Conservadorismo e Radicalidade Na Poesia de Gregorio de Matos

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ARTIGOS Conservadorismo e radicalidade na poesia de Gregório de Matos Luiz Koshiba UNESP-Araraquara As unanimidades são raras em qualquer lugar. Entre nós há o exem- plo de Carlos Drummond de Andrade. Mesmo assim, não em relação a toda sua obra . No passado houve algumas que se revelaram passa- geiras. Duraram algum tempo e, logo depois, uma nova geração de críticos veio para demolir mitos ,que pareciam indestrutíveis . Não esque- çamos dos poetas desprezados em seu tempo . Num certo dia eles são descobertos . E o que parecia fugaz e malogrado passa a ser, de um ângulo diferente, uma obra fulgurante. Há casos em que o acordo entre críticos parece definitivamente impossível. Nesta categoria parece que se encontra Gregório de Matos . Em nossas Letras, nenhum poeta dividiu tão radicalmente a crítica. As controvérsias são antigas e pro- fundas . As avaliações, excludentes entre si. Houve tempo em que, ele foi considerado a "mais perfeita encar- nação do espírito brasileiro" (1). É a opinião de Silvio Romero. Que (*) — O presente texto é adaptação de uma parte de nossa dissertação de Mestrado, feita sob a orientação do Prof. Fernando Novais e apresentada em 1981, na USP.

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    Conservadorismo e radicalidade na poesia de Gregrio de Matos

    Luiz Koshiba UNESP-Araraquara

    As unanimidades so raras em qualquer lugar. Entre ns h o exem-plo de Carlos Drummond de Andrade. Mesmo assim, no em relao a toda sua obra . No passado houve algumas que se revelaram passa-geiras. Duraram algum tempo e, logo depois, uma nova gerao de crticos veio para demolir mitos ,que pareciam indestrutveis . No esque-amos dos poetas desprezados em seu tempo . Num certo dia eles so descobertos . E o que parecia fugaz e malogrado passa a ser, de um ngulo diferente, uma obra fulgurante. H casos em que o acordo entre crticos parece definitivamente impossvel. Nesta categoria parece que se encontra Gregrio de Matos . Em nossas Letras, nenhum poeta dividiu to radicalmente a crtica. As controvrsias so antigas e pro-fundas . As avaliaes, excludentes entre si.

    Houve tempo em que, ele foi considerado a "mais perfeita encar-nao do esprito brasileiro" (1). a opinio de Silvio Romero. Que

    (*) O presente texto adaptao de uma parte de nossa dissertao de Mestrado, feita sob a orientao do Prof. Fernando Novais e apresentada em 1981, na USP.

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    no a mesma de Jos Verssimo . Para este, Gregrio de Matos "pelo seu gnio maldico e satrico, pela irritao que deixara Portugal, pelo desapego da terra, onde encontrava deslocado e contrafeito, e qual no cuidou de afeioar-se, achou-se naturalmente mal e contrariado nesta, e em oposio a ela . Mais de trinta anos em Portugal lhe tornaram insuportvel a mesquinha vida da sua mesquinha Bahia" (2) .

    Como pode algum ser a "encarnao do esprito brasileiro" se pri-mava pelo "desapego da terra" " qual no cuidou de afeioar-se"? Slvio Romero e Jos Verssimo no podem estar certos, ao mesmo tempo .

    Hoje as coisas no so diferentes. Na opinio de Haroldo de Campos, Gregrio "demonstrou uma aguda viso funcional da tcnica permutatria do Barroco, da matriz aberta dessa tcnica, recombinando livremente, segundo os interesses de recriao em portugus, versos-membros de diferentes sonetos gongorinos" (3) . Compare-se este elogio percia gregoriana a este parecer de Paulo Rnai, para quem a poesia de Gregrio de Matos pode ser dividida "em parte expressiva e parte decorativa, incluindo-se na segunda todos os poemas no inspirados por sentimentos pessoais, mas provocados por 'motivos'. Tais os sonetos `por consoantes que se deram por forados', isto , com rimas impostas; as dcimas em que se glosam motes alheios, habilidade em que Ore-grio se mostrava particularmente forte; os poemas paralelos para defen-der teses opostas, mantendo-se nelas as mesmas rimas, as composies baseadas num conceito ou trocadilho; as poesias de construo artificial; as proezas repentistas; afinal, as obras de manifesta imitao . O res-tante no d, evidentemente, material para um grande lrico, tanto menos quanto a parte 'expressiva' tambm est cheia de clichs, jogos verbais, artifcios convencionais" (4) .

    Com quem ficamos? Ou devemos nos conformar com a opinio de Eduardo Portella, para quem existe, no um, mas "vrios Gregrios de Matos"? (5) . O de Slvio Romero, o de Jos Verssimo, o de Haroldo de Campos, o de Paulo Rnai. E assim por diante.

    Romero, Slvio. Histria da Literatura Brasileira, 3a ed., Rio de caneiro, Jos Olympio, 1943, T. II, p. 31.

    Verssimo, Jos. Histria da Literatura Brasileira, 3a ed., Rio de Paneiro, Jos Olympio, 1954, p. 77.

    Campos, Haroldo de. A Arte no Horizonte do Provvel, So Paulo, Perspectiva, 1969, p. 209.

    Rnai, Paulo. "Um Enigma de nossa Histria Literria: Gregrio de Matos", in Revista do Livro, Rio de Janeiro, dez. 1956, p. 65.

    Portella, Eduardo. "Gregrio de Matos Maneirismo e Barroco", in Convergncia, ano 1, n9 2, Rio de Janeiro, 1977, p. 37.

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    Poderamos objetar que se h tantos Gregrios de Matos, ento no h nenhum. Alm disso, se esta multiplicidade apenas manifestao de uma obra catica, desprovida de qualquer princpio unificador, ento ser foroso reconhecer que o discutido poeta baiano uma expresso menor da literatura seiscentista . Um poeta sem muita importncia . Mas da ser necessrio explicar a razo de tamanho barulho, se se trata de um poeta menor. Ainda mais quando esse barulho foi provocado por crticos de grande audincia . E no obscuros crticos de jornais provin-cianos .

    Em nosso trabalho de mestrado opinamos que toda dificuldade vi-nha da contraditria articulao entre uma poesia formalmente revolu-cionria e uma ideologia obediente aos valores estamentais, em confor-midade com o modelo metropolitano. No nos ocuparemos aqui com o primeiro aspecto que foi objeto de demorada reflexo na ltima parte de nossa dissertao de mestrado. Quanto ao aspecto ideolgico, de se recear que a grande maioria da crtica partiu de um pressuposto abso-lutamente discutvel, a saber, a "brasilidade" de Gregrio de Matos . E isso que o far precursor do "nativismo", um poeta sinceramente devotado ao Brasil. A ningum parece ter ocorrido que o sistema de valores sobre o qual repousa sua poesia o vigente em Portugal de seu tempo . Em todo caso, isto que se procura levar a srio neste trabalho. Do nosso ponto de vista, foi e continua um erro fazer de Gregrio de Matos um militante anti-colonialista ou pelo menos anti-lusitano . Em nossa opinio, no nada disso que trata sua obra . certo que, s vezes, o poeta parece tomar a defesa do Brasil, mas essa aparente afeio superficial e jamais fez disso o centro de sua potica.

    Com certeza, nenhum poeta do perodo mesmo depois ofe-receu uma viso to crtica da sociedade colonial quanto Gregrio de Matos. E tambm esse fato iludiu muitos crticos que pretenderam trans-form-lo num revolucionrio. O radicalismo, sem dvida, existe, mas ao contrrio do que se imagina, possui fundas razes conservadoras.

    O leitor de Gregrio de Matos geralmente se desconcerta com a abrangencia de suas stiras. Ele no poupou ningum. O que pode levar concluso de que se tratava do mais perfeito precursor do... anarquismo. Ledo engano . Nem todos os alvos que o poeta atingiu tm o mesmo peso. Indiscutivelmente, a poesia gregoriana passvel de muitas leituras, como j costume falar. A nossa, procura sustentar que h pelo menos dois alvos privilegiados. A posio ideolgica de Gregrio clarifica-se e ganha coerncia pelos argumentos que mobiliza contra esses dois alvos . So eles, o senhoriato colonial e os mulatos Na stira dirigida contra o primeiro, pode-se ter a impresso de que o seu discurso est carregado de intenes anti-aristocrticas . Uma leitura mais

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    atenta mostrar no entanto que o poeta distingue muito bem duas aris-tocracias:

    Fidalgo esclarecido traz longe a descendncia mas fidalgo de influncia sem ter solar conhecido, Fidalgo introduzido enfronhado em fidalguia. (IV, 907) (6).

    Portanto, h para o poeta uma fidalguia "autntica" e outra "inau tntica", isto , que se limita a apropriar-se dos signos exteriores daquela, sem traz-la "por dentro", no prprio sangue:

    Do que passeia farfante mui prezado de amante, por fora luvas, gales, insgnias, armas, bastes, por dentro po bolorento: Anjo Bento. (II, 443) .

    A crtica de Gregrio dirige-se nitidamente aos plebeus travestidos de fidalguia. Quanto a ele prprio julga-se um "autntico" fidalgo, como se l nesta resposta ao Pe. Loureno Ribeiro (7), seu inimigo:

    No sabeis Reverendo Mariola Remendado de frade em salvajola Que cada gota, que meu sangue pesa, Vos poder a quintais vender nobreza? (IV, 804) .

    A auto-incluso do poeta entre os "fidalgos esclarecidos" justifica-se pelos "quintais de nobreza" que poder vender cada gota de seu sangue.

    Estes poucos exemplos que poderamos multiplicar so sufi-cientes para atribuir ao poeta um ponto de vista aristocrtico. Da aris-tocracia "verdadeira", claro.

    Porm, logo se coloca o problema de saber, de que "aristocracia verdadeira" se trata. Quem a representa, segundo o poeta? Mais adian-

    As citaes dos poemas sero feitas sempre, salvo indicao em con-trrio, a partir da edio James Amado. Em romano, a indicao do volume, em arbico, a pgina correspondente.

    "Loureno Ribeiro, clrigo e pregador, natural da Bahia, e, segundo se rosnava, mulato, dava-se muito a compor trovas, que cantava nas sociedades ao som da ctara: este homem teve a indiscrio de mofar e desdenhar publicamente dos versos de Gregrio de Matos. Chegou isto aos ouvidos do poeta, que, ofendido da fatuidade do cabrito, resolveu logo tirar a desforra" (Wisnik).

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    te veremos que o poeta refere-se nobreza metropolitana. Por conse-guinte, a poesia gregoriana est ideologicamente filiada a esta ltima, cujos valores adota e expressa em seus poemas . Ao mesmo tempo, so esses mesmos valores que permitem a anlise crtica da realidade co-lonial .

    Obviamente, a poesia gregoriana no se resolve apenas com sati-rizar as falsificaes da fidalguia colonial, para afirmar a autenticidade da fidalguia metropolitana . Sua crtica vai mais fundo . Ela pe em questo o desvirtuamento da ordem estamental na colnia .

    Expliquemos melhor esse ponto . Todos sabem que o sistema de privilgios fundados no nascimento e juridicamente sancionados um pressuposto da sociedade de ordens na Europa Moderna . o que, de resto, garante-lhe a fixidez. Contudo, o abalo dessa fixidez j inquie-tava a aristocracia portuguesa no incio dos Tempos Modernos, como atesta o poema de lvaro de Brito, compilado por Garcia de Rezende no Cancioneiro Geral (1516):

    Por trajos demasiados em que todos sam iguais sam confusos os trs estados, danados, alterados mesteirais em seus usos . Nom devemos ser comuns senam pera Deus amarmos e servirmos, nam sejamos todos uns em ricamente calarmos e vestirmos. Nos outros tempos passados todos queriam viver honestamente, ordenados, compassados cada um em seu valer era contente. Nam havia presunam, nem tomar de melhoria endevida concordada discricam a mais da gente regia por medida.

    Por trs dessa inquietao e da preocupao em restaurar a pu reza da ordem estamental, encontra-se a ao do capital mercantil e a

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    silenciosa presena da burguesia . Gregrio de Matos produz sua poesia a partir do mesmo ngulo ideolgico adotado por Alvaro de Brito . O que distingue o nosso poeta ltimo, a sua mediao colonial. Uma vez compreendido esse fato, os poemas gregorianos podem se transfor-mar numa fonte preciosa para o esclarecimento da natureza da forma-o social da colnia . Acompanhemos Gregrio de Matos para conhecer qual a sua viso da sociedade colonial:

    Sai um pobrete de Cristo de Portugal, ou do Algarves cheio de drogas alheias para da tirar gages:

    Vendendo gato por lebre, antes que quatro anos passem, j tem tantos mil cruzados, segundo afirmam Pasguates.

    Casa-se o meu matachim pe duas negras, e um Pajem uma rede com dous Minas, chapu-de-sol e casas-grandes.

    Entra logo nos pelouros, e sai do primeiro lance Vereador da Bahia, que notvel dignidade.

    J temos o Canastreiro que inda fede a seus beirames, metamorfsis da terra transformado em homem grande.

    (II, 430-31)

    Nestes versos, como em muitos outros, Gregrio parece estar con-vencido da origem mercantil do senhoriato colonial. E, de fato, na Bahia do sculo XVII, boa parte dos senhores de engenho eram ou tinham sido mercadores (8).

    Se quisermos agora identificar as motivaes dessa crtica, notaremos que Gregrio de Matos, tem em vista denunciar o abastardamento da so-ciedade que permite o acesso camada senhorial pela porta do mercado .

    (8) "... da iniciativa de burgueses do trfico tero surgido os primeiros engenhos da Bahia". Frana, Eduardo d'Oliveira. "Engenhos, Colonizao e Cris-tos Novos na Bahia Colonial", separata dos Anais do IV Simpsio Nacional dos Professores Universitrios de Histria, So Paulo, 1969, p. 107.

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    Essa origem mercantil do estamento senhorial da colnia que, aos olhos do poeta, a fonte de toda ilegitimidade, no em absoluto um caso isolado. parte constitutiva da formao colonial. Do mesmo modo que a fora de trabalho escrava, o estamento senhorial era reposto ou ampliado atravs do mercado .

    A poesia gregoriana sugere portanto um curioso relacionamento entre economia mercantil e estamentizao da sociedade . O que em linhas gerais no estranho aos hisotriadores . Como disse Florestan Fernandes, a "simbiose entre grande plantao, trabalho escravo e explorao colo-nial" explica a "revitalizao do regime estamental" nas colnias (9). Ou ento, nas palavras de Gorender: o escravismo colonial "nasce e se desenvolve com o mercado como sua atmosfera vital" (10) . Contudo, Gregrio de Matos permite ir alm dessas constataes familiares . Ve-jamos a formulao que permitem os seus poemas.

    Segundo Fernando Novais, a colonizao como desdobramento da expanso ultramarina europia, consistiu no trnsito da circulao para a produo de mercadorias . Portanto, a colonizao supera o carter mercantil da expanso e, ao mesmo, o preserva . O papel estratgico que a desempenha o capital mercantil pode ser medido pela importn-cia crucial do trfico negreiro que, em sua opinio, explica a escravi-do africana (11) . No obstante a forma mercantil de aquisio do escravo, na rbita da produo, ser inevitvel a tronsformao da camada dominante num estrato marcadamente, mas no exclusivamente, senhorial. Expliquemos melhor, com apoio em Gorender que afirma: "quanto mais acentuado o carter mercantil de uma economia escra-vista, o que se deu sobretudo com as colonias americanas, tanto mais forte a tendncia a extremar a coisificao do escravo" (12). Esta obser-vao nos faculta imaginar que, no limite, a economia mercantil condu-ziria coisificao absoluta do escravo. Hiptese cmoda para mostrar que, nesse caso, no haveria senhor, posto que no se pode ser senhor de coisas . Considerado mero instrumento de produo inerte, ao proprie-trio do escravo seria mais adequado chamar de empresrio. Assim, a peculiar combinao da economia mercantil e estamentizao, imprimir na camada dominante a duplicidade senhorial e empresarial.

    Por mais legtima que fosse a hiptese acima, a economia mercantil jamais converteria o escravo numa coisa, de forma absoluta. Apesar

    Fernandes, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1968, p. 22.

    Gorender, Jacob. O escravismo colonial, So Paulo, Afica, 1978, p. 168.

    Novais, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, So Paulo, Hucitec, 1979, p. 92 e ss.

    Gorender, J. op. cit., p. 68.

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    de tudo, o escravo continuar um exemplar da espcie humana . Por esse motivo, a condio senhorial tender a predominar na esfera cia produo . Contudo, o mercado como "atmosfera vital" vale tambem para o senhoriato colonial. Ele tem em vista a produo de valores-de-troca, de mercadorias e no mercado comparecer normalmente como con-sumidor. Senhor na rbita da produo e empresrio na esfera da cir-culao, tal a duplicidade da camada dominante acima aludida .

    Podemos agora retomar Gregrio de Matos para formular com pre-ciso, com base em seus poemas, a natureza da formao social da colnia. Sua peculiaridade consiste no fato de ser atravessada por um eixo contraditrio que explica o seu carter ao mesmo tempo estamenti-zado e fluido: o senhoriato, em ltima instncia, produto do capital mercantil. Por isso, o "fidalgo introduzido" de que fala o poeta no final das contas, toda a fidalguia da colnia. Aquilo que para ele no passa de violao de uma ordem social tida como "natural" , na ver-dade, o que especifica a formao social da colnia.

    Conclui-se que a persistncia feudal na metrpole e o escravismo colonial articulam-se de modo simetricamente inverso com o capital mercantil. A primeira tende a dissolver-se ao seu contato, ao passo que o escravismo colonial retira sua fora precisamente da economia mer-cantil. O carter estamentizado abalado no primeiro caso e se refora no segundo.

    O fenmeno que a poesia gregoriana permite vislumbrar o da posio invertida que o capital mercantil ocupa nos dois polos do sistema colonial: na metrpole ele se subordina hierarquia estamental; na col-nia ele a subordina . Conseqentemente, a da metrpole bloqueia sua liberdade de ao e a da colnia condio de sua atuao.

    A relao de subordinao do senhoriato colonial ao capital mercantil bem explcita na stira a Pedro lvares da Neiva, o Pedralves:

    Que se despache um caixeiro criado na mercancia com foro de fidalguia sem nobreza de Escudeiro! e que a poder de dinheiro e papis falsificados tanto mecnico vil que na ordem mercantil so criados dos criados! (W, 907)

    Nestes versos est dito com toda preciso: a condio senhorial no colnia a de "criados dos criados" da "ordem mercantil". O senhoriato colonial traz a marca da servido ao capital mercantil.

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    Encarada da perspectiva de anlise aqui adotada, a poesia grego-riana assume o carter da mais intransigente defesa do antigo regime social portugus . Tal afirmao implica, por outro lado, que essa defesa s ganha sentido como reao contra uma nova ordem social que est em curso e que subverte a antiga . Portanto, o objetivo ltimo de sua crtica a "ordem mercantil", isto , a sociedade burguesa que carrega em seu ventre. Em suma, um novo princpio de estratificao social. justamente nesse forte sentimento antiburgus que reside o essencial do seu radicalismo . A crtica gregoriana est longe de ser a expresso da natural rebeldia que Fritz Teixeira de Salles enxergou na intelectua-lidade de "classe mdia" (13) . O aristocratismo anti-burgus de Gre-grio de Matos est mais prximo, se que no o prenuncia, do "pen-samento conservador" de que fala Mannheim (14) .

    Enganaram-se igualmente os crticos que no enxergaram em Gre-grio de Matos mais do que a denncia da explorao colonial e, em conseqncia, o despontar do sentimento nacional. A colnia foi o lugar em que melhor se explicitaram as conseqncias de uma economia que operava sob o signo da troca mercantil, sem inibies que a ela eram impostas no contexto social metropolitano . De certo modo, a co-lnia expe, com maior visibilidade do que a metrpole, os traos mais caractersticos da sociedade burguesa em gestao .

    Em Gregrio de Matos, a denncia da explorao colonial no , automaticamente, expresso da defesa da colnia contra a metr-pole. Atravs dela, o poeta tem na mira a prpria burguesia . No h nisso um tomo de "sentimento nacional". O poeta joga tudo na de-fesa a sim dos privilgios aristocrticos. No mero acaso que Gregrio pudesse ter dito, certa vez, estes versos:

    Se hoje vos fala de perna quem ontem no pode ter rama, de quem descender mais do que a da taverna: tende pacincia interna,

    Salles, Fritz Teixeira de. Poesia e protesto em Gregrio de Matos, Belo Horizonte, Interlivros, 1975: "Gregrio de Matos seria uma espcie de pre-cursor das ideologias radicais dos grupos intermedirios, aquele comportamento estribado na atitude de revoluo permanente. A classe mdia, em pases subde-senvolvidos, principalmente nos grupos intelectuais, tende, como se sabe, para posi-es de radicalidade, tanto de direita como de esquerda" (p. 147).

    Mannheim, Karl. "El Pensamiento Conservador", in Ensayos sobre Sociologia y Psicologia Social, trad. esp., Mxico-Buenos Aires, FCE, 1963, pp. 84-183.

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    que foi sempre D. Dinheiro, que com poderes iguais faz iguais aos desiguais e Conde ao vilo cad'hora. (II, 473).

    Que crtica mais radical se poderia fazer burguesia? certo que o poeta aceita como "natural" e legtima, a desigualdade; em compensao, sobre esse pressuposto aristocrtico, ele pde denunciar com mximo rigor, a exigncia da igualdade (formal) como imperativo da troca mercantil, idia que ser no futuro de grande valia para a burguesia revolucionria.

    Todo poder senhorial repousa sobre o trabalho escravo. Se Gre-grio contesta a legitimidade do primeiro, nem por isso faz o mesmo com o ltimo. No se discute a legitimidade da escravido. Em alguns momentos ele pode at iludir, como nestes versos:

    Contados so, os que do a seus escravos ensino, e muitos nem de comer, sem lhes perdoar servio. (I, 20).

    ou nestes poemas em que fala pela cidade da Bahia: Pois no que toca a guardar dias Santos, e domingos: ningum vejo em mim, que os guarde, se tem, em que ganhar jimbo. Nem aos mseros escravos do tais dias de vazio, porque na lei do interesse preceito proibido. (I, 17).

    Um pouco mais de ateno e verifica-se que o que est em questo a impiedade senhorial governada pela "lei do interesse". . . mer-cantil. um recurso a mais para atingir os mercadores-fidalgos da co-lnia. Nada mais do que isso. Sua poesia est longe, muito longe, de prenunciar o abolicionismo. Outra coisa a sua posio face aos mulatos . A mesma virulncia satrica contra o senhoriato colonial est presente nos poemas contra eles. Tambm nesse caso trata-se de reao contra a violao da norma estamental. Reencontramos assim a mesma defesa apaixonada da ordem estamental, a mesma fria contra o seu abastardamento.

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    Se a fidalguia local falsificada, no polo oposto o mulato falsi-fica o negro escravizado. Num e noutro caso, a ilegtima ascenso, a quebra da fixidez social. Contudo, apesar da stira a ambos ligar-se mesma motivio bsica, os seus efeitos so ideologicamente opostos. Na crtica ao senhoriato colonial, o poeta atinge a burguesia e, como vimos, chega a ter um inequvoco sabor "progressista". Em relao aos mulatos trata-se de reduzi-los negrido, rebaix-los escravido. Todo seu reacionarismo aristocrtico vem tona . E onde a crtica "nativista" necessariamente tropea e silencia . Pois no parecer enig-mtico a um precursor da nossa nacionalidade ataques to ofensivos aos mulatos? Como produto da miscigenao do branco (europeu) com o negro (africano) o mulato genuinamente "nacional", "brasileiro" e "tro-pical". No entanto, o hibridismo que Gregrio contesta, j que a "miscigenao" fidalgo/mercador, branco/negro, borra as fronteiras das divises estamentais.

    A condio senhorial normalmente acessvel atravs do mercado . A miscigenao branqueada reproduz o escravo como homem livre . Am-bos os meios permitem ao plebeu travestir-se de fidalgo ou ao escravo, de homem livre. Num caso, como noutro, trata-se de burlar as regras de classificao estamental ocultando cuidadosamente a essncia pela aparncia. No estranha que o poeta veja no mercado e na miscige-nao os agenciadores da perverso geral:

    Provo a conjectura j logo ningum dir prontamente como um brinco: Bahia tem letras cinco que so BAHIA: quo dous ff chega a ter, pois nenhum contm sequer, salvo se em boa verdade so os ff da cidade um furtar, outro foder. (I, 10).

    O mercado (furtar) e a miscigenao (foder): os responsveis pelas metamorfoses.

    O mulato obscurece a linha da estratificao que separa o escravo negro do branco livre. Mas no esta remota realidade que inspira seus poemas contra ele . Leiamos este trecho:

    Muitos Mulatos desavergonhados, Trazidos pelos ps os homens nobres Posta nas palmas toda picardia. (I, 3) .

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    curioso: "os homens nobres" apresentam-se como vtimas dos mu-latos tidos como ardilosos. O poeta os percebe numa zona cinzenta, sem regras, onde o domnio estamental cessa de existir e sobre a qual, sem recursos, emudece. A rigidez escravista no permite uma posio in-termediria entre o escravo e o homem livre. Gregrio de Matos tende a identificar o mulato ao negro e este sempre escravo. Esse o ponto de vista do branco. Mas no o do mulato, naturalmente. Sendo forro ele se inclinar pela identidade com a populao livre e branca, cuja ideologia assume. Para se afirmar como tal, perante o branco, pro-cura equiparar-se a ele, embora a aceitao desta pretenso pelo branco implique, para este ltimo, num rebaixamento. O branco no poder man-ter-se na escala social a no ser marcando a sua superioridade perante o mulato. Este deve submeter-se. A afirmao do mulato como homem livre s ter um caminho, portanto. Recusar orgulhosamente a mnima submisso, negando-se a serv-lo no que quer que seja. O mulato exercer a sua "liberdade" atravs da insubmisso ao branco . Do ponto de vista deste ltimo, tal comportamento ser entendido como pura arrogncia. Face ao escravo negro, ele se revelar, ao contrrio, impiedoso. Para afirmar sua branquido. Um condenado morte indultado, a quem, a partir de ento deixa de ser aplicvel a lei dos homens eis como so vistos os mulatos e porque a colnia foi definida como o "paraso dos mulatos", pelos brancos, claro. Basta ler o poema que Gregrio dirigiu contra o Pe. Loureno Ribeiro, vigrio de Pass, para certificar-se da impossibilidade de viver num "paraso" exposto perpetuamente hostili-dade dos brancos:

    Um Branco muito encolhido, um Mulato muito ousado, um Branco todo coitado, um canaz todo atrevido: o saber muito abatido, a ignorncia, e ignorante mui ufano, e mui farfante sem pena, ou contradio: milagres do Brasil so (15) .

    (15) "Gregrio, de fato teve como modelo Gngora nas 'Soledades' e Quevedo em 'El Parnaso Espafiol', sobretudo este ltimo, que foi o filo mais explorado. Herdou de Quevedo, (alm de muitas sugestes, versos e temas) certas expresses tais como o refro 'Milagres do Brasil so' que aparece nas letrillas do poeta espanhol (`milagros de corte son'); ou 'Ponto em boca' por caluda! cala-te boca que o mesmo `Punto en boca' de Quevedo, 'Deus me Guarde' que est no autor espanhol, `Dios me guarde', e outras frmulas mais, como tambm o emprego de muitos vocbulos com acepo estranha nossa e peculiar lngua castelhana" (Spina) .

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    Prega o Perro frandulrio como a licena o cega,

    cuida, que em plpito prega, ladra num campanrio

    Tios, e tias d Congo, se suando a mondongo

    ele s gabos lhe do: Milagres do Brasil so. (W, 790-91) .

    No h razo alguma para se pensar que este era o ponto de vista muito particular do poeta e no uma opinio generalizada .

    O que a poesia de Gregrio ganha ideologicamente de um lado, perde de outro. Toda agudez crtica contra a burguesia, transforma-se agora na identificao estreita do homem branco com a espcie humana. Ao mulato que, sob o domnio dessa iluso, procura apropriar-se dos signos exteriores da condio humana ostentada pelos brancos, o poeta responde nestes termos:

    Carira, que acariais aquele Senhor Jos ontem tanga de guin, hoje Senhor de Cascais: vs, e outras cantigas mais, outros ces, e outras cadelas amais tanto as parentelas, que imagina o vosso amor, que em chamando ao co Senhar lhe dourais suas mazelas.

    Dizei ao Vosso Senhor entre um, e outro carinho, que o negro do seu focinho cor, que no toma cor:

    que d graas a Amor que vos pos os olhos tortos para no ter tais abortos, mas que h de esbrugar mantenha daqui at que Deus venha julgar os vivos, e mortos. (VI, 1320-23) .

    Este poema est intitulado na edio James Amado, "A negra Mar-garida, que acariava hum mulato chamando-lhe senhor com demasiada permisso delle". Dada aquela identidade entre branquido e humani-dade, o poeta negando ao mulato o tratamento equivalente ao do homem livre e branco, recusava ao mulato o reconhecimento de sua humanidade.

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    No bem isso que se espera de um poeta que muita gente consi-dera ainda hoje a "mais perfeita encarnao do esprito brasileiro". Mas uma conseqncia perfeitamente coerente com os postulados aristocr-ticos de sua viso ideolgica . Sem o baixo nvel a que chegou aqui, no haveria, em compensao, aquela denncia da explorao colonial, cuja radicalidade e preciso jamais foi atingida por outro poeta do perodo colonial, possivelmente em toda Amrica.

    Vamos esquecer portanto o "amor ao pas" que supostamente se l na poesia de Gregrio de Matos . Como defensor dos valores aristocr-ticos, o poeta golpeia o mundo burgus . Vejamos mais de perto o que isso significa:

    Que falta nesta cidade? ... Verdade. Que mais por sua desonra? ... Honra. Falta mais que se lhe ponha? ... Vergonha.

    O demo a viver se exponha, Por mais que a fama a exalta, Numa cidade, onde falta Verdade, Honra, Vergonha. (I, 31) .

    Observemos estas palavras: verdade/honra/vergonha . Elas no esto a por acaso . Referem-se a uma escala de valores muito precisa e estreita-mente ligada a uma camada social. Pensemos na definio de sociedade estamental dada por Mousnier . Segundo ele, "uma hierarquia de graus (`estamentos', 'condies') distintos uns dos outros e ordenados no se-gundo a fortuna de seus membros e a capacidade de consumo dos mesmos, nem segundo o papel no sistema de bens materiais, mas de acordo com a considerao, a honra e a dignidade atribudas pela sociedade a posies sociais que podem no ter relao alguma com a produo de bens materiais" (16) .

    Embora se atenha aos dados imediatos da realidade, a definio acima tem o mrito de chamar a ateno para o fato de, na sociedade estamental, a realidade de primeira instncia, no seram as relaes econmicas, porm a sua ordem jurdica. Como precisou Lukcs a esse respeito, "nas sociedades pr-capitalistas, as formas jurdicas devem neces-sariamente intervir de modo constitutivo nas conexes econmicas . No

    (16) Mousnier, Roland. Las Jerarquias Sociales, trad. esp., Buenos Aires, Amarrortu, 1972, p. 19. O grifo meu.

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    h categorias puramente econmicas . . . " (17). Em outras palavras, a esfera econmica no possui aquela autonomia, prpria das sociedades burguesas, em que as classes se orientam segundo seus interesses mate-riais e no segundo consideraes ticas . Do ngulo prprio dos valores estamentais, estas podem assumir carter imperioso que obrigue a re-nncias no plano da vida material. Ora, na colnia, diversamente da ex-pectativa do poeta, os interesses econmicos subordinam inteiramente os valores ticos . Ou simplesmente suprimem seus contedos de esponta-neidade sincera, na medida em que o sistema de valores estamentais supe escalas complementares que regem a nobreza e o Terceiro Estado. Para este, a resignao face ao estado a que pertence o signo da sua mxima sinceridade e honradez . No querer ocupar o lugar que no lhe pertence um lance da virtude mais prezada. Pretender melhorar a prpria sorte por meio da conquista de benefcios materiais supe o abandono das virtudes mais caras que a sociedade de ordens sustenta. Diz a respeito da Bahia o nosso poeta:

    Quem a ps neste socrcio? ... Negcio. Quem causa tal perdio? ... Ambio. E o maior desta loucura? ... Usura.

    Notvel desventura de um povo nscio e sandeu, que no sabe, que o perdeu Negcio, Ambio, Usura. (I,31) .

    Assim, no mesmo poema Gregrio de Matos pe em paralelo dois conjuntos distintos de valores: verdade/honra/vergonha e negcio/ambi-o/usura o da nobreza e o da burguesia. A opo do poeta pelo primeiro conjunto que, contraposto ao segundo, agua-lhe a viso crtica da sociedade colonial que estamos examinando . Se no lugar da "considerao, honra e dignidade" pusermos o primado do interesse econmico imediato, mercantil, teremos exatamente "negcio, ambio, usura".

    A conformidade com o estado ser substituda pela rivalidade e com-petio:

    o amor um mortal dio, sendo todo o incentivo a cobia do dinheiro ou a inveja dos ofcios. (I, 22).

    (17) Georg Lukcs, Histoire et Consciente de Classe, trad. fr ., Paris, Minuit, 1960, pp. 80-1.

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    A "cobia do dinheiro" vai transformando o "amor" no seu con-trrio. O predomnio dos interesses mercants, em uma palavra, a eco-nomia de mercado, destaca os indivduos de sua existncia corporativa e instaura o imprio das paixes egosticas. "Todo incentivo" vai para a infinidade de iniciativas individuais, rompendo os laos tradicionais da. solidariedade. Os novos valores que resultam dessa praxis, so ponto por ponto, o inverso daqueles emanados da ordem estamental metropo-litana. Na colnia, mais do que em qualquer outro lugar, essa nova realidade se manifesta em sua plenitude. Por esse motivo, a colnia vista pelo poeta como reflexo invertido (18) da metrpole:

    Entra um destes pela Igreja, sabe Deus com que sentido, e faz um sinal da cruz contrrio a do catecismo. (I, 17).

    diz pitorescamente Gregrio. Num outro poema "Reprovaes" (19) a colnia transforma-se em pura negatividade perante a qual no h lugar para nenhuma das virtudes aristocrticas:

    Se sois homem valoroso, Dizem que sois temerrio, Se valente, espadachim, E atrevido, se esforado.

    Se resoluto arrogante Se pacfico, sois fraco. Se precatado medroso, E se o no sois, confiado.

    Se usais justia, um Herodes, Se favorvel, sois brando, Se condenais, sois injusto, Se absolveis, estais peitado.

    E assim no pode viver Neste Brasil infestado, Segundo o que vos refiro Quem no seja reprovado.

    Este sentimento de tudo estar "fora de lugar" liga-se portanto ao predomnio do capital mercantil; primazia do interesse sobre a honra.

    Wisnik afirma que "na stira de Gregrio a sociedade 'normal', a do homem douto e bem nascido, revirado pela absurda, a dos pasguates instalados no poder, gozando prestgio", "Introduo" aos Poemas Escolhidos de Gregri de Matos, So Paulo, Cultrix, 1976, p. 17.

    Citado a partir de Wisnik, op. cit., 96-99.

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    Da honra concebida pela .nobreza. Esta contraposio mostra que, se a colnia criticada pelo poeta exprime a vitria burguesa, nem por isso a nobreza deixava de ter um projeto prprio, ainda que assistemtico e inexeqvel. Em grandes linhas, observa-se por baixo da poesia gre-goriana a idia de um imprio medieval que no vingou e no qual o Brasil surge como prolongamento de Portugal. A duplicao da formao social portuguesa no Brasil ampliaria o espao do estamento aristocrtico dominante . O aprisionamento da colnia pela burguesia e sua converso em objeto de sua explorao, com vistas . acelerao da primitiva acu-mulao de capital, divergiu profundamente daquele projeto aristocr-tico. Em contrapartida, a clara perspectiva de "classe" assumida por Gregrio, possibilitou perceber a explorao colonial como explorao burguesa. Da a sua superioridade crtica em relao aos "nativistas" que que se limitaram dualidade colnia versus metrpole, portugueses ver-sus brasileiros . Para se ter idia do nvel de penetrao que o ponto de vista de Gregrio propiciou, basta acompanh-lo em suas crticas explorao colonial:

    O Mercador avarento, quando a sua compra estende no que compra, e no que vende, tira duzentos por cento: No ele to jumento, que no saiba, que em Lisboa se lhe h de dar na gamboa: mas comido j o dinheiro diz, que a honra est primeiro e que honrado a toda Lei: esta a justia que manda El-Rei. (I, 7).

    Podemos comear perguntando, como possvel tirar "duzentos por cento" de lucro? E logo observaremos que 'o "mercador avarento" toma o cuidado de "comido j o dinheiro" dizer "que a honra est primeiro", isto , coloca-se sob a proteo da "justia que manda El-Rei". O cerne da poltica mercantilista, essa simbiose de Estado absoluto e economia mercantil, est a traduzida em mido, no varejo. A diferena de preo entre a praa de Lisboa e da Baia, que monta "duzentos por cento" garantida pelo "exclusivo metropolitano", avalisado pelo Estado. Mas no s na diferena de preo que ganha o mercador:

    Deste em dar tanto acar excelente Pelas drogas inteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz Brichote. (20).

    (20) Deste em dar dar em + infinitivo = comeail, principiar (Spina); simples ingredientes que entram na composio das drogas (Amora); brichote designao pejorativa do estrangeiro (Wisnik).

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    A troca de "acar excelente" por "drogas inteis" no o que hoje conhecemos por "troca desigual"? Pois bem, est a, em Gregrio de Matos.

    Todas essas trapaas mercants so impensveis sem uma fora extra-econmica. E sabemos que a explorao colonial na poca Moderna supe a dominao poltica . A burguesia mercantil atua, portanto, aco-bertada pelo Estado metropolitano. E eis que nem isso escapou ao poeta:

    Se dizem, que o marinheiro (21) nos precede a toda Lei porque servio d'El Rei. (II, 435) .

    Agora, a quem serve a explorao? O simplismo "nativista" diria naturalmente que aos portugueses . No esta a opinio de Gregrio de Matos:

    Que os brasileiros so bestas e esto a trabalhar toda a vida por manter maganos de Portugal. (VII, 1595) .

    Trabalhar no Brasil significa trabalhar para os "maganos de Portugal". Isto , aos indivduos de baixa extrao a burguesia plebia . Portanto, trabalhar para o capital mercantil. Para aqueles a quem, segundo a tica aristocrtica, no era lcito o enriquecimento, para aqueles a quem dever-se-ia proibir "tomar de melhoria endevida". Gregrio percebe com clareza que o papel do Brasil no sistema que o determina, o ultrapassa . Por esse motivo, os "naturais" do Brasil so estranhos a si mesmos . So estrangeiros na prpria terra:

    Senhora Dona Bahia, nobre, e opulenta cidade, madrasta dos naturais e dos estrangeiros Madre. (II, 429).

    A crtica gregoriana, radical e notavelmente precisa, no ser mais repetida . Mas essa apenas a metade da histria . Ela no ter desdo-bramentos revolucionrios. No comporta . E esbarramos aqui, novamen-te, nas suas limitaes ideolgicas. Gregrio de Matos est alm e aqum daquilo que a historiografia chamou de "nativismo". Em Gregrio a crtica no contm propostas positivas de ao. O que indica a incapa-

    (21) Marinheiros entenda-se, negociante reinol.

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    cidade da aristocracia metropolitana em propor uma alternativa concreta colonizao burguesa . A sua poesia, sob esse aspecto, est reduzida mera reao defensiva ao avano do capital mercantil, totalmente im-potente para cortar o vo ascensional da burguesia . O poeta no pode ir alm da passividade:

    que o Povo por ser sisudo largue o ouro, e largue a prata a uma frota patarata, que entrando co'a vela cheia e o lastro que traz de areia, por lastro de acar troca! Ponto em boca. (II, 436) .

    Vejamos agora o soneto que ficou conhecido depois de sua recriao musical por Caetano Veloso:

    Triste Bahia! oh quo dessemelhante Est, e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vejo eu j, tu a mi abundante.

    A ti trocou-te a mquina mercante (22) Que em tua larga barra tem entrado, A mi foi-me trocando, e tem trocado Tanto negcio, e tanto negociante.

    Deste em dar tanto acar excelente Pelas drogas inteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz Brichote.

    Oh se quisera Deus, que de repente Um dia amanheceras to sisuda Que fora de algodo o teu capote! (II, 428)

    Toda crtica gregoriana pode ser sintetizada na condenao da colnia como desvio do padro metropolitano, quando deveria ser seu prolonga-mento, semelhante em tudo a Portugal. Em suma, por que o Brasil no outro Portugal? O soneto acima responde . O mundo "trocado pela troca" (troca = transforma) que para Wisnik a chave da stira gre-goriana (23) tambm a chave para se compreender a natureza da colo-

    Trocou-se a mquina mercante trocou-se: com duplo sentido, de comerciar e modificar; mquina mercante: as naus que aportam para comerciar (Wisnik) .

    Wisnik, op.cit., p. 18-19.

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    nizao mercantilista . o predomnio nela, do capital mercantil, o que o torna "dessemelhante". Uma vez estabelecido o controle econmico da colnia pela burguesia, a sua atuao tende a cavar distncias cada vez maiores e intransponveis entre colnia e metrpole. E aqui est a diferena que separa Gregrio dos "nativistas". Ele no pode preconizar a ruptura . Sua crtica est de olho no passado, preconiza a restaurao da unidade perdida . O correto diagnstico no acompanhado por uma proposta anti-colonialista . Por isso, a denncia casa-se com a resignao:

    Tristes sucessos, casos lastimosos, Desgraas nunca vistas, nem faladas, So, Bahia! vsperas choradas De outros que esto por vir mais estranhosos:

    Sentimo-nos confusos, e teimosos, Pois no damos remdios s j passadas, Nem prevemos tampouco as esperadas, Como que estamos delas desejosos.

    Levou-nos o dinheiro a m fortuna, Ficamos sem tosto, real nem branca, Macutas, correo, novelos, molhos: (24)

    Ningum v, ningum fala, nem impugna, E que, quem o dinheiro nos arranca, Nos arrancam as mos, a lngua, os olhos. (25)

    Em essncia, a sua posio a de recusa da sociedade colonial. No mais do que isso. Por esse motivo, algo de trgico insinua-se nessa conscincia formada na interseco de duas sociedades que se tocavam e se repeliam, sem que o poeta pudesse afirmar ou negar inteiramente uma ou outra. Nesse sentido, no seria dscabido aproxim-lo daquilo que para Lucien Goldmann a "viso trgica" (26), visto que a sua poesia funda-se na insolvel contradio entre a sua filiao ideolgica no-breza metropolitana e a sua origem colonial. Gregrio no pode pre-conizar o rompimento colonial sem o risco de perder a identidade ideolgica, enquanto na colnia, o desfigurado princpio da hierarquia estarnental que defende, bloqueia a sua insero . Assim, a crtica radi-cal convive, em sua poesia, com a renncia ao.

    Ficamos sem tosto, real nem branca/Macutas, correo, novelos, molhos -- ficamos sem nada, despojados de tudo; tosto, real, branca e macuta referem-se a moedas, dinheiro de pouco valor (Wisnik)

    Soneto citado a partir de Wisnik, op. cit., p. 44. A respeito ver Goldmann, Lucien, El Hombre y lo Absoluto (Le Dieu

    Cach), trad. esp., Barcelona, Pennsula, 1968.

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    Talvez no se deva ao simples acaso que nos sonetos religiosos em que tematiza a dualidade "culpa/perdo" venha aproximar-se nota-velmente da heresia jansenista . Neste soneto que vamos ler, a esperana da salvao est inequivocamente centrada na graa:

    Pequei, Senhor, mas no porque hei pecado, Da vossa alta clemncia me despido (27); Porque quanto mais tenho delinqido, Vos tenho a perdoar , mais empenhado.

    Se basta a vos irar tanto um pecadck, A abrandar vos sobeja um s gemido, Que a mesma culpa, que vos h ofendido Vos tem para o perdo lisonjeado.

    Se uma ovelha perdida, e j cobrada Glria tal, e prazer to repentino Vos deu, como afirmais na Sacra Histria:

    Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada Cobrai-a, e no queirais, Pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glria. (I, 48) .

    Tudo leva a crer que no poderia ter sido diferente. Como seria possvel admitir a obra como critrio da salvao, se a recusa em agir foi a nica concluso imperiosa de seu pensamento? A sua adeso ao princpio da gratia sola, conforme a divisa jansenista, casava-se perfeita-mente com seu esprito. A heresia existia ao menos como possibilidade. E no se trata apenas de uma especulao . O seu mais virulento ini-migo, o Pe. Loureno Ribeiro, vigrio de Pass, disse do poeta que:

    De Cristo no , seno de herege, tudo, o que se obra, pois nele a heresia sobra, e lhe falta o ser cristo: remet-lo Inquisio j uma vez se intentou. (IV, 788).

    Na sua poesia sacra, contra as concluses de Spina (28), estamos convencidos da presena de um discurso hertico de filiao jansenista. A explcita recusa da atrio e a inequvoca presena da contrio idia-fora do jansenismo no soneto acima, parecem no dar margem

    Na edio 3arnes Amado est: De vossa piedade me despido. Por erro evidente, optou-se aqui pela variante da edio da Academia.

    Ver Spina, S. "Gregrio de Matos", in A Literatura no Brasil, V ed., dir. A. Coutinho, vol. I, Rio de Janeiro, Ed. Sul Americana, 1968, p. 250.

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    a muitas dvidas. Alm disso, o jansenismo como "heresia interna", con-forme a expresso de Mandrou que, sintomaticamente, ele prprio clas-sificou de expresso fronteiria do catolicismo e protestantismo (29), concorda admiravelmente com a tenso dual que atravessa o cdigo potico gregoriano, mas que, em momento algum, se resolve no plano ideolgico. Porm, Gregrio de Matos no era idelogo. Era Poeta. E foi como poeta que superou aquela dualidade. No linguajar popular da colnia Gregrio de Matos encontrou um material ainda virgem a ex-plorar. Era um portugus que comeava divergir do portugus da metr pole. Ao incorpor-lo, Gregrio deu voz aos reais oprimidos pelo capital mercantil. Um portugus de estranha sonoridade ganhou forma. Gregrio de Matos, tal como Dante Alighieri com o dialeto toscano, fundava a lngua portuguesa do Brasil. Sensvel matria indisciplinada e rstica sobre a qual se debruou, descobriu que nada era proibido poesia. Rompe assim com a fixidez das formas lingsticas, coisa que no ousou com a fixidez da ordem social estamental. A nova dico que a poesia ganha em seus experimentos formais rompe com a norma dominante do cdigo, solapando os fundamentos da fala aristocrtica que defendia ideologicamente. E no era a colnia que falava atravs dele, mas nela, as vtimas do capital. Vtimas do seu tempo e do tempo futuro Nisso reside a sua universalidade .

    (29) Mandrou, Robert. La France aux XVIle. et XVIlle. sicles, Paris, PUF, 1967, pp. 159 e segs. Sobre a histria e a natureza do jansenismo ver a exposio sinttica esclarecedora de Delumeau, Jean. Le Catholicisme entre Luther et Voltaire, Paris, PUF, 1971, pp. 156 e segs.