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CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS – COAF: LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL DO PODER DE ATUAÇÃO. RESUMO: O presente trabalho estuda o poder de atuação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) - órgão administrativo criado pela Lei de Lavagem de Dinheiro, que visa coibir a prática do referido delito através de medidas de fiscalização e de cooperação internacional - e a sua conformidade constitucional. Compete ao COAF examinar as operações financeiras sigilosas comunicadas pelas pessoas elencadas no art. 9º da Lei em questão, bem como, se comprovada a ilicitude dessas operações, elaborar um Relatório de Inteligência Financeira, que será compartilhado com as autoridades competentes (Ministério Público e Polícia Federal). Contudo, a discussão, objeto desse estudo, cinge-se quanto à inconstitucionalidade do compartilhamento de dados sigilos entre o COAF e as autoridades competentes sem que haja indícios de crimes. Em outras palavras, a violação à Constituição Federal ocorre no momento em que o COAF envia aos órgãos investigativos dados de operações sigilosas sem a devida constatação da existência de crimes, ou seja, sem que haja uma situação concreta e grave que justifique a quebra de sigilo. A consequência dessa atuação é o desrespeito à garantia constitucional de intimidade, ocasionando uma verdadeira devassa na vida particular do cidadão. Por fim, cumpre referir que as provas - constituídas por essas operações financeiras sigilosas - do eventual processo penal serão consideradas ilícitas, por não terem sidos observados os preceitos constitucionais, bem como serão desentranhadas aquelas provas possivelmente contaminadas. Palavras-chave: Lavagem de Dinheiro. Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Constituição Federal. Provas Ilícitas. INTRODUÇÃO A lavagem de dinheiro consiste num conjunto de operações financeiras que visam incorporar na economia lícita bens e valores provenientes da prática de crimes, tais como extorsão mediante sequestro e tráfico de drogas. Por ser um crime constituído de diversas fases (colocação, estratificação e integração) e que toma proporções internacionais, a lavagem de dinheiro aumenta conforme o avanço da globalização. Ademais, esse delito, na medida em que se criam novas tecnologias, se torna, cada vez mais, de difícil detecção. Desse modo, os países, em cooperação mútua, criaram diversos institutos e mecanismos para coibir essa prática. No Brasil, tem-se o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) como órgão responsável pela prevenção e fiscalização da prática do delito de lavagem. Ao longo desse estudo, será analisado o modo de funcionamento desse Órgão, bem como de que maneira o seu poder de atuação pode extrapolar os limites constitucionais.

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CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS – COAF: LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL DO PODER DE ATUAÇÃO. RESUMO: O presente trabalho estuda o poder de atuação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) - órgão administrativo criado pela Lei de Lavagem de Dinheiro, que visa coibir a prática do referido delito através de medidas de fiscalização e de cooperação internacional - e a sua conformidade constitucional. Compete ao COAF examinar as operações financeiras sigilosas comunicadas pelas pessoas elencadas no art. 9º da Lei em questão, bem como, se comprovada a ilicitude dessas operações, elaborar um Relatório de Inteligência Financeira, que será compartilhado com as autoridades competentes (Ministério Público e Polícia Federal). Contudo, a discussão, objeto desse estudo, cinge-se quanto à inconstitucionalidade do compartilhamento de dados sigilos entre o COAF e as autoridades competentes sem que haja indícios de crimes. Em outras palavras, a violação à Constituição Federal ocorre no momento em que o COAF envia aos órgãos investigativos dados de operações sigilosas sem a devida constatação da existência de crimes, ou seja, sem que haja uma situação concreta e grave que justifique a quebra de sigilo. A consequência dessa atuação é o desrespeito à garantia constitucional de intimidade, ocasionando uma verdadeira devassa na vida particular do cidadão. Por fim, cumpre referir que as provas - constituídas por essas operações financeiras sigilosas - do eventual processo penal serão consideradas ilícitas, por não terem sidos observados os preceitos constitucionais, bem como serão desentranhadas aquelas provas possivelmente contaminadas. Palavras-chave: Lavagem de Dinheiro. Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Constituição Federal. Provas Ilícitas.

INTRODUÇÃO A lavagem de dinheiro consiste num conjunto de operações financeiras que visam incorporar na economia lícita bens e valores provenientes da prática de crimes, tais como extorsão mediante sequestro e tráfico de drogas. Por ser um crime constituído de diversas fases (colocação, estratificação e integração) e que toma proporções internacionais, a lavagem de dinheiro aumenta conforme o avanço da globalização.

Ademais, esse delito, na medida em que se criam novas tecnologias, se torna, cada vez mais, de difícil detecção. Desse modo, os países, em cooperação mútua, criaram diversos institutos e mecanismos para coibir essa prática. No Brasil, tem-se o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) como órgão responsável pela prevenção e fiscalização da prática do delito de lavagem. Ao longo desse estudo, será analisado o modo de funcionamento desse Órgão, bem como de que maneira o seu poder de atuação pode extrapolar os limites constitucionais.

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Para isso, inicialmente, serão abordados os principais aspectos do delito de lavagem de dinheiro, buscando entender as dimensões desse crime e o fato que ensejou a criação do COAF, objeto do presente trabalho. Em seguida, serão estudados a maneira de funcionamento e o poder de atuação do COAF, destacando seu fundamento legal e as prerrogativas que lhe foram conferidas pela Lei. Dentre as prerrogativas legais dadas ao Conselho, a de comunicação às autoridades competentes de operações financeiras sigilosas que apresentem indícios de crimes (art. 15) é o ponto nevrálgico desse estudo. Isso porque, o compartilhamento de dados sigilosos pode ocorrer sem que haja, de fato, indícios de crimes nessas operações, ferindo de morte, portanto, a garantia constitucional de intimidade (art. 5º, X, Constituição Federal). Por fim, se abordará a principal conseqüência, no âmbito do processo penal, dessa violação à Constituição, qual seja o desentranhamento da provas consideradas ilícitas, bem como daquelas que lhes são derivadas. 1 ASPECTOS GERAIS DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO

1.1 BREVE HISTÓRICO DA CRIMINALIZAÇÃO E ASPECTOS DA ECONOMIA GLOBALIZADA

O crime de lavagem de dinheiro, inserido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 9.613/98, consiste em ocultar ou dissimular a origem ilícita dos ganhos e proveitos obtidos pela prática de um delito, com o objetivo de negá-lo, tornando, assim, possível a sua utilização.

Negar o delito anterior “envolve atos complexos, contratos jurídicos, simulações de operações financeiras lícitas, etc, que se destinam a conferir aparência de licitude a bens, direitos e valores provenientes de crime1”. Segundo DE CARLI2, a conduta de negar transgressões ocorre desde os tempos mais primórdios. Veja-se:

Por isso podemos pensar em outro mecanismo de defesa – a racionalização. Desta vez, a defesa está ligada ao uso da razão, para apresentar uma explicação – do ponto de vista da lógica – ou para encontrar uma justificativa – do ponto de vista moral – para uma atitude ou conduta cujos motivos verdadeiros, de alguma forma, são negados. A racionalização, frequentemente, encontra sólido apoio nas ideologias constituídas, na moral comum, na doutrina religiosa, nas convicções políticas, nos fundamentos científicos, etc. Dito de outro modo, aquilo que a criminologia convencionou chamar técnicas de neutralização: formas de racionalização do comportamento desviante que são aprendidas e utilizadas ao lado dos modelos de comportamento e de valores alternativos, de modo a neutralizar a eficácia dos valores e das normas sociais aos quais, apesar de tudo, o delinqüente adere. É bem provável, portanto, que condutas hoje consideradas criminosas sejam utilizadas desde que os homens obtêm ganhos aos transgredirem normas – sociais ou legais. Talvez por isso NAYLOR afirme que a lavagem de dinheiro poderia ser

1 DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de Dinheiro: Ideologia da criminalização e Análise do discurso, p. 75. 2 Ibid., p. 76.

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chamada de “o segundo crime mais antigo do mundo”, se qualquer pessoa no passado pensasse que valia a pena considerá-la crime.

Contudo, a lavagem de dinheiro passou a ser criminalizada apenas no início da década de 80, na Itália e nos Estados Unidos, face às extraordinárias dimensões que o delito alcançou. Conforme CALLEGARI3 “esse crescimento foi consequência lógica do incremento infindável de atividades criminosas geradoras dos fundos objetos de lavagem, em especial o tráfico de drogas”. Prossegue o autor4 afirmando que tal incremento se dá pela atuação dos criminosos, que retiram o dinheiro sujo do país no qual foi produzido e o misturam ao grande volume de dinheiro “quente” e sem nacionalidade que circula eletronicamente pelo mundo, “buscando maior rendimento e segurança, pois se antecipam às mudanças de apreciações de divisas ou fogem da instabilidade política real, imaginária ou induzida”. A despeito da criminalização da lavagem de dinheiro, a autora DE CARLI5 cita a economia global, explicando que a circulação de dinheiro ao redor do mundo “faz com que seja necessário ampliar o campo de observação”, analisando o verdadeiro reflexo do dinheiro ilícito na economia. Ensina a autora6:

Economia global é o termo normalmente utilizado para descrever os efeitos da globalização no campo econômico. Desde a procura pelos menores custos salariais na produção de mercadorias, até os menores controles de proteção ambiental, a economia global é acusada de ter aumentado enormemente a diferença entre os ricos e os pobres, tornando os ricos mais ricos, e os pobres, mais pobres. De qualquer forma, a globalização é uma realidade que não pode ser afastada e, para o bem ou para o mal, afeta as vidas de todos, em formas que não são, muitas vezes, percebidas.

Tomando como base o conceito de economia global apresentado pela autora, conclui-se que essa consiste não só por atividades lícitas, mas também, por atividades ilícitas, uma vez que em um mundo cada vez mais integrado, que dispõe de avançados meios de comunicação e de tecnologias de ponta, “empresários, criminosos, multinacionais, políticos, funcionários do Estado, consumidores, grupos rebeldes e terroristas estão intensamente interrelacionados7”. Da explanação acima, depreende-se o conceito de economia global ilícita8:

Economia global ilícita é um conceito definido por FRIMAN e ANDREAS como o sistema de atividades econômicas internacionais que são criminalizadas pelos Estados nos países importadores ou exportadores dos bens, dos serviços e das práticas financeiras que

3 CALLEGARI, André Luís. Direito Penal Econômico e Lavagem de Dinheiro – aspectos criminológicos, p. 37. 4 Ibid., p. 38. 5 DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de Dinheiro: Ideologia da criminalização e Análise do discurso, p. 66. 6 Ibid., p. 67. 7 Ibid. 8 Ibid.

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são distintas daqueles produzidos, trocados e comercializados na economia global lícita. Normalmente isso inclui substâncias psicoativas (como cocaína, maconha, heroína), o tráfico de espécies em extinção, contrabando, tráfico de pessoas e de migrantes, despejo de lixo tóxico, prostituição, contrabando de armas e lavagem de dinheiro.

Assim, não existem fronteiras entre a economia global lícita e a ilícita, uma vez que os bens e valores oriundos de atividades ilícitas estão misturados aos de origem lícita, tornando, portanto, a lavagem de dinheiro um crime de difícil detecção.

1.2 CARACTERÍSTICAS DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO

O crime de lavagem de dinheiro consiste em introduzir e, após, “misturar” bens e valores oriundos de uma atividade ilícita aos de origem lícita, com o objetivo de, ao final, integrá-los na economia legal. Na doutrina, existem diversas maneiras de dividir e denominar as fases do processo de lavagem. Neste trabalho, será utilizado o modelo elaborado pelo GAFI9, que apresenta o processo dividido em três fases: colocação (placement), estratificação (layering) e integração (integration). Cumpre referir que tal modelo é meramente exemplificativo, a fim de facilitar a elucidação do processo de lavagem pelo qual o dinheiro passa. Todavia, esse modelo poderá não corresponder em alguns casos, pois é impossível abordar todas as maneiras de lavagem de dinheiro, face à sua dinâmica. Feita essa ressalva, passemos à análise de cada fase do processo10. Como etapa inicial da lavagem, temos a “colocação”, na qual ocorre a separação dos ativos ilícitos de sua fonte.

Nessa fase, “o lavador introduz os proveitos do crime no sistema financeiro. Isso pode ocorrer, por exemplo, pelo fracionamento do dinheiro em somas muito menores e, por isso, insuspeitas, que são, em seguida, depositadas diretamente em uma conta bancária11”.

É possível, ainda, introduzir o dinheiro ilícito na economia formal, através da compra de instrumentos monetários (cheques, ordens de pagamento), os quais são, posteriormente, depositados em contas bancárias, ou através da compra de uma apólice de seguro ou de ativos valiosos como automóveis, antiguidades e jóias.

A fase da “estratificação” caracteriza-se pela criação de múltiplas camadas de transações que distanciam, ainda mais, os fundos de sua origem ilegal.

O objetivo é dificultar o rastreamento do dinheiro e a sua ligação com o crime antecedente. “Depois que o dinheiro entrou no sistema financeiro, o lavador efetua uma série de movimentações ou de transformações12”.

Essa etapa pode ser “efetivada por meio da transferência de fundos a várias contas de bancos diferentes, em outros países, mediante o uso de

9 GRUPE D’ACTION FINANCIÈRE. 10 Ibid. 11 DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de Dinheiro: Ideologia da criminalização e Análise do discurso, p. 118. 12 Ibid.

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sociedades fictícias ou pela compra e venda de valores, metais preciosos e bens, ou, ainda, várias dessas técnicas combinadas13”.

Nessa fase, os países que não cooperam com as investigações contra a lavagem de dinheiro, colaboram diretamente para o bom sucesso da atuação dos criminosos.

A última etapa é a “integração”, referente ao momento em que os fundos retornam à economia legal. É a fase final de uma operação de lavagem de dinheiro completa.

A finalidade é permitir ao autor do delito “utilizar os ativos sem gerar suspeitas que possam provocar uma investigação ou um processo criminal. O dinheiro pode ser investido em propriedade imobiliária, artigos de luxo ou negócios comerciais14”.

Pode-se, ainda, “estabelecer uma atividade baseada intensamente em efetivo, como um restaurante ou locadora de veículos, de forma que os fundos ilegais possam ser injetados e reapareçam como lucros fictícios ou renda de locação15”.

Igualmente, é possível criar uma rede de empresas fantasmas com negócios fictícios de importação e de exportação e utilizar faturamento frio para integrar os ativos como ganhos normais ao comércio. Após a compreensão das fases pelas quais o dinheiro passa, é fácil entender porque o delito em questão é popularmente conhecido como “lavagem” ou “branqueamento” de capitais. CALLEGARI16 cita FABIÁN CAPARRÓS ao explicar que, “fazendo uma comparação com as manchas que resistem à química dos detergentes, assinala que os rendimentos procedentes de atividades criminais encontram-se marcados pela ilicitude de sua origem”.

Prossegue o autor, “assim, como se de uma prenda tratasse, seria preciso lavar várias vezes esse capital sujo, até que a riqueza tenha sido afastada suficientemente de sua procedência ilegal, fazendo com que as diferentes instâncias de controle não possam identificar sua verdadeira natureza17”. 1.3 CRIAÇÃO DO CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS A Lei 9.613/98 resulta do compromisso assumido pelo Brasil com a comunidade internacional ao firmar a Convenção de Viena, de 20 de dezembro de 1988, referendada pelo país em 1991 (Decreto 154 de 26 de junho de 1991)18, cujo objetivo principal é coibir a prática dos delitos antecedentes, bem como suas ocultações e dissimulações. Desse modo, a fim de que se pudesse dar maior efetividade à Lei, criou-se o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF (art. 14), que tem por finalidade disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e

13 CALLEGARI, André Luís. Direito Penal Econômico e Lavagem de Dinheiro – aspectos criminológicos, p. 73. 14 Ibid. 15 Ibid. 16 Ibid. 17 FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo, El Delito de Blanqueo de Capitales, p. 50. 18 Ibid.

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identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas na Lei, sem prejuízo da competência de outros órgãos e entidades. O COAF integra o Grupo de Ação Financeira Sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI), que foi criado em 1989 pelo G-7, no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE. Veja-se19:

O GAFI (ou FATF – Financial Action Task Force on Money Laundering) foi criado com a finalidade de examinar medidas, desenvolver políticas e promover ações para combater a lavagem de dinheiro. Esse organismo internacional publicou, em 1990, um documento denominado “Quarenta Recomendaçãoes”, cujos objetivos principais são o desenvolvimento de um plano de ação completo para combater a lavagem de dinheiro e a discussão de ações ligadas à cooperação internacional com vistas a esse propósito. O GAFI/FATF, autoridade mundial no combate àquela modalidade criminosa anunciou, em junho de 1999, o convite de adesão ao Grupo de três países da América Latina, entre eles, o Brasil. Para tanto, esses países teriam de assumir o compromisso de seguir as “Quarenta Recomendações”, desempenhar ativamente um papel de liderança regional e se submeter a um processo de avaliação mútua. Num primeiro momento, os países têm o status de membros observadores, tornando-se membros efetivos após aprovação na primeira avaliação. Em 2000, o Brasil foi aprovado, devido aos progressos alcançados, certificando a sua boa imagem internacionalmente. O trabalho desenvolvido pelo país é amplamente reconhecido, tendo o GAFI/FATF constatado, em seus Relatórios Anuais de 2001 e 2002, o cumprimento pelo Brasil de suas “Quarenta Recomendações”, que certifica a boa imagem do país perante a comunidade internacional.

As “Quarenta Recomendações” constituem um quadro avançado, completo e consistente de medidas ao combate à prática do delito de lavagem, bem como ao financiamento do terrorismo. Conforme descrito no site do COAF20, as “Quarenta Recomendações” surgiram em 1990, numa iniciativa para combater a utilização ilegítima dos sistemas financeiros para fins de lavagem de ativos provenientes do tráfico de entorpecentes. As Recomendações foram revistas pela primeira vez em 1996, de modo a refletirem a evolução das tipologias de lavagem de capitais. A versão de 1996 foi adotada por mais de 130 países e constituem o padrão internacional de combate ao delito em questão.

Ao longo dos anos, as “Quarenta Recomendações” foram sofrendo pequenas alterações, mas sem, contudo, perder a principal finalidade de, através da cooperação internacional, impedir a prática do delito de lavagem. Além de compor o GAFI, o COAF integra o Grupo de Egmont, composto por algumas unidades financeiras de inteligência, reunidas pela primeira vez no Palácio de Egmont-Arenberg, em Bruxelas, com o objetivo de “promover um

19 BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Aspectos gerais sobre o crime de lavagem de dinheiro. IN: Lavagem de Dinheiro – comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. Organizadores José Paulo Baltazar Junior e Sergio Fernando Moro. Porto Alegre, Editora Livraria do Advogado, 2007, p.15. 20 www.coaf.fazenda.gov.br. Acessado em 02 de julho de 2010, às 8h30min.

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fórum visando incrementar o apoio aos programas nacionais de combate à Lavagem de Dinheiro dos países que o integram21”. Tal apoio inclui a ampliação de cooperações entre os países e a sistematização do intercâmbio de experiências e de informações de inteligência financeira, melhorando a capacidade e a perícia dos funcionários das unidades e gerando uma efetiva comunicação através da aplicação de tecnologia específica22. Ademais, os organismos internacionais preconizam um conjunto de regras para a persecução penal referente ao delito em questão, que, resumidamente, consistem na incriminação das condutas de lavagem de dinheiro, em padrões uniformes nos países; no objetivo de recuperar o produto do crime; na cooperação internacional; na cooperação das instituições e empresas que possam ser utilizadas para lavagem, submetidas a deveres de identificação dos clientes, conservação dos registros e comunicação de operações suspeitas. Desse modo, o COAF é o principal órgão brasileiro de inteligência ao combate ao crime em comento, além de ser responsável por elaborar auto-avaliações, cujos relatórios são enviados anualmente ao GAFI.

Não obstante, as principais características e formas de atuação do COAF serão abordadas no próximo capítulo. 2 CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS – COAF

2.1 BREVE ANÁLISE DOS PRINCIPAIS ASPECTOS

A Lei de Lavagem de Dinheiro criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), no âmbito do Ministério da Fazenda, com sede no Distrito Federal, cuja organização e funcionamento foram definidos em estatuto aprovado pelo decreto nº. 2.799, de 8 de outubro de 1998.

O Conselho é composto de servidores públicos de reputação ilibada e reconhecida competência, designados em ato do Ministro de Estado da Fazenda, dentre os integrantes do quadro de pessoal efetivo do Banco Central do Brasil, da Comissão de Valores Mobiliários, da Superintendência de Seguros Privados, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, da Secretaria da Receita Federal, de órgão de inteligência do Poder Executivo, do Departamento de Polícia Federal, do Ministério das Relações Exteriores e da Controladoria-Geral da União, atendendo, nesses quatro últimos casos, à indicação dos respectivos Ministros de Estado. O presidente do Conselho é nomeado pelo Presidente da República, cuja indicação é do Ministro de Estado da Fazenda.

A finalidade do Conselho consiste em disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar operações suspeitas comunicadas pelos sujeitos referidos no art. 9º da Lei. A partir da análise das operações suspeitas ou atípicas, o COAF elabora um relatório que será encaminhado ao Ministério Público e à Polícia, para que seja apurado o cometimento ou não de algum delito.

21 www.coaf.fazenda.gov.br. Acessado em 10 de setembro de 2010, às 22h. 22 Ibid.

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O COAF coopera com órgãos como O GAFI, GAFISUD, CICAD/OEA, Grupo Egmont, entre outros, elaborando anualmente um relatório com o resultado de suas ações no combate à lavagem de dinheiro.

2.1.1 Pessoas Sujeitas à Lei e suas Obrigações

O art. 9º da Lei apresenta o rol das pessoas jurídicas obrigadas, devido às atividades que exercem, a comunicar o COAF sobre a realização de qualquer atividade atípica ou operações consideradas suspeitas. Entre as atividades exercidas estão a captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira; a compra e venda de moeda estrangeira ou ouro como ativo financeiro ou instrumento cambial; a custódia, emissão, distribuição, liquidação, negociação, intermediação ou administração de títulos ou valores mobiliários; entre outras elencadas no parágrafo único do art. 9º, cujas principais veremos a seguir. As obrigações impostas a essas pessoas consistem em identificar seus clientes e manter registros, bem como comunicar as operações suspeitas aos órgãos de inteligência financeira. Tais obrigações estão dispostas nos arts. 10 e 11 da Lei. A definição de “operações suspeitas” (art. 11, I), também chamadas de atípicas, é dada pela autoridade competente através da elaboração de uma lista de operações que, dependendo das pessoas envolvidas, dos valores, das formas de realização, dos instrumentos utilizados, ou pela falta de fundamento econômico ou legal, demonstrem ilicitude. Caso as pessoas elencadas no art. 9º deixem de cumprir suas obrigações, caberá aplicação de sanção administrativa pela autoridade competente, conforme previsto no art. 12 da Lei. O procedimento para aplicação de sanção será regulado por decreto, bem como será assegurado o contraditório e a ampla defesa, cabendo recurso ao Ministro de Estado da Fazenda.

2.2 ATIVIDADES VULNERÁVEIS À PRÁTICA DE LAVAGEM DE DINHEIRO - TIPOLOGIAS

A Lei 9.613/98 inseriu no art. 9º o rol de pessoas obrigadas a identificarem e manterem registros de seus clientes, bem como comunicarem aos órgãos competentes as operações financeiras consideradas atípicas.

A legislação impôs tal obrigação, pois essas pessoas desenvolvem atividades que, por sua natureza, são suscetíveis à colocação ou à integração de dinheiro sujo na economia lícita.

Como ressalta DE CARLI23 , as formas e as atividades passíveis de lavagem são múltiplas e extremamente variáveis.

Tal variabilidade se deve à necessidade dos lavadores de escaparem das medidas de prevenção, fato que ensejou, então, o estudo das tipologias pelo GAFI.

23 DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de Dinheiro: Ideologia da criminalização e Análise do discurso, p. 119.

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O referido estudo tem a finalidade de prevenir a ocorrência do delito de lavagem, através da exemplificação de como as operações acontecem.

O estudo das tipologias possibilita também a compreensão das complexas formas e atividades utilizadas para legitimar o dinheiro sujo. Contudo, a autora24 alerta que a diferença entre a atividade legal e a atividade ilegal está na essência do ato, uma vez que, para ser considerado ilícito, deve ter o conteúdo inidôneo e procedimento destinado a outro fim que não aquele normalmente esperado. Desse modo, “não há ilegalidade alguma em abrir contas bancárias, fazer apólices de seguro, constituir sociedades comerciais, aplicar no mercado financeiro nacional ou internacional25”.

Prossegue a autora referindo que o “ilegal é fazer isso com o objetivo de ocultar ou dissimular a natureza, a origem, a localização, a disposição, a movimentação ou a propriedade de bens, de direitos ou de valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime26”. Desse modo, determinadas atividades, ainda que mencionadas pela tipologia como passíveis de lavagem, não podem ser consideradas ilícitas sem uma prévia investigação a respeito, bem como sem a observância das garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. O GAFI, em seus relatórios anuais, agrupa as tipologias em espécies, quais sejam: sistemas alternativos de remessas, vulnerabilidades em seguros à lavagem de dinheiro, subfaturamento e superfaturamento de mercadorias e de serviços no comércio internacional, uso impróprio de sociedades comerciais e ‘trusts’. A seguir, o estudo de cada uma delas.

2.2.1 Sistemas Alternativos de Remessas

Os sistemas alternativos de remessas compõem-se, em sua maioria, de operações legítimas.

Contudo, nos últimos anos esses mecanismos têm sido bastante utilizados para a prática de lavagem, através da transferência de dinheiro sujo para locais que operam fora dos canais bancários. Ressalta-se que os lavadores de dinheiro “utilizam os sistemas alternativos de remessas de maneira cada vez mais sofisticada27”. No caso dessas remessas, o dinheiro é transferido de país para país, através de instituições que operam paralelamente aos canais bancários. A consequência dessas movimentações é a difícil detecção da prática do delito de lavagem, eis que cada país tem sua própria inteligência investigativa e jurisdição. Desse modo, a visualização completa da operação de lavagem, desde sua fase inicial, em um determinado país, até sua fase final, em outro país, é impossibilitada pela falta de cooperação internacional efetiva. Como bem explica DE CARLI28, a utilização dessa atividade impede a percepção do delito de lavagem:

24 DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de Dinheiro: Ideologia da criminalização e Análise do discurso, p. 120. 25 Ibid. 26 Ibid. 27 Ibid.

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Os padrões dos diferentes fluxos ou corredores de remessas variam de região para região. Alguns desses sistemas são muito antigos e têm laços com regiões geográficas, grupos étnicos ou grupos de migrantes, tais como hawala, bundi, da shu gong si e black market peso exchange. A confiança que seus operadores desfrutam é baseada nas relações que têm com essas comunidades. A informalidade é o fator-chave para a seleção dos indivíduos que operam ilegalmente ou dentro da economia informal.

Por fim, a autora29 refere que “o segredo e a falta de transparência que caracterizam essas atividades são produtos da história cultural e dos métodos de negócio desses grupos; entretanto é justamente esse aspecto que interessa a quem deseja lavar dinheiro”.

2.2.2 Setor de Seguros

Nas atividades relacionadas ao setor de seguros, o dinheiro sujo é aplicado em apólices, que após certo tempo são resgatas pelo cliente-lavador, o que lhe proporcionará um retorno de dinheiro “limpo”. Como bem explica DE CARLI30 “o ‘cliente’ que faz pagamentos substanciais para uma apólice de seguro de vida não busca cobertura dos riscos e, sim, uma oportunidade de investimento”. Assim, após a compra da apólice, o valor segurado pode ser aumentado, através de aditamentos.

Passado algum tempo, o cliente-lavador resgata a apólice, com o devido desconto pelo cancelamento antecipado, obtendo dinheiro “limpo”, ou seja, dinheiro legitimado, pois aparece, simplesmente, como regaste de uma apólice de seguro.

2.2.3 Subfaturamento e Superfaturamento de Mercadorias e de Serviços no Comércio Internacional

Frequentemente, a lavagem de dinheiro é feita por meio de operações de comércio internacional, combinada com a utilização de outras atividades (tipologias), para ocultar, ainda mais, o rastro do dinheiro31. Explica-se o seguinte32:

A atratividade do uso do comércio internacional para a lavagem de dinheiro decorre de vários fatores: o risco de detecção é menor, em razão dos controles alfandegários serem maiores na importação do que na exportação (por causa do interesse no recolhimento de impostos); a quase inexistência de compartilhamento de informações entre as alfândegas dos países (que faz com que cada uma veja somente um lado da operação); o enorme volume das transações de comércio internacional, que obscurece as transações individuais; a

28 DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de Dinheiro: Ideologia da criminalização e Análise do discurso, p. 124. 29 Ibid. 30 Ibid. 31 Ibid. 32 Ibid.

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complexidade das operações de câmbio e o recurso a diversas operações financeiras nesse tipo de negócio, entre outros.

Nesse ponto, cumpre destacar que a atividade de subfaturamento e superfaturamento de bens e de serviços é um dos métodos mais antigos de transferência de dinheiro por meio das fronteiras dos países33. Essas movimentações ocorrem pelo acordo de vontades entre o importador e o exportador, que, por razões diversas, aceitam agir fraudulentamente. É por causa desse tipo de operação que o GAFI afirma existirem vínculos entre a lavagem de dinheiro, baseada em operações de comércio internacional, e os crimes fiscais34. 2.2.4 Uso Impróprio de Sociedades Comerciais e ‘Trusts’ O GAFI, em seu relatório de 2006, chamou atenção para o abuso ilegal das formas jurídicas de instrumentos corporativos, tais como: fundações, sociedades de responsabilidade limitada, ‘trusts’, etc35. A utilização desses instrumentos corporativos é um auxílio às operações de lavagem, veja-se36:

A facilidade de constituição de empresas em determinados países, aliada ao fato de que estas podem ser vendidas para pessoas físicas ou jurídicas sem residência no país de sua sede torna possível seu uso para ocultar a propriedade de fundos ilícitos. Assim, as ‘shelf companies’ (empresas de prateleira) ou ‘shell companies’ (empresas-conha) prestam-se para a lavagem de dinheiro, para o recebimento de dinheiro de corrupção, para fraudes tributárias e inúmeros outros delitos.

Por fim, esclarece-se que a “principal vantagem destas sociedades é ocultar o real proprietário ou beneficiário da empresa e de seus bens, pois quem aparece, normalmente, é apenas o procurador37”.

2.2.5 Tipologias Regionais – ‘Dólar-cabo’ e ‘euro-cabo’

O GAFISUD38, que realiza estudos de tipologias e mecanismos de avaliações mútuas similares aos do GAFI39, expôs em seu relatório de 2006 as complexas técnicas de transferências internacionais de valores.

33 DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de Dinheiro: Ideologia da criminalização e Análise do discurso, p. 124. 34 Ibid. 35 Ibid. 36 Ibid. 37 Ibid. 38 Grupo de Ação Financeira Internacional da América do Sul. Organização nos mesmos moldes do GAFI criado em 2000, mediante um Memorando de entendimento entre os governos da Argentina, da Bolívia, do Brasil, do Chile, da Colombia, do Equador, do México, do Paraguai, do Peru e do Uruguai. 39 http://gtld.pgr.mpf.gov.br/gtld/lavagem-de-dinheiro/gafisud. Acessado em 10 de setembro de 2010, às 22h40min.

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O Grupo referiu que as atividades comumente utilizadas para o delito de lavagem são as do setor cambiário, bem como o transporte físico e transfronteiriço de dinheiro. No tocante ao setor cambiário, as diferenças existentes entre as taxas de câmbio dos mercados diferentes (oficial e livre), além das ineficientes regulações e controles, tornam propícia a utilização desse setor para a prática da lavagem de dinheiro. No Brasil, são muito comuns as operações dólar-cabo ou euro-cabo, que pertencem ao sistema financeiro paralelo administrado por doleiros ou redes de doleiros: pessoas físicas e jurídicas (casas de câmbio e agências de turismo) autorizadas ou não a operar no mercado financeiro. Desse modo, a compra e venda de moeda estrangeira ocorre mediante uma ordem de pagamento emitida por um doleiro sediado no Brasil a outro doleiro sediado no país para onde será remetido o dinheiro do cliente (de origem lícita ou ilícita). Os doleiros utilizam um sistema de compensação, além de confiarem e colaborarem reciprocamente.

Destaca-se que nesses tipos de operações não há movimentações físicas ou contábeis do dinheiro através das fronteiras dos países.

Assim, a inexistência de registros de operações cambiárias e bancárias impedem a “descoberta e a prova do crime pelos meios normais de investigação40”.

2.2.6 Tendência – Novos métodos de pagamentos: ‘e-money’

Atualmente, com o avanço da tecnologia, é possível fazer transferências e pagamentos não somente via sistema financeiro, mas também pela utilização do dinheiro – em espécie, cheque ou cartões de crédito41. Em 2006, foi publicado o relatório do GAFI relativo a novos métodos de pagamentos e transferências, os quais permitem a ultrapassagem global de fronteiras de maneira eletrônica42. Esse é o caso dos cartões pré-pagos, dos sistemas de pagamentos pela internet ou pelo telefone celular, bolsas eletrônicas e metais preciosos digitais43. Conforme DE CARLI44, essas novas alternativas ao uso do dinheiro permitem o anonimato e a flexibilidade no limite de valores das transações, possibilitando a ágil atuação dos lavadores, bem como a infinidade de maneiras pelas quais é possível lavar o dinheiro. Por fim, a autora45 alerta que as tipologias descritas acima são apenas algumas das atividades passíveis de lavagem de dinheiro, sendo possível encontrar outras com esquemas gráficos, inclusive, nos sites do GAFI46 e GAFISUD47. 40 DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de Dinheiro: Ideologia da criminalização e Análise do discurso, p. 125. 41 Ibid. 42 Ibid. 43 Ibid., p. 124. 44 Ibid. 45 Ibid. 46 www.fatf-gafi.org. Acessado em 11 de setembro de 2010, às 10h46min. 47 www.gafisud.info. Acessado em 11 de setembro de 2010, às 10h47min.

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2.3 COAF – AGÊNCIA DE INTELIGÊNCIA BRASILEIRA

O COAF é um órgão administrativo, no âmbito do Ministério da Fazenda, e funciona como agência de inteligência brasileira no combate ao crime de lavagem de dinheiro. Entende-se por agência de inteligência a atividade de caráter nacional, central, responsável por receber, além de requisitar, analisar e distribuir às autoridades competentes denúncias sobre operações financeiras atípicas, ou seja, aquelas presumidamente criminosas. As agências de inteligências no combate ao crime de lavagem estão presentes em todos os países integrantes do Grupo de Egmont e consistem num mecanismo de prevenção e controle do delito em questão, através da proteção dos setores financeiros e comerciais passíveis de serem utilizados em manobras ilegais48. Ademais, essas unidades de inteligência podem ser de natureza judicial, policial, mista (judicial/policial) e administrativa, tendo o Brasil optado pela última. A criação dessas agências ocorreu primeiramente de forma individualizada, limitando seus interesses e investigações apenas ao seu país sede. Contudo, diante da internacionalização do crime de lavagem e da necessidade de cooperação entre os países no combate, tais unidades de inteligência passaram a trabalhar com intercâmbio de informações. Desse modo, o COAF tem ampliado seus vínculos e estabelecido um amplo relacionamento com as agências de inteligência dos outros países, o que lhe proporciona maior eficiência no desempenho de suas funções. As unidades de inteligência recebem informações sobre operações suspeitas, através das pessoas obrigadas, e as “filtram”, ou seja, analisam e informam às autoridades competentes aquelas que constituem indícios do crime de lavagem. A participação no Grupo Egmont autoriza o acesso a informações sobre outras unidades de inteligência (missões, organizações e capacidades), novas tendências de combate à lavagem de dinheiro, ferramentas de análise financeira e desenvolvimento tecnológico49. Para agilizar o processo, foi desenvolvida a “rede de segurança Egmont”, que permite às unidades integrantes do sistema se comunicarem e trocarem informações através de um correio eletrônico de segurança máxima50. Não obstante, o COAF tem recebido do Ministério da Fazenda amplo suporte financeiro e de capacitação técnica, para que se tenha à disposição todos os meios de combate ao crime em questão. Dessa maneira, todos esses auxílios, tanto nacionais, quanto internacionais, ajudam o COAF a atingir suas metas na luta contra o referido crime.

2.4 FORMA DE ATUAÇÃO DO COAF

48 www.coaf.fazenda.gov.br. Acessado em 11 de setembro de 2010, às 19h. 49 Ibid. Acessado em 11 de setembro de 2010, às 19h51min. 50 Ibid. Acessado em 11 de setembro de 2010, às 20h22min.

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Dentro do país, o COAF age de forma integrada com órgãos supervisores e entidades representativas de diversos segmentos, tais como: Comissão de Valores Mobiliários – CVM, Secretaria de Previdência Complementar – SPC, Superintendência de seguros privados – SUSEP, Conselho Federal de Corretores de Imóveis – COFECI, Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços – ABECS, Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Privada – ABRAPP, Federação Brasileira de Bancos – FEBRABAN. Tal integração ocorre com a finalidade de prevenir a utilização desses setores para a prática de lavagem de dinheiro. De acordo com o Estatuto do COAF, compete ao Plenário coordenar e propor mecanismos de troca de informações que viabilizem ações rápidas e eficientes na prevenção e na repressão à ocultação ou dissimulação de bens, direitos e valores. Assim, essas entidades e órgãos, ao se depararam com operações atípicas realizadas por seus clientes, deverão informar o COAF a respeito.

DE SANCTIS51 ensina que, “apesar de não exigido por regulamento ou estatuto, é imperativo que instituições financeiras adotem o guia-procedimento ‘conheça o seu cliente’, para assegurar a detecção imediata e a identificação de atividades suspeitas na instituição”. Prossegue o autor52, “o conceito de ‘conheça o seu cliente’ é, propositadamente, não - explicitamente definido, de modo que cada instituição pode adotar os procedimentos mais adequados às suas próprias operações”. Para auxiliar na interpretação, a Carta-Circular nº. 2.826/1998 do Banco Central do Brasil, posteriormente complementada pela Carta-Circular nº. 3.098/2003, apresenta o extenso rol de operações que, por convenção, foram denominadas atípicas ou suspeitas.

Salienta-se, contudo, que o rol de hipóteses apresentado pela Carta-Circular nº. 2.826/1998 é meramente exemplificativo, com fim apenas de orientar as entidades na detecção de operações suspeitas, sendo possível, portanto, a ocorrência de outras operações que não aquelas indicadas no ato normativo. Além disso, as entidades também deverão manter cadastros que permitam a identificação do cliente.

Outrossim, os órgãos verificarão se há compatibilidade financeira entre as movimentações realizadas pelo cliente e a sua capacidade econômica.

Tal controle deve abranger não só a totalidade das operações de um indivíduo, mas também aquelas feitas por grupos e conglomerados, conforme recomendação contida na Circular nº. 2.852/1999 do Banco Central do Brasil.

Ainda com relação à Carta-Circular 2.826/1998, entende-se que essa pretendeu orientar as entidades e os órgãos responsáveis, através da enumeração de hipóteses que configuram indícios de crime de lavagem e que,

51 DE SANCTIS, Fausto Martin. Antecedentes do deliro de lavagem de valores e os crimes contra o sistema financeiro nacional. IN: Lavagem de Dinheiro – comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. Organizadores José Paulo Baltazar Junior e Sergio Fernando Moro. Porto Alegre, Editora Livraria do Advogado, 2007, p.55. 52 Ibid.

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portanto, verificadas em concreto, exigem a comunicação ao órgão de inteligência brasileiro, o COAF53.

O art. 11 da Lei 9.613/98, já exposto em tópico anterior, estabelece a referida obrigatoriedade de comunicação.

No Estatuto do COAF (Decreto nº. 2.799/98), o art. 8º prevê as atribuições da Secretaria-Executiva, que dentre elas está o recebimento das comunicações de operações suspeitas.

Depois de recebida a comunicação, o COAF analisará as operações suspeitas e, caso entenda existirem indícios da ocorrência do delito de lavagem, realizará um intercâmbio de informações com as autoridades competentes, conforme art. 7º, IIII e IX, do Estatuto do COAF. O art. 15 da Lei 9.613/98 também estabelece a referida atribuição.

Consideram-se autoridades competentes a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, que, a partir desse intercâmbio de informações, tomarão as medidas cabíveis.

Frise-se que o COAF é competente tanto para realizar a troca de informações, quanto para solicitar o início das investigações às autoridades, caso exista, nas informações recebidas, solicitadas ou em decorrência das análises procedidas, forte indício de operações consideradas suspeitas.

Como bem explica MORO54, certamente, a verificação em concreto da ocorrência de operações atípicas constituirá um ponto de partida de uma investigação criminal, “havendo longo caminho a percorrer, que poderá confirmar ou não a prática do crime de lavagem”.

Não obstante, além das atribuições descritas acima, ao COAF foi dada a prerrogativa de poder requisitar informações cadastrais bancárias e financeiras aos Órgãos da Administração Pública de pessoas envolvidas em atividades suspeitas.

Tal atribuição está contida na Lei 9.613/98, em seu art. 14, §3º. O Estatuto de COAF também prevê tais prerrogativas. Desse modo, sempre que houver necessidade, o COAF requisitará à Administração Pública e aos órgãos privados informações de pessoas relacionadas a operações suspeitas.

2.5 PAPEL DO COAF NO COMBATE À LAVAGEM DE DINHEIRO

Primeiramente, cumpre dizer que, segundo o Relatório de Gestão de 200955, o COAF é um órgão eminentemente preventivo, ou seja, não tem poderes repressivos à lavagem, atuando apenas como auxiliar das autoridades responsáveis pela persecução criminal. O Relatório afirma, portanto, que o COAF não detém poderes de investigação, competindo-lhe apenas as atribuições de inteligência, regulação e supervisão56.

53 MORO, Sérgio Fernando. Sobre o elemento subjetivo no crime de lavagem. IN: Lavagem de Dinheiro – comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. Organizadores José Paulo Baltazar Junior e Sergio Fernando Moro. Porto Alegre, Editora Livraria do Advogado, 2007, p.105. 54 Ibid. 55 www.coaf.fazenda.gov.br. Acessado em 24 de setembro de 2010, às 10h30min. 56 Ibid. Acessado em 24 de setembro de 2010, às 10h33min.

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Desse modo, o COAF adota como princípios básicos de gestão a transparência, a conduta ética, a criatividade, o sigilo, a responsabilidade e a credibilidade, desenvolvendo suas atividades com o espírito cooperativo de seu corpo funcional.

Assim, em continuidade ao desenvolvimento da gestão institucional do COAF para o exercício de 2010, o órgão criou o Planejamento Estratégico de Longo Prazo, contemplando objetivos estratégicos permanentes:

• Produzir Inteligência Financeira de modo eficiente e eficaz; • Supervisionar e Regular os Segmentos Econômicos de modo

eficiente e eficaz; • Utilizar Tecnologia da Informação eficiente e eficaz; • Gerir a Instituição de forma impessoal, transparente e

desburocratizada; • Gerir Pessoas assegurando oportunidade profissional e liberdade

de expressão, com respeito e responsabilidade, em um ambiente pluri-institucional e multidisciplinar;

• Desempenhar papel ativo e cooperativo no plano internacional.

Ainda, segundo o referido Relatório de 200957, afirma-se que o crescimento do número de comunicações sobre operações financeiras, em média de 1.300 por dia, oriundas dos diversos setores econômicos, “reflete a crescente participação do COAF na produção de informações de inteligência financeira para as autoridades de persecução criminal, bem como seus esforços de sensibilização e conscientização dos segmentos da economia obrigados a comunicar”.

Ademais, o “COAF instituiu um sólido processo de trabalho, baseado nos princípios de gestão de riscos, de governança corporativa e de forte investimento em pessoas e sistemas58”.

Nesse processo, as comunicações recebidas são integralmente analisadas e, ao final, o Relatório de Inteligência Financeira será submetido às instância internas, para avaliação e decisão das alçadas adequadas, sendo, após, disponibilizado às autoridades competentes59.

Tal disponibilização ocorre via sistema, por meio da ferramenta e-ofício ou fisicamente, quando necessário, resguardadas as devidas cautelas de segurança, garantindo, assim, proteção da informação60.

Ainda, destaca-se que as comunicações ao COAF serão analisadas individualmente por analistas de inteligência, obedecidas as regras de segregação de competências de distribuição aleatória e de conformidade61.

Conforme dito anteriormente, o COAF, além do seu papel como Unidade de Inteligência Financeira, é também um órgão de regulação e supervisão dos setores econômicos que não possuem instituição supervisora própria62.

A finalidade dessas atribuições é proteger tais setores contra a sua utilização para prática do delito de lavagem de dinheiro63.

57 www.coaf.fazenda.gov.br. Acessado em 24 de setembro de 2010, às 12h35min. 58 Ibid. 59 Ibid. 60 Ibid. 61 Ibid. 62 Ibid. 63 Ibid. Acessado em 24 de setembro de 2010, às 12h48min.

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Como bem explicado no Relatório de 2009, a principal dificuldade do COAF em proporcionar ainda mais eficiência à sua atuação é a falta de maior cooperação de determinados setores econômicos.

Desse modo, o COAF tem intensificado os investimentos em recursos humanos, tecnologia, normas e procedimentos internos, com o objetivo de aprimorar o seu desempenho nessa atividade64.

Por fim, a função de regulação consiste em o Órgão editar normas que orientem os setores obrigados no art. 9º da Lei 9.613/98. Tendo em vista o que foi dito no Relatório de Gestão de 2009, o COAF não tem atribuição legal de controlar a ampla gama de atividades financeiras que acontecem diariamente no Brasil, de modo que apenas auxiliar as autoridades competentes na detecção de operações suspeitas que configurem a prática de lavagem de dinheiro. No capítulo a seguir, será analisada a atuação do COAF no tocante à quebra de sigilo, através das comunicações feitas aos órgãos competentes, bem como à violação garantia constitucional da intimidade. 3 ÂMBITO DE ATUAÇÃO DO COAF - LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL

3.1 RECEBIMENTO E ANÁLISE DE INFORMAÇÕES SIGILOSAS

O COAF, como agência de inteligência financeira, tem amplo acesso a informações sigilosas de qualquer cidadão. Conforme visto no capítulo anterior, as informações financeiras são fornecidas pelas pessoas obrigadas pelo art. 9º da Lei 9.613/98.

Posteriormente, caso haja indícios suficientes da existência de crimes, essas informações serão compartilhadas com as autoridades competentes, quais sejam o Ministério Público Federal e a Polícia Federal. Não obstante, a comunicação ao COAF de movimentações financeiras cobertas por sigilo não fere o direito constitucional de intimidade e privacidade, de acordo com a jurisprudência pacificada dos Tribunais. Veja-se trecho do voto-vista do Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz65:

Não há dúvida alguma, tampouco a impetração afirma o contrário, quanto à possibilidade de o COAF acessar informações abrigadas pelo sigilo financeiro, não representando isto ofensa ao direito constitucional de intimidade e privacidade. Do contrário, estar-se-ia a obstar a própria essência da atividade desenvolvida pelo aludido órgão, ao qual incumbe, sobretudo, aplicar penas administrativas e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas, mormente aquelas previstas na Lei nº 9.613/98 (artigo 14). Com efeito, a orientação pretoriana é assente no sentido de prestigiar o interesse público no trato de tal questão, reconhecendo a relativização dos preceitos fundamentais.

64 www.coaf.fazenda.gov.br. Acessado em 24 de setembro de 2010, às 12h35min. 65 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. Habeas Corpus N.º 007683-90.2010.404.0000, Oitava Turma, Relator Luiz Fernando Wowk Penteado. Julgado em 19 de maio de 2010. Disponível em: www.trf4.jus.br. Acessado em 31 de setembro de 2010, às 18h12min.

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A toda evidência, foi intenção do legislador ordinário subordinar a atuação do Conselho de Controle à suspeita de atipicidade nas transações financeiras (não na acepção criminal do vocábulo, mas, sim, no sentido de "situações que afastam do normal"). Na fiscalização das movimentações "incomuns", é claro, poderá ele concluir pela prática regular do ato, pela existência de irregularidade administrativa (com a infligência, de pronto, das consequentes sanções deste porte), ou, então, pela ocorrência de ilícito criminal. (grifo nosso)

Assim, é inerente à função atribuída ao COAF, de agente de combate ao crime de lavagem de dinheiro, o acesso a informações consideradas sigilosas. Diante disso, está pacificado o entendimento de que a prerrogativa conferida ao Órgão pela Lei 9.613/98, de receber e analisar operações financeiras resguardadas por sigilo, não viola o direito constitucional de intimidade e privacidade. 3.2 COMPARTILHAMENTO DE INFORMAÇÕES ENTRE O COAF E AS AUTORIDADES COMPETENTES

Superada a questão quanto à constitucionalidade de o Conselho receber e examinar operações sigilosas, passa-se à análise de outra discussão: pode o COAF compartilhar com o Ministério Público e a Polícia Federal informações sigilosas sem que existam indícios concretos e suficientes da prática de delitos? Tal discussão surge em razão da devassa que ocorre na vida do cidadão que tem seu sigilo quebrado indevidamente. Em outras palavras, o cidadão sofre violação de seu direito de intimidade sem que haja uma situação excepcional justificando a quebra de sigilo. Conforme apontado no capítulo anterior, o art. 15 da Lei 9.613/98 prevê que o Órgão comunicará às autoridades competentes sobre movimentações financeiras, quando concluir pela existência de crimes, para a instauração dos procedimentos cabíveis. Desse modo, parte da jurisprudência entende que somente quando houver constatação da prática de delitos é que o COAF pode enviar às autoridades competentes movimentações financeiras cobertas por sigilo. Veja-se outros trechos do voto-vista citado acima66:

A toda evidência, foi intenção do legislador ordinário subordinar a atuação do Conselho de Controle à suspeita de atipicidade nas transações financeiras (não na acepção criminal do vocábulo, mas, sim, no sentido de "situações que afastam do normal"). Na fiscalização das movimentações "incomuns", é claro, poderá ele concluir pela prática regular do ato, pela existência de irregularidade administrativa (com a infringência, de pronto, das consequentes sanções deste porte), ou, então, pela ocorrência de ilícito criminal. Em relação à última possível conclusão mencionada, todavia, para que se possa conferir legitimidade ao compartilhamento dos

66 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. Habeas Corpus N.º 007683-90.2010.404.0000, Oitava Turma, Relator Luiz Fernando Wowk Penteado. Julgado em 19 de maio de 2010. Disponível em: www.trf4.jus.br. Acessado em 31 de setembro de 2010, às 18h12min.

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dados com os órgãos responsáveis pela persecução penal, a atividade do COAF pressupõe um fundamento de validade: a existência de conduta capitulada como crime no ordenamento jurídico penal pátrio. Tal evidencia-se, sobremaneira, da inteligência do artigo 15 do diploma legal em comento, que, às escâncaras, atribui ao COAF o exame prévio de incidência criminal nas transações financeiras. Assim é que, quando concluir pela existência de crimes (e, note-se, a lei é taxativa de que há necessidade de conclusão, por parte do COAF, de ilicitude), competirá ao Conselho de Controle "comunicar" as autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis. Ou seja, somente na hipótese de conclusão pelo órgão de atividade criminosa há de haver a comunicação às autoridades responsáveis pela persecutio criminis in judicio. A norma, diante de sua limitação, e principalmente por tutelar dados da vida privada dos cidadãos, há de ser interpretada restritivamente, não mais do que autoriza. É claro que a lei não usurpou, em absoluto, os poderes próprios da polícia judiciária e do parquet. Fosse assim, também os procedimentos administrativo-fiscais da Receita Federal, em que se conclui pela existência de sonegação fiscal, padeceria do mesmo vício. A análise de tais entes é prévia e, via de regra, serve somente de ponto de partida às diligências investigativas propriamente ditas (que apenas poderão ser suprimidas se o agente ministerial entender que o parecer administrativo já contém dados suficientes à formação de sua opinio delicti). Pois bem. Na espécie, observa-se que o COAF, a respeito dos dados financeiros dos imputados que encaminhou ao Ministério Público, consignou serem pertinentes a informações sobre movimentações que, embora não sejam necessariamente consideradas ilícitas, evidenciam situações de atipicidade. Ora, não houve qualquer "conclusão" (como reclamado pelo art. 15 da lei de regência) acerca da existência de crime. Ao contrário! O texto é manifesto: foram verificadas movimentações que não são necessariamente ilícitas. Salvo melhor juízo, está dito que não há evidência de crime algum. Se o COAF reconheceu expressamente, no cumprimento de suas atribuições, que não vislumbrou ilícito penal, jamais poderia ter se valido, como demonstrado acima, do regramento do art. 15 da Lei nº 9.613/98. Realmente, pode-se dizer que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, no caso em testilha, excedeu (ou olvidou) o seu mister. Deveria, antes, ter aprofundado a apuração administrativa dos fatos e acenado para a prática de ato criminoso. Tudo isso como forma de garantir efetividade aos direitos de privacidade e de intimidade, que estão erigidos a dogmas constitucionais. A respeito do tema, já tive, inclusive, a oportunidade de expressar, em hipótese análoga, que, se não constatada evidência de crime, não é permitido ao COAF compartilhar informações obtidas dentro de suas atribuições legais (artigo 15 da Lei nº 9.613/98), sob pena de, assim o fazendo, haver ilegalidade a ser reconhecida em sede de habeas corpus. Com efeito, o compartilhamento é exceção, que deve ser interpretada em sentido restrito, ou seja, não mais do que a norma autoriza. Desse modo, estarão assegurados os direitos de privacidade e intimidade, previstos constitucionalmente. (HC nº 2008.04.00.032915-0/PR, e-DJF4 28.05.2009). (grifo nosso)

Pois bem, o voto refere-se ao caso em que o próprio COAF, em seu Relatório de Inteligência Financeira remetido às autoridades competentes,

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afirma expressamente que as “informações sobre movimentações financeiras, embora não sejam necessariamente consideradas ilícitas, evidenciam situações de atipicidade”. Ora, não pode o COAF, diante de meras situações “atípicas”, compartilhar dados sigilosos dos cidadãos com as autoridades competentes, sob pena de violar direitos fundamentais constitucionalmente previstos. Nesse sentindo, tem-se o acórdão de relatoria do já mencionado Desembargador Federal, Paulo Afonso Brum Vaz, assim ementado67:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. COAF. COMPARTILHAMENTO DE INFORMAÇÕES. PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO. ILEGALIDADE. TRANCAMENTO. Se não constatada evidência de crime, não é permitido ao COAF compartilhar informações obtidas dentro de suas atribuições legais (artigo 15 da Lei nº 9.613/98), sob pena de, assim o fazendo, haver ilegalidade a ser reconhecida em sede de habeas corpus. Com efeito, o compartilhamento é exceção, que deve ser interpretada em sentido restrito, ou seja, não mais do que a norma autoriza. Desse modo, estarão assegurados os direitos de privacidade e intimidade, previstos constitucionalmente.

Dessa maneira, só poderia ocorrer o compartilhamento de informações sigilosas se ensejado por uma situação excepcional, ou seja, se no caso concreto houver fortes indícios da prática de delitos. Entretanto, há outra parte da jurisprudência entendendo que o COAF pode, em qualquer situação, enviar informações sigilosas às autoridades competentes, eis que lhe compete apenas juízo de aparência. Corroborando com esse entendimento, tem-se o acórdão de relatoria do Desembargador Federal Luiz Fernando Wowk Penteado68:

HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. SUSPEITA DE PRÁTICAS ILÍCITAS. COMUNICAÇÃO DO COAF. ILICITUDE DA PROVA. NÃO-OCORRÊNCIA. - Recebidas informações acerca de movimentações financeiras pelo COAF, incumbe à este proceder à respectiva análise. Ao final, sendo identificadas condutas que possam caracterizar atividade ilícita, fará comunicado ao(s) órgão(s) competente(s) para as medidas cabíveis. - Não compete ao COAF efetuar investigação exaustiva para firmar convicção acerca de eventual prática delituosa, uma vez que o juízo que lhe compete é o de aparência. - Agindo o COAF dentro do limite previsto pela legislação de regência, a comunicação efetuada à autoridade competente, acerca de eventual prática ilícita, não vicia a prova decorrente produzida em investigação posterior.

No caso citado acima, os desembargadores, por maioria, denegaram a ordem de Habeas Corpus, sob o fundamento de que não incumbe ao Conselho proceder investigação para firmar convicção acerca de eventual prática delituosa, uma vez que o juízo que lhe compete é o de aparência. Contudo, esse entendimento não merece prosperar.

67 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. Habeas Corpus N.º 2008.04.00.032915-0, Oitava Turma, Relator Luiz Fernando Wowk Penteado. Julgado em 13 de maio de 2009. Disponível em: www.trf4.jus.br. Acessado em 31 de setembro de 2010, às 18h12min. 68 Ibid.

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Conforme exposto na Lei Complementar Nº. 105/2001, não constituirá violação do dever sigilo as seguintes hipóteses:

Art. 1o As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados. § 3o Não constitui violação do dever de sigilo: I – a troca de informações entre instituições financeiras, para fins cadastrais, inclusive por intermédio de centrais de risco, observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil; II - o fornecimento de informações constantes de cadastro de emitentes de cheques sem provisão de fundos e de devedores inadimplentes, a entidades de proteção ao crédito, observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil; III – o fornecimento das informações de que trata o § 2o do art. 11 da Lei no 9.311, de 24 de outubro de 1996; IV – a comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa; V – a revelação de informações sigilosas com o consentimento expresso dos interessados; VI – a prestação de informações nos termos e condições estabelecidos nos artigos 2o, 3o, 4o, 5o, 6o, 7o e 9 desta Lei Complementar. (grifo nosso)

A mencionada Lei Complementar dispõem sobre o sigilo das operações financeiras e autoriza a sua quebra apenas nos casos acima elencados. Vê-se, portanto, que a comunicação às autoridades competentes de informações sigilosas só poderá ocorrer diante de situações que configurem a prática de ilícitos. Desse modo, a contrário senso, não pode o COAF expor operações financeiras resguardas por sigilo, levando em consideração simples suposição de ocorrência de crime pela constatação de meras operações “atípicas”. Ademais o art. 10 da Lei Complementar 105/01 refere o seguinte:

Art. 10. A quebra de sigilo, fora das hipóteses autorizadas nesta Lei Complementar, constitui crime e sujeita os responsáveis à pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa, aplicando-se, no que couber, o Código Penal, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

Depreende-se da leitura do diploma legal acima que a quebra de sigilo é excepcional, restrita às hipóteses taxadas, e a sua violação gera consequências gravíssimas. Diante do que foi exposto, é inegável a limitação legal estabelecida à atuação do COAF, no tocante ao compartilhamento de informações sigilosas às autoridades competentes. Seguindo esse raciocínio, o relatório do Habeas Corpus citado acima69:

Os impetrantes sustentam que, "A despeito da discussão sobre a legalidade e constitucionalidade do modo de agir do COAF, o

69 TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. Habeas Corpus N.º 0007683.30.2010.404.0000, Oitava Turma, Relator Luiz Fernando Wowk Penteado. Julgado em 19 de maio de 2010. Disponível em: www.trf4.jus.br. Acessado em 31 de setembro de 2010, às 18h12min.

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fato é que é indiscutível a limitação estabelecida pelo legislador quanto às hipóteses restritivas de comunicação intraórgãos, excepcionando-se que 'não constitui violação do dever de sigilo' a comunicação que envolva 'recursos provenientes de qualquer prática criminosa' (art. 1º, § 3º, da LC 105/01), caracterizando-se como crime 'a quebra de sigilo das hipóteses autorizadoras' (art. 10, da LC 105/01)", ou seja, "o COAF somente poderá violar o sigilo do cidadão 'quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito'". Relata que "o ofício do COAF retratado nos presentes autos é claríssimo ao afirmar que as informações nele descritas não são ilícitas, a despeito de sua atividade e finalidade estarem restritas à identificação de ocorrência de atividade ilícitas (art. 14, da Lei nº 9.613/98) e a lei afirmar serem necessários sérios indícios de crimes (art. 11, I, da Lei nº 9.613/98), que os recursos sejam provenientes de qualquer prática criminosa (art. 1º, § 3º, da LC 105/01) e que existam crimes ou fundados indícios de sua prática (art. 15, da Lei nº 9.613/98) para que a informação sobre sigilo pudesse ter sido compartilhada". Aduz que "O fato é que as movimentações financeiras indicadas - vê-se claramente - são legais e lícitas, razão por que a ilicitude da comunicação do COAF é patente e o writ merece ser deferido". (grifo nosso)

Não obstante, o COAF tem sua atuação limitada pela Lei, não devendo, portanto, extrapolar suas funções ou usurpar atribuições.

3.2.1 Direito à Intimidade – Limitação Constitucional do Poder de Atuação

Primeiramente, cumpre referir que, além da limitação imposta pelo Legislador infraconstitucional, ao editar a Lei 9.613/98 e a Lei Complementar 105/01, existe outra limitação de maior hierarquia: a Constituição Federal. O direito ao sigilo insere-se no campo do direito à intimidade, previsto no art. 5º, X, da Constituição Federal, encontrando, assim, aparo constitucional70:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

O sigilo é, ainda, de forma genérica, garantido em outros dispositivos da Lei Maior, em especial no inciso XII do mencionado artigo71:

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

70 ASSIS MOURA, Maria Thereza. Meios de Impugnação à Quebra Indevida do Sigilo Bancário. IN: Direito Penal Empresarial. Coordenadora Heloisa Estellita Salomão. São Paulo, Editora Dialética, 2001, p. 161. 71 Ibid., p. 162.

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Desse modo, o sigilo não pode sofrer violações, senão em situações excepcionais que autorizem a restrição do direito.

É por isso que se afirma que nenhum direito constitucionalmente previsto é absoluto, eis que, quando em confronto com outra norma de igual hierarquia, será submetido a um juízo de ponderação e, se necessário, restringido para que o outra prevaleça.

Em outras palavras, ASSIS MOURA72 sustenta que “nenhum direito constitucional é revestido de caráter absoluto, uma vez que, cada direito, cada liberdade, há de ser harmonizado e interpretado em conjunto com outros direitos e outras liberdades”.

Nesse sentido73:

OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.

Contudo, a restrição a um direito constitucionalmente previsto deve ser “excepcional, expressamente estabelecida em lei e guardar proporcionalidade, o que significa dizer que a medida restritiva deve ser adequada (ou inidônea), necessária e proporcionada aos fins a que se destina74”. Assim, a comunicação feita pelo COAF às autoridades competentes só deve acontecer se presentes fortes indícios da prática de crimes, justificando, desse modo, a restrição do direito constitucional à intimidade. No próximo tópico, será abordada a possibilidade ocorrer o compartilhamento de dados, ainda que não haja indícios de ocorrência de delitos, desde que presente a figura do juiz autorizando a medida.

3.2.1.1 Direito à Intimidade X Interesse Público - Imprescindível Autorização Judicial

Conforme dito acima, os direitos fundamentais não são absolutos, podendo ser restringidos quando diante de situações excepcionais.

72 Ibid. 73 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança N.º 23452/RJ, 2ª Turma , Publicado em 15 de maio de 200, Relator Ministro Celso de Mello. Disponível em www.stf.jus.br. Acessado em 31 de setembro de 2010, às 23h. 74 ASSIS MOURA, Maria Thereza. Meios de Impugnação à Quebra Indevida do Sigilo Bancário. IN: Direito Penal Empresarial. Coordenadora Heloisa Estellita Salomão. São Paulo, Editora Dialética, 2001, p. 164.

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Entretanto, GOMES75 critica a relativização do direito à intimidade em favor do interesse público:

Valem mais as razões econômicas que os direitos humanos. Para alcançar seus objetivos, o que importa é o fim, não (tanto) os meios. O movimento internacional globalizado (que é gerenciado pelas multinacionais e órgãos intergovernamentais: Banco Mundial, FMI, etc.), valendo-se do definhamento do conceito de soberania nacional (os Estados estão perdendo a cada dia seu poder de comando da nação), vem destruindo (ou restringindo) todas as conquistas históricas da civilização, particularmente as liberdades fundamentais, cuja origem (mais recente) reside na etapa de formação do Estado Moderno.

Apesar de não haver uma “cláusula constitucional expressa de reserva de jurisdição no que concerne à quebra do sigilo, não há dúvida de que somente o Poder Judiciário (juiz) detém essa possibilidade76”.

Dentre outras razões, a obrigatoriedade da intervenção judicial, como regra, para a quebra do sigilo deriva da necessidade de se observar o devido processo legal e particularmente seu aspecto atinente à imparcialidade da decisão77.

Explica o autor78:

Do ponto de vista material, o princípio do devido processo legal exige não só que o controle prévio da quebra do sigilo de dados das pessoas seja exercido pelo poder judiciário como também uma convincente fundamentação (demonstrativa do fumus boni iuris e do periculum in mora). Dir-se-ia: também a administração pública pode fundamentar suas decisões. Mas não é razoável que ela quebre o sigilo bancário para satisfazer seus próprios interesses. Ninguém pode ser juiz da própria causa. Não existe imparcialidade nessa decisão.

Significar dizer, adequando a explicação ao tema abordado no presente

trabalho, que somente o Juiz, como figura imparcial, poderia determinar o compartilhamento de dados sigilosos entre o COAF e as autoridades competentes, quando não houvesse indícios suficientes de prática de crimes.

Vale lembrar que, existindo elementos que atestem a ocorrência de crimes, é perfeitamente possível a comunicação do COAF às autoridades competentes, sem qualquer participação do juiz.

Contudo, a questão cinge-se quanto à possibilidade de o Conselho fornecer dados ao Ministério Público e à Polícia Federal, sem a presença de operações que evidenciem a prática de delitos.

Destaca-se que o posicionamento exposto tópico anterior é contrário ao compartilhamento de dados, quando se tratar de meras operações “atípicas”, ausentes de indícios criminosos.

75 GOMES, Luiz Flávio Gomes. Crimes Tributários e Quebra do Sigilo Bancário. IN: Direito Penal Empresarial. Coordenadora Heloisa Estellita Salomão. São Paulo, Editora Dialética, 2001, p. 153. 76 Ibid. 77 Ibid. 78 Ibid., p. 157.

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Entretanto, ressalta-se que é permitida a comunicações de tais operações meramente “atípicas”, desde que com a participação do juiz, como garantidor dos direitos fundamentais.

GOMES79 esclarece bem essa questão:

A exigência de ordem judicial, como regra, para a quebra do sigilo bancário fundamenta-se, sobretudo, no fato de que o juiz é o garante dos direitos fundamentais, não o Estado. [...] A LC n. 105/01, ao conferir ao próprio Estado, para satisfazer interesses seus, o poder de quebra do sigilo bancário, particularmente para a descoberta de crimes tributários, carece de razoabilidade. Viola flagrantemente o princípio da proporcionalidade.

Diante disso, conclui-se que somente o Poder Judiciário pode quebrar o sigilo do cidadão, pois é guardião dos direitos fundamentais e age com imparcialidade. Portanto, é vedado o compartilhamento de dados pelo COAF, sem autorização do juiz, sob pena violar garantias, uma vez que o Ministério Público e a Polícia Federal agem de forma investigativa - fazendo jus às suas atribuições - buscando, desse modo, satisfazer apenas seus interesses.

3.3 DADOS DE OPERAÇÕES FINANCEIRAS - PROVA NO PROCESSO PENAL

Primeiramente, cumpre definir que “o processo penal é um instrumento de retrospecção, ou seja, de reconstrução aproximativa de um determinado fato histórico80”.

Igualmente, “como ritual, está destinado a instruir o julgador, a proporcionar o conhecimento do juiz por meio da reconstrução histórica de um fato81”.

Nesse contexto, “as provas são os meios através dos quais se fará essa reconstrução do fato passado (crime) 82”.

O conteúdo probatório é sempre “a afirmação de um fato (passado), não sendo as normas jurídicas, como regra, tema de prova (por força do princípio iura novit curia) 83”. Assim, “é a prova que permite a atividade recognoscitiva do juiz em relação ao fato histórico narrado na peça acusatória, a partir da qual se produzirá o convencimento a ser externado na sentença84”. Ademais, “o processo penal e a prova nele admitida integram o que se poderia chamar de modos de construção do convencimento do julgador, que formará sua convicção e legitimará o poder contido na sentença85”.

79 GOMES, Luiz Flávio Gomes. Crimes Tributários e Quebra do Sigilo Bancário. IN: Direito Penal Empresarial. Coordenadora Heloisa Estellita Salomão. São Paulo, Editora Dialética, 2001, p. 157. 80 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume I, p. 489. 81 Ibid. 82 Ibid. 83 Ibid. 84 Ibid., p. 490. 85 Ibid.

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No presente estudo, as provas do processo penal são constituídas a partir das movimentações financeiras informadas pelo COAF ao Ministério Público.

Entretanto, tais provas só deverão ser admitidas se colhidas em conformidade com a Constituição Federal.

Significa dizer que, nos casos em que não existam indícios de crimes, tampouco autorização judicial para o compartilhamento de informações, as provas oriundas de operações sigilosas não poderão ser aproveitadas no processo.

Isso porque, nessa hipótese, as provas são colhidas em desrespeito à Constituição Federal, uma vez que indevidamente violado o direito à intimidade – no qual o sigilo está inserido -, pois não há fundamento relevante para tal violação.

É o que explica MENDONÇA86 :

A intimidade, portanto, é uma esfera sob a qual incide a garantia da inviolabilidade, devendo ser devidamente resguardada das intromissões alheias, desde que não apresente, materialmente, uma causa justa e relevante para que se aplique a relatividade deste dispositivo constitucional.

Diante disso, somente a prova obtida em observância à ordem e aos preceitos constitucionais poderá ser admitida no processo penal, sob pena de torna-se ilícita.

3.3.1 Admissibilidade das Provas Ilícitas em Nome do Princípio da Proporcionalidade

Segundo LOPES JR.87, “provas ilícitas são aquelas que violam regras de direito material ou a Constituição no momento de sua coleta, anterior ou concomitante ao processo, mas sempre exterior a esse (fora do processo)”. MENDONÇA88 define que as provas ilícitas são aquelas imprestáveis à sua função em virtude dos vícios que as contaminam. Em outras palavras, são aquelas obtidas em violação a normas estabelecidas legal ou moralmente, tendo como sanção o seu desentranhamento e a sua ineficácia, não produzindo os efeitos a que se destina89. Ensina a autora90:

A prova ilícita é espécie do gênero prova ilegal que, contrariando o ordenamento jurídico, afeta as liberdades individuais. Nesse sentido, a Carta Magna de 1988 consagrou alguns exemplos de provas ilícitas, tais como a violação do domicílio, das comunicações, tortura e maus-tratos, infringência à intimidade, previstos no art. 5º XI, XII, III, X, respectivamente, entre outros. Se é ilícito todo ato contrário ao ordenamento jurídico, e se as provas são os instrumentos pelos quais se busca formar o convencimento

86 MENDONÇA. Rachel Pinheiro de Andrade. Provas ilícitas: limites à licitude probatória, p. 29. 87 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume I, p. 548. 88 Ibid., p. 33. 89 Ibid. 90 Ibid., p. 34.

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judicial, as provas ilícitas constituem instrumentos inaptos à formação do convencimento judicial.

Com relação à admissibilidade dessas provas, a jurisprudência majoritária entende que a teoria da “admissibilidade da prova ilícita em nome do princípio da proporcionalidade (ou da razoabilidade)” é a mais correta. LOPES JR.91 refere que nessa teoria a prova ilícita, tendo em vista a relevância do interesse público a ser preservado e protegido, poderia ser admitida em certos casos. Assim, ela seria admitida em casos excepcionais e graves, quando a obtenção e admissão forem consideradas as únicas formas possíveis e razoáveis para proteger a outros valores fundamentais92. Certamente, nas operações “meramente” atípicas, não há gravidade suficiente capaz de ensejar a violação de um direito fundamental em prevalência a outro, eis que sequer há indícios de crime. Contudo, o que se vê na prática é a quebra do sigilo ocorrendo de maneira ilegal, porque inidônea, desnecessária, ou, ainda, desproporcional aos fins a que se destina93. PENTEADO94 defende o seguinte:

Somente com alguma prova da ocorrência de um crime determinado e presentes indícios mínimos de sua autoria, formalizando-se um procedimento e preenchidos os requisitos do processo cautelar, pode ser quebrado o sigilo bancário. Inteirando-se da existência de um delito grave que se pode atribuir a certa pessoa, a autoridade pública, fundamentadamente, poderá decerrar o segredo bancário para a cabal comprovação daquele e reunião de provas de sua autoria.

Desse modo, não é legal a quebra do sigilo bancário para saber se houve algum crime atribuível a alguém, “uma vez que não basta ‘mera prova’ da ocorrência de grave crime, mas a prova da ocorrência material da infração, sem o que não se pode falar em justa causa para a restrição, que se revela de extrema gravidade jurídica95”. Ademais, LOPES JR.96 destaca que o perigo dessa teoria é a constante manipulação do conceito de proporcionalidade, na medida em que “basta ver a quantidade imensa de decisões que ainda operam o reducionismo binário do interesse público X interesse privado, para justificar a restrição de direitos fundamentais a partir da ‘prevalência’ do interesse público”. Nesse sentido, tem-se o voto de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence:97:

Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer

91 JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume I, p. 550. 92 Ibid. 93 ASSIS MOURA, Maria Thereza. Meios de Impugnação à Quebra Indevida do Sigilo Bancário. IN: Direito Penal Empresarial. Coordenadora Heloisa Estellita Salomão, p. 165. 94 PENTEADO, Jacques de Camargo. O sigilo bancário, p. 93. 95 Ibid. 96 Ibid., p.551. 97 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus N.º 80.949, Relator Sepúlveda Pertence, Publicado em 14 de dezembro de 2001. Disponível em www.stf.jus.br. Acessado em 16 de outubro de 2010, as 11h30min.

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custo, da verdade real no processo: conseqüente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade - à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira - para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação.

Portanto, é “um grave retrocesso lançar mão de conceitos jurídicos indeterminados e, consequentemente, manipuláveis, para impor restrição de direitos fundamentais98”. Além disso, “aqueles que ainda situam a discussão no campo público versus privado, além de ignorarem a inaplicabilidade de tais categorias quando estamos diante de direitos fundamentais, possuem uma visão autoritária do direito e equivocada do que seja sociedade99”. Por fim, o LOPES JR.100 refere o seguinte:

Entendemos que a palavra sociedade deve ser compreendida dentro da fenomenologia da coexistência, e não mais como um ente superior, de que dependem os homens que o integram. Inadmissível uma concepção antropomórfica, na qual a sociedade é concebida como um ente gigantesco, no qual os homens são meras células, que lhe devem cega obediência. Nossa atual Constituição e, antes dela, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, consagram certas limitações necessárias para a coexistência e não toleram tal submissão do homem ao ente superior, essa visão antropomórfica que corresponde a um sistema penal autoritário. Assim, no processo penal, há que se compreender o conteúdo de sua instrumentalidade, recusar tais construções.

Em suma, a admissibilidade de uma prova ilícita no processo penal deve ocorrer de maneira excepcional, de modo a violar ao mínimo as garantias individuais, e somente nos casos em que houver indícios de crime e que não haja outros elementos probatórios.

3.3.2 Prova Ilícita por Derivação

De acordo com LOPES JR.101, “uma vez considerada ilícita a prova e não tendo sido admitida, deve se verificar a eventual contaminação que essa prova produziu em outras, e até mesmo na sentença, conforme exigência feita pelo art. 573, §1º, do Código de Processo Penal102”. O art. 157 do Código de Processo Penal cuida da problemática da contaminação:

Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

98 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume I, 551. 99 Ibid. 100 Ibid. 101 Ibid., p. 553. 102 Art. 573. Os atos, cuja nulidade não tiver sido sanada, na forma dos artigos anteriores, serão renovados ou retificados. § 1o A nulidade de um ato, uma vez declarada, causará a dos atos que dele diretamente dependam ou sejam conseqüência.

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§ 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. § 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. § 3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.

Da leitura do artigo extraem-se algumas regras, quais sejam: a inadmissibilidade da prova derivada, imprescindível nexo de causalidade entre as provas, ausência de contaminação caso seja possível obtenção da prova por fonte independente da ilícita e o desentranhamento e inutilização da prova ilícita103. Assim, a teoria da inadmissibilidade das provas derivadas consiste no desentranhamento do processo da prova que originar-se de outras ilícitas, sem que seja possível a sua descoberta por fonte independente. Contudo, como revela LOPES JR.104, a teoria da contaminação é bastante mitigada nos Tribunais, levada quase à ineficácia, em razão da recorrente aplicação da teoria da fonte independente e suas variações. Desse modo, percebe-se facilmente que o tema sobre provas é altamente discutível, sendo objeto de diversas críticas doutrinárias, bem como de diferentes entendimentos jurisprudenciais. Entretanto, sem adentrar no tema, o presente estudo limita-se a esclarecer que todas as provas derivadas de operações financeiras comunicadas ilicitamente pelo COAF às autoridades competentes deverão ser desentranhadas, eis que consideradas contaminadas.

CONCLUSÃO

A globalização, observada a partir do século XX, permitiu uma intensa circulação de pessoas, bens e capitais.

Assim, a maior facilidade de interação à distância com a difusão das telecomunicações e da internet, a maior facilidade de transporte de bens por todo o globo e a eliminação de barreiras domésticas à livre circulação de pessoas e valores favoreceram a utilização do sistema financeiro como meio para dissimular e ocultar origens ilícitas de produtos que serão, posteriormente, reintegrados à economia formal. Essa conduta denomina-se lavagem de dinheiro.

Contudo, da mesma maneira que a globalização econômica propiciou espaço e meios para a prática de crimes transnacionais, também proporcionou instrumentos de defesa para combatê-los.

O marco inicial do combate à lavagem de dinheiro é a Convenção de Viena, promovida pela ONU e referendada pelo Brasil em 1991. A partir daí, outros mecanismos de combate foram apresentados, como a Declaração de Princípios do Comitê de Basiléia, a criação do GAFI – Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro, a Convenção sobre lavagem, 103 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Volume I, p. 555. 104 Ibid.

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identificação, apreensão e confisco de produtos do crime, a Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade Organizada Transnacional, o Grupo de Egmont e, no Brasil, a Lei 9.613/98.

Tal lei brasileira dispôs sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens, regras de cooperação internacional, prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos e criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, unidade de inteligência financeira brasileira, que teve efetivação somente com a edição do Decreto. 2.799, em 08 de outubro de 1998.

A esse Órgão foi dada a prerrogativa de compartilhar com o Ministério Público e a Polícia Federal informações de operações financeiras sigilosas dos cidadãos quando concluírem pela existência de crimes (art. 15).

Contudo, se o referido compartilhamento ocorrer sem que existam indícios concretos do cometimento de crimes, o poder de atuação do COAF estará extrapolando os limites impostos pela Constituição Federal.

Isso porque, a intimidade é um direito constitucionalmente previsto, devendo ser restringido somente em casos excepcionais, eis que a limitação a esse direito ocasiona uma verdadeira devassa na vida particular do cidadão, deixando-o exposto a diversos constrangimentos.

Desse modo, se no momento da análise das operações financeiras não forem encontrados indícios suficientes da prática de crimes, o direito ao sigilo não poderá ser violado, tendo em vista que não há qualquer “interesse público” que autorize a restrição.

Entretanto, é possível que, em algumas hipóteses, ainda que não haja indícios de crime, a quebra de sigilo ocorra.

Frise-se, contudo, que isso só poderá ocorrer se estiver presente a figura do juiz constitucionalmente competente autorizando a medida.

Significar dizer que somente o Poder Judiciário é competente para verificar até que ponto há prevalência de um direito sobre o outro e se as restrições se fazem imprescindíveis, no caso concreto.

Sendo assim, conclui-se que as provas obtidas através dos dados financeiros sigilosos que não apresentem indícios de crimes, tampouco autorização judicial para o compartilhamento, serão consideradas ilícitas, em decorrência da violação à garantia constitucional de intimidade.

Portanto, todas as provas colhidas em desconformidade constitucional deverão ser desentranhadas do processo, bem como aquelas derivadas, eis que consideradas contaminadas.