.com.br/empresas/4340030/brasil-ocupa-5-lugar-em-ranking-internacional-de-tarifa-de-energia 11

Disponível em: http://www.sddh.org.br/sddh/index.php/item/1284-nota-das-organizações-e-movimentos-sociais-contra-a-condenação-de-militantes-do-mab-em-tucuruí-pa

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Na particularidade dos atingidos por barragens que sofrem esses processos de

violência, existem muitas denúncias por eles realizadas, no entanto, são quase sempre

noticiados ideologicamente como “baderneiros”, “desocupados”, “radicais”, os quais têm sido

criminalizados. Enquanto expressão do movimento concreto, destaca-se uma outra

ocorrência em Tucuruí, que retrata a violência cometida contra a população, quando em

2009 foram presos dezoito militantes do MAB, como se tivessem cometido crimes. O ato

político no qual participavam era de protesto diante dos acordos não cumpridos com a

Eletronorte e, como tal, não poderiam ser enquadrados como presos comuns (BENINCÁ,

2011).

Os empreendedores do setor com interesse em construir barragens contratam

consultorias para elaborar o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto

Ambiental, para os quais realizam levantamento físico e biótico do território e das espécies,

definem as áreas alagadas e quem é ou não atingido. Também constam os valores irrisórios

das indenizações e a forma de “pagamento”, se em dinheiro, carta de crédito ou

reassentamento. A estratégia das empresas consiste em propor negociações com as

famílias ou com as comunidades afetadas, assim, tendem a fracionar as suas contestações

com o objetivo de “desmobilizar, neutralizar ou extirpar as resistências” (BENINCÁ, 2011, p.

62).

As ações executadas pelos empreendimentos ocorrem no sentido de minimização

dos impactos. Por outro lado, reforçam a negligência do poder público no âmbito dos

investimentos sociais, alimentando o jogo de interesses entre governo e empresas privadas

(CAMARGO; HASHIZUME, 2008). Os governantes possuem interesses nessas grandes

obras por causa do pagamento dos royalties, com a destinação de elevadas cifras para

prefeituras, governos estaduais e federal.

A construção dos empreendimentos, em todas as etapas, implica várias

transformações para a região, como: a grande demanda por moradias; a pressão sobre o

mercado imobiliário; serviços públicos saturados; confrontos entre a população local e os

migrantes; violência contra os indígenas; destruição do patrimônio cultural e arqueológico;

desgaste dos recursos naturais (fauna e flora); perda na qualidade de vida da população,

entre outros.

Embora estejam revestidos da proposta de impulsionar o desenvolvimento na

região Amazônica, a preocupação por parte dos empreendedores e do Estado tem sido

inexpressiva com relação às necessidades básicas da população, pois desconsideram os

impactos sociais e ambientais.

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Nas regiões onde foram construídas as barragens aumentou o número de pessoas

vivendo em condições precárias. A opção por esse projeto hidroenergético resulta em

agravantes das expressões da questão social acirradas pelo conflito capital e trabalho, uma

vez que as famílias ficam sem trabalho, terra, comida e um local para plantar. Essa

realidade demonstra a incompatibilidade com o discurso governamental de combate à

pobreza e a proteção ao meio ambiente natural.

O Relatório da Plataforma Dhesca Brasil denunciou no ano de 2008 as seguintes

violações de direitos humanos no complexo do Rio Madeira, em Rondônia:

Exclusão da bacia do Madeira do âmbito dos estudos sobre impactos ambientais e violação do princípio da autodeterminação dos povos e soberania dos países; Caracterização insatisfatória sobre necessidade do empreendimento e ausência de análise sobre alternativas de menor impacto; Ofensa aos princípios democráticos e ao direito humano à informação e participação; Violação dos Direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais; Ofensa ao direito humano ao meio ambiente equilibrado e à proteção à biodiversidade; Ofensa ao Direito Humano à Saúde: risco de contaminação por mercúrio; proliferação da malária; ausência de estudos sobre qualidade da água; Ofensa ao direito à alimentação segura, trabalho, acesso à terra e moradia adequada; Agressão ao Patrimônio histórico-arquitetônico (ZAGALLO; LISBOA, 2011, p. 2).

A revolta ocorrida na hidrelétrica Jirau (Rondônia), em 2011, imprimiu maior

visibilidade às violações de direitos humanos, as quais se aprofundaram nos últimos anos

devido aos impactos com a chegada dos empreendimentos hidrelétricos. Os bens públicos

pertencentes ao país, a exemplo dos rios, estão sendo privatizados para acumulação da

riqueza em benefício de poucos. Por outro lado, para os que dependem dessas águas para

sobreviver, restam os impactos causados pelos Projetos de Grande Escala.

Resulta da política energética do governo brasileiro, que prioriza a fonte

hidroenergética na Amazônia, o atendimento aos interesses do capital ao preço da

destruição da vida biótica e do modo de ser e viver da população, sobrepondo-se à

dignidade humana e criminalizando os movimentos de resistência dos trabalhadores e a luta

social.

Embora a luta dos grupos sociais, constituídas em grande parte por populações

ribeirinhas, agricultores, indígenas, pescadores, entre outros, seja caracterizada pelo

governo brasileiro e empreiteiras como obstáculo ao desenvolvimento, possui um sentido

que transcende a condição de violação e degradação, às quais estão diretamente

submetidos, sendo uma luta de toda a sociedade brasileira. Resistência e luta que cobra

dignidade humana e questiona as injustiças e desigualdades; a exploração do meio

ambiente e a racionalidade econômica.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Amazônia ocupa posição de destaque na Divisão Internacional do Trabalho a

partir do término da Segunda Guerra Mundial, como fornecedora de bens primários, no

contexto em que o Brasil aderiu ao projeto capitalista sob a ideologia desenvolvimentista. O

incentivo à industrialização consistia em uma das facetas do desenvolvimentismo,

considerado como meio de superação do subdesenvolvimento. No entanto, no projeto de

industrialização estava delimitada a posição dos países periféricos, produtores de bens de

consumo duráveis e com uma força de trabalho de baixo custo para agilizar a acumulação.

Ademais, visava atender aos interesses da dependente burguesia nacional e internacional,

adquirindo espaço para o projeto capitalista imperialista.

A lógica que prioriza a expansão da geração de energia elétrica na Amazônia tem

demonstrado o quanto as condições de vida dos grupos sociais são afetadas e

secundarizadas frente ao interesse primordial de concretizar o domínio do capital privado

sobre uma questão que é estratégica, que é a questão da energia. Ainda mais sob o

discurso de defesa do meio ambiente, no que consiste o fetiche do desenvolvimento

sustentável.

Desse modo, consideramos que o desvelamento do fetiche do desenvolvimento

sustentável contribui para ruptura com a lógica produtivista; com os imperativos do mercado

em proporção mundial e com a possibilidade de conciliação da preservação do meio

ambiente em um sistema dominado pela ganância e lucro.

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A CULTURA PROFISSIONAL CRÍTICA EM SERVIÇO SOCIAL NA SOCIEDADE

BRASILEIRA SOB O AVANÇO DO CONSERVADORISMO REACIONÁRIO: as tensões e

desafios entre o horizonte do Estado de Bem-Estar e a necessidade histórica da

emancipação humana

Marina Maciel Abreu12

RESUMO: Aborda-se a formação da cultura profissional crítica em Serviço Social no Brasil, no âmbito do projeto profissional crítico desde o final dos anos 1970, hoje inflexionado pelo aprofundamento da questão social e fortalecimento do conservadorismo reacionário na sociedade e na profissão. Destacam-se elementos histórico-conceituais a partir do movimento de reconceituação da profissão no país; e apontam-se duas direções societárias desse processo: o horizonte do Estado de Bem-Estar e a necessidade histórica da emancipação humana. Indicam-se tensões e desafios pertinentes ao avanço da cultura profissional crítica emancipatória tendo a intervenção profissional como dimensão definidora.

Palavras-chave: cultura profissional do Serviço Social, emancipação humana, conservadorismo reacionário, educação popular.

ABSTRACT: It addresses the formation of critical professional culture in Social Work in Brazil within the framework of critical professional project since the late 1970s, today inflexed by the deepening of the social question and strengthening of reactionary conservatism in society and profession. Historical-conceptual elements stand out from the movement of reconceptualization of the profession in the country; and two societal directions of this process are pointed out: the horizon of the Welfare State and the historical necessity of human emancipation. It is indicated tensions and challenges pertinent to the advancement of the emancipatory critical professional culture with professional intervention as defining dimension.

Keywords: professional culture, social work, human emancipation, reactionary conservatism.

1 INTRODUÇÃO

A pretensão neste texto é expor elementos de problematização da cultura

profissional crítica em Serviço Social, no Brasil, no quadro de tensões que se adensam com

12

Doutora em Serviço Social (PUC/SP). E-mail: [email protected]

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o agravamento da questão social desde os anos 1990 e avanço do conservadorismo

reacionário na sociedade e na profissão, que inflexionam a intervenção profissional no

mercado de trabalho e demais dimensões constitutivas da profissão, como totalidade

histórica.

Parte-se de que a intervenção profissional, “dimensão primeira definidora da

natureza e identidade da profissão” (LOPES,ABREU,CARDOSO,2016), e, portanto a

principal referência da formação da cultura profissional, sofre na atualidade profundas

inflexões no mercado de trabalho, reconfigurado pelas transformações societárias sob a

orientação do neoliberalismo, como projeto econômico e como cultura – sociabilidade13

(GRAMSCI,2001) -, hegemonizado, pelo capital financeiro mundializado. São

transformações provocadas principalmente pelas estratégias de “flexibilização” das relações

de produção e trabalho, que impõem a retirada de direitos e acentuam a repressão e a

violência do controle político-ideológico sobre o trabalho e toda a sociedade. Trata-se de

estratégias, mediadas pelo Estado que agravam a questão social, com o aprofundamento

das desigualdades cujo enfrentamento via políticas sociais privilegia a assistência como

principal estratégia e mecanismo de controle político-ideológico da pobreza, hoje principal

espaço de intervenção do Serviço Social. Essas contradições tendem a ser ocultadas

ideologicamente e impõem mudanças culturais, mediante processos interventivos no campo

das práticas educativas nos quais se insere o Serviço Social. Forja-se, assim, uma

conjuntura econômica, política e cultural adversa ao avanço da intervenção profissional sob

a orientação do projeto profissional crítico do Serviço Social - o projeto ético-político

profissional - que se explicita e ganha hegemonia desde final dos anos 1970, em

permanente busca de vinculação às lutas democráticas e emancipatórias das classes

subalternas.

No âmbito da construção do projeto ético-político profissional - impulsionado em

sua origem pelo movimento organizativo e lutas das classes subalternas/trabalhadora, e

outros setores progressistas da sociedade, por melhorias das condições de vida e

democratização das relações entre Estado e sociedade civil, na luta contra a ditadura civil-

militar (1964-1985), assim como pelo avanço do pensamento crítico marxista nas ciências

sociais e a repercussão de processos revolucionários no continente latino-americano em

que a vitória da revolução cubana em 1959 é a maior expressão -, criaram-se,

contraditoriamente, condições objetivas e subjetivas da formação da cultura profissional

13

Cultura como sociabilidade, ou seja, modo de pensar e agir dos sujeitos em suas inserções nas relações sociais sob um determinado padrão de produção e trabalho, enquanto elemento integrante da luta entre hegemonias políticas, como se pode entender com base nas lições gramscianas. (GRAMSCI,2001).

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crítica. Como se sabe, esse projeto emerge no bojo do Movimento de Reconceituação do

Serviço Social na América Latina - deflagrado na segunda metade dos anos 1960 como

expressão do “despertar para questões cruciais no exercício da profissão na sociedades de

capitalismo dependente profundamente desiguais, como as sociedades latino-americanas”

(LOPES, 2016,p.213). Sintetiza um conjunto de esforços coletivos na construção de uma

alternativa profissional crítica adequada às demandas particulares no continente, mediante a

qual esses profissionais adquirem condições para participar de forma consciente na história

do mundo, da profissão e de si mesmo - base da constituição da consciência e da cultura

profissional crítica.

Os recuos democráticos e civilizatórios que marcam as primeiras décadas do

século XXI em todo o mundo, aprofundados no Brasil a partir de 2016 com o golpe

parlamentar-jurídico-midiático através do impeachment da Presidente Dilma Rousseff (2015-

2016) e o atual governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, eleito em 2018, impõem

retrocessos profissionais mediados pelas inflexões que ocorrem em dois planos: nas bases

matérias e subjetivas da produção e reprodução social, que fragmentam e enfraquecem a

organização e lutas das classes subalternas enquanto sujeitos da emancipação; no

recrudescimento da ideologia conservadora neoliberal, como pensamento único,

disseminado em todas as instâncias da vida social e o ataque ferrenho ao pensamento

crítico marxista com ênfase à análise gramsciana, cuja atualidade é inegável para aqueles

que se empenharam e se empenham “na crítica radical da sociedade burguesa e nos

processos práticos-políticos de libertação nacional, de luta anti-imperialista e construção

socialista.” (NETTO, 2012,p.7).

Nestas indicações sobressaem-se dois eixos, a partir dos quais este texto está

estruturado. O primeiro eixo traz elementos histórico-conceituais configuradores da

formação da cultura profissional crítica no Serviço Social como questão na atual conjuntura,

cujas medições apontam para duas direções societárias que consubstanciam tendências da

cultura profissional14, identificadas entre o horizonte do Estado de bem-estar, portanto, no

limite da emancipação política; e, a necessidade histórica da emancipação humana –

culminância de uma nova ordem societária alternativa, contraposta à ordem do capital. O

segundo eixo recoloca atuais condições da intervenção profissional no mercado de trabalho,

cuja ênfase na assistência, em detrimento da saúde e previdência que formam o tripé do

tardio sistema de seguridade brasileiro -, tende a reforçar a individualização e a

despolitização da questão social e dos sujeitos envolvidos em contraposição à teleologia da

14 Em trabalhos anteriores (ABREU,2018; LOPES &ABREU, 2018) discute-se as tendências da

cultura profissional, demarcadas entre a cultura da assistência, do direito e a cultura crítica emancipatória.

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intervenção profissional orientada pelos valores ético-políticos orientadores do código de

ética profissional de 1993 que aponta para a perspectiva emancipatória.

2 CULTURA PROFISSIONAL NO SERVIÇO SOCIAL: elementos histórico-conceituais

O nexo ideologia/política/economia, núcleo formador da cultura/sociabilidade se

impõe como eixo importante para pensar a cultura profissional em Serviço Social, cuja

intervenção no enfrentamento de sequelas da questão social, como dito, é mediada e realiza

mediações no movimento contraditório das classes sociais na formação da cultura.

Seguindo esse ponto de vista, a intervenção profissional desde sua origem

constitui-se como atividade de natureza educativa vinculada às estratégias de controle

político-ideológico pela via da persuasão tendo em vista a difusão/inculcação ideológica por

meio de ações de ordem material e ideológica em espaços de vida e trabalho de segmentos

das classes subalternas diretamente envolvidos nos processos interventivos e, assim, incide

na reprodução física e subjetiva desses segmentos e na própria constituição do Serviço

Social como profissão. A intervenção profissional inscreve-se, portanto, no campo das

práticas sociais formadoras de subjetividades e condutas individuais e coletivas, na luta de

hegemonias políticas, na medida em que, como acentua Gramsci (1999,p.399), “toda

relação de „hegemonia‟‟ é necessariamente um relação pedagógica(...)”.

A constituição da cultura profissional crítica em Serviço Social, reafirma-se, tem

como referência histórica a explicitação e conquista da hegemonia do projeto profissional

crítico no final dos anos 1970, que representa o acúmulo do debate acadêmico-profissional

e da articulação de forças dos assistentes sociais de todo pais, mobilizados incialmente pela

Associação Nacional de Assistentes Sociais (ANAS), Sindicato Nacional, antes Comissão

Executiva Nacional de Articulação das Entidades Sindicais e Pré-Sindicais (CENEAS) no

impulso do movimento do novo sindicalismo de cunho classista e anticapitalista dos

trabalhadores brasileiros e de movimentos organizativos urbanos e rurais que eclodem

naquela conjuntura. Nos anos 1980 esse processo avança com a criação do Partido dos

Trabalhadores (PT), da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Movimento dos

Trabalhadores sem Terra (MST), a mobilização pelas eleições diretas para Presidente da

República e o processo constituinte que culmina com a promulgação da Constituição

Federal, em 1988, em que muitas reivindicações da classe trabalhadora foram incorporadas

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como direitos15. Apontava na sociedade brasileira “a perspectiva de construção de uma nova

sociedade, no bojo do processo de busca de resposta pelas classes subalternas aos

problemas históricos do país, que para muitos militantes e estudiosos, colocara-se como

possibilidade concreta” (ABREU; LOPES,2004); São processos que representaram fortes

referências no movimento de autocrítica e construção do projeto profissional crítico do

Serviço Social no Brasil e da cultura profissional.

Dois eventos simbolizam esse momento de ruptura com projeto profissional

tradicional conservador sob a influência e dependência teórica do Serviço Social norte-

americano. São eles: O III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (IIICBAS/1979) é

conhecido como o “Congresso da Virada; e a XXI Convenção da Associação Brasileira de

Ensino do Serviço Social, então ABESS, hoje ABEPSS. Esses processos marcam o

redirecionamento do movimento de reconceituação no país, antes, em primeiro momento,

atrelado ao tecnicismo para atender demandas do projeto de modernização conservadora

da ditadura militar, portanto em direção contrária a formas radicalizadas de ruptura ao

projeto tradicional como se encaminhavam em outros países do continente, entre os quais

são exemplares as experiências na Argentina, Uruguai e Chile. Nesses países o processo

de crítica e renovação apontava, como assinala Acosta (2014) para mudanças radicais16 das

bases de sustentação sócio-ocupacional (ou seja, o lugar na divisão sociotécnica do trabalho), assim como também os supostos teóricos e meta-teóricos nos quais se fundamentava o Serviço Social até esse momento (que então passava a ser chamado de „tradicional‟). Esta pretensão de refundar, sobre novas bases, o Serviço Social, expressou-se até na mudança do nome do Serviço Social, que passou a ser chamado de „Trabalho Social‟. (ACOSTA,2014,p.182).

A direção ético-política do projeto profissional crítico brasileiro encontra-se

sintetizada no Código de ética profissional/1993, cujos princípios fundamentais indicam

balizamentos importantes para a análise da cultura profissional crítica a partir da

15

Tais processos apontavam na sociedade brasileira “a perspectiva de construção de uma nova sociedade, no bojo do processo de busca de resposta pelas classes subalternas aos problemas históricos do país, que para muitos militantes e estudiosos, colocara-se como possibilidade concreta” (ABREU; LOPES,2004); portanto, em sentido contrário à tendência regressiva do movimento operário nos países centrais, duramente atingidos pelo aprofundamento da crise mundial do sistema capitalista 16

Essa tendência de renovação profissional Acosta (2014) com base em Neto (2011) fora interrompida “violentamente pela emergência das ditaduras militares dos anos setenta nos países onde o processo de mobilização político-social estava mais avançado (Chile, Argentina, Uruguai), fazendo parte de uma estratégia contrarrevolucionária mais ampla promovida pelos EUA. O caso do Brasil é muito diferenciado, em razão de a ditadura ter começado precocemente (em meados dos anos sessenta), tendo se constituído em um ensaio da solução “contrarrevolucionária preventiva”, por parte do imperialismo dos EUA, para enfrentar o processo de crescente mobilização social. (NETTO, 2011).

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intervenção, dentre os quais o destaque para os seguintes: “reconhecimento da liberdade

como valor ético central e das demandas políticas a ele inerentes- autonomia, emancipação

e plena expansão dos indivíduos sociais”; “defesa do aprofundamento da democracia,

enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida”;

“posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de

acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, como a gestão

democrática”; “opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de

uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero.” (CFESS,

2001). Esses princípios desdobram a questão da emancipação em dois planos distintos: em

relação à conquista da emancipação política e à conquista da emancipação humana. Tem-

se que a emancipação política no limite da conquista dos direitos, não é para Marx “a última

forma de emancipação humana, mas é a última forma de emancipação (...) no interior da

sociedade mundial, até aqui” (MARX,2010,p. 41), corresponde à última forma da

emancipação no marco histórico da democracia burguesa, cuja expressão mais avançada é

o padrão societário do Estado de Bem-Estar, sustentado no fordismo/keynesianismo, no pós

Segunda Guerra Mundial, vigorou durante os chamados 30 anos “gloriosos” (1945/1975),

quando se esgotam as condições históricas de sustentação desse padrão. Segundo Marx

(2010, p.54), toda a emancipação política é “a redução do homem, por um lado, a membro

da sociedade civil, a indivíduo egoísta independente; por outro lado, o cidadão, pessoa

moral.” Nessa condição, a classe trabalhadora em seu processo de organização e luta

contraposta a ordem do capital pode constituir-se força social e política e almejar a

emancipação humana, como projeto de superação das condições materiais e subjetivas da

ordem do capital e instauração da uma nova ordem societária, na qual será consumada a

emancipação humana

Só quando o homem individual real retoma em si o cidadão abstrato e, como homem individual – na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais -, se tornou ser genérico; só quando o homem reconheceu e organizou as suas „forces propres‟ como forças sociais, e, portanto, não separa mais de si a força social na figura da força política–[é] só então [que] está consumada a emancipação humana.(MARX, 2010,p.54).

Em tese tais perspectivas representam direções do projeto ético político profissional

e refletem processos concretos em curso na sociedade, traduzindo compromissos e horizontes

diferenciados da intervenção profissional no movimento histórico. Uma direção demarca os

compromissos profissionais com as lutas das classes subalternas no âmbito da defesa dos

direitos civis, sociais e políticos, da democracia e justiça social, atualmente, como dito, centradas

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na luta pelo direito a assistência, tardiamente no horizonte a experiência do chamado Estado de

Bem-Estar, muitas vezes, apresentada como o fim último da intervenção profissional. A outra

direção afirma o compromisso profissional com o fortalecimento das lutas das classes subalternas

na perspectiva da superação da ordem burguesa e construção de uma nova sociedade e

conquista da emancipação humana, que para alguns intelectuais, contrariando a direção apontada

no código de ética profissional, significa o superdimensionamento da função histórica da profissão

na sociedade.

Entretanto, na conjuntura atual, o agravamento da questão social com o

aprofundamento das desigualdades, como dito, tendo a assistência como principal

estratégia de enfrentamento e mecanismo de controle político-ideológico da pobreza, e

principal espaço de intervenção do Serviço Social, justifica-se a preocupação de pesquisa

sobre a formação da consciência e cultura política dos assistentes sociais a partir dessas

direções, nas condições atuais da intervenção profissional.

3 INDICAÇÕES DE TENSÕES E DESAFIOS DA CULTURA PROFISSIONAL CRÍTICA

EMANCIPATÓRIA: a intervenção como referência de análise

A cultura profissional gesta-se no cotidiano contraditório da intervenção profissional

no emaranhado de uma multiplicidade de situações práticas mediante as quais o/a

assistente social se move no campo minado da política e da ideologia na concretização de

diversos e contraditórios projetos interventivos voltados ao atendimento de necessidades

das classes sociais, embora o público alvo seja sempre amplos e crescentes segmentos

pauperizados da classe subalterna. Nesses projetos o/a assistente social se insere pela

mediação do mercado de trabalho que expressa

necessidades sociais, interesses e condições de trabalho, historicamente determinadas, das instituições empregadoras que orientam o exercício profissional dos assistentes sociais como seus funcionários, sejam essas instituições públicas privadas, de natureza mista, ou as chamadas ONGs.” (LOPES, ABREU,2018).

A formação da cultura profissional crítica como já indicado no item anterior é

impulsionada por dois vetores que se entrecruzam e se confundem na dinâmica da intervenção

profissional entre a luta pela defesa, garantia e ampliação de direitos e a perspectiva da

construção de nova e superior cultura no processo de superação da ordem capitalista fundada na

necessidade histórica da emancipação humana. Expressam a capacidade do profissional de

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inserção crítica nos processos concretos enquanto intelectuais profissionais e a consciência de

classe como trabalhadores/as assalariados, explorados.

A partir dessas direções, demarcam-se tendências da cultura profissional crítica entre

a cultura profissional do direito no Serviço Social que tem suas bases e ganha força no meio

profissional com a participação ativa dos assistentes sociais no processo constituinte e na

luta pela garantia de direitos conquistados na CF/1988, com ênfase nos valores de justiça

social e democracia liberal; e a cultura profissional crítica na perspectiva da emancipatória,

com ênfase nos processos concretos de organização, luta e resistência da classe

trabalhadora, como sujeito da emancipação.

Sem dúvidas, a primeira tendência se sobressai desde a Constituição/1988, com o

fortalecimento do ideário da justiça social e da democracia participativa, e o avanço dos

desdobramentos legais-institucionais e jurídicos na garantia dos direitos conquistados, que

contribuem para fortalecer e ampliar a intervenção profissional no campo sócio-jurídico e

também consubstanciam o discurso e práticas de defesa do direito e da cidadania, nas

diferentes áreas de atuação. Essa tendência deriva do processo histórico da profissão no

país, que vem se consolidando nas últimas quatro décadas, em vinculação à luta dos

trabalhadores por direitos e liberdades democráticas, marco histórico no movimento de

construção do projeto profissional crítico (este projeto, embora eivado de polêmicas, ainda

que tenha a assistência em seu núcleo central, vincula a profissão aos interesses e lutas da

classe trabalhadora e à necessidade histórica de emancipação das classes, na

especificidade da sociedade brasileira. (LOPES&ABREU,2018). Assim, contraditoriamente,

embora, as lutas no âmbito do direito à seguridade, com centralidade na luta ao direito à

assistência em um contexto de ampliação da pobreza, sejam legítimas e necessárias frente

ao aprofundamento das desigualdades sociais, mantém a reprodução dos trabalhadores

fora das relações salariais e reforça a dependência material e a submissão político-

ideológica em relação às condições de subsistência física. Contribui, assim, para a produção

de um modo de vida sustentado na exploração e na dominação de classes que favorece a

reatualização da histórica cultura profissional da assistência – leito da construção da

identidade tradicional do Serviço Social. Essas questões tensionam a formação da

identidade profissional como profissionais críticos, que tende a se manter arraigada a uma

consciência do que é possível na sociedade capitalista, ou seja, uma maneira de ser “de

homens reprimidos pelas condições alienadas e reificadas da sociedade de mercado”.

(MÉSZÁROS,2002,p.1008).

A cultura profissional da assistência, está assim imbrica-se na cultura profissional

do direito e transmuta a ordem de prioridade dos termos, na medida em que a luta pelo

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direito se converte em luta pela assistência como direito. Tende a ser superdimensionada

no âmbito profissional por força da sua centralidade no sistema de seguridade e ênfase da

atuação do assistente social em relação aos demais profissionais que integram as de

implementação do sistema único de assistência social (SUAS). Nessa tendência prevalece a

noção do pobre em detrimento do sujeito trabalhador, que depende da política de assistência para

sua reprodução e de sua família. A assistência a partir da Constituição Federal de 1988, como

dito, institucionaliza-se como direito social, a ser garantido a “todos que dela necessitar”

(BRASIL,CF/1988) e como “dever do Estado e da sociedade.” (BRASIL,LOAS,1993), ao

mesmo tempo em que, sob tal demarcação, dissimuladamente, reatualiza-se e se fortalece

o assistencialismo, pela mediação da sociedade civil; embora metamorfoseado em direito,

só pode ser assistencialismo, robustecido pela reiterada “filantropia

estatal.”(OLIVEIRA,1998).

A necessidade histórica da emancipação das classes sociais, como missão

histórica das classes subalternas, trabalhadora, requisita o fortalecimento de uma pedagogia

própria - de resistência e emancipatória – necessária na formação política e ideológica dessa

classe na formação de uma nova superior cultura, em que a educação popular vem sendo

retomada como estratégia. Entretanto, há que se mencionar, como acentua Oliveira (2003),

o enfraquecimento dessas classes enquanto como força política e social na medida em que

foi erodida pela reestruturação produtiva e pelo trabalho abstrato-virtual, ao mesmo tempo

em que perde força a perspectiva emancipatória dos trabalhadores e toda a humanidade

com a derrocada das experiências socialista no século XX, notadamente a da União

Soviética no final dos anos 1980 e avançam as forças conservadoras e do retrocesso em

todo o mundo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão sobre a formação de cultura profissional remete a luta pela

emancipação, embora um eixo central polêmico no âmbito do projeto ético político

profissional, ainda está a ser aprofundado a partir do pensamento crítico marxista, como

necessidade da construção de estratégias de resistências na sustentação desse projeto no

enfrentamento do avanço do conservadorismo na sociedade e na profissão.

Há que se considerar, portanto, que a formação da cultura profissional crítica é um

processo complexo que reflete as contradições e a necessidade de resistência e

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sustentação do projeto profissional crítico nucleado na intervenção na relação orgânica com

a formação e demais dimensões constitutivas da profissão como totalidade histórica: a

produção de conhecimento e a organização política (LOPES, ABREU, CARDOSO, 2016);

processo que traduz os nexos político-ideológicos que a profissão estabelece com os

movimentos contraditórios das classes sociais na formação da cultura como parte da luta

pela hegemonia.

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