Conferências - O Valor da Vida (Um verdadeiro chamado à conversão), Gustavo Corção

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    O VALOR DA VIDAGustavo Coro

    NO H VIDAS INTEIS

    Senhores:

    O Dr. Alosio de Paula convidou-me a vir aqui dizer-lhes algumas palavras

    sobre o problema religioso. No sei o que a maioria dos senhores pensa do

    tema que me foi proposto. Para deix-los mais vontade, confesso-lhes que

    eu no me sinto muito vontade, e que reconheo a impropriedade destareunio, aqui, neste local, nesta hora, no sabendo eu a maior parte dos

    senhores quem so, o que querem, e o que esperam de mim.

    Sinto-me um pouco estrangeiro desculpem-me um pouco intruso,

    como certamente sentiu-se Paulo, o apstolo, nas ruas de Atenas, vendo

    passar os altivos gregos, entre os quais o assustavam mais particularmente

    os filsofos, que destacavam da turba ignara, pela capa tranada ao ombro

    com pregas de escultura, e pelo sobranceiro olhar perdido no mundo das

    essncias.

    E no julguem que essa comparao com o apstolo seja impertinente.

    Quem quer que traga uma mensagem religiosa um imitador dos

    apstolos. No vai nisto nenhuma soberba. Se eu estivesse aqui a ministrar-

    lhes uma aula sobre a emisso eletrnica, como o fao em outros lugares,

    no teria a coragem de me apresentar como um imitador de Planck ou de

    Borh. Seria ridculo. Quando se trata porm de uma mensagem religiosa,

    muda de figura a questo. E bom que os senhores desde j se habituem,

    ou comecem a chocar-se com este tom afetivo, cordial, familiar, de homem

    para homem, sem o qual no possvel transmitir com palavras o que para

    ns uma vida de todos os instantes.

    Alis, o que mais me preocupou, quando comecei a preparar os

    apontamentos para esta reunio, foi a impossibilidade de condensar, nesses

    sessenta minutos que me so adjudicados pelas regras que regem as

    conferncias, um assunto to vasto, uma mensagem que, a rigor, exigiria

    um convvio prolongado, e tornado com o tempo verdadeiramente familiar.

    E era isto tambm, certamente, o que mais preocupava o apstolo quandocomeou a falar, de p, no centro do arepago de Atenas. Mal tendo tempo

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    para bordar os pontos essenciais, mal podendo vencer as primeiras

    resistncias de um auditrio desconhecido, Paulo tentou transmitir, numa

    ousada e absurda condensao, o alfa e o mega do Evangelho.

    Para isto, valeu-se de um recurso. Comeou por salientar o que j havia de

    comum entre ele e os atenienses, chamando a ateno para uma misteriosainscrio que notara de passagem num altar vazio: Ao deus

    desconhecido...

    No sei se os senhores conhecem a passagem dos Atos dos Apstolos em

    que est relatado o discurso de Paulo aos gregos. Reza assim o texto:

    Em p no meio do arepago, Paulo comeou a falar: Atenienses, em tudo

    eu vejo que sois homens sumamente religiosos, porque, passando eu, e

    observando as coisas do vosso culto, encontrei em altar com esta inscrio:

    ao deus desconhecido...

    Ora, aqui tambm lhes posso dizer o mesmo, porque tive a alegria de saber,

    por uma inscrio lida nestas paredes (*), que h entre ns muitas coisas

    comuns. Os senhores crem no valor absoluto da vida, crem que no h

    vidas inteis, e isto que me autoriza a dizer como Paulo: Vs sois homens

    sumamente religiosos...

    *

    No h vidas inteis... Saltando agora do Apstolo para o vate, eu me

    proponho glosar este mote.

    Muita coisa se poder deduzir desta frase, porque seu contedo, tirando o

    arranjo literrio que meu, reduz-se a uma dessas simples e robustas

    verdades que so de todo o mundo. Entre as glosas possveis escolhi esta: a

    pesquisa do fundamento real desta frase, ou melhor, a busca daquilo em

    que obscuramente se cr quando se cr que no h vidas inteis.

    claro que eu no poderia comear a mais simples palestra se no

    houvesse entre ns um postulado comum. Tomo, pois, como base prvia de

    um entendimento, essa aquiescncia intuitiva, ou instintiva, essa tcita

    concordncia, esse mnimo que torne possvel entre ns um comeo de

    comunicao. Contudo, por precauo, mesmo contando com esse dado

    preliminar, permitam que o friccione um pouco, para anim-lo, vitaliz-lo,

    eletriz-lo, at que a simples idia do respeito vida, colocada em termos

    de um absoluto, se torne entre ns uma atmosfera de certeza cordial e

    profunda. Tentarei faz-lo.

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    No h vidas inteis...

    Tudo em ns afirma no s o valor, mas o valor absoluto da vida. Vale a

    pena viver. Vale a pena lutar indefinidamente, obstinadamente, para

    defender palmo a palmo essa terra sagrada: a ptria dos vivos. Vale a penacurar. Vale a pena curar-se, ainda que nesse glorioso torneio tenham de

    adotar a meticulosa teimosia do personagem do Immoraliste de Andr

    Gide.

    E enquanto houver alento, enquanto no deitarmos nesse maravilhoso

    tabuleiro nosso rei, vale a pena jogar com argcia e destreza, costurando,

    suturando, obturando, cerzindo, colapsando, fazendo tudo o que for possvel

    para a defesa de um fio de cabelo, e de um centmetro quadrado de

    epiderme. H em cada cura uma honra. E esse estandarte a honra da

    defesa do corpo no vosso somente, enquanto mdicos. nosso. de

    todos. a honra do homem. Comeo pois por aqui: pela honra do fio de

    cabelo ou do centmetro de pele.

    Houve tempo em que duvidei dessa honra; quando dei acordo de mim, vi

    que estava duvidando de todas. desse tempo j se vo dez anos uma

    pgina de dirio que lhes vou ler:

    Vi ontem no dentista uma cena que me deixou abismado em tristes

    cogitaes. Tendo chegado porta do gabinete para pedir transferncia dehora, vi na cadeira do cirurgio um moo esqueltico e exangue. A

    tuberculose espalhara cartazes de uma indecente publicidade, nos olhos,

    nas mas do rosto, nas orelhas despegadas, na cor da pele, e no

    inconfundvel desenho dos ombros. Era difcil ser mais integralmente

    tuberculoso. Dir-se-ia que at o cansao de tropical cinzento era tsico

    tambm. Triunfava a doena, naqueles restos de carnes chupadas, como

    uma absorvente e desvairada amante.

    Ora, quando eu cheguei porta, estava o dentista curvado, atento, acimentar com escrupulosa mincia um buraco milimtrico no dente do

    moo. Metia assim no seu corpo um granito minsculo antes que metessem

    o corpo inteiro em baixo de um granito.

    Nesse dia amanh ou dentro de um ms o melhor de seus amigos de

    infncia empunhar sem muito jeito a p convencional, e a cal chover com

    som lgubre em cima de um caixo. E depois, o pedreiro desembaraado,

    absorto em coisas de sua prpria vida, obturar o moo inteiro com todos os

    seus dentes inteis.

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    A est o pensamento atroz que naquele dia registrei. Mas logo no dia

    seguinte encontro esta outra nota com o ttulo de anttese:

    Quem tem razo o moribundo. Tem razo de cuidar-se; e, se no tem,

    ento ningum a ter, porque a nica diferena que existe entre ns dehoras, ou de meses. De nmero, em suma. Ora, o nmero, como se sabe,

    no altera a substncia das coisas. Trs mas ou trs mil mas tm o

    gosto de ma. Trs dias, ou trs mil dias tm o gosto da vida. Ou da morte.

    Vivemos assim tapando buracos, arrumando, varrendo, escovando. Somos

    todos jardineiros de cemitrio. Por mais que nos venham dizer, os

    astrnomos ou os profetas, que estamos na casca de um planeta em brasa,

    ou na garupa dos sculos desenfreados, ns no podemos mistrio!

    deixar um dente entregue crie e um chapu poeira. O homem um

    animal que faz questo de ser decente.

    H realmente uma fundamental decncia e hoje diria com mais nfase:

    uma honra na defesa de nossa integridade. No h vidas inteis, ainda

    que durem trs minutos. No h prolongamento ou cura que sejam

    desprezveis, ainda que o beneficiado no saiba como empregar os seus

    pulmes normais como j me aconteceu e saia do consultrio mdico

    para gastar esse infinito patrimnio em noitadas de pif-paf.

    claro que existem melhores aplicaes para os dias de sade, mas isto

    outra histria. O ponto que desejo marcar esse do valor absoluto eincomensurvel da vida. Partamos pois desse princpio. E por ele, por esse

    princpio simples, antigo, direto, intuitivo, impulsivo, fecundo, ns sabemos

    que no dispomos de nenhuma escala para medir o valor da vida.

    s vezes tentamos esse empreendimento de medir o que incomensurvel,

    e tomamos o metro da dor fsica para concluir que melhor que morra o

    paciente se o pouco que lhe resta de vida est condenado ao sofrimento. A

    eutansia a ilgica conseqncia do excesso de lgica. Ela aconselha a

    matar baseada na certeza da morte prxima, e no direito sobre a dor. Ora,se a morte prxima, porque abrevi-la? E qual a diferena essencial

    entre o moribundo e um de ns? Se por causa da dor qual o critrio, a

    medida, o grau centgrado de dor que perdoa ou condena? E quem poder

    dizer o significado de cinco minutos de vida?

    Na verdade, a vida no pode ser medida, nem com o quilmetro da dor,

    nem com o centmetro do prazer. Poderemos talvez medi-la pela densidade

    do interesse ou pela espessura de feitios e realizaes? Assim parece. s

    vezes temos a impresso de que h vidas mais valiosas do que outras. Nas

    operaes de guerra, por exemplo, a vida de um general mais preciosa e

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    irreparvel do que a vida de um simples soldado. Nas campanhas sociais e

    culturais tambm costumamos nos referir a mortos ilustres como se a vida

    deles fosse mais preciosa do que as nossas annimas vidas. H cerca de um

    ms, por exemplo, calou-se a grande voz que foi George Bernanos. Todos

    ns, que ainda conseguimos distinguir uma autntica voz de homem nouniversal desconcerto de grunhidos, sentimos o vazio deixado por essa

    morte, e vimos, por assim dizer, o enorme dimetro do buraco por onde

    Bernanos desapareceu.

    Querer isto dizer que sua vida era mais cara, mais fina, mais rara, do que a

    vida do quitandeiro annimo que morreu no mesmo dia? Algum dos

    senhores, diante dos dois moribundos, um minuto antes das duas mortes,

    ousaria pensar que o grande romancista merecia, mais do que o pequeno

    quitandeiro, os desvelos da profisso? Algum de ns, mdico ou no,

    ousaria ponderar no ntimo do corao que o dimetro da morte mede o

    dimetro da vida?

    Que se team consideraes sobre a lacuna deixada por esta ou aquela

    personalidade de realce; que se noticie o desaparecimento do general com

    discurso mais longo e mais circunstanciado do que a morte leve e pequena

    do soldado; que se avaliam as obras, os ttulos, a falta que faz o morto

    tudo isto ainda se entende; porque essa falta, esses ttulos, essas obras,

    pertencem ao relativo, ao efmero, quilo em suma que se pode medir ou

    pesar. Mas, falando da vida, de uma vida, de uma vida de homem, domistrio, do absoluto, do infinito de uma vida de homem, ns j no

    podemos, sem trair nossos princpios mais intuitivos, e sem trair nossa

    honra, preferir esta ou aquela, fazendo contabilidade, ou tomando decises

    que so privilgio exclusivo do Autor da vida.

    No h vidas inteis. No h vidas insignificantes, desde que se ponha

    nestas palavras a clave do absoluto. Mas, de onde vem essa nova

    dimenso? Onde ficam esses eixos de referencia, ou melhor, qual ser o

    fundamento real, a base concreta desta convico que, embora em grausdiferentes, todos j possumos? Qual ser a raiz desse mistrio?

    Poderemos talvez pensar que a Vida, com V maisculo, esse fundamento.

    Poderemos talvez crer que a Vida com V maisculo, algo de divino que

    cada um de ns, o general e o soldado, carregam em doses iguais, ou quase

    iguais, como carregam os mesmos litros de sangue, o mesmo fgado, o

    mesmo clcio, o mesmo azoto; e que estar nessa democracia das vsceras

    o critrio que nos manda honrar igualmente o soldado e o general. De fato,

    um general, visto por dentro, no se distingue do soldado raso. Seu fgado

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    no o acompanha nas promoes, podendo at acontecer que um general

    intemperante tenha a espada na ativa, o fgado na compulsria.

    fcil provar que o nosso obscuro respeito pelas vidas no repousa no

    respeito pela Vida, isto , numa espcie de superessncia da qual cada umde ns participa por imerso.

    Fosse assim, ns no nos embaraaramos com os doentes, esses indignos

    portadores de to fina substncia. O vitalismo, como doutrina moral, teria a

    imediata conseqncia do desprezo pelas vidas em nome do respeito pela

    Vida, com V maisculo. Cada um de ns seria um mero suporte, facilmente

    substituvel. Deveramos mesmo apressar zelosamente essas substituies

    promovendo um metdico e cientfico massacre dos vacilantes. E

    imaginando que nesse mundo pudesse existir a simples dor de uma

    saudade, compreendendo-se quo abundantes seriam as consolaes.

    Morre este, nasce aquele; e a grande divindade do vitalismo estar bem

    servida. As tristezas e os lutos dependero somente de um balano

    organizado entre os cemitrios e as maternidades. Havendo saldo, est tudo

    bem; e as vivas e os rfos automaticamente deixaro de ser rfos e

    vivas.

    No mundo vitalista, realmente vitalista, a me de oito filhos que perdesse

    um deles, atropelado na fatdica avenida Getlio Vargas, sentiria uma dor

    que se exprimiria por uma reduo de um oitavo de felicidade; e, quando noPronto Socorro o mdico lhe viesse dizer que o filho estava desenganado,

    essa virtuosa me vitalista correria ao telefone para aprazar com o marido,

    nessa mesma noite, a imediata reposio daquela unidade vital periclitante.

    O ponto onde desejo chegar, com esses exemplos absurdos, que o

    fundamento real do absoluto respeito pelas vidas no est nessa coisa

    chamada Vida capaz de animar cada um dos mseros suportes que lhe

    submete suas vsceras normais. O fundamento, se existe, est antes nesses

    mesmos suportes; isto , est no fato de cada homem ser uma realidademaior e mais rica do que parece quando vemos passar um soldado e

    pensamos: ali vai um soldado; ou quando contemplamos num livro de

    histria natural a estampa marcada com essa esquisita inscrio: O Homem.

    O fundamento real, concreto, daquele mote que estamos glosando, se

    existe algum, est em cada um de ns, um por um, naquele mistrio que

    melhor se designa quando perguntamos quem ele? e quem sou eu?

    do que quando perguntamos o que ele? ou o que sou eu?.

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    O que eu quero dizer que a chave, se alguma existe, est na pessoa

    humana; na realidade concretssima da nica e insubstituvel pessoa de

    cada um; ou melhor, est no fato de cada um de ns ser algo mais do que

    um indivduo, isto , uma unidade quantitativa dentro de uma espcie.

    Quando vemos um homem, vemo-lo geralmente sob o ngulo do relativo,

    do efmero, do dimensional, do numrico, e dizemos: ali vai um general, um

    senador, um operrio, um ingls...; e muito raramente nosso olhar penetra o

    interior de quem da pessoa desse absoluto que passa assim escondido no

    efmero.

    preciso apurar os olhos para entrever a realidade profunda da pessoa

    humana. Quando dizemos que no h vidas inteis estamos dizendo, de

    modo indireto, que h uma imensa e prodigiosa realidade escondida em

    cada homem. De outro modo a nossa frase podia ser bonita, amvel,

    simptica, o que quiserem: mas ela no teria o mais sagrado dos atributos:

    no seria verdadeira. Seria uma dessas mentiras a que nos apegamos

    desesperadamente e que Ibsen, pela boca de um de seus personagens,

    chamou de mentira vital. Seria um desses numerosos truques com que

    ns nos enganamos; e convm assinalar que cada um de ns um gnio

    nisto de se enganar a si mesmo.

    Estamos aqui num divisor de guas. Devemos optar. Ou riscamos aquela

    frase; ou ento tratemos de abrir os olhos para vislumbrar um primeiroreflexo desta misteriosa fosforescncia que vem de dentro do homem que

    vemos passar.

    Procuremos juntos a lente que retifica, ou o colrio que desanuvia o olho do

    homem para viso do homem. H dois caminhos a seguir. No primeiro, eu

    faria um apelo s mais altas faculdades, convidando-vos a entrar no pas

    encantado da metafsica. No segundo, eu faria um apelo mais cordial,

    convidando-vos a entrar no pas ainda encantado das coisas simples e

    familiares. Poderia demonstrar que os dois convites so um s convite, oumelhor, que os dois caminhos conduzem ao mesmo lugar.

    Tomemos o segundo: o caminho do bom senso e da cordialidade. E

    comecemos com um exemplo figurado.

    Vemos passar na rua um regimento. Os soldados so todos iguais. Os

    uniformes so todos iguais. verdade que uns soldados so mais gordos,

    outros mais magros. H portanto uma pequena variao no corte dos

    uniformes, mas no pensem que o alfaiate aplica seu metro em cada

    soldado. No assim que se faz. Os uniformes, os sapatos, os capacetes,

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    tudo o que o soldado usa, feito de acordo com as estatsticas. O soldado,

    at pouco tempo atrs, era o mais despersonalizado, o mais numerado dos

    homens. Hoje, o funcionrio disputa-lhe esse ttulo. O operrio tambm.

    Todo o mundo hoje disputa o ltimo lugar. Ningum mais quer ser Joo ou

    Maria. Todos querem ser unidades numricas dentro de um quadro.

    Dias atrs li no jornal a notcia de um drama de amor com tiros e lisol; mas

    vejam, senhores, os tempos em que vivemos: o jornal contava o drama

    dizendo que o aerovirio Fulano, com tresloucado cime, matara a bancaria

    Cicrana. No sei se ria, ou se chore. A tragdia e a comdia se acotovelam,

    e eu me julgo autorizado a lhes perguntar que espcie nasceria, se em vez

    de drama houvesse casamento entre o aerovirio e a bancria? Eu penso

    que nasceria um hbrido estril.

    Mas voltemos ao exemplo clssico do soldado, porque, se comeo a falar

    nos horrores da burocracia arrisco-me ao delrio. Voltemos pois ao soldado.

    Cada um uma unidade quantitativa, de fcil substituio. Na guerra

    morrem aos milhes. O boletim militar menciona essas perdas, exprimindo-

    as com cifras. Quando as perdas no passam de alguns milheiros, o boletim

    declara, com laivos de otimismo, que as perdas so pequenas. Quando as

    mortes no passam de dezenas, o boletim declara secamente que as perdas

    so insignificantes. Nada de novo no oeste. E tem razo: L no seu ponto

    de vista, tem razo. Para o estado-maior um soldado um soldado, isto ,uma unidade inteiramente, completamente submetida ao interesse coletivo.

    Para o estado-maior a pessoa no existe.

    Quando porm o boletim de guerra afixado nas paredes de burgo, com os

    nomes de vtimas, h uma velha camponesa que sente a vista escurecer, e

    tudo em torno oscilar, vendo um nome, um s nome, um s entre tantos,

    pular com uma flecha da lista para o corao.

    Meus senhores, eu no estou apelando para os vossos bons sentimentos. Hcircunstncia em que vale a pena apelar para as fibras afetivas. No o

    contesto. Mas quando se quer falar da realidade do amor, da veracidade do

    amor, no convm tocar nos nervos das pessoas para que essa suprema

    realidade no seja confundida com o sentimentalismo que pe ao canto do

    olho um fcil umedecimento. preciso, ao contrrio, uma grande

    impassibilidade e uma grande seriedade para falar do amor.

    O exemplo que escolhi, para mostrar como um soldado se transforma em

    pessoa, serve para mostrar que essa realidade, a pessoa, h pouco nos

    parecia uma difcil elucubrao de filsofo, perceptvel facilmente, nessa

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    antiga, eterna e cotidiana experincia da velha me dolorosa diante de sua

    cruz. O que eu quero dizer que a revelao prtica da realidade da pessoa

    est ao nosso alcance, desde que saibamos olhar com os olhos do amor. O

    que eu quero afirmar, ainda que me caiam nalma dez mil decepes por

    dia, a realidade, a seriedade e a veracidade do amor.

    Ora, a primeira intuio da vida de amor a da singularidade da pessoa

    amada. Ela nica. realmente insubstituvel. Mesmo para a me

    carregada de filhos, cada um deles representa sua felicidade inteira, como

    se nessa estranha partilha fosse possvel dividir sem partir, ou partir sem

    dividir.

    Ns outros, que temos na cabea cinzas de desiluses, quando a secura da

    vida nos turva essa capacidade de ver com olhos de amor, isto , de

    conhecer melhor, costumamos sorrir do desespero do namorado ferido em

    seu afeto. Pois se h tantas mulheres no mundo, por que se afligir com a

    falta de uma s?

    A namorada perdida uma perda insignificante. Nada de novo no oeste.

    me que perde um filho mal nascido, temos vontade de dizer que

    importa? Nascer outro daqui a nove meses.... O que uma verdade em

    obstetrcia, e nas estatsticas dos planejadores da medicina social, mas no

    uma verdade na linguagem exigente e absoluta do amor. A partilha que ame e o pai fazem entre os filhos, dando tudo a cada um; a experincia

    anloga da amizade, capaz tambm de distribuir sem fracionar; esta

    esquisita operao pela qual a dor da perda de um filho entre dez no

    uma reduo de dez por cento na felicidade da famlia, mas uma perda total

    tudo isso serve para nos advertir que essa operao se processa num

    plano em que o quantitativo superado pelo absoluto.

    E qual esse plano? Qual esse mundo da pessoa? Qual esse domnio

    onde se pode dizer com forte acento de convico que no h vidas inteis?

    Permitam-me mudar aqui, bruscamente, a direo de nossas idias dando-

    lhes ou outro exemplo em que uma mesma coisa pode ser dividida por

    muitos sendo dada inteira a cada um.

    Considerem o fenmeno desta nossa conferncia. As palavras que estou

    pronunciando esto sendo divididas por todos. Ocorre a algum pensar que

    cada um dos senhores est recebendo 1/50 da conferncia? Passa pela idia

    de algum que a parte que lhe cabe na partilha desta palavra seja

    inversamente proporcional ao quadrado da distncia? Evidentemente no.

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    O pouco que aqui lhes estou falando uma coisa que cada um recebe

    inteira. E ainda mais: ningum pensar que o fato de dar essa coisa

    esquisita que uma conferncia vai produzir um desfalque em quem d. Ao

    contrrio, quem ensina fica sempre sabendo um pouco mais depois da aula.Pode-se mesmo dizer que numa aula o professor sempre um dos melhores

    alunos.

    Vejam pois que tanto no caso de uma conferncia como no caso de amor,

    as leis habituais ficam subjugadas, superadas, vencidas por uma nova lei

    que permite partilhar sem dividir; e dar ficando mais rico.

    Qual a chave desse enigma que insere uma to escandalosa quo

    incontestvel realidade nos nossos esquemas materiais e quantitativos?

    Qual ser o denominador comum entre a conferncia, o mistrio da pessoa,

    a realidade do amor que v o que h de nico em cada um, e aquela

    intuio profunda de que no h vidas inteis?

    S pode ser uma a chave: o homem no um simples aglomerado de

    tecidos e rgos; no somente capaz de ver, ouvir, cheirar; no somente

    um animal movido pelos apetites sensveis, vido pela boca e pelo sexo...

    tudo isto, evidentemente. Tem braos, pernas, rgos, sentidos (ningum

    at hoje, entre os nossos, o ps em dvida!) mas algo mais. tambm um

    ente dotado de uma inteligncia capaz de partilhar sem dividir, de darficando mais rico, de apreender sem desfalcar; e dotado de uma vontade

    capaz de um amor lcido, penetrante, audacioso, que sem se deter na

    superfcie das coisas penetra-lhes no mago com a violncia de um fogo.

    Tudo isso que at agora vos disse pode ser simplesmente resumido nesta

    concluso: o homem um ser dual, bivalente, composto de corpo e alma

    espiritual. na realidade concreta e substancial do esprito que se

    enquadram os fenmenos aparentemente desconexos de que aqui falamos.

    E nesta realidade a vocao de absoluto e de eternidade que podeencontrar algum fundamento aquele modesto mote de to prolongada

    glosa: no h vidas inteis.

    A realidade do esprito, a vida do esprito, as operaes do esprito, esses

    so os dados essenciais que no podem ser afastados um s minuto se

    queremos edificar uma cincia verdadeira do homem. Sem esse dado, to

    substantivo e concreto quanto um fgado, no possvel compreender as

    coisas mais simples da vida humana, desde o bom-dia at o mais herico

    dos sacrifcios. Sem esse dado, esta conferncia seria um puro fenmeno

    acstico, menos interessante do que j por outros motivos. Sem esse

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    dado, no h como passar do soldado para a pessoa. Sem esse dado, no

    existem a inteligncia e o amor verdadeiramente humanos. Sem o

    reconhecimento do espiritual, e sem a primazia do espiritual, no possvel

    pensar numa sociedade humana em que os indivduos empenhados no

    coletivo, possam recuperar a liberdade essencial da pessoa humana.

    O Homem dual. E por causa dessa dualidade fundamental ele pode ser

    visto segundo duas perspectivas diferentes: a do indivduo, e da pessoa. E

    de dois modos que cada um se relaciona com a sociedade: pelo indivduo,

    ns nos relacionamos com os outros por causa de nossas carncias, e por

    causa do apoio que o coletivo proporciona ao individual; pela pessoa, ns

    nos relacionamos com os outros por uma exigncia de generosidade, por

    uma transbordante necessidade de trocar em nvel alto, de dar, ficando

    mais rico medida que mais distribui.

    Essa a nossa primeira concluso: o dualismo da natureza humana; e o

    primado do espiritual. E esta concluso o principio que est na base

    daquelas palavras que encontrei gravadas nesta parede. Negado este

    princpio, aquela frase no passar de uma mentira vital entre as muitas

    com que costumamos alimentar a nossa malcia.

    A CONDIO HUMANA E SEUS CONFLITOSDevo-lhes um reparo; quase uma concesso. O que at aqui lhes disse,

    sobre a realidade do esprito e a dignidade da pessoa humana, expe-se

    seguinte objeo: curioso que essas realidades to evidentes sejam

    entretanto to freqentemente postas em dvida.

    um fato. A est a histria do mundo.

    Alis, a insistncia e o tom caloroso com que geralmente se procura

    defender essas verdades j deixam entrever o drama que as obscurece. Ahonrosa importncia que os senhores deram quela frase j nos parece um

    pouco suspeita. Se a sua evidncia fosse clara e sem manchas, ela no

    estaria gravada na parede, carregada com meus pobres recursos literrios;

    ela estaria cravada em ns, lmpida e pura. Que me perdoe o Dr. Alosio de

    Paula se to mal retribuo sua delicadeza dizendo que ele gostou da frase,

    um pouco porque duvidava dela. Duvidou primeiro: depois redescobriu o

    que sempre soubera; e mandou ento grava-la com o reconhecimento de

    quem se reconcilia.

    11

  • 7/28/2019 Conferncias - O Valor da Vida (Um verdadeiro chamado converso), Gustavo Coro

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    O fato que nesses problemas que mais nos interessam, ns s podemos

    partir de evidncias obscuras se possvel dizer assim. O fato que a

    condio humana cheia de contradies e conflitos.

    Falei-lhes h pouco do que o homem de sua natureza dual, ni ange ni btee tentei mostrar-lhes que a raiz do nosso ser mergulha num mistrio de

    aventura e de risco. A ntima unio da matria e do esprito j anuncia em si

    mesma um infinito de conseqncias. Ora, tudo nos indica que de fato

    alguma coisa aconteceu na origem de nossa histria, e que o princpio de

    aventura radicado em nosso ser transformou-se em tragdia real. Na

    primeira parte deste nosso estudo procuramos mostrar o que o homem .

    Agora vamos considerar como o homem est, isto , vamos expor algumas

    reflexes sobre a situao concreta desse ente bizarro que j de incio, por

    sua prpria natureza, nos deixa adivinhar que sua histria no h de ser

    muito tranqila. Em outras palavras, vamos abordar algumas das

    contradies profundas da condio humana.

    *

    No sei se algum dos senhores j leu o Rocambole de Ponson de Terrail. o

    que se chama baixa literatura. Quem leu, geralmente no gosta de

    confessar.

    Ora, eu tenho em embrio uma pequena teoria que conto um diadesenvolver: acho a m literatura, s vezes, melhor do que a literatura. A

    declarada e descarada vulgaridade tem algo de franco, de abandonado, de

    jovial, de suculento, que dificilmente se encontra nos suplementos

    dominicais em que os autores ficam numa espcie de limbo, entre a

    nutritiva estupidez dos bons romances policiais e a nutritiva sabedoria da

    genuna literatura. Na minha futura teoria, s recomendvel ler

    Dostoiewski ou Rocambole; Bernanos ou Rafles; Maritain ou Nick Carter;

    porque s nesses extremos que se encontra uma autntica notcia do que

    o homem.

    Lembrei-me agora de Ponson de Terrail por causa de um lapso genial

    cometido por esse folhetinista, que alis era fecundo em enganos desse

    tipo. Para mim, o lapso transforma-se em smbolo, e eu vejo o homem

    moderno mais prximo do smbolo de Ponson de Terrail do que do famoso

    smbolo de Sflocles.

    O caso a que me refiro o seguinte: em certa passagem de um de seus

    interminveis folhetins havia um personagem, um conde, metido numa

    intrincada empresa que exigia pronta deliberao. E ento conta o

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    folhetinista o conde montou a cavalo e partiu galopando em todas as

    direes.

    A est nessa esplndida imagem a figura do homem: um ser capaz de

    galopar em todas as direes. Em outras palavras, o homem, como vemos,na situao em que est, o mais evasivo dos seres. Sua explosiva

    natureza, composta de esprito e matria, isto , de fogo e plvora, j

    deixaria entrever, em abstrato, que sua histria no seria cmoda. Sua

    natureza to venturosa, que parece melhor realizar-se quando rompe seus

    prprios limites e se ofende a si mesma.

    No admira muito que, na origem de nossa histria, a integridade de to

    explosiva natureza e a observncia de to dinmicos limites precisassem

    apoio num pacto de sagrada obedincia. Ora, essa obedincia foi uma vez

    quebrada, os diques do pacto rompidos, e a humanidade precipitou-se pelos

    vales da histria como um avalanche. E ns vemos passar em tumulto esses

    estranhos seres crivados de contradies, capazes de desejar com ardor

    aquilo mesmo que fere a sua prpria natureza, capazes de assaltar e pilhar

    o prprio domiclio, capazes de morder o prprio corao.

    Em linguagem mais comedida eu assinalo este fato: o dualismo aventuroso

    da natureza do homem transformou-se em dualidade dolorosa, em conflito,

    em tragdia. Ns somos portadores de conflitos; inventores de conflitos.

    Somos capazes das mais finas, e das mais grosseiras contradies. O uso daliberdade radical, decorrente de nosso esprito, se manifesta mais

    claramente pela insensatez do que pela prudncia. H quem duvide dessa

    liberdade, h quem duvide mesmo do esprito, o que me parece incrvel

    porque somente a racionalidade, e somente a liberdade explicam a

    prodigiosa facilidade de errar, prpria do homem. Se h pouco ns

    chegamos concluso de que o homem um ser dotado de alma espiritual,

    partindo de seus melhores e mais elevados princpios, agora, permitam-me

    o paradoxo, chegaremos mesma concluso da eminente dignidade

    humana, partindo de sua indignidade. S a grandeza na degradao, explicatamanha misria, disse Pascal.

    *

    Consideremos alguns desses conflitos, e tomemos os que se parecem

    particularmente agravados em nossos tempos.

    No caminho do homem h certos bens que mutuamente se excluem: quem

    escolhe um tem que abandonar os restantes. H entretanto outros bens que

    se completam e que s podem ser tomados ao mesmo tempo, sem excluir

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    nenhum. Quero lhes mostrar como geralmente se pretende abarcar onde se

    deve excluir; e se pretende excluir e escolher onde se deve abarcar.

    H certos bens que se excluem. Entre casar-se e no casar-se; entre

    estudar medicina ou dedicar-se aos negcios; entre a carreira militar e oscargos civis; preciso escolher um deixando o outro. bom casar-se, e

    bom no se casar; bom estudar medicina, e bom ser negociante; bom

    dedicar-se s armas como preferir as carreiras liberais. Mas entre cada um

    desses dois bens preciso escolher. preciso escolher corajosamente,

    disposto a perder o que no se escolheu.

    Ora, fcil mostrar que a sociedade moderna, na grave crise que atravessa,

    parece ter esquecido essa pequena regra elementar das escolhas ntidas.

    Quem casa, continua muitas vezes a viver como se no tivesse casado;

    quem estuda medicina no afasta de si muitas vezes a idia de fazer disto

    um negcio; quem cinge a espada no deixa de espreitar, muitas vezes, as

    menores oportunidades de ocupar cargos civis. No discuto aqui as causas.

    Vejo somente o fato bruto: a todos ns, homens deste sculo e desta cultura

    mrbida, repugna a escolha.

    Eu disse que quem casa continua a viver como solteiro. Permitam-me

    desenvolver um pouco essa idia.

    Trinta anos atrs, no tempo em que me casei pela primeira vez, eracostume, e um slido costume, considerar este ato como decisivo. Ao moo

    bomio, vagabundo, farrista, freqentador de roletas, notvago, bebedor,

    no ocorria, absolutamente que ele tivesse o direito de fazer aquelas

    mesmas coisas depois de casado. Por fraqueza ou perverso moral ele

    poderia depois de casado voltar para casa cambaleando, s trs da

    madrugada; mas o que importa assinalar, nessa poca, a ausncia de uma

    perverso intelectual que, de antemo, desconhece a honra do novo estado.

    O direito de praticar aquelas coisas depois da linha divisria do casamento,

    naquela poca, era unanimemente contestado. O problema no deindivduos, de casos; mas de cultura, de clima social. E naquele clima, por

    mais desregrados que fossem os costumes, a desregra no tinha a fora de

    um costume, de um dado cultural, de um direito.

    Usavam-se tambm, nesse tempo, certos sinais para designar a pessoa

    casada. A mulher vestia-se de outro modo. Do dia para a noite mudava de

    roupa. Os figurinos dividiam-se claramente entre as solteiras e as casadas.

    Nossas mes dos mais velhos de ns pelo menos usavampeignoire

    bata de rendas. Nossos pais, no dia do casamento, ganhavam um guarda-

    chuva de casto de ouro.

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    Era ridculo, se os senhores quiserem; mas era tambm imensamente

    razovel. Aquelas coisas eram as insgnias do novo estado. Serviam para

    assinalar, nitidamente, concretamente, a fora e a realidade de uma

    deciso.

    Ora, na sociedade de nossos tempos, j no se observa o mesmo. As

    decises so vagas, as opes pouco corajosas, e cada ato nosso anda

    acompanhado de uma longa causa de possibilidade de recuo. promessa

    feita, j corresponde uma tcita reserva; carta jogada na mesa

    correspondem outras escondidas na manga do casaco.

    O sujeito que se casa, neste clima natural, j carrega o gosto pela

    indeterminao, a tibieza pela observncia da nova regra, e pretende entrar

    airosamente no matrimnio com os mesmos costumes de solteiro. As

    mulheres tambm, evidentemente. Aquilo em que o homem e a mulher

    melhor se entendem no propsito de se degradarem juntos. A mulher

    tambm, depois de casada, depois de se rasgar ao meio para que uma nova

    vida brote, regada no seu sangue, continua a mesma, com o mesmo

    desembarao, usando as mesmas roupas de menina e esforando-se por

    manter o mesmo corpo de menina, como se nada tivesse acontecido, como

    se aquele dilaceramento fecundo tivesse sido apenas um mau quarto de

    hora no dentista. E a criana que parece ter nascido mais do acaso do que

    do amor, fica presa em casa, ou presa no automvel, para que esses doispais continuem a vida de solteiros, estudantina e feliz, com a nica

    diferena de dormirem juntos.

    *

    Senhores, no quero prolongar aqui o processo de nosso tempo que nos

    levaria longe com prejuzo da clareza. Voltemos ao ponto de partida.

    Eu estava assinalando o fato do homem, por sua natureza e por seu estado,

    ter a estranha capacidade de inventar conflitos e contradies. E umadessas contradies consiste justamente em fugir s oposies de dois bens

    que de fato, e acidentalmente, se excluem, negando-se ntida escolha.

    Vejam bem: a soluo perfeita dessas oposies acidentais consiste em

    tomar uma coisa e deixar outra. Radicalmente. Decisivamente. E

    exatamente o contrrio que cada dia mais se prefere fazer. Cada um de ns

    quer galopar em todas as direes.

    Agora considerem um outro problema que deriva tambm de nossa

    natureza, e de nosso estado. Por causa do dualismo radical do homem h

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    certos bens que parecem se excluir, como se estivessem em conflito. E aqui

    vejam bem! aqui onde a soluo consiste justamente em tomar os dois

    bens em aparente contradio harmonizando-os e elevando-os ambos,

    a sociedade de nossos tempos pretende exercer uma escolha, tomando um

    e deixando outro. O bem do corpo, por exemplo, parece incompatvel com obem do esprito. O bem do individuo entra em choque com o bem comum

    da sociedade. E no prprio esquema das virtudes morais parece

    estabelecer-se uma oposio trigonomtrica entre as virtudes: a mansido e

    a coragem parecem incompatveis; a justia e a bondade parecem

    irreconciliveis; o patriotismo e o senso da solidariedade humana parecem

    antinmicos. E assim por diante.

    Ora, nesse domnio, nesse autntico domnio em que o dualismo humano

    tem de manter o mais elevado e esforado equilbrio, abrangendo os

    extremos, alargando o seu campo de aplicao, escolhendo tudo, tomando

    ao mesmo tempo este e aquele bens essenciais, o do corpo e do esprito, o

    do indivduo e o da sociedade, cultivando as virtudes dos quatro pontos

    cardeais, ao mesmo tempo, com a inteireza e organicidade neste

    domnio que o homem de nossos tempos pretende exercer a escolha, uma

    escolha que no exclui coisas extrnsecas caminhos a seguir, mas que exclui

    uma metade de seu prprio ser.

    Vejam por exemplo a crise social. Em que consiste precisamente o

    comunismo? Na iluso de um bem coletivo dominando e asfixiando o bemindividual. Em que consistiu o liberalismo de nossos pais? Na iluso de uma

    autonomia do bem individual em prejuzo do bem comum. Qual ser a

    soluo deste problema que parece armado em termos de conflito?

    Deveremos tomar um meio termo entre o bem individual e o bem comum,

    concedendo aqui, disputando acol, at conseguir uma partilha mais ou

    menos eqitativa, como a de dois ladres que dividissem com dio e

    suspeita o manto da vtima?

    No. a soluo consiste em elevar os dois termos, em soerguer as duaspontas, e em procurar o equilbrio elevado, dotado de uma nova dimenso,

    onde lucrem ao mesmo tempo os dois bens. E esta soluo s pode ser

    encontrada quando reintroduzirmos no problema o dualismo comprometido,

    firmando o primado do espiritual, e enunciando a realidade da pessoa

    humana. O monmio sociolgico dos marxistas ou dos liberais se transforma

    num binmio pelo qual as relaes entre o homem e a sociedade se

    estabelecem com dois termos: indivduo-sociedade; sociedade-pessoa.

    A sociedade parece assim como um termo de conexo entre o homem e o

    homem.

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    *

    Tomemos outro par de bens que so apresentados em contradio: a

    liberdade e a autoridade. O anarquismo pretende abolir o poder poltico,considerando-o a fonte de todos os males. O totalitarismo pretende abolir a

    liberdade individual como nico meio de tornar o homem feliz.

    E cada uma dessas experincias tem a trgica e infalvel conseqncia: a

    escolha de um desses bens essenciais resulta sempre, invariavelmente, na

    perda dos dois. Os liberais do sculo passado so os fatores dos

    totalitarismos de nosso tempo. A anarquia traz a perda da liberdade; a

    tirania traz a perda da autoridade. Na sociedade tiranizada no o tirano

    quem manda, o DASP, a Holerith, a estampilha. O injustiado no tem

    a quem se queixar. O protegido pelas caixas no tem quem lhes atenda, de

    homem para homem, e quem lhes oua as mgoas, e lhes alivie as mazelas,

    de homem para homem.

    O tirano exerce a tirania, mas no pode exercer a autoridade. O estado

    totalitrio no , como se diz, um estado autoritrio, porque a noo de

    autoridade est presa noo de relao homem para homem. Ora, o

    estado totalitrio oprime mecanicamente, burocraticamente,

    impessoalmente, cegamente. Ser at imprprio falar em abuso de

    autoridade a propsito do estado totalitrio. O indivduo que casse embaixo de uma barreira, ou se afogasse numa inundao, ou agonizasse num

    incndio, no poderia pensar, sem agravar seu ltimo momento com um

    filosfico desvario, que o barranco, a gua e o fogo estivessem abusando da

    autoridade.

    Qual a soluo, outra vez, dessa aparente oposio? , outra vez, aquela

    que exaltar simultaneamente os dois termos. Somente uma sociedade bem

    hierarquizada pode proporcionar aos homens um clima de liberdade. No se

    trata de conciliar os dois termos, em magra medida, disputando autoridade miligramas de liberdade. Trata-se de crescer em ambos. E esse

    crescimento s possvel quando no problema se introduz a quarta

    dimenso da pessoa humana e se afirma o primado do espiritual.

    *

    Consideremos finalmente, como terceiro exemplo, o juzo que o homem faz

    de si mesmo, de sua condio, de sua vida. Esse problema nos aproxima

    daquele outro por onde comeou esta nossa palestra, e fcil verificar que,

    em torno desse problema, nasce uma irredutvel oposio entre o

    pessimismo e o otimismo. Parece que temos abundantes motivos para

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    ambas as atitudes, e somos otimistas uns e pessimistas outros, ou ento, o

    que ainda mais freqente, somos ora otimistas, ora pessimistas.

    Levando essas atitudes at as conseqncias extremas, ns vemos

    delinear-se com os contornos de uma teoria, de um lado o pessimismoradical que v na condio humana to ignbil corrupo que aspira a uma

    reforma total, a uma reforma ontolgica, biolgica, zootcnica; de outro

    lado o otimismo dos que crem na capacidade do homem construir seu

    prprio paraso.

    A revoluo dos racistas, a quarta da humanidade dos integralistas, a

    poltica maquiavlica, que fala sempre em termos de inovao (Estado

    Novo, Nova Ordem, Quarta Humanidade, etc) repousa sobre um profundo e

    visceral pessimismo que chega repugnncia do homem pelo homem, que

    Nietzsche nos seus ltimos dias j no tentava ocultar.

    Do outro lado esto os homens que compraram lunetas cor-de-rosa nas

    feiras do humanismo vulgar que cr na santidade natural, e se apega na

    iluso de que os males do homem esto fora do homem, na estrutura

    econmica, na monocultura, no boi zebu, no mosquito. O homem nasce

    bom, a sociedade que o perverte, dizem os descendentes de Rousseau.

    Modifique-se a estrutura econmica da sociedade, e o homem ser feliz,

    dizem os descendentes de Marx ou de Kropotkine. O marxista, o anarquista

    e o liberal encontram-se nesse otimismo que desconhece o trgico dohomem. Eles conhecem a receita infalvel, o especifico, o soro, o golpe de

    bisturi salvador, e no admira muito que, no zelo da descoberta, queiram

    conduzir a humanidade anestesiada para a mesa de operao.

    Qual ser a atitude verdadeira entre esses dois extremos? Deveremos

    escolher uma eqidistncia, tomando uma mdia aritmtica ou geomtrica

    entre o sombrio Nietzsche e o sentimental Rousseau? Deveremos procurar

    um matiz intermedirio entre o verde-negro infernal dos nazistas e o rosado

    imbecil das almas laqueadas de otimismo?

    A soluo, a nossa, est em procurar qual o legtimo otimismo e qual o

    legtimo pessimismo que possam ser abrangidos de ponto a ponta, e

    soerguidos ambos num equilbrio em alto nvel. Aqui, mais do que nunca,

    devemos ouvir uma palavra admirvel de Bossuet: Il faut tenir les deux

    bouts de la chane. Ou uma palavra no menos admirvel de Pascal:

    Grandeur et misre de la condition humaine.

    Estamos diante de um grave problema. Na primeira parte desta nossa

    palestra tnhamos concludo que o valor absoluto da vida se fundamentava

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    naquilo que o homem realmente : um animal dotado de inteligncia e

    vontade espiritual, um animal capaz de poesia, de amor e de filosofia. Um

    ser dotado de liberdade.

    Agora, examinando mais de perto, vendo o homem passar, pensandosobretudo nos desatinos desse estranho personagem, estamos comeando

    a pensar que aquele eixo no basta; ou melhor que aquele eixo no um

    verdadeiro eixo.

    Os antigos j pressentiam que a sorte do homem no depende somente do

    homem. Vejam por exemplo a tragdia do rei dipo. Ele sabia o que era o

    homem; ele decifrara o enigma da esfinge; ele ouvira o aviso; ele estava

    ciente, advertido contra o parricdio e o incesto. Apesar de tudo, porm, o

    Destino o esmaga, levando-o a matar o pai e a unir-se com a me. E o pobre

    personagem carrega no termo de seus dias a grandeza de um rei e a

    misria de um mendigo.

    O que parece e que os antigos pressentiam obscuramente que o eixo

    de referncia da sorte do homem no est nele mesmo. O que parece que

    o humanismo, isto , a valorizao do homem, no se pode centrar no

    prprio homem, e que se torna necessrio rever nossos clculos,

    reconsiderar nossas rbitas, para procurar como Coprnico o fez para os

    astros, o centro de gravitao de nossas almas.

    O norte-sul da vida humana no est em ns mesmos; como o norte-sul da

    agulha imantada no depende somente de sua imantao, mas da

    existncia de dois plos. Se insistirmos em referir aos nossos prprios eixos

    os nossos mais audaciosos anseios, e os nossos mais angustiosos receios,

    no h como sair, e como evitar a mutilao que toma ora uma ponta do

    problema ora outra, sem nunca poder atingir o elevado equilbrio necessrio

    para abranger os extremos.

    Em outras palavras: se ns procurarmos em nosso prprio ser as bases parafirmar o sentido da vida, acabamos sempre traindo o nosso ser. Se ns

    pretendemos construir o humanismo centrado no homem, tornamo-nos logo

    desumanos.

    Recapitulemos um pouco o que at aqui j dissemos:

    Comeamos a considerar o problema do valor da vida; e vimos que aquela

    frase precisava um fundamento. Encontramo-lo na intuio do valor da

    pessoa. Depois, vimos que este, por sua vez, se firma no dualismo essencial

    do homem e no primado do esprito.

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    Ia tudo muito bem. Mas agora, quando ia tudo muito razoavelmente, o

    problema desandou, a bssola enlouqueceu, e o cenrio de nossos

    problemas foi bruscamente invadido por personagens de tragdia e por

    personagens de comdia.

    Dir-se-ia que explodiu aquele paiol ambulante que o homem; que o

    dualismo essencial se manifestou em uma dinmica e poliforme dualidade.

    Dir-se-ia que o ncleo, o eu do homem, est sofrendo um processo de

    desintegrao.

    De fato, cada homem que passa, com seu casaco ridculo, batendo em

    ndegas tristes, um ego em decomposio, uma bomba atmica, ou um

    busca-p errtico e cmico, que ziguezagueia, com mais plvora uns, com

    menos fagulhas outros, mas todos com o mesmo indeterminismo

    desvairado do heri de Ponson de Terrail.

    *

    A primeira virtude religiosa de que o homem precisa, antes mesmo de ter

    uma atitude religiosa, uma certa lealdade, um certo fair play, uma espcie

    de senso esportivo, um reflexo da justia, em suma, que o leva a perguntar

    se no est em Outro, fora de si mesmo, o plo verdadeiro de um

    verdadeiro otimismo e um verdadeiro pessimismo.

    Essa virtude, simples, lisa, elementar, de bom jogador, de franco lutador,

    nos levar infalivelmente concluso que o homem no o princpio do

    homem, e que o homem no o fim do homem. Uma total dependncia, e

    uma ordenao a um fim ltimo e absoluto: eis os plos orientadores, o alfa

    e o mega de nossa bssola.

    E da, com mais um passo, ns tiramos que o sentido da vida s possvel,

    e pensvel, nos termos dessa nova e absoluta referncia, na qual opessimismo e o otimismo, harmonizados, conjugados, elevados, recebem

    estes nomes novos: temore esperana.

    *

    Pelo temor ns sabemos que pecamos, e que fomos concebidos no pecado.

    Sabemos que no nos bastamos, que no temos em ns o princpio ativo

    capaz de nos levar ao nosso fim. Que o nada nos atrai. Que o equilbrio

    precrio de nosso eu se compromete em cada gesto maior que fazemos.

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    Pelo temor, ns sabemos que nossa aventura original degenerou em

    tragdia, e que Aquele que nosso Princpio e nosso Fim velou-nos sua

    Face. Pelo temor, sabemos que estamos no escuro. Sabemos que estamos

    em falta. E tudo nos diz se tivermos esse elementar senso esportivo

    que devemos curvar a cabea, e dobrar os joelhos. Porque de justia.

    O temor de Deus o princpio da sabedoria.

    E esse temor bom. justo. Eu diria mesmo: corajoso. Esse temor reto,

    honesto, leal; eu diria mesmo: viril. E tambm afetivo, reconhecido,

    sincero, profundo, penetrado de estremecimento, e impregnado de

    ternuras. Eu diria mesmo: filial.

    Esse o nosso pessimismo.

    *

    Quanto nossa esperana, senhores, ela repousa nas promessas de Deus.

    Nos piores dias de nossa vida ela nos faz companhia. Nos sofrimentos mais

    agudos ou mais persistentes, ns temos dentro de ns a semente da paz. E

    ningum, ningum no mundo a pode arrancar de ns, seno ns mesmos,

    pelo pecado, quando ousamos preferir qualquer coisa, seja o que for, s

    promessas de Deus.

    Da o nosso temor. Da o nosso corajoso e humilde temor: corajoso

    porque sabemos que ningum, ningum no mundo, nos pode arrematar

    tamanho bem; humilde porque sabemos que ns mesmos, ai de ns,

    podemos perde-lo.

    Mas, com um pouco de abandono, com um pequeno movimento de amor, a

    Esperana em ns vence o temor, conservando-o, elevando-o, agasalhando-

    o, como me moa que ternamente protege a fragilidade de seu filho.

    Nossa esperana, senhores, vem de Deus mesmo. No somos ns que a

    inventamos, que a deduzimos, que a fabricamos. Deus mesmo quem no-la

    deposita na alma, com as outras virtudes teologais, a F e a Caridade, que

    a maior. E ns sabemos, agora, que nosso Destino no a fora cega que

    empurrava o rei dipo para o parricdio e para o incesto. Ns sabemos que

    as portas de nossos destinos abriram-se; sabemos que o Filho de Deus

    deitou-se sobre o abismo de dor e morte para que ns todos, um por um,

    pudssemos passar por cima de seu corpo. Ns sabemos que uma festa

    est sendo preparada para ns, desde toda a eternidade, e, quando

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    apuramos os ouvidos, conseguimos distinguir os rudos desses

    preparativos...

    Quando ramos pequeninos, nas vsperas dos aniversrios, ou das noites

    de Natal, ficvamos s vezes acordados na cama, nervosos, impacientes; etrocvamos olhares compreensivos com nossos irmos, noite a dentro,

    ouvindo os passos, as vozes, os rudos novos de objetos novos, e

    trocvamos olhares cheios de suposies, ouvindo a surda azfama dos pais

    que povoavam nossa noite de mistrios e esperanas.

    Ora, nossa esperana de hoje, essa esperana teologal, parece-se muito

    com aquela esperana filial de antigamente. Ns sabemos, com a certeza

    da f, que h uma festa preparada para ns, e sabemos, desde j, que os

    preparativos escondidos no nos esto inteiramente escondidos. Ouvimos

    sinos que batem, ouvimos passos em procisso, ouvimos, como um rio de

    amor, um murmrio de oraes e sabemos que aqui mesmo, aqui em

    baixo, aqui e agora, entre velas e clices, e pes, que o Cristo Jesus e sua

    Me preparam, para ns! as garantias da ressurreio...

    Senhores,

    Foi nesse ponto, justamente quando Paulo falou na ressurreio, que os

    seus sbios e civilizadores ouvintes do arepago mexeram-se nos lugares e

    se entreolharam com sinais de impacincia. Foi neste ponto que os chefesda assemblia se levantaram e, chegando-se ao palrador, disseram com

    cortesia: Est bem... est bem... na prxima vez tu nos explicars isto

    melhor... tu nos dirs o resto....

    Dispersou-se ento a assemblia. Saram todos, rindo-se uns, abanando a

    cabea outros. Os filsofos, com um altivo trejeito da capa tranada ao

    ombro, passaram pelo gesticulante asitico, sem o ver, com o sobranceiro

    olhar perdido no mundo das essncias.

    Paulo, abandonado e acabrunhado, sentindo que pregara em vo, voltava

    para casa que o hospedara; e ia triste e magoado. Irritava-o sobretudo a

    soberba daquela v filosofia, que ele fustigar mais tarde, escrevendo aos

    Corntios, e muito mais tarde, despedindo-se de Timteo... Ele prefere ser

    louco, a ser como aqueles moderados gregos; prefere ser um insensato a

    ser como aqueles sbios; prefere ser um aborto, prefere ser a varredura do

    mundo, a ser como aqueles orgulhosos... Ia assim Paulo, ruminando a sua

    derrota, quando, de repente, entre os rudos da praa, ouviu passos atrs de

    si. Passos diferentes. Passos de quem acompanha. Ou de quem persegue.

    Ou de quem busca. Passos conhecidos de Paulo, o apstolo de ouvido fino.

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    Entre mil outros, no bulcio, e no vozerio, seus ouvidos de profissional, de

    conhecedor, sabiam distinguir esses primeiros passos de quem se pe a

    correr no encalo do Cristo. Deteve-se. Algum tocou-lhe no brao direito. Ia

    voltar-se: sentiu-se travado no brao esquerdo. Era Dionsios, e Damaris.

    Um homem e uma mulher. Dois que vinham saber o resto...

    Senhores,

    Posso estar enganado. Posso estar incorrendo num ridculo mortal. Mas

    arrisco-me a dizer que Dionsios e Damaris esto aqui nesta sala. Creio-o,

    quase como num artigo de F. Creio-o, porque aonde vai a palavra de Deus

    carregada por um de ns, o sopro de Deus toma a dianteira, e vem preparar

    os coraes; porque ele bem conhece a pobreza de nossas palavras, e a

    secura de nossos coraes.

    S me resta dizer, a esse Dionsios, a essa Damaris, que se apressem, que

    no percam tempo, que venham escutar conosco os rudos promissores da

    festa que o Cristo e sua Esposa preparam para ns, e receber desde j, aqui

    e agora, a semente da ressurreio.

    E ns, que somos servos dos servos de Deus, aqui estamos, para ajudar,

    para indicar o caminho, para contar o resto da histria: onde quiserem e

    quando quiserem; de dia, de noite, na rua, no caf, em casa, quando e onde

    queiram, de todo o corao.

    (*) Aluso s palavras que o autor encontrou emolduradas no consultrio do

    Dr. Alosio de Paula: No h vidas inteis: a mais obscura, que ainda traga

    aceso e quente o mais malogrado corao, ainda um homem estimvel e

    insubstituvel, nico no gnero, necessrio harmonia do universo. Trs

    Alqueires e Uma Vaca.

    Conferncia pronunciada na Policlnica do Rio de Janeiro.

    (originalmente publicado em Fronteiras da Tcnica, ed. Agir).

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