Condeixa, memória, história e paisagem

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Condeixa Paisagem Memória História ÍTULO:CONDEIXA - PAISAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA

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C o n d e i x a

P a i s a g e mM e m ó r i aH i s t ó r i a

ÍTULO:CONDEIXA - PAISAGEM, MEMÓRIA E

HISTÓRIA

Page 2: Condeixa, memória, história e paisagem

AUTORES: ARTUR MENDONÇA

JOSÉ MAGALHÃES CASTELA

CÂNDIDO PEREIRA

JOAQUIM FILIPE SOARES

REBELO

PAULO MARQUES DA SILVA

JOSÉ AMADO

EDITOR

E

DISTRIBUIDOR: PARÓQUIA DE CONDEIXA-A-

NOVA

IMPRESSÃO: G.C. - GRÁFICA DE

COIMBRA, Lda

[email protected]

CAPA: ARQUITECTO FLÓRIO

DEPÓSITO LEGAL: XXXXX

FOTOS: Condeixa Antiga:

Fotos cedidas por António

Costa Pinto

Condeixa Actual :

Albano Leandro, Carlos

Eduardo, Luis Borges

Toda a reprodução desta

obra, por fotocópia ou outro

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qualquer processo, sem

prévia autorização escrita do

Editor, é ilícita e passível de

procedimento judicial

contra o infractor.

Índice

Prefácio ................................................................

9

D. Albino Mamede Cleto

Monumentos e Palácios de Condeixa ..................

11

Artur Mendonça

Condeixa ao Pé da Porta ......................................

49

José Magalhães Castela

Imagens de Condeixa ..........................................

67

Cândido Pereira

Ecos da guerra.

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Condeixa-a-Nova durante a II Guerra

Mundial ................................................................

109

Joaquim Filipe Soares Rebelo

«Estórias» da Oposição em Condeixa .................

157

Paulo Marques da Silva

As Irmãs Hospitaleiras do Sagrado

Coração de Jesus

em Condeixa ........................................................

193.....................................................José Amado

Dados biográficos dos Autores ............................

221........................................................................

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Os Monumentos e Palácios de Condeixa

Artur Ângelo Barracosa Mendonça

São antiquíssimas as referências a

Condeixa. Os vestígios de ocupação

humana da paisagem também são

visíveis, em Conímbriga e em outros

locais deste concelho. Porém, o

objectivo do presente trabalho deve

focalizar-nos no núcleo urbano de

Condeixa-a-Nova e em alguns elementos

do seu património edificado. Certamente

será uma escolha discutível, porque

colocamos uns e omitimos outros, mas

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razões ponderosas nos obrigam a isso.

Em relação aos monumentos mais

importantes faremos pequenos esquiços

sobre a história do monumento, o que se

diz e o que conseguimos saber acerca

dele, das linhas gerais da sua

construção e de alguns episódios mais

marcantes que nele se tenham passado.

Os monumentos seleccionados foram

o Palácio Sotto Mayor, o dos Almadas, o

dos Figueiredos, o dos Sás e a Igreja

Matriz de Condeixa, ou Igreja de Santa

Cristina.

Palácio Sotto Mayor

Palácio dos Lemos Ramalho ou Sotto Mayor

O Palácio Sotto Mayor é um dos

edifícios mais importantes do

património arquitectónico de Condeixa.

Porquanto tenha sido erigido no século

XVII, foi já na época pombalina que

sofreu as reestruturações que lhe

conferiram a sua fisionomia actual.

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Em 20 de Junho de 1732, foi criado o

morgadio de Nossa Senhora da Piedade

por José Rodrigues Ramalho e sua

mulher D. Úrsula de Oliveira Catana,

onde já existia um antigo solar que lhe

dava o nome. Este palácio foi também

conhecido como o Palácio dos Ramalhos,

de Condeixa, em homenagem aos seus

primeiros proprietários. Na construção

original, a entrada principal era feita

lateralmente. Em 1737, foi construída

uma nova capela, para onde foi mudada

a escultura em pedra de Nossa Senhora

da Conceição pertencente à capela

velha.

Durante o período pombalino a

construção foi ampliada e a fachada foi

duplicada. Construiu-se também uma

entrada central, com escadaria dupla

que levaria ao andar superior, onde se

situava o espaço mais nobre do edifício.

Durante os séculos XVIII, XIX e XX, e

à semelhança de outros solares, recebia

com regularidade visitas régias ou

potentados políticos. O palácio foi uma

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das residências particulares mais

distintas do país, hospedando figuras

destacadas da história nacional: D. João

VI, então, príncipe regente; D. Miguel I,

D. Maria II, D. Pedro V e até o escritor

Alexandre Herculano. Já no início do

século XX, visitaram-na D. Carlos e o

príncipe D. Luís Filipe, conforme o

relato na imprensa da época.

Na fase final da Monarquia, em 1904,

o palácio acolheu o rei D. Carlos. Dizia-

se nessa ocasião que o proprietário do

palácio, Manuel Pereira Ramalho,

destacado membro do Partido

Regenerador Liberal, liderado por João

Franco, já se tinha filiado «no

constitucionalismo por afeição pessoal a

S. M. el-rei Senhor D. Carlos»1, já que,

antes, a família estava ligada à corrente

legitimista. Conta-se mesmo que,

quando a Rainha D. Maria II esteve

hospedada no palácio, o proprietário

teria afirmado ao recebê-la: «Entrego

nas mãos da sobrinha do meu Rei as

chaves do meu palácio»2, mostrando

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desta forma algum descontentamento

com a situação.

Anos depois, em 1910, a revista

Ilustração Portuguesa dedica um

extenso artigo ao palácio. Ao longo de

quatro páginas, bastante ilustradas,

revelam-se alguns aspectos do Palácio

Sotto Mayor, da sua história e dos seus

proprietários. Um dos aspectos curiosos

que se destaca do artigo é a riqueza

iconográfica, com imagens de como era

o aspecto exterior do palácio, bem como

os jardins, para além de imagens de

alguns dos seus proprietários ao longo

do tempo. Por outro lado, retira-se da

parte final do artigo o seguinte «Dos

vários solares que existem por todo o

País é este dos Lemos dos mais belos,

não na sua forma exterior, igual à

maioria, mas pelas riquezas que

encerra, pelas preciosidades que

alberga e onde deve ser agradável

evocar essa nobilíssima figura d’ outra

época, o conde de Condeixa, por graça

de um rei destronado»3.

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A construção do edifício,

razoavelmente conhecida, apesar de não

se ter conseguido ainda determinar

quem foi o responsável pela obra, é

marcada pela imponência. A estrutura

foi construída utilizando alvenaria

rebocada e como elementos decorativos

as cantarias trabalhadas. É aquilo que

se pode considerar um típico palácio de

província, com carácter austero,

influenciado pelo estilo barroco e

vocacionado para uso residencial. Tem

três corpos principais, com uma longa

fachada de dois pisos, onde se destacam

dois grandes torreões quadrados,

encimada pelos brasões das famílias

ilustres - Ramalho e Lemos - a que

pertenceu. O edifício demonstra apenas

na zona central da fachada alguma

preocupação na resolução formal e

elementos compositivos e decorativos.

Observam-se ainda um conjunto de

dezanove janelas com varandas, uma

porta principal rectangular, com colunas

coríntias a suportar a varanda que se

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ergue sobre a entrada, com janelas e

molduras em forma de volutas. O corpo

central termina em empena triangular

com brasão. Na restante fachada,

vislumbram-se aberturas rectangulares

no piso térreo e janelas de sacada no

piso nobre.

Anexa ao palácio, em perpendicular,

do lado direito, encontra-se a capela

dedicada a Nossa Senhora da Piedade,

onde é possível ver, na capela-mor, um

retábulo de madeira policromado,

datado do século XVIII. A capela é

decorada em azulejos, recortados, de

meados do século XVIII, de fabrico

coimbrão. Os azulejos formam

composições decorativas, com cenas de

reduzida dimensão, onde sobressai a

Virgem Maria. Encontra-se, também

feito em azulejo, o brasão dos Ramalhos.

Existe ainda uma imagem de madeira,

da autoria do escultor espanhol José

Planas, construída em 1922.

Em 1920, o palácio e a quinta foram

adquiridos pelo banqueiro Dr. Cândido

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Sotto Mayor4, que na altura fez

importantes melhoramentos no palácio.

Por fim, em 1950, por falecimento de

Cândido Sotto Mayor, o palácio passou

para a posse do comandante José

Correia Mattoso, seu genro.

Actualmente, o palácio encontra-se na

propriedade dos descendentes do

comandante Correia Mattoso.

Um dos episódios mais marcantes da

história deste edifício prende-se com as

invasões francesas e, muito

particularmente, com o episódio do

incêndio ateado pelas tropas

napoleónicas em Condeixa. A polémica

surgiu porque o edifício escapou

praticamente incólume à devastação de

que grande parte da vila foi alvo.

Surgiram especulações e avolumaram-

se suspeitas quanto à fidelidade do seu

proprietário, Manuel Pereira Ramos de

Azeredo Coutinho Ramalho, à causa

nacional. Sugeriu-se mesmo uma

possível aliança estratégica ou acordo

secreto com o quartel de Massena como

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a causa provável para a conservação do

palácio.

Para além da estrutura do edifício, o

palácio também era reconhecido como

um dos mais luxuosos do País. Numa

paisagem que o enquadrava e que lhe

realçava o aspecto, os jardins, a

vegetação ou o lago serviram para o

tornar ainda mais belo. Outro dos

aspectos que se destacava neste palácio

era a riqueza e sumptuosidade do seu

recheio. Eram nove grandes salões onde

era possível encontrar mobiliário Luís

XIV, louças ricamente decoradas da

China ou do Japão, os quadros, onde se

destacavam dois quadros do pintor

Guilherme Filipe intitulados Cristo

Negro e Salomé5, as esculturas e tantas

outras coisas que o tempo e as partilhas

familiares conduziram ao gradual

desaparecimento.

O edifício do Palácio Sotto Mayor

encontra-se protegido pelo Decreto n.º

735/74, publicado no Diário do Governo

de 21 de Dezembro.

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Palácio dos Almadas

Pousada de Santa Cristina ou Antigo Palácio dos

Almadas

O Palácio dos Almadas é,

presentemente, uma pousada integrada

na rede Pousadas de Portugal, tendo

sido desta forma resgatado da

desoladora ruína para que caminhava.

Este palácio foi construído no século XIV

e pertencia à família dos Almadas, que

conquistaram grande reputação por

terem sido dos conjurados que

prepararam a Restauração em 1640.

Porém, como eram parentes dos Távoras

acabaram por perder grande parte da

sua importância com o processo que

lhes moveu o Marquês de Pombal no

século XVIII.

A família Almada ganhou notoriedade

por receber, ao longo dos anos, diversas

individualidades da mais distinta

nobreza e realeza europeias. Apontam-

se entre os visitantes personalidades

como D. Manuel, em 1500; D. Catarina,

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em 1704, após a morte de Carlos II da

Inglaterra; finalmente, também visitou

este palácio D. Carlos, irmão de D.

Fernando VII, de Espanha, em18336.

Este palácio tinha uma capela

dedicada a S. João, passando depois a

ter como patrono o Senhor da Agonia.

Esta capela foi demolida em 1940. No

seu interior existia uma escultura

representando um papa e em cada lado

um bispo e por cima da porta o brasão

de armas dos Lopes Quaresmas. O

edifício tinha na sua frontaria o brasão

com as armas dos Almadas.

Tudo indica que os seus primeiros

proprietários terão sido D. Lourenço de

Almada e D. Antão Vaz de Almada. O

primeiro terá tomado parte na expedição de

Alcácer Quibir e foi feito prisioneiro; quando

regressou, veio viver para Pombalinho e, mais

tarde, para Condeixa-a-Nova.

Já na primeira metade do séc. XIX foi

transformado em hospedaria, porque se

situava perto da estrada de passagem e

do ponto de muda da mala-posta. Em

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Abril de 1853, o palácio foi vendido ao

conselheiro Dr. António Egípcio

Quaresma Lopes de Vasconcelos, que o

mandou reconstruir de acordo com a

traça antiga.

Em 1937, o edifício foi adquirido pelo

Dr. Cândido Sotto Mayor, com o

objectivo de ali instalar um lar para

idosos. Porém, a morte prematura e

inesperada, do adquirente, inviabilizou o

projecto.

A partir de 1993 este palácio passou a

funcionar como pousada. Assim, o Palácio dos

Almadas parece manter uma vocação para a

actividade de hospedagem, pelo que a sua

transformação na Pousada de Santa Cristina

não só permitiu a sua conservação, enquanto

edifício, como perpetuou esta vertente,

restituindo-lhe algum do antigo esplendor.

Palácio dos Figueiredos da GuerraPalácio dos Figueiredos da Guerra, actualmente

Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova (perspectiva frontal)

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Este palácio, também denominado

Palácio dos Figueiredos da Guerra, ou

dos Condes de Portalegre, situa-se no

actual Largo Artur Barreto; foi

construído no segundo terço do séc.

XVII e, apesar de ter sido destruído

aquando das Invasões Francesas,

conservou uma imponente fachada.

É um edifício dividido em três corpos

por meio de pilastras, com um pátio

interior de onde se elevam duas

escadarias que dão acesso ao andar

superior, ligadas entre si por uma

varanda. Catorze janelas rasgam a sua

frontaria, onde se destaca, em relevo, o

brasão de armas dos Figueiredos.

O palácio teria no seu interior

grandes salões onde era possível

apreciar trabalhos em madeira de

castanho, em talha trabalhada e azulejos

de que, hoje, nada resta7. O edifício é

marcado por uma arquitectura simples e

rural, com acesso para um quintalão

murado que actualmente já não existe

porque, entretanto, foi construído o

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centro cívico e o novo edifício do

tribunal, existindo agora um espaço

ajardinado e calcetado, para além de um

parque de estacionamento subterrâneo

que fez desaparecer o antigo quintalão.

Foi proprietário do edifício Martim

Gomes de Figueiredo, que era

superintendente das coudelarias da

comarca de Coimbra. Ainda durante o

século XVII, o palácio foi restaurado por

João Rodrigues Figueiredo. Após estas

obras de remodelação, o edifício passou

a ser designado por paço dos

Figueiredos de Condeixa ou Paço do

Capitão-mór. Já no século XVIII, parte

do edifício fica na posse de João Cabral

da Silva, fidalgo da Casa Real, que era

casado com D. Francisca de Vasconcelos

e Sousa.Palácio dos Figueiredos da Guerra actualmente

Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova

Em 1811, o palácio foi queimado e

saqueado pelo exército francês quando

passou em Condeixa e provocou as

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destruições que as populações de

Condeixa ainda recordam. Ainda no

século XIX, o edifício passou a pertencer

a José Joaquim de Figueiredo da Guerra

de Carvalho e Melo e, em 16 de Julho de

1857, parte do palácio foi adquirida por

Albino Justiniano de Carvalho, vindo

este também a comprar a outra parte, a

um herdeiro da Família Cabral da Silva

e tendo, depois, reconstruído o palácio.

Com a sua morte, o palácio passou para

Abílio Roque de Sá Barreto, seu irmão,

que por herança o legou a Artur da

Conceição Barreto. Este benemérito e

presidente da Câmara de Condeixa fez a

doação do palácio à Fundação Dona Ana

de Laboreiro d’Eça.

No edifício funcionaram diversos

serviços públicos e privados, como

tribunal, casa de comércio, oficina,

armazém, consultório médico, biblioteca

pública, sede da Junta de Freguesia de

Condeixa-a-Nova, entre outras

utilizações8. Em 1986, iniciou-se um

processo de recuperação do edifício,

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que viria a ser inaugurado como sede

dos Paços do Concelho em 30 de Junho

de 1990, na presença do então

Presidente da República, Mário Soares,

utilização que mantém actualmente.

Palácio dos Condes de PodentesJardim e Palácio do Conde de Podentes

Este palácio que também era

conhecido como Hospício, era um local

onde se «agasalham os pobres e

peregrinos com muita caridade»9, como

refere o Padre Carvalho da Costa.

A construção original terá acontecido

no séc. XVIII, mas foi reconstruída no

século XIX. O hospício dos frades

antoninos-franciscanos, que existia em

Condeixa, foi uma das propriedades das

ordens religiosas que foram abrangidas

pela Carta de Lei de 30 de Maio de

1834. Esta lei, publicada pelos liberais,

extinguia os conventos e incorporava os

seus bens nos próprios nacionais.

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O responsável pela reconstrução do

edifício e seu proprietário durante o

século XIX foi o bacharel em medicina,

Jerónimo Dias de Azevedo Vasques de

Almeida e Vasconcelos, que em 1842

procedeu à sua aquisição e

transformação.

Jerónimo Dias de Azevedo Vasques de Almeida e

Vasconcelos

Jerónimo de Almeida e Vasconcelos

nasceu em Podentes (Penela), em 7 de

Dezembro de 1805. Era filho de João

Pedro Dias de Azevedo Vasques de

Almeida, proprietário, e Teodora

Joaquina Henriques de Azevedo. Casou

em 18 de Junho de 1837 com Maria

Liberata da Costa Mendes. Matriculou-

se em Medicina e, em 1826, integrou o

Batalhão Académico, formado por

estudantes liberais que foram combater

as forças de D. Miguel durante o

pronunciamento na Beira. Em 1828,

alcançou o grau de bacharel em

Medicina e, nesse ano, foi um dos

destacados líderes do movimento liberal

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na cidade de Coimbra, «aliciando

pessoalmente os comandantes das

forças militares da região a aderirem ao

movimento»10. Alistou-se no Batalhão de

Caçadores n.º 12, participou na

campanha militar entre liberais e

absolutistas, organizou uma guerrilha

com os irmãos, a qual actuou durante

algum tempo na região da Beira, mas

acabou por ser preso, perto de Leiria,

em 29 de Junho de 1828. Foi julgado e

condenado à morte, mas comutaram-lhe

a pena para degredo perpétuo em

Benguela e perda de todos os bens11. Em

1830, foi transferido para o forte de S.

Julião da Barra, onde surgem indicações

de que passou a prestar serviços

médicos aos presos, tanto liberais como

absolutistas. Na sequência desta acção

ter-lhe-á sido concedido um eventual

perdão de pena.

Finalizada a guerra, Jerónimo de

Almeida e Vasconcelos foi libertado e

conduzido a Lisboa, onde viu

reconhecidos os seus serviços. Foi,

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então, nomeado Guarda-mor da Saúde e

Provedor da Saúde do porto de Belém.

Desempenhou ainda as funções de

Governador Civil de Coimbra entre 3 e

25 de Junho de 1843; mais tarde

exerceu também idênticas funções em

Viseu (1851) e no Porto (1852).

Foi adepto do governo de Costa

Cabral, mas gradualmente afastou-se

dos cabralistas. Em 1844, publicou dois

opúsculos da sua autoria, onde se

destacam: Breves considerações sobre o

estado da fazenda pública e Reflexões

sobre o decreto de 30 de Junho próximo

passado em que se determinou a

arrematação do contrato do tabaco,

onde criticava a política financeira de

Costa Cabral.

Em 1846, integrou a Junta

Revolucionária da Beira Alta, de Viseu.

Em 1855, dirigiu o jornal de Viseu, O

Viriato.

Recebeu em 8 de Outubro de 1851 a

nomeação por carta régia com o título

de visconde, e mais tarde, por decreto

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de Novembro de 1868, o título de

conde12. Foi eleito deputado em três

legislaturas: 1838-1840, 1840-1842 e

1842-1845. Em 18 de Fevereiro de

1852, foi nomeado Par do Reino, por

carta régia, tendo feito o juramento e

tomado posse em 20 de Fevereiro de

185213.

Enquanto parlamentar, integrou

diversas comissões e participou de

forma activa em muitas sessões14. A sua

participação na vida política é recheada

de polémicas e surge descrito em

algumas publicações como bastante

inconstante e volúvel, pois nos

corredores do Parlamento dizia as

coisas de uma maneira, mas quando

discursava no interior do mesmo já dizia

outra.

Sobre esta personalidade conta-se,

entre alguns vestígios de testemunhos

orais que ainda persistem na região de

Podentes, que ele era rico e emprestava

dinheiro às pessoas. Porém, se não lhe

pagassem no prazo estabelecido, ficava-

Page 25: Condeixa, memória, história e paisagem

lhes com as terras. Algumas pessoas não

lhe pagavam porque não podiam, mas

outras queriam pagar. Como o conde

era esperto, quando lhe iam para pagar,

mandava dizer pela esposa que não

estava em casa. Depois, como o prazo

tivesse acabado, as pessoas ficavam sem

as suas terras e o Conde cada vez mais

rico.

A 19 de Novembro de 1863, o rei, D.

Pedro V, chegou a Condeixa pelas nove

horas da noite; segundo o relato na

imprensa da época «ali estavam duas

colunas, uma de cada lado da estrada,

sobre que se achavam colocadas duas

inocentes crianças, que lançaram muitas

flores sobre as carruagens. Desde

aquele ponto até ao real aposento havia

alguns arcos e colunas de louro e murta

sobre que assentavam lanternas de

várias cores»15. Ainda de acordo com a

descrição feita, «sobretudo realçava era

a iluminação da casa do exmo.

visconde», todo o jardim e largo da casa

do visconde estava «coberto de povo»,

Page 26: Condeixa, memória, história e paisagem

e, este, «rompeu em estrondosos vivas

quando Suas Majestades se dignaram

chegar a uma das janelas»16. A família

real pernoitou uma noite no palácio

dirigindo-se a Coimbra no dia seguinte.

O Conde de Podentes faleceu na

referida localidade em 19 de Agosto de

188517.

Alguns autores referem que terá sido

neste palácio que D. Pedro V, em

Novembro de 186318, decidiu abolir o

denominado Exame Privado da

Universidade de Coimbra, que tão

criticado era na segunda metade do

século XIX. Este exame, que servia para

se aceder aos graus superiores de

licenciado e doutor, devia ser feito com

todo o rigor19 e à porta fechada. A prova

revestia-se de um carácter intimidatório

e obedecia ao que tinha sido

estabelecido nos Estatutos da

Universidade de 1772.

O Hospício, como é vulgarmente

designado em Condeixa, era até há

pouco tempo propriedade de D.

Page 27: Condeixa, memória, história e paisagem

Margarida Relvas Navarro de Azevedo

Albuquerque, descendente de Carlos

Relvas e José Relvas, importantes

proprietários no Ribatejo (Golegã),

tendo o último desempenhado papel de

destaque durante a 1ª República.

Actualmente, está na posse dos

descendentes.

Palácio dos Sás

A 13 de Março de 1811, os clarões

das chamas ateadas pelas tropas de

Massena iluminavam o horror e a

destruição da vila de Condeixa. O

Palácio dos Sás, que até esse momento

se erguia imponentemente a todo o

comprimento da actual Praça da

República, foi devorado pelo incêndio.

Aparece referenciado, em

documentação, como sendo um dos

maiores do país, com uma fachada

Page 28: Condeixa, memória, história e paisagem

rasgada por 23 janelas e ostentando, ao

centro, as armas dos Sás.

Foi proprietário do palácio, Manuel de

Sá Pereira que faleceu em 176420. Este

tornou-se fidalgo da Casa Real e

morgado do Sobreiro. Casou com D.

Maria Plácida de Meneses.. Deste

casamento nasceu D. Maria Antónia Sá

Pereira, que se casou com Aires de Sá e

Melo e teve como descendentes João

Rodrigues de Sá e Melo, que viria a ser

1º Conde de Anadia; João António de Sá

Pereira e Meneses, 2º Conde de Anadia

e 1º visconde de Alverca; e de João

António de Sá Pereira que se tornaria 1º

barão de Alverca. Herda o título de

Condessa de Anadia a Sra. D. Maria

Luísa de Sá Pereira de Meneses e Melo

Souto Mayor, que casou com Manuel

Pais de Sá do Amaral de Almeida e

Vasconcelos Quifel Barbarino.

No jornal O Conimbricense, de 1858,

assinalava-se que o referido palácio se

encontrava ainda em ruínas, causando

perigo aos transeuntes que por ali

Page 29: Condeixa, memória, história e paisagem

passavam, ainda para mais quando tinha

sido construída uma estrada que

passava logo ao lado. Num comunicado

enviado para o jornal, apesar de não se

identificar o remetente, afirmava-se:

«Condeixa apresenta ainda algumas

casas em mau estado, e por isso vamos

pedir providências às autoridades

daquela vila, para que sejam reparadas

as ruínas do palácio da Condessa de

Anadia»21. Segundo se dizia na época,

alguns dos edifícios em Condeixa que

tinham sido destruídos pelas invasões

francesas já tinham sido recuperados

mesmo sem ajuda, enquanto o palácio

da Condessa de Anadia «recebeu uma

indemnização pelo prejuízo que sofreu

no palácio, em vez de reedificar como

devia destruiu ainda mais mandando até

tirar as grades de ferro das janelas, para

ficar aquele esqueleto mais medonho»22.

O objectivo deste comunicado era

conseguir uma melhoria das condições

existentes para a mala posta que se

situava em edifício localizado ao lado,

Page 30: Condeixa, memória, história e paisagem

pois tornava-se importante ou demolir o

edifício ou reedificá-lo. Segundo estas

indicações, o mercado semanal

realizava-se duas vezes por semana, tal

como nos nossos dias, e a ruína

avançada do palácio colocava em perigo

todos os que frequentavam o mercado,

assim como os comerciantes que tinham

as suas lojas no interior do palácio e,

ainda, as pessoas que entravam nessas

lojas para fazerem as suas compras. Era

importante encontrar uma solução para

o edifício que permitisse embelezar o

espaço envolvente e sobretudo que

garantisse maior segurança para o

trânsito que passava pelas imediações

das ruínas.

Curiosamente, na obra de Augusto

Mendes Simões de Castro23, publicada

uma década depois, refere-se «o aspecto

lastimoso, que apresentava Condeixa

por tão grande desolação, tem

desaparecido quase de todo em virtude

de sucessivas reedificações, e

presentemente só se vêem em ruínas

Page 31: Condeixa, memória, história e paisagem

cinco casas, sendo uma delas o antigo

Palácio dos Sás, hoje do sr. Conde de

Anadia»24. Por consequência podemos

concluir que desde os inícios do século

XIX não houve qualquer tentativa de

restauro do palácio, que era até ali um

dos principais símbolos da pequena vila.

A família dos Sás sempre se

envolveu na vida política e religiosa

de Condeixa. Muitos dos

representantes desta família eram

influentes locais do Partido

Progressista, enquanto os Lemos

Ramalho eram defensores do

Partido Regenerador. Esta divisão

política das importantes famílias

locais provocou alguns momentos de

tensão e mesmo de confronto físico,

criando alguns episódios de clara

discussão acerca da influência

política que ambas tinham,

procuravam manter e aumentar no

meio circundante. A presença dos

representantes da família Sá, nos

órgãos da confraria do Santíssimo

Page 32: Condeixa, memória, história e paisagem

Sacramento, foi uma constante que

bem observaram os autores dos

Subsídios para a História de

Condeixa.

O palácio ocupava todo o espaço

desde a sua localização actual, e

estendia-se até à igreja de Santa

Cristina, dispondo mesmo de uma

entrada privada que entretanto acabou

por dar lugar a uma capela particular no

interior da referida igreja. Era o maior

palácio de toda a vila, já que a sua

fachada se situaria a meio da actual

Praça da República25 e a sua destruição

representa uma perda importante para a

arquitectura do concelho.

Actualmente existe um edifício de

planta longitudinal, rectangular, com

dois pisos, formando um T. Possui

fachadas rebocadas e pintadas de

branco e ornamentada com obras em

cantaria.

A memória dos mais velhos conserva

ainda a imagem da grandeza deste

edifício, que se manteve em ruínas por

Page 33: Condeixa, memória, história e paisagem

mais de um século lembrando, todos os

dias, o trágico episódio que tanto tempo

levou a esquecer. Em 1930, as

necessidades de reestruturação

urbanística ditaram a sua demolição,

para proceder ao alargamento da Praça

de República e à abertura de novas

ruas, entre elas, a Avenida Visconde de

Alverca. Deste palácio sobreviveram até

aos nossos dias alguns elementos

significativos como o brasão dos Sás. O

edifício actual é bastante mais pequeno

e foi construído pela mesma família que

o mantém até à actualidade.

Igreja Matriz de Condeixa

Igreja de Santa Cristina

A Igreja Matriz de Condeixa foi

mandada construir no tempo de D.

Manuel I, quando o rei, na sua

peregrinação a Santiago de Compostela,

teve que passar pela povoação.

Na descrição que nos chegou através

do Padre António Carvalho da Costa

afirmava-se que a Igreja, aos olhos do

Page 34: Condeixa, memória, história e paisagem

tempo (1706) «de uma só nave, muito

comprida, e larga na sua proporção,

muito alegre pelo rasgado das frestas»26.

Actualmente, e devido ao forte

crescimento demográfico que se tem

registado em Condeixa, o edifício torna-

se muitas vezes pequeno, em particular,

nas ocasiões festivas.

Afirmava, ainda, o Pe. Carvalho da

Costa que a decoração era em pedra de

Ançã, com as paredes cobertas de cima

abaixo com azulejos dourados27. A

capela tinha duas sacristias e várias

capelas decoradas com retábulos

dourados.

A igreja tinha três capelas

particulares que eram de D. Lourenço

de Almada, outra de João de Sá Pereira

e outra ainda da invocação de Jesus,

onde estava sepultado o morgado de

Morais Botelho.

O edifício tem planta longitudinal composta

de nave, capela-mor, sacristia, capelas

laterais e anexos. Verifica-se algum contraste

entre o exterior e o interior. Porque o interior

Page 35: Condeixa, memória, história e paisagem

assenta numa disposição horizontal do corpo

do edifico, enquanto no exterior se nota a

verticalidade da torre.Interior da Igreja de Santa Cristina

No interior do edifício observa-se uma

distribuição diferenciada do espaço, em

que a nave é iluminada sobretudo pelo

janelão da frontaria. A capela-mor é

quadrada, com abóbada estrelada de

cinco chaves ornamentadas. Possui duas

janelas laterais com cabeceira de

recorte mistilíneo, estando a da

esquerda entaipada. Assinala-se a

existência de um retábulo de talha

dourada, com colunas torsas, que lhe foi

adaptado. Um arco de volta redonda,

com perfis cortados em S, separa a

capela-mor da nave. Colateralmente a

esta, abrem-se várias capelas, todas de

arco redondo. No flanco esquerdo, a de

São Francisco é a maior, sendo

completada ainda por uma tribuna para

a igreja. A que se lhe segue possui

abóbada formada por dois arcos

Page 36: Condeixa, memória, história e paisagem

cruzados. Sob a torre, situa-se a capela

baptismal, onde se guarda a pia

manuelina. Do lado oposto, em frente à

capela de São Francisco encontra-se a

do Santíssimo Sacramento, com arco

muito simples, grade e decoração de

estuques oitocentistas. As que se lhe

seguem são obra revivalista

contemporânea. A última, tem na

parede uma lápide com inscrição alusiva

ao restauro da igreja de 1964-1970. Na

sacristia, encontra-se ainda o túmulo

setecentista do bispo D. João Franco de

Oliveira, anteriormente ao fundo da

igreja e que foi trasladado para esta

nova localização.

A Igreja de Santa Cristina, em

Condeixa-a-Nova, é um monumento

peculiar; na sua configuração

heteróclita inscrevem-se as marcas de

estilos e sensibilidades distintas que os

séculos atravessaram e que vicissitudes

históricas de diversa índole ajudam a

explicar.

Page 37: Condeixa, memória, história e paisagem

Concluída muito possivelmente em

1543, a igreja viria a ser saqueada e

incendiada em 1811, a par de diversos

outros edifícios da vila, com as invasões

francesas; este nefasto episódio obrigou

à sua reconstrução que no entanto lhe

alterou profundamente o traçado,

conferindo-lhe o recorte neoclássico que

presentemente exibe.

Erguida no século XVI por

determinação de D. Manuel I, aquando

da sua passagem pela vila, esta obra

veio substituir uma velha igreja

existente no mesmo local, indo ao

encontro das aspirações da população,

profundamente desagradada por ter de

se deslocar às igrejas do Sebal ou de

Condeixa-a-Velha a fim de ouvir as

missas dominicais.

Em 1514, D. Manuel I, entregou-lhe

foral, mudou, como no-lo indicam

registos históricos coevos, a construção

da matriz teria ficado em grande parte a

cargo do Mosteiro de Santa Cruz,

cumprindo muito embora à população, o

Page 38: Condeixa, memória, história e paisagem

provimento dos paramentos que a

ornamentação do edifício exigisse; o

surto de desenvolvimento da moagem e

a riqueza agrícola da região

favoreceram largamente o

financiamento da obra.

Em 5 de Março de 1549, Frei Brás de

Braga, afirmava num carta enviada de

Leiria para o Mosteiro de Santa Cruz de

Coimbra: O debuxo da Igreja de

Condeixa vos envio para o guardardes lá

parece-me muito bem. O das casas que

queríamos fazer para El-Rei cuidei que o

tinha e não se achou e encomendo-vos

que vejais se Frei Acúrcio o tem e lhe

mandes fazer um que mandes com

conhecimento de Manuel de Barros se o

achastes ou seu traslado quando para cá

vier alguém (…)28. Verifica-se portanto

que existiu um desenho da Igreja de

Santa Cristina que foi enviado para o

dito mosteiro, onde se pedia para ser

muito bem guardado, pois era frequente

existirem perdas de documentos

importantes e este seria um deles, pois

Page 39: Condeixa, memória, história e paisagem

atestava qual era a configuração e o

aspecto da igreja.

Surgiram também desentendimentos

entre as paróquias de Condeixa-a-Nova,

relativamente recente e Condeixa-a-

Velha, bastante mais antiga, que Frei

Brás tentou solucionar, quando afirmava

noutra carta, datada de Maio de 1549:

quanto à dúvida das ofertas de

Condeixa-a-Nova, meu parecer é que

pois já essas igrejas têm cada uma seu

capelão, que cada um levasse as ofertas

e oferendas e mortuários, da que curar

e não houvesse diferenças entre elas,

porque não é razão que o capelão de

Condeixa-a-Velha leve as ofertas e

mortuários de Condeixa-a-Nova onde ele

ao presente não tem alguma cura nem

trabalho mas tudo faz outro capelão

para a concórdia que agora fazemos e

porém uns dois cruzados que já dantes

eu mandara dar a Manuel Rebelo é bem

que lhos dêem a ele somente, e não

fique em foro para os outros capelães

que adiante vierem29. Atesta-se que a

Page 40: Condeixa, memória, história e paisagem

divisão das paróquias não foi um

processo pacífico, porque foi necessário

uma intervenção conciliadora no sentido

de não prejudicar ninguém, mas

estabelecer critérios que ficassem

estabelecidos e claros daí para diante.

Existem referências a alterações no

edifício em 1560, quando se procedeu

ao alteamento da capela-mor, sendo

responsável pelas obras realizadas

Jerónimo Afonso. Nos finais do século

XVI, entre 1589 e 1594, efectuaram-se

algumas remodelações nas capelas

laterais. Durante o século XVIII, em

170230, foi necessário proceder a obras

no edifício que introduziram novas

alterações, principalmente na frontaria.

Curiosamente, no entanto, o terramoto

de 1755 parece não ter provocado

estragos de monta no edifício. Segundo

o cura de Condeixa-a-Nova, Reverendo

José Joaquim de Sousa e Torres, na

resposta ao questionário solicitado pelo

Marquês de Pombal após a terramoto de

1755, e enviada a todas as paróquias do

Page 41: Condeixa, memória, história e paisagem

reino, referia que «o orago é o de Santa

Cristina que tem dez altares e não tem

naves e de uma parte estão os altares de

S. Sebastião, da Sra. da Conceição, da

Sra. da Piedade, do Santíssimo

Sacramento e do Senhor Jesus e da

outra os altares das Almas, de S. Tiago,

de S. Pedro de Alcântara, da Sra. do

Rosário, além do Altar-Mor. Tem três

irmandades: do Senhor, da Senhora do

Rosário e das Almas»31.

No recheio da igreja de Santa Cristina

existiam «duas lindas capelas renovadas

segundo o estilo do Renascimento, pelo

escultor contemporâneo João

Machado»32. Outro dos elementos que

fazem parte do recheio da igreja é a pia

baptismal, da época manuelina, com

molduras e ornamentação naturalista33.

Para além disto a igreja conserva

ainda do primitivo traçado a abóbada da

capela-mor, de características

manuelinas, e o arco da capela de S.

Francisco, a capela de Santa Teresa e a

do Senhor dos Passos, de inspiração

Page 42: Condeixa, memória, história e paisagem

renascentista; de setecentos é, já, o

retábulo. No frontispício, ostenta a

igreja de Santa Cristina, em baixo-

relevo, o escudo e a coroa usados no

reinado de D. Maria I.

Ligadas à Igreja criaram-se duas

confrarias que desempenharam papel

importante na vila: a Confraria do

Santíssimo e a Confraria das Almas, que

passou, depois, a denominar-se das

Almas e Senhor dos Passos (13 de Junho

de 1885), que ainda hoje continuam a

existir. A Confraria das Almas foi criada

em 1682 e teve estatutos aprovados em

25 de Agosto desse ano. Por seu lado, a

Confraria do Santíssimo teve estatutos

aprovados em 1689. Por ambas

passaram importantes personalidades

de Condeixa34. Um dos trabalhos de

destaque realizados pela Confraria do

Santíssimo Sacramento foi a construção

do retábulo da capela do Santíssimo,

encomendada ao entalhador João

Ferreira Carneiro, bem como a

construção do cancelo com madeira de

Page 43: Condeixa, memória, história e paisagem

castanho e pinho da Flandres. Para além

disso, em 1872, a mesma irmandade

resolveu substituir o soalho de madeira

da Capela-mor e substituí-lo por pedra,

para ficar como antigamente35.

Nos tempos recentes, entre 1964 e

1970, a igreja foi submetida a obras de

remodelação, a cargo do construtor civil

local António dos Santos Ramos, que

gratuitamente supervisionou a

realização das obras de beneficiação.

Existem ainda em Condeixa-a-Nova

outros edifícios e monumentos dignos

de menção a que não podemos agora

dedicar a devida atenção, mas não

podemos deixar de fazer referência às

capelas, solares e outros edifícios.

Entre as capelas existentes no

concelho não podemos deixar de

referir as igrejas paroquiais das

diferentes sedes de Freguesia:

Anobra, Belide, Bendafé, Condeixa-

a-Velha, Ega, Furadouro, Sebal, Vila

Seca e Zambujal.

Page 44: Condeixa, memória, história e paisagem

A Igreja Paroquial de Anobra, data do

século XVIII, possui azulejaria típica

desse período. Dispunha de um núcleo

de esculturas importantes, algumas do

período manuelino e um sacrário do

século XVI.

A sede da paróquia de Belide é um

edifício reconstruído no séc. XIX. As

esculturas em pedra são do século XVI.

Tem por padroeira Nossa Senhora da

Saúde e a talha é do período barroco.

A Igreja Paroquial de Bendafé foi

construída no século XVIII, sendo

dedicada a Nossa Senhora da Ajuda.

O edifício da igreja paroquial de

Condeixa-a-Velha terá sido construído

no século XVI, mas as reparações e

reconstruções foram desvirtuando o

monumento ao longo do tempo. Tem um

retábulo do século XVIII e azulejos dos

séculos XVI e XVIII.

A Igreja Paroquial da Ega conheceu

importantes obras durante o século XVI.

Possui elementos manuelinos como o

altar-mor e o arco-cruzeiro. Tem capelas

Page 45: Condeixa, memória, história e paisagem

renascentistas revestidas com azulejos

dos séculos XVII e XVIII. Possui um

tríptico de madeira, atribuído a Gregório

Lopes, dedicado a Nossa Senhora da

Graça, que data do século XVI.

A igreja paroquial do Furadouro foi

reformada no século XIX, mas tem

elementos decorativos que datam do

século anterior. Possui algumas

esculturas de pedra do século XVII.

O edifício da igreja paroquial do

Sebal, ainda apresenta vestígios da

reconstrução feita no século XVI, mas

tudo indica que a construção seja do

século XIV. Conheceu, também, ao longo

do tempo várias intervenções na

estrutura construída, que lhe alteraram

alguma da sua beleza. No seu recheio

possui vários retábulos que datam dos

séculos XVI e XVII, bem como esculturas

que datam do século XV.

A igreja paroquial de Vila Seca,

dedicada a S. Pedro, mistura vários

períodos construtivos. Destaca-se no

interior a talha e a azulejaria. O corpo

Page 46: Condeixa, memória, história e paisagem

da igreja foi revestido com azulejos do

século XVIII. Possui um baptistério e

várias esculturas de pedra e madeira.

Por fim, a igreja paroquial do

Zambujal foi reconstruída no século

XVIII. Tem no seu interior azulejaria e

esculturas. Destacam-se as esculturas

do século XVI. Esta igreja é de

construção muito antiga, existindo

referências à sua existência desde 1320.

Mas também são dignas de menção as

capelas dispersas pelo concelho, como a

capela da Senhora da Lapa, a da

Senhora da Piedade, a de Santa Maria

de Alcabideque, a de Nossa Senhora da

Piedade da Eira Pedrinha, a de Santa

Isabel, no Bom Velho, a da Nossa

Senhora do Rosário, a de São Fipo, a de

S. João, de Casével, a do Casmilo, da

Senhora do Círculo, a da Nossa Senhora

da Conceição, a de São José, e a capela

da Serra de Janeanes.

Os solares mais importantes são o

Solar do Francos ou Quinta do Travaz,

que pertencia ao Morgadio do Travazm

Page 47: Condeixa, memória, história e paisagem

e tendo sido construído no século XVII,

actualmente, ainda se conserva em

razoável estado; o Morgadio da Lapa,

onde viveu o padre João Antunes, o

padre-boi, figura importante em

Condeixa, onde fundou o órfeão que

ainda preserva o seu nome; Solar dos

Cunhas, que se situava na Lapinha;

Solar João de Azevedo, actualmente

bastante alterado, mas que ainda dispõe

de capela particular dedicada a Nossa

Senhora do Amparo, essa sim existente,

cuja construção data do século XVII.

Fontes e Bibliografia

Fontes de Arquivo (manuscritas)

Arquivo da Universidade de Coimbra -

Fundo Governo Civil de Coimbra

Concelho de Condeixa-a-Nova.

Orçamentos dos anos económicos de

1852-1853; 1853-1854; 1854-1855;

1855-1856; 1856-1857; 1857-1858;

Page 48: Condeixa, memória, história e paisagem

1858-1859; 1861-1862; 1862-1863;

1863-1864, AUC/GCC/TA/E4/T3/288.

Publicações Periódicas

Conimbricense, O, Coimbra;

Ilustração Portuguesa, Lisboa;

Tribuno Popular, O, Coimbra;

Bibliografia

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Guia Histórico do Viajante em

Coimbra e Arredores, Imprensa da

Universidade, Coimbra, 1867.

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Condeixa-a-Nova, 2ª ed., Revista e

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Coimbra, 1983.

CORREIA, Vergílio, «As Cartas de Fr.

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Coimbra», Arte e Arqueologia, Ano I,

Nº 4, 1932, Coimbra.

COSTA, Pe. António Carvalho da,

Corographia Portugueza e Descriçam

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Portugal…, Tomo II, 2ª ed., Typ.

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1868.

GONÇALVES, António Nogueira,

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Distrito de Coimbra, vol. IV, Academia

Nacional de Belas Artes, Lisboa,

1953.

LOPES, João Baptista da Silva, História

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Torre de S. Julião da Barra de Lisboa

…, Introd. E Notas de Neves Águas,

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s. d.

PEREIRA, Zélia, «Vasconcelos, Jerónimo

Dias de Azevedo Vasques de Almeida

e (1805-1885)», Dicionário Biográfico

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coord. Maria Filomena Mónica, Col.

Parlamento, Imprensa de Ciências

Sociais/Assembleia da República,

Lisboa, 2006.

PESSOA, Miguel e RODRIGO, Lino,

«Palácio Figueiredo da Guerra em

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arquitectónica, funcional e

simbólica», Munda, Maio de 2004, nº

47, Grupo de Arqueologia e Arte do

Centro (GAAC), Coimbra

PROENÇA, Raul (Dir.), Guia de Portugal

– Beira I -Beira Litoral, vol. III,

Fundação Calouste Gulbenkian,

Lisboa, 1984.

Ruas e Lugares de Condeixa, coord.

Rosário Grilo e Fátima Bandeira,

Coordenação Concelhia da Extensão

Educativa de Condeixa, Condeixa,

2002.

Subsídios para a História de Condeixa.

Condeixa no Século XVIII, nº 10,

1956, coord. Fernando de Sá Viana

Rebelo e Isaac Pinto, s.l. [Condeixa ?]

Page 51: Condeixa, memória, história e paisagem

Condeixa ao pé da porta

José Magalhães Castela

Antigamente, quem vinha de Coimbra

pela antiga Estrada Nacional, entrava

obrigatoriamente em Condeixa pela Rua

Francisco de Lemos, não sem antes

abordar o Paço.

No meio de paisagem verde, logo do

lado esquerdo encontrava a Casa da

Criança, e mais à frente, do lado direito,

o tanque de água do Galaitas, autêntica

piscina olímpica onde os ases da

natação da Académica chegaram a

treinar algumas vezes. E era por essas

bandas que se encontrava a estátua do

Quelhorras, sentinela alerta a quem

entrava, a mijar água cristalina vinte e

Page 52: Condeixa, memória, história e paisagem

quatro horas por dia, trezentos e

sessenta e cinco dias por ano, e onde as

mulheres do povo matavam a sede após

fazerem o sinal da cruz.

Figura masculina em pedra muito mal

trabalhada, mas pelos vistos com olhar

malvado para as raparigas solteiras, o

Quelhoras foi substituído em 1853 pela

figura de um imponente Guarda

Nacional, cavalgando o cano de pedra

por onde saía a água cristalina.

Autêntica instituição pública à entrada

da vila, este recauchutado Quelhoras,

pelos vistos, nem perdeu a maldade no

olhar nem a santidade da bica urinária.

(Procurei que me fartei e nunca

ninguém me conseguiu explicar porque

razão as mulheres do povo se benziam

perante os dois Quelhoras que estavam

sempre em função urinária. Porventura,

a única explicação poderia residir na

água. Vinda de Alcabideque, seria sem

sombra de dúvida, cristalina. Calcária

quanto baste, como que a atestar uma

Page 53: Condeixa, memória, história e paisagem

personalidade muito própria, mas

reputadamente cristalina. Uma bênção,

portanto!)

E o Quelhorras, convenhamos, como

cartão de visita não seria lá muito

famoso em termos de monumentalidade

e estética, logo de seguida e quase em

frente um do outro, os dois palácios, o

do Lemos Ramalho e o dos Almadas em

permanente diálogo, como se de pai e

filho se tratassem, proporcionavam ao

visitante a nobreza da entrada em

Condeixa.

(Disseram-me uma vez que havia um

túnel secreto que ligava o palácio dos

Almadas à povoação da Barreira, para

proporcionar eventual fuga daquela

família brasonada, assim que chegassem

os franceses. Pelos vistos, aquando da

invasão francesa do Junot, os militares

gauleses aboletaram-se nos domínios

dos Almadas, comeram e beberam do

bom e do melhor e fizeram estragos. Foi

Page 54: Condeixa, memória, história e paisagem

então que o decano dos Almadas

resolveu prevenir-se a tempo. Na

terceira invasão francesa, a do Massena,

e como pelos vistos já não havia mais

nada a roubar, os militares

aproveitaram para deixar sementes em

barrigas alheias).

O visitante entrava assim na Rua

Francisco Lemos a olhar algo

deslumbrado para os dois palácios e

tinha uma primeira percepção que

Condeixa era mesmo uma terra de gente

nobre. Claro está que logo de seguida, o

cabo Alípio, comandante do posto da

Guarda Nacional Republicana,

decididamente fazia esquecer as

monarquias e confirmava que estávamos

mesmo a viver numa República. E

mesmo pegado às tropas, o bom Padre

Gomes sorria silenciosamente perante

esta manifesta afirmação republicana.

(O cabo Alípio da Guarda Nacional

Republicana, fazia esquecer que

Page 55: Condeixa, memória, história e paisagem

estávamos perante uma força de

repressão. Merece aqui um simpático

apontamento porque nunca o vi a passar

uma multa ou a dar uma chapada em

quem quer que fosse).

Mas regressemos à Rua Francisco

Lemos. Mais abaixo, e enquanto sob o

olhar atento da Albertina Boneca, o João

Borrega vai fazendo lentamente a barba

ao Duarte electricista, a Rua Francisco

Lemos, depois de passar em frente da

casa amarela do doutor João Ribeiro,

revolucionário por conta própria no

tempo da outra senhora, afundava-se no

princípio da vila e só parava junto à

Câmara Municipal, mesmo em frente da

tasca do Zé David, onde a consorte

Celeste, mulher de tempero certo, fazia

assar um cabrito no forno de lenha. Era

mesmo um cabrito de se lhe tirar o

chapéu, acondicionado com carinho no

meio das batatas assadas e dos grelos.

Page 56: Condeixa, memória, história e paisagem

(Ai tanta coisa para dizer sobre estes

personagens ! Vamos por partes e

começo pelo doutor João Ribeiro.

Uma vez, já depois da Revolução de

Abril, um paciente foi bater à porta do

dr. João Ribeiro, para que ele lhe tirasse

uma dor de barriga. Quando entrou, já o

douto clínico tinha jantado e estava a

fazer o quilo. Puxa daqui e puxa dali e a

conversa meteu-se pelos meandros

espúrios da política. Pela parte do

dorido paciente só lhe interessava

mesmo a injecção na parte sobrejacente

do fundo das costas para lhe tirar os

ardores em perfeita ebulição nos

interiores da barriga. O doutor,

perfeitamente alheado das dores do

paciente, lá ia discursando sobre uma

das teses de Lenine, nomeadamente a

da luta contra o revisionismo. Numa

tentativa de fazer avançar o discurso,

disse o paciente ao doutor que o

revisionismo sacrificava os interesses

fundamentais do proletariado e

conformava-se com as necessidades da

Page 57: Condeixa, memória, história e paisagem

burguesia. O clínico deu réplica e a

discussão alongou-se, com os ponteiros

do relógio a cumprirem a sua função

horária. O mal estar abdominal do

paciente foi desaparecendo aos poucos,

nunca se chegando a saber se foi por

causa de alguns pruridos ideológicos se

foi por causa do cheiro do cabrito

assado da Celeste que emanava na

altura da tasca do Zé David.

Esta coisa de assar cabritos tem que

se lhe diga, e muitos diziam que o

segredo estava indubitavelmente no

tempero. Para a massa utilizavam-se, e

com fartura, dentes de alho esmagado

num almofariz, sal na quantidade

suficiente para não aumentar a tensão

arterial, pimenta com decoro e alguma

prudência, e colorau e banha à

discrição. O remate final com uns fios de

azeite era muito bem vindo nos lombos

do quadrúpede. Era assim a massa de

tempero da Celeste do Zé David. Por

fim, e antes de ir ao calor do forno, as

mãos da Celeste pegavam na massa e

Page 58: Condeixa, memória, história e paisagem

barravam com carinho o corpo do

animal. As ondulações poéticas das

mãos suaves da Celeste a passarem a

massa pelo corpo teso do cabrito, só

tinham paralelo com as mãos da

Rosalinda quando desentortava um

calcanhar. Mas quanto a isso já lá

vamos).

Na ruela que sai da Rua Francisco

Lemos, mesmo ao lado da casa do

doutor João Ribeiro e que ia bordejar a

quinta do Palácio, vivia o Pincha.

(O Pincha tocava bombo na Banda

Filarmónica Fina Flor mas, aparte o

bombo, tinha uma voz do caraças. Pelo

Senhor dos Passos, e quando os metetos

cantavam o misérére junto das

capelinhas, um silêncio respeitoso e

reverente se impunha para se ouvir os

agudos saídos dos gorgomilos do

Pincha. Porque a voz do Pincha tinha

tido um mestre de canto de suprema

Page 59: Condeixa, memória, história e paisagem

categoria : Nem mais, nem menos que o

doutor padre João Antunes).

A partir da Câmara Municipal, e

sempre a direito, a Rua Francisco

Lemos mudava de nome e passava a

chamar-se Rua Lopo Vaz durante uma

curta viagem. Era aí que nos esperava a

Conceição do Zé Velho mesmo ao pé da

alfaiataria do Miguel Carlos, depois de

termos passado pelas lojas do Zé Moca,

da Carmo Macia e também dos serviços

oficiais do fisco. É verdade, a Tesouraria

da Fazenda Pública, também conhecida

pela Recebedoria era num rés-do-chão e

a Repartição de Finanças mesmo por

cima, num primeiro andar.

(Uma vez, o António Pessa estava

parado no meio da estrada a olhar para

esse prédio. Meio grão na asa,

gabardina pelos ombros, embora fosse

Verão e fizesse calor, eterno cigarro

sem filtro na ponta dos dedos da mão

Page 60: Condeixa, memória, história e paisagem

esquerda, exclamava para quem o

queria ouvir:

… cá em baixo esfolam-nos e lá em

cima, esquartejam-nos ! … .

Era a voz do povo a falar e com toda a

razão !

E falar da Conceição do Zé Velho, é

recordar os seus dois filhos, o Ramiro e

o Saúl, homens com a alma cheia de

música. O Saúl ensaiava na altura a

banda filarmónica da Pocariça, quando

foi contratado para abrilhantar uma

festa religiosa para as bandas do

Espinhal. Vai não vai, e como era cedo,

e talvez para aquecer os instrumentos,

resolve o Saúl fazer uma arruada com a

banda da Pocariça, a meio caminho, em

Penela, onde também era dia de festa e

cuja comissão organizadora os recebeu

a preceito com o foguetório que se

impunha. Aquecidos os instrumentos,

gastos os foguetes e bebidos alguns

litros de tinto caseiro, retoma a

filarmónica da Pocariça o seu percurso

em direcção ao Espinhal. Só que …e

Page 61: Condeixa, memória, história e paisagem

nestas coisas de festas há sempre um

senão… era a banda filarmónica Fina

Flor da nossa Condeixa que iria

abrilhantar as festas de Penela. Lá

chegados, nem foguetes, nem vinho.

Nickles. Todos tinham pensado que a

outra banda era a legítima contratada,

uma vez que o Saúl era de Condeixa.

Nesse mesmo dia à noite, regressada do

Espinhal a filarmónica da Pocariça, o

nosso Saúl, como bom Condeixense,

resolve presentear os seus conterrâneos

com uma arruada a preceito. Mas foi na

praça que tudo se descompôs, com uma

espera feita pela Fina Flor. Perante a

cena de pancadaria que se gerou entre

os músicos, o mano Ramiro, homem

calmo por feitio e natureza só dizia

… coisas do meu irmão ! …).

Terminada a Rua Lopo Vaz começava

a Revolução. Pois é. Começava a Rua 25

de Abril. Ainda me lembro de ver o Zé

Torres e a Olinda Vicente a atenderem a

clientela sob o olhar atento do

Page 62: Condeixa, memória, história e paisagem

Hermenegildo latoeiro. E depois

apareciam os João Semana cá da terra,

o doutor Fortunato Bandeira e o doutor

Alfredo Pires Miranda.

E depois vinha a Praça da República.

(Para pensarmos Condeixa,

indiscutivelmente temos que ir à Praça.

Era lá que se fazia o mercado, duas

vezes por semana, que os comediantes

incertos faziam as suas actuações e que

na terça-feira de Carnaval se subtraiam

os chapéus e boinas dos seus legítimos

proprietários para serem exibidos na

ponta de um cordel em sobe e desce

accionados pela juventude do momento.

Era também na praça que se passeava

de um lado para o outro, percursos

intermináveis que entravam noite

dentro. Mesmo de Inverno. A própria

informação, os contos e os ditos, era lá,

na Praça, que estavam para quem os

quisesse ouvir. Mesmo descaracterizada

e sem o chafariz no meio, sempre que se

Page 63: Condeixa, memória, história e paisagem

lá passa, parece que ouvimos baixinho

aquilo que ela nos tem para dizer. É só

olhar em volta e captar as suas

palavras).

A Praça da República era um

momento de pausa reconfortante nesta

incursão do visitante pela urbe, com a

casa apalaçada do Visconde de Alverca

a dominar amplamente um dos lados.

No lado contrário, o Néné, que vivia por

cima do café do Jaime e da loja de

fotografia do Isac Pinto, volta e meia

convidava o Manel Pena para o petisco

na adega, ao mesmo tempo que a Viúva

Salazar, o Paula e o António Miro viviam

em absoluta convivência pacífica uns ao

lado dos outros. O doutor Júlio Rocha,

esse, no seu recato, ia fazendo uma

pomada absolutamente eficaz para as

maleitas da pele.

(Alguns chamavam-lhe a pomada

santa e ainda recordo o cheiro intenso a

desinfectante. Aplicada

Page 64: Condeixa, memória, história e paisagem

indiscriminadamente num furúnculo,

numa picadela de abelha, num corte

profundo ou num panarício, o resultado

era sempre o mesmo: Cura absoluta

para tranquilidade do doente e

publicidade ao autor. É curioso, que

nestas coisas de curas, a pomada santa

do doutor Júlio Rocha andava de braço

dado com as mãos da Ti Rosalina).

Um acontecimento sempre aguardado

na Praça da República era a passagem

da procissão do Senhor dos Passos. No

Sábado à noite ouviam-se os metetos em

frente ao palácio do Visconde, para

depois se assistir à passagem do andor

por cima do Rio do Cais. A fé move

montanhas e neste caso a água do Rio

do Cais ficava mesmo abençoada. E no

Domingo, no meio daquela gente toda,

encontravam-se os amigos ao som das

palavras do Sermão do Encontro. É que

os amigos que estavam longe vinham

sempre a Condeixa pelos Passos, como

se dizia então.

Page 65: Condeixa, memória, história e paisagem

(O Senhor dos Passos, será

porventura aquilo que resta de

Condeixa. Porque o resto foi

desaparecendo aos poucos. Até o copo e

vela dez tostões sofreu com a inflação !).

Os Passos tinham que se lhe diga.

Meio mundo vinha a Condeixa. Filhos da

terra e enteados por acréscimo,

conhecidos de todos e desconhecidos de

ninguém, muitos deles ao cheiro do

cabrito e outros tantos para a matança

… das saudades. E depois havia os

devotos e os penitentes. Os que levavam

o copo e vela por dez tostões e as que

iam de joelhos na procissão aberta pelo

Mário Galo e fechada pela banda de

música que tocava sempre a mesma

marcha.

E depois a Praça era também a Igreja

Matriz, onde toda a gente entrava

recém nascido para o baptismo, aos dez

anos para a comunhão, aos vintes para

dar o nó

Page 66: Condeixa, memória, história e paisagem

(e, convenhamos, onde todos nos

vamos encontrando sem dia marcado

para nos despedirmos dos nossos

amigos, o que é uma tremenda e

reputada chatice pois somos todos

mortais. Ninguém cá fica!).

Avizinhava-se de seguida, ao pé das

ferragens do Franklin, o largo Artur

Barreto, a feira das galinhas de

antigamente, onde o palácio dos

Figueiredos de Guerra era rei e senhor.

Estamos a ver o Artur Varela do

Armazém de Mercearias, a tomar

apontamentos para o seu livro «

Cabeças de Barro «, de parceria com o

Fernando Namora e com o Carlos

Oliveira, e em perfeito condomínio com

os barros do Melâneo, e sob a

complacência do Clube de Condeixa e

do Tribunal Judicial. Bom, a partir daí, e

devagarinho, o visitante tomava

paulatinamente o caminho da Rua D.

Elsa Sotto Mayor, sempre a descer até á

Page 67: Condeixa, memória, história e paisagem

Faia, árvore centenária, que marcava o

início da viagem para Lisboa, para uns,

ou o caminho íngreme para a última

morada, para outros. A Faia, que

assistia á encomendação da alma de

quem lá passava na posição horizontal,

sempre quis morrer de pé. Pelos vistos,

houve alguém que não deixou.

(Nos funerais, era certo e sabido que

o padre mandava parar o cortejo

fúnebre ao pé da Faia, para uma

incursão nas Aves-Marias e nos Pais-

Nossos, a favor da alma do falecido.

Encomendava-se a alma do defunto com

um olho no café do Cara Arranhada,

onde, após o funeral, grupos certos

paravam para ir provar um tinto e

mastigar um costal de bacalhau).

Tenho que fazer aqui uma pausa e

retroceder á Praça da República, pois o

visitante podia muito bem interromper

este percurso e ir namorar a rua de

Page 68: Condeixa, memória, história e paisagem

Condeixinha e depois a Rua da

Assunção. Mas vamos por partes.

Logo no princípio da Rua de

Condeixinha, esta fracturava do lado

esquerdo, para dar lugar á Rua dos

Pelomes onde o António Capado e a

Glória Rasteiro viviam. E era essa

mesma rua que assistia aos aviamentos

da Rosalina. Um osso fora do sítio ou um

ligamento avariado nas mãos da

Rosalina iam ao sítio a bem ou a mal.

(Onde é que a Rosalina aprendeu a

arte de pôr os ossos no sítio devido,

nunca ninguém soube. Quiçá, nem ela

própria. Mas que os ossos, quando

deslocados, iam para o sítio certo após

intervenção das mãos da Rosalina, isso

era um facto. Mulher recatada por

natureza, mirava primeiro o calcanhar

fora do sítio como quem olha o belzebú.

Muito devagarinho, começava a

massagem no pé, com um Pai-Nosso de

permeio e a meia voz, como que a ver o

jeito a dar. Se o caso era difícil,

Page 69: Condeixa, memória, história e paisagem

prolongamento da massagem e ataque

forte com uma Salve Rainha. Depois dos

entretantos vinham os finalmentes.

Primeiro era um toque subtil no artelho

e depois uma torcidela no pé

acompanhado por competente grito

lancinante. A cura produzia-se).

Mas se continuássemos pela Rua de

Condeixinha abaixo e depois

seguíssemos pela Rua da Assunção, lá

íamos encontrando alguma gente

conhecida: Por exemplo, o Micaelo e o

seu talho, em plena concorrência com o

do Fontes, o Carlos Pessa, e, mais ao

fundo, mesmo em frente da casa do

António Braga, a loja do Zé Curto. E a

rua depois continuava, claro está, em

direcção ao Travaz e ao Casal da

Estrada.

(Porque a história é melindrosa e um

dos intervenientes ainda é vivo, achou

por bem o autor destas linhas alterar o

nome dos ditos cujos.

Page 70: Condeixa, memória, história e paisagem

Eram uma vez dois vizinhos. Um era o

Firmino, homem mais velho, de poucas

mas acertadas falas. Outro era o

Sebastião, rapaz mais novo e expansivo

até dizer basta. Embora sem grandes

cumplicidades, os dois vizinhos davam-

se bem.

Certo dia, em reparações domésticas,

o Firmino contratou um pedreiro para

verificar das razões dos entupimentos

das caleiras do telhado de sua casa

… ó senhor Firmino … as caleiras do

telhado da sua casa estão efectivamente

todas entupidas. Se não se deita mão ao

esterco das caleiras, as águas do

próximo Inverno irão fazer das suas …

… entupidas como ? As caleiras até

são novas ! …

… ó senhor Firmino … olhe bem para

as caleiras do seu telhado … está a ver

as pombas do seu vizinho Sebastião lá

pousadas ? Pois as pombas

transformaram as caleiras do seu

telhado em retrete ! …

Page 71: Condeixa, memória, história e paisagem

Pensando na melhor ideia para

resolver o entupimento das caleiras de

sua casa, o Firmino deliberou comprar,

muito em segredo, uma espingarda de

pressão de ar. De posse da arma, afinou-

lhe a alça, praticou a pontaria e iniciou

a caça.

E assim, todos os fins de tarde de um

certo mês de Abril, duas ou três pombas

entregavam a alma ao criador e o corpo

aos saberes pantagruélicos da consorte

do Firmino.

Não raro, o Sebastião lamentava-se

perante o vizinho Firmino.

… ó senhor Firmino … as minhas

pombas andam-me a fugir.

Desaparecem-me ! …

… ó Sebastião. Ouve com atenção. É a

Natureza. As tuas pombas andam mas é

a acasalar com pombos de outro pombal

! …

… ó senhor Firmino. Pode lá ser.

Então as minhas pombas fogem e

deixam os borrachos no ninho ? …

Page 72: Condeixa, memória, história e paisagem

… é porque são más mães, Sebastião.

São mesmo muito más mães, o raio das

tuas pombas ! …

E o desbaste continuava sempre à

razão de duas ou três pombas ao dia. E

a própria cara-metade do Firmino já se

via em papos de aranha a inventar

receitas para variar a ementa.

Finou-se Abril e começou o Maio. E

finou-se também, a pouco e pouco, o

abastecido pombal do Sebastião, com a

natureza bélica da espingarda de

pressão de ar a repor o equilíbrio

natural das coisas, ou seja, a fazer

sujeitar as caleiras do telhado do

Firmino à exclusiva função

encaminhadora do corrimento das águas

pluviais para o sítio certo.

Certo dia, bate à porta de casa do

Firmino, o seu vizinho Sebastião, com

uma caixa de sapatos, furada de ambos

os lados. Lá dentro estava uma pomba

branca.

… ó senhor Firmino… maldita a hora

em que fiz a criação das pombas. Estou

Page 73: Condeixa, memória, história e paisagem

triste de morrer. Criei-as com tanto

desvelo e elas fugiram-me. Ficou apenas

esta pomba, e ainda por cima manca de

uma perna. Tome. Ofereço-lha.

Experimente o vizinho fazer criação que

pode ter mais sorte do que eu ! …

Firmino olhou para a pomba branca e

lembrou-se do desajuste da alça da mira

da espingarda de pressão de ar que o

fez errar o último tiro. Afinal, em vez da

cabeça, tinha acertado no pé da

criatura.

… ó Sebastião. Se o bicho que tiveste

a gentileza de me oferecer, sobreviver

ao empeno da perna, o que duvido,

podes crer que me meto a fazer criação

de pombas ! …)

Estou a ser ingrato se não falar na

Rua Venceslau Martins de Carvalho, a

nossa Rua Nova, tão intimista, florida e

envolvente. Assim que subíamos a rua,

logo do lado direito, não raro iríamos

ouvir o senhor Rui a dedilhar a sua

eterna viola ao mesmo tempo que a

Page 74: Condeixa, memória, história e paisagem

Eduarda do Joaquim Pedro regava os

vasos que tinha à porta. Do outro lado

da rua, a Madame Quitton dizia aos seus

alunos: … allez, allez, mes enfants,

parlons seulement en français ! ….

Continuávamos a subir a rua,

devagarinho, e depois da casa onde

viveu o Augusto Lapa apareciam os

Cigarras comandados pelo patrono

Manel. Eram tantos que eu até os refiro

no plural. Praticamente depois do Atílio

Paiva e da Maria Bacalhoa

continuávamos a subir a rua para só

termos a possibilidade de vislumbrar a

Maria Cassaneta.

Mas voltemos à Praça e façamos uma

incursão naquela que era considerada a

mais desenxovalhada de todas, a

avenida Visconde de Alverca, mas que

de avenida tinha pouco. Não tinha

árvores e era irremediavelmente torta.

Logo no princípio, do lado direito, a

loja do Néné e do Quinzinho faziam

frente ao estabelecimento do Justiniano.

Page 75: Condeixa, memória, história e paisagem

Depois vinha o nosso cinema Paraíso, o

Cine- Avenida a fazer ciúmes aos

enchidos do João Geraldo.

(No fim-de-semana das procissões do

Senhor dos Passos, o Cine-Avenida

exibia sempre, no Sábado, o filme

espanhol Marcelino Pão e Vinho, com o

Joselito, e no Domingo, a Vida de Cristo.

Se com o Marcelino, as Senhoras lá

soltavam meia dúzia de lágrimas,

condoídas com as agruras do artista a

dada altura mordido na ponta do pé por

um escorpião, na Vida de Cristo as

Madames entravam mudas e saíam

caladas. Já se sabia o fim da história.

Mas o Cine-Avenida, com o balcão, a

plateia e a geral não numerada, não

deixava de ser, no final de Sábado à

tarde e durante escassos dez minutos,

um pequeno mundo encantado aberto a

todos, quando o Néné e o mano Quim

faziam a Experimentação da película).

Page 76: Condeixa, memória, história e paisagem

Subia-se a Avenida e aparecia a

farmácia do inconfundível Quim

Bandeira, como inconfundível era a

dona Irene. Até havia um colégio, o

Externato Infante D. Pedro comandado

com mão de ferro pelo doutor Luís Vale

e pela doutora Teresa. Depois da loja do

Castela e da Maria Cartolinha, os

Correios Telégrafos e

Telecomunicações.

(O Chefe da Estação dos Correios, o

Valentim, homem sisudo e de poucas

falas tinha um papagaio em cima do

balcão. Nas horas mornas e com a

estação vazia de utentes, sempre havia

um ou outro, que a pretexto da compra

de um selo, tentava ensinar uma ou

outra asneira ao papagaio. Mas o

papagaio era burro e só sabia dizer …

dá cá o galho ! E o Valentim, perante o

despropósito do utente, mesmo sisudo,

afinava que se fartava).

Page 77: Condeixa, memória, história e paisagem

A seguir aos CTT e de um lado, estava

a casa do Tenente Beato, a taberna do

Leandro e o Grémio da Lavoura. Do

outro, os currais e armazéns do

Visconde d´Alverca, o armazém das

urnas do Manel Pena e a casa do João

Raça. A primeira metade da Avenida,

antes de entortar ligeiramente á direita,

estava feita. Entortava no cruzamento

para a Avenida Velha, mesmo antes da

Praça da Sardinha.

(Havia sempre sardinha e carapau na

Praça. O peixe vinha sempre da

Figueira. Só quando rareava é que vinha

da Nazaré e de Matosinhos. Quando os

pescadores não iam ao mar e na falta de

peixe fresco, o chicharro salgado,

mesmo amarelo, cumpria a sua missão

assado na brasa. A Elvira Caraolha,

senhora minha avó, era a decana das

peixeiras e tinha a banca logo à entrada

da Praça, no lado esquerdo. Mordomias

numa família de peixeiras que estavam

quase todas metidas no métier).

Page 78: Condeixa, memória, história e paisagem

Para quem quisesse deixar a Avenida

e virasse à esquerda, entrava na

Avenida Velha, cheia de histórias e

beijos roubados debaixo das nogueiras

do Visconde. E o Viseu da Avessada e o

Manaia a não darem nunca por nada !

Mas voltando à Praça da Sardinha e á

Avenida Nova.

A partir daí ficávamos um pouco com

a sensação de que cada um

vivia para si, cada um fechado na sua

concha. Era o Manuel Alcobaça do

carro de aluguer, também conhecido

pelo Baixinho, o inconfundível e

inimitável António Pessa, sempre de

gabardina pelos ombros e cigarro na

ponta dos dedos, a mercearia do Zé

Bacalhau, sportinguista da pon-ta dos

cabelos à sola dos pés, a tasca do Zé

Luís e a sapataria do Eduardo Sansoa,

convenhamos, sapataria de bestas,

mulas e outras alimá- rias.

Page 79: Condeixa, memória, história e paisagem

E se continuássemos até ao cimo da

Avenida, é verdade, encontrávamos a

internacional Pensão Buraca, um pouco

antes de esbarrarmos de frente com a

casa do doutor Lencastre. Virávamos

obrigatoriamente à direita para tentar

sair da vila e tínhamos que passar pela

oficina do Benjamim Ramos, por todos

conhecido pelo Fechaduras.

Regressemos ao centro de Condeixa e

façamos uma incursão no Outeiro,

sempre a subir até às bandas do

Hospital, e que só terminava no

Hospício, onde estava o palácio dos

condes de Podentes, que se despediam

do visitante até uma próxima visita.

Esse Outeiro sempre a subir com o

Fernando Camões encostado ao

Armazém de Mercearias do Viseu e a

piscar o olho à Cadeia, um pouco antes

do largo de São Geraldo aparecer.

(A Escola dos Rapazes era em frente

do Hospital. Nos primeiros tempos

Page 80: Condeixa, memória, história e paisagem

pontuava o Professor Martins, pelos

vistos um grande pedagogo. Mais tarde

veio o Professor Pita que era mau como

as cobras. Quatro anos de pancadaria

diária com uma cana de bambu e uma

régua forte e feia eram os melhores

argumentos para se aprenderem as

lições e tirar-se a 4.ª classe a valer.

Pancadaria à parte ( sem que ninguém

ficasse traumatizado ), a verdade é que

a instrução primária era feita com

cabeça, tronco e membros.

E logo em frente era o Hospital,

polivalente nos serviços, com cirurgia,

internamentos, Raios X e sala de

autópsias nas traseiras. O pior era

mesmo brocar um dente, pois a broca

era movida por um aparelho adaptado e

movido com os pedais de uma bicicleta.

E quando o doutor Quirino Sampaio

queria brocar um dente, uma freira

assistente saltava para cima da bicicleta

e pedalava. A tortura durava um século.

E quando o dente estava muito cariado o

clínico insistia sempre com a freira: …

Page 81: Condeixa, memória, história e paisagem

Vamos lá Irmã, pedale agora com mais

força ! …).

Ao pé do Hospital havia também o

Armazém de Mercearias Alcobaça,

Pessa & Companhia Limitada. E mais à

frente, outra instituição de reputado

mérito e de clientela certa: O Café da

Carminda.

E Condeixa era também a água.

Sempre a nossa água. Calcária que se

fartava mas era nossa. A do Caldeirão e

a do Rio do Cais, quer uma, quer outra,

perfeitas conhecedoras dos segredos

existentes nos subterrâneos da vila. E as

fontes. E os fontanários. E as fontainhas.

E os moinhos de água. E os regadios. E

as rigueiras. E os poços. E os simples

charcos. E o tanque do Galaitas. E o

cano de pedra por onde saía a água

cristalina do Quelhoras.

(O Chafariz que estava no meio da

Praça da República era, simbolicamente,

um pouco de toda essa água de

Page 82: Condeixa, memória, história e paisagem

Condeixa. Metáfora engalanada sob a

forma de um harmonioso cesto de flores

- o símbolo de Condeixa - o Chafariz da

Praça deu sempre de beber a todos os

que tinham sede).

Imagens de Condeixa

Cândido Pereira

Ao propor-me escrever as memórias

da vila de Condeixa dos anos 40/50 do

século passado, tenho como objectivo a

preservação de factos passados com

Page 83: Condeixa, memória, história e paisagem

pessoas que quase só sobrevivem na

memória de alguns. São descrições e

episódios, aparentemente vulgares, mas

que consubstanciam a vivência de um

povo numa determinada época ou

espaço físico.

Essa Condeixa já não existe. Foi

tragada pelo progresso, a «máquina»

infernal que tudo destrói. E, se encontra

pelo caminho entidades responsáveis

sem um mínimo de sensibilidade, até

devora a alma do povo. José Cardoso

Pires afirmava: «Um país sem memória

é um país incapaz de compreender a

própria história». Felizmente, sempre

aparecem os depreciativamente

denominados «memorialistas»,

guardiões incansáveis de um tempo que

tem de ser transmitido a outras

gerações.

Neste exercício de memória vou

referir ruas. Mas elas são,

fundamentalmente, quem lá vive. Uma

rua sem gente é terra de ninguém. Na

verdade, são os moradores quem lhes dá

Page 84: Condeixa, memória, história e paisagem

vida e as faz ter histórias para contar.

Curiosamente, os dramas, mais que as

alegrias, têm o condão de agregar as

pessoas em torno dos atingidos pelo

infortúnio, formando um círculo

solidário onde até se esquecem as

«tricas das comadres contando as

verdades», coisas lançadas da boca para

fora, tantas vezes sem a intervenção do

coração!

Serei capaz de atingir os objectivos?

Vou tentar!

Condeixa, apesar de ser hoje

espartilhada por um tenebroso IC2, um

bastante menos concorrido IC3 e uma

circular interna de relativa eficiência,

conseguiu transbordar em termos

geográficos e habitacionais.

No meu tempo, porém, estava quase

limitada ao Outeiro, Avenida,

Condeixinha e Rua Nova, com a Estrada

Nacional a passar bem dentro do

coração do burgo. Para facilitar a

narração, consideremos que a entrada

na vila se fazia pelo Paço e se despedia

Page 85: Condeixa, memória, história e paisagem

junto à velha Faia, ao pé Café do

Arranhado (hoje Rotunda da Faia).

Logo a abrir, o Tanque do Galaitas,

um enorme reservatório de água

construído para movimentar a

«Fábrica», interessante construção da

época da revolução industrial, um misto

de fábrica de descasque de arroz e

lagar.

O Tanque serviu durante longos anos

como piscina popular, onde além dos

normais exercícios de natação, o povo

tomava banho, no sentido de higiene

corporal. Aos domingos de manhã,

jovens e adultos, -do sexo masculino -

pois o decoro da época impedia meninas

e senhoras de participar nessas práticas

- povoavam o Tanque do Galaitas. E

apenas levavam a toalha e o sabão azul,

pois o sabonete só era alcançável

noutros estratos sociais.

O Nobre Paço dos Almadas

Page 86: Condeixa, memória, história e paisagem

Depois, o Paço dos Almadas, que deu

nome ao local. Sólida construção com

corpo central, alas, jardim e comprido

gradeamento em ferro fundido, com

artístico portão (este gradeamento é o

mesmo da Pousada de S. Cristina).

Pertenceu na origem aos Condes de

Avranches. D. Lourenço de Almada,

combatente de Alcácer-Quibir, onde foi

ferido e feito prisioneiro, era o pai de

Antão Vaz de Almada que, da varanda

do seu Palácio no Largo de S. Domingos,

em Lisboa, (actual Palácio da

Independência), aclamou D.João IV.

O Paço foi adquirido pela família

Sotto Mayor, tendo sido utilizado como

celeiro e currais para gado. Dos salões,

três foram cedidos à Música Nova

(Filarmónica Fina-Flor) e os restantes

serviam para as festas particulares dos

proprietários. O Paço dos Almadas foi

demolido para no seu local ser

construído de raiz o prédio da Pousada

de Santa Cristina.

Page 87: Condeixa, memória, história e paisagem

Palácio dos Lemos Ramalho

Mas, a dominar todo o local, está o

Palácio dos Lemos Ramalho, de

Condeixa. Antigo Solar da Senhora da

Piedade, foi mandado transformar pelo

Bispo D. Francisco de Lemos Ramalho

de Azeredo Coutinho, Reitor reformador

da Universidade de Coimbra, para

receber o Rei D. José I, convidado a vir a

Coimbra inaugurar os Estudos Gerais. O

monarca não chegou a deslocar-se a

Condeixa, mandando em seu lugar o

Marquês de Pombal, amigo pessoal do

Bispo.

De linda traça arquitectónica, o

Palácio foi adquirido, em 1920, pela

família Sotto Mayor, quando se

encontrava bastante degradado, tendo

sido nessa altura sujeito a profundas

obras de restauro.

Até ao final da década de 1950, o

Palácio era uma das maiores entidades

empregadoras da vila. Para a sua

manutenção, assim como do Paço dos

Page 88: Condeixa, memória, história e paisagem

Almadas, da Quinta da Ventosa e de

outras propriedades, eram necessárias

dezenas de pessoas, entre criados,

profissionais de vários ofícios,

jardineiros, motoristas e jornaleiros.

Inclusivamente, anos antes da

inauguração do abastecimento de

energia eléctrica à vila, já o Palácio

possuía uma central privativa de

produção de electricidade.

Quase todos os anos a proprietária, D.

Elsa Franco da Cunha Sotto Mayor,

realizava festas populares. Estes

eventos tinham uma singularidade: as

despesas eram suportadas pela

promotora e um simbólico pagamento

de entrada, mas o apuro total destinava-

se ao Hospital, unidade de saúde

dependente do contributo de

benfeitores.

Recordo a última festa lá realizada, no

verão de 1947 (a D. Elsa faleceu

subitamente em Novembro de 1948, no

dia em que festejava o 50º aniversário).

Page 89: Condeixa, memória, história e paisagem

No grande pátio instalavam-se

barracas de tiro ao alvo, comidas e

bebidas, quermesse e a roda gigante, de

apenas pouco mais de uma dezena de

metros de altura, mas enorme para os

nossos olhos de criança. Constituía o

maior fascínio da garotada, com a lenta

subida nos compartimentos móveis e a

súbita descida a dar a sensação

arrepiante de levar o estômago à boca.

Recordo uma cena demonstrativa desses

tempos. A D. Elsa era madrinha de

imensas pessoas da terra. Quando ela

desceu ao terreiro, formou-se extensa

fila com o propósito de lhe beijar a mão,

ao que ela magnanimamente acedeu

como se fosse condescendente rainha.

No dia seguinte, a festa continuou com

uma garraiada onde brilhou o jovem

bandarilheiro Manuel dos Santos, mais

tarde grande nome da tauromaquia

portuguesa. Para finalizar, ocorreu uma

cena cómica, quando um espontâneo

saltou para a arena e a saiu com as

Page 90: Condeixa, memória, história e paisagem

calças rasgadas e a esconder «as

vergonhas».

O pátio do Palácio voltou a ser

publicamente utilizado em Agosto de

1954, quando o Clube de Condeixa

comemorou o 1º centenário da morte de

Almeida Garrett, realizando um evento

cultural a que chamou «Semana de

Garrett». Iniciou a série de espectáculos

o Clube de Condeixa, com a

representação da peça «O Camões do

Rossio», de Garrett. Seguiu-se um

recital de poesia por um crítico teatral,

Goulart Nogueira, uma palestra pelo Dr.

António José Saraiva e, a fechar a

semana, uma representação do drama

de Garrett, «Frei Luís de Sousa», pelo

Grupo de Teatro Instrução Tavaredense.

Em frente ao Palácio, a antiga Estrada

dos Loureiros, hoje R. Comandante

Matoso, tinha apenas três habitações: a

de João Borrega, de seu tio António e a

de meus pais.

Na esquina, morava João Borrega (creio

que o verdadeiro apelido desta família, era

Page 91: Condeixa, memória, história e paisagem

Ramos). Barbeiro de profissão, exercia o seu

mister no compartimento da entrada, com

pouca iluminação e escasso mobiliário: a

enorme cadeira de madeira com encosto para

a cabeça, o pequeno móvel onde colocava a

ferramenta de trabalho e bancos corridos de

madeira, encostados às paredes.

Profissionalmente, era medíocre e a falta de

freguesia assim o atestava. Tinha outra

alcunha, «Alemão», derivada do facto de ser

fisicamente semelhante ao padrão humano

pretendido por Hitler e defender a ideologia

política do sanguinário ditador. Nesse tempo

de guerra, toda a propaganda nazi distribuída

com o consentimento cúmplice do governo

português ia parar-lhe às mãos. Creio que, ao

contrário de muitas outras pessoas, até

algumas figuras importantes da vila que

entendiam bem o sentido dessa política, a sua

opinião era mais resultante da única

literatura a que tinha acesso.

Um pouco mais abaixo, morava José

da Costa. Em Condeixa foram comuns as

alcunhas. Às vezes designando uma

pessoa, mas frequentemente genéricas,

Page 92: Condeixa, memória, história e paisagem

abrangendo toda a família. Não é pois

de estranhar que José da Costa fosse

mais conhecido como «Zé Barbeiro». O

título, herdado de família, não tinha

nada a ver com a profissão. Tratava-se

de excelente mecânico de automóveis,

mas o trocadilho ocasionou um episódio

interessante. Certo dia chegou a

Condeixa um automóvel com séria

avaria. Quando o proprietário procurou

um mecânico, indicaram-lhe o Zé

Barbeiro. O homem ficou apreensivo,

pensando tratar-se de algum rapa-

queixos com outras habilidades. Mas a

necessidade obriga e lá se resignou a

procurar quem o «desenrascasse». É

claro que José da Costa, com a

reconhecida competência, rapidamente

resolveu o caso. No fim, depois de

acertadas as contas, disse o

automobilista: «Porque é que o senhor,

sabendo tanto de mecânica, continua

barbeiro?»

Logo a seguir, morava outro exemplo do

que há pouco disse sobre alcunhas. O António

Page 93: Condeixa, memória, história e paisagem

Torres era mais conhecido por António

Capado, da Ti Glória, para o distinguir de

outros Capados que pela vila existiam.

A Ti Glória, matriarca da família,

embora exercendo a modesta profissão

de vendedeira de sardinha e, suponho,

possuir apenas a instrução primária,

tinha razoável grau de cultura,

adquirido pelo hábito de ler. Dizia-se até

que ela lia o jornal sentada no penico.

No penico, sim senhor! Esse objecto,

hoje caído em desuso, foi fundamental

naquele tempo, quando uma simples

retrete era um luxo só permitido a quem

vivia muito perto das linhas de água.

Então, se a vontade obrigava, faziam-se

as necessidades no «vaso» e, ou

despejava-se o malcheiroso conteúdo no

rio ou sobre o monte de estrume que

depois ia adubar as terras.

Em frente aos antigos Paços do

Concelho, estava a loja do Zé David,

misto de taberna e casa de pasto. A

esposa era óptima cozinheira e ficou

célebre o seu «cabrito assado com

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batatinhas porra». Parece estranha a

designação, mas eu explico. A Ti Celeste

confeccionava sempre, e bem, aquela

especialidade gastronómica, motivando

até que de longe viesse gente para se

deliciar. Como era uma mulher brusca e

de resposta sempre na ponta da língua,

para a ouvir disparatar, os clientes

perguntavam: «Ti Celeste, como é hoje o

cabrito?». À desnecessária pergunta,

respondia ela desabridamente: «Com

batatinhas, porra!».

Logo depois, o talho de António

Vicente. Melhor, da esposa, porque ele

era comerciante de gado. Um dia

adoeceu gravemente. A mulher,

prevendo naturalmente o mau desfecho

da doença, encomendou um fato ao

António Pita, alfaiate que morava em

frente. Como a roupa era para a cova,

não necessitava de forros e bolsos. Mas

o Vicente, de rija têmpera, deu um

pontapé na morte, embora ficando a

sofrer de hidropisia, com uma enorme

barriga, a necessitar de frequentes idas

Page 95: Condeixa, memória, história e paisagem

ao hospital. O pior foi quando descobriu

a mortalha no fundo da arca! «Caiu o

Carmo e a Trindade!» Os impropérios

ouviram-se em Condeixa inteira. Rogou

uma praga para que a mulher e o

alfaiate fossem «desta para melhor»

antes dele. E não é que isso sucedeu

mesmo!

Mais adiante, ficava a latoaria de

Hermenegildo Pinho de Carvalho. A

partir de uma simples folha-de-flandres

e recorrendo apenas a vulgares

ferramentas, surgiam todos os utensílios

indispensáveis naquele tempo: cântaros

para a água, panelas e tachos,

almotolias, bacias e alguidares. Na

época dos finados, a produção

destinava-se à pia homenagem aos

mortos queridos. Simples candeias com

muito vidro e pouca lata ou artísticas

lanternas de folhas lavradas e ramos

retorcidos. Verdadeiras obras de arte!

As mãos que produziam tais objectos,

eram do próprio Hermenegildo de

Page 96: Condeixa, memória, história e paisagem

Carvalho, de seu filho Alberto e de seu

sobrinho Vital Preces.

Procissão na R. Lopo Vaz

Em frente, a mercearia da Carmo

Macia, uma pequena loja igual a muitas

outras da vila, com uma freguesia de

«aponte aí, que depois pago». A

proprietária, viúva e com um filho para

criar, demonstrava poucas expressões

de simpatia. Certo dia, quando varria a

loja, entrou-lhe pela porta um caixeiro-

viajante aperaltado, perguntando pelo

senhor Macio. Ora, aquela era uma

alcunha de que ela não gostava e, ainda

por cima, o marido já tinha morrido. Por

isso, respondeu ríspida: «O senhor

Macio está na raiz da p… que o pariu!».

A casa onde está colocada a placa com o

nome da Rua 25 de Abril, era a barbearia de

António de Oliveira (António do Zé Velho).

Com seus filhos Ramiro de Oliveira e Maestro

Saul de Oliveira Vaio, compôs um trio

responsável pela actividade musical

Page 97: Condeixa, memória, história e paisagem

condeixense, com músicas e poemas

difundidos por agrupamentos folclóricos e,

ainda hoje, escutadas com grande prazer. A

Barbearia Progresso, era a mais importante

do concelho, tendo muitos profissionais

aprendido lá o ofício.

Antigamente havia uma forma de

cortar o cabelo, quando este não

exigia intervenção mais radical,

apenas aparando um pouco na nuca

e sobre as orelhas. Chamava-se «dar

um caldo». Um dia entrou na

barbearia um forasteiro para fazer a

barba. No fim, Mestre António de

Oliveira perguntou: «E agora, quer

um caldinho?» O freguês,

desconhecendo o termo, respondeu:

«Muito obrigado, acabei há pouco

de almoçar!»

Quase a terminar a Rua 25 de Abril,

localizava-se o estabelecimento de José

Júlio Bacalhau (Zé Bacalhau),

mercearia, taberna e, even-tualmente,

casa de pasto. Seu filho, o antigo

Inspector Escolar Júlio da Costa

Page 98: Condeixa, memória, história e paisagem

Bacalhau, contou-me um facto ocorrido

na loja de seus pais. A vila, porque

ficava no eixo rodoviário da estrada

Lisboa-Porto, era ponto de paragem das

camionetas de mercadorias de longo

curso. Normalmente, estes veículos

estacionavam perto de habituais casas

onde po-diam tomar as refeições. O

motorista de determinada empresa, ao

passar pela Mealhada, comprava leitão

e o ajudante só pedia que lhe

colocassem um pouco de molho do

referido leitão, num frasco. Quando

paravam em Condeixa, o condutor pedia

à esposa do Zé Bacalhau para lhe

aquecer o leitão, e comia acompanhando

com um copo de vinho, enquanto o

ajudante só queria que lhe aquecesse o

molho do frasco, vertendo-o depois

sobre o pão. Consistia assim a parca

refeição que a sua capacidade financeira

permitia.

E chegamos à Praça da República!

Mesmo no tempo em que o Terreiro

era limitado pelo velho Palácio dos Sás,

Page 99: Condeixa, memória, história e paisagem

já ali se fazia o mercado bissemanal,

transferido para o Quintalão (actual

Praça do Município) na década de 1980.

A Praça era o verdadeiro centro cívico

da vila. As grandes tílias mandadas

plantar pelo presidente Dr. Madeira

Lopes, em 1953, emolduravam um

espaço onde a «cama» do Rio do Cais,

com a linda «cabeceira» de azulejos

policromados e o agradável aroma das

árvores em flor, despertavam a vontade

de passear nas cálidas noites.

Noutro tempo, em frente à casa do

professor Mateus (hoje Restaurante

Madeira), havia um largo, junção de

duas ruas nascidas da foz da Avenida e

que formavam uma pequena praceta

aproveitada, em 1947, para instalar um

Parque Infantil. Todo murado, tinha os

necessários apetrechos e, coisa curiosa

para a época, possuía um armário com

livros ao dispor das crianças, livros

infantis, é certo, mas livros! (A leitura

deve ser como os pepinos!) Quem

Page 100: Condeixa, memória, história e paisagem

tomava conta do Parque, era a «menina

Otília» (Otília Tavares Rosa).

Após muitos anos de utilização, o

Parque apresentava profundo aspecto

de degradação e foi encerrado, tendo

sido demolido mais tarde, com as obras

de remodelação da Praça.

Ao domingo, a Praça assumia a

verdadeira função cívica. Famílias

sentavam-se nos bancos, trocando

novidades ou mexericos. Senhores

circunspectos palmilhavam

continuamente, de lá para cá, discutindo

«assuntos de relevante interesse». E as

crianças corriam por entre todos,

jogando à «bola». De vez em quando, o

achatado objecto colidia com as pernas

dos presentes e aí vinha o chorrilho de

imprecações. Então, se as canetas eram

do velho Abel Batata, as pragas tinham

conotação mais sinistra: «antigamente,

ainda vinham umas febres que levavam

esta canalhada toda…»

No atrás referido largo também se

jogava à bola, sempre com atenção à

Page 101: Condeixa, memória, história e paisagem

aparição da autoridade, avessa a

brincadeiras de crianças. Quando não

era um certo zeloso funcionário

autárquico, inimigo figadal dos jogos na

via pública! Um dia, jogava-se com uma

bola de borracha, luxo só permitido

quando algum menino rico se juntava à

plebe. No momento em que o esférico

escapou do controlo dos improvisados

futebolistas, surgiu da Rua Direita o

esbirro camarário. Pegou na bola,

retirou do bolso um canivete e, com

requinte de malvadez, retalhou-a em

gomos, como se estivesse a descascar

uma laranja, alheio aos protestos e

rogos da criançada que, assim, via

terminar tão aguerrido desafio.

Bem no meio da Praça erguia-se o

Chafariz, ladeado por candeeiros de

ferro fundido. Dizia-se que ele

representava um cesto de flores,

referência ao brasão da Vila. Ideia

errada porque vários outros existem

exactamente iguais, como o de

Castanheira de Pêra, e cesto de flores

Page 102: Condeixa, memória, história e paisagem

apenas o emblema da vila de Condeixa

possui. Hoje, o Chafariz está colocado

noutro local.

Quando, no final da década de 1920, a

Praça foi alargada e aberta a Avenida,

vários prédios foram ali construídos. Um

deles, o Cine-Avenida, abriu as suas

portas apenas dois dias depois da

inauguração da luz eléctrica. O evento

ocorreu no dia 1º de Dezembro de 1932.

O promotor de tão importante

realização foi Joaquim da Costa, um

empreendedor comerciante responsável

por outras grandes iniciativas que

contribuíram para o desenvolvimento de

Condeixa.

Cine-Avenida de Condeixa

Inicialmente concebido apenas para

cinema, rapidamente lhe foi

acrescentado um palco, o que permitiu

apresentar espectáculos teatrais. Logo

em 1933, o Grupo Cénico Dr. João

Antunes, nessa altura criado,

representou cinco peças e,

Page 103: Condeixa, memória, história e paisagem

posteriormente, mais três e uma revista

musical local, chamada «Secas e

Picadas», que obteve enorme êxito.

Embora sendo muitas vezes utilizado

para variadas manifestações culturais, o

Cine-Avenida foi, principalmente,

cinema. A sala, composta por Balcão,

Plateia e Geral, comportava cerca de

600 lugares. Era ampla, com grande «pé

direito», o que lhe conferia óptima

ventilação.

Quase desde o seu início, ao sábado à

noite era projectada uma breve sessão

de cinema intitulada por nós

«experimentação», destinada

supostamente a verificar se a fita estaria

apta para a exibição dominical. Porém,

segundo se dizia, Joaquim da Costa fazia

uso daquele método como forma de

incutir nas crianças o gosto de ver

cinema. Comentava-se até que, quando

o questionavam a propósito, respondia:

«Estes vão ser os meus clientes de

amanhã!» Extraordinária forma de agir!

Numa época de profunda economia, sem

Page 104: Condeixa, memória, história e paisagem

qualquer tradição publicitária, alguém

se dispor a fazer despesas só para

adquirir futuros frequentadores do

cinema, é deveras digno de admiração.

No meu tempo, as crianças brincavam

na Praça com espadas e pistolas de

madeira, imitando peripécias de Tyrone

Power, Errol Flynn ou Tom Mix, actores

que viam na tela.

Para a «experimentação» não tocava

a campainha que ao domingo, estridente

e continuadamente chamava os

retardatários à função. Apenas se

acendiam os globos brancos por cima do

portão, sinal para a garotada, há muito

com os olhos fitos na porta vermelha. E,

quando ela se abria, entrava de roldão

por ali dentro, sem o estorvo dos

porteiros. Mas, ao domingo, também era

possível entrar sem comprar ingressos.

Estes estavam divididos por um

picotado. A parte mais larga ficava com

os porteiros e a mais estreita, com a

indicação do nº de fila e lugar, ficava na

posse do espectador. No dia seguinte,

Page 105: Condeixa, memória, história e paisagem

quem procedia à limpeza do cinema,

despejava o lixo para o Quintalão (actual

Praça do Município). Com esse lixo iam

os inutilizados talões. Nós só tínhamos

de lá ir buscá-los e, com muito jeito,

colar as duas metades. Para a coisa

parecer mais verdadeira, o Tónio

Galhardo (António Pequicho Moita),

filho de alfaiate, refazia o picotado na

máquina de costura do pai e passava a

ferro os bilhetes obtidos. Pareciam

novos! Cada sessão de cinema tinha cor

distinta nos talões. Se possuíamos

alguns com a cor certa, bastava esperar

que as luzes se apagassem para, na

semi-obscuridade, enganar os porteiros

e entrar.

O Cine-Avenida, após mais de trinta

anos de actividade, terminou os seus

dias como celeiro da Cooperativa de

Condeixa. Mas, ainda hoje, quando vou

a um cinema, não posso deixar de

recordar o grande candelabro de globos,

lá no alto, o tango «Rosas Vermelhas»

invariavelmente tocado ao intervalo e a

Page 106: Condeixa, memória, história e paisagem

«experimentação», parte integrante das

nossas actividades lúdicas.

Depois da Igreja, o edifício dos Paços

do Concelho, que foi mandado construir

pelos Condes de Portalegre mas é

conhecido como Paço do Capitão-Mor ou

Palácio dos Figueiredos da Guerra, da

Quinta de S. Tomé. Efectivamente esta

família foi sua proprietária, mas a

pedra-de-armas que está colocada sobre

o portão, é dos Cabrais, que adquiriram

o edifício. Mais tarde, através de

heranças de casamento, o prédio voltou

à posse dos Figueiredos da Guerra.

Após ler um texto da Monografia de

Santos Conceição, fui certo dia à arruinada

capela da Quinta de S. Tomé e encontrei,

inserida numa parede quase a ruir, a velha

pedra que provavelmente esteve a encimar o

portão atrás referido. Tem a formato

rectangular e é ladeada por duas volutas em

pedra, uma invertida da outra. Lavrada em

pedra calcária (Ançã?) está decorada com

interessante bordado de folhas (acanto

gótico?), em relevo. No centro tem um escudo

Page 107: Condeixa, memória, história e paisagem

no qual estão cinco folhas de figueira postas

em sautor, duas em cima, duas em baixo e

uma no meio, esta ladeada pelas letras A, do

lado esquerdo e I do lado direito. Em timbre,

um elmo com leão coroado. Por cima desta

pedra, um escudo mais pequeno em tudo

semelhante ao anterior mas sem leão sobre o

elmo.

Prevendo a natural derrocada do

restante corpo da capela e consequente

quebra dos símbolos heráldicos, solicitei

em 2005 ao Presidente da Câmara,

engenheiro Jorge Bento, que os

mandasse retirar do precário local, o

que foi feito e, segundo me informou,

transportados para o estaleiro da

Câmara, junto ao cemitério. Não será

certamente o melhor sítio para os

guardar, mas manda quem pode!

Em frente aos Paços do Município, a

velha Feira das Galinhas é hoje um

bonito jardim que mais destaca o

Monumento aos Mortos da 1ª Grande

Guerra, o primeiro a ser erigido no País,

exactamente em 9 de Março de 1921.

Page 108: Condeixa, memória, história e paisagem

Quando o largo era um simples terreiro,

realizavam-se lá espectáculos de

saltimbancos, grupos de acrobatas que

palmilhavam o País, actuando nas

pequenas localidades.

Voltando à Praça, há um edifício todo

revestido de pedra, único exemplar no

concelho, no qual está ainda instalada a

Farmácia Rocha. O Dr. Júlio Pires da

Rocha, pai das actuais proprietárias, era

licenciado em Farmácia e inventor de

vários medicamentos, que manuseava

no seu laboratório.

Condeixinha

A Farmácia Rocha, até há poucos

anos, configurava-se como um

característico estabelecimento do século

XIX. Armários pintados de vermelho

onde se alinhavam os medicamentos, um

pequeno balcão e no centro deste, a

balança de precisão encerrada em

cofrezinho de madeira e vidro. Embora a

maior parte dos remédios fosse já de

venda corrente, ainda era possível

Page 109: Condeixa, memória, história e paisagem

adquirir linhaça para fazer papas que,

bem quentes, tanto davam para

amolecer um furúnculo como para curar

uma pneumonia, «pomada das

infecções», negra como o pez, vendida

em pequenas caixas cilíndricas e «poses

p’ró estômago» (assim pedidos),

soluções alcalinas ou, simplesmente,

bicarbonato de sódio. Até meados do

século XX, o passeio da Farmácia servia

como local de tertúlia onde, ao fim da

tarde, se reuniam as pessoas gradas da

terra (médicos, juiz, pároco, etc.)

Ao lado, a entrada de Condeixinha,

uma nesga entre prédios quase a

tocarem-se lá no alto.

Condeixinha é muito antiga. Santos

Conceição, na sua Monografia

«Condeixa-a-Nova», refere nas páginas

83/84 ter lá existido uma Gafaria,

aquando do surto de lepra que assolou a

Europa no século XII. Estaria instalada

num prédio do Mosteiro de S. Marcos,

em frente a uma casa que tinha um

nicho com a imagem de Nossa Senhora

Page 110: Condeixa, memória, história e paisagem

da Assunção, a qual veio a dar nome à

rua. Mais tarde, esse nicho passou a

abrigar a imagem do Senhor dos Passos.

Ora, Rua da Assunção, só existe uma em

Condeixa e, curiosamente, com um

nicho do Senhor dos Passos. A ser

verdade, colocaria o local coevo da

formação de Condeixa, da qual herdou o

nome em diminutivo. Seja como for, a

Condeixinha não se pode dar o redutivo

nome de rua, pois ela é todo o conjunto

de casas com becos, vielas e travessas, a

formar um extenso aglomerado

habitacional composto pela própria rua,

mais os Pelomes, Lapa, Entre-Moínhos,

Várzea e, antigamente, estendendo-se

até ao Travaz.

Quando não tinha o indesejado

estatuto de estrada escoadora do

trânsito que demanda o IC2, era uma

rua macadamizada (que raio de nome!),

com as casas encostadinhas umas às

outras, lembrando a necessidade

medieval de protecção colectiva. No

inverno, a água corria por aquele

Page 111: Condeixa, memória, história e paisagem

caneiro natural, formando sulcos na

areia branca do solo batido. Perto da

cortada para a Lapa, onde uma súbita

corcova mais acentuava o desnível, era

quase impossível circular. Felizmente,

nesse tempo as rodas das carroças eram

altas e os animais que as puxavam

sabiam onde colocar as patas, evitando

os buracos do caminho.

Os veículos utilizadores deste trajecto

eram maioritariamente carroças, por

três razões fundamentais: a oficina de

ferrador, «mecânico» da força de

tracção das ditas carroças, a tanoaria,

onde se mantinham os rodados sempre

funcionais e os moleiros, residentes ou

não, passando no caminho do «carreto»,

a viagem levando a farinha e na volta

trazendo o grão para moer nos vários

engenhos ali existentes.

Automóveis, raros, a não ser o Austin

8 da Dr.ª Maria José Bacelar ou o

Vauxhall do Zé Curto.

Na velha Condeixinha, tal como a

conheci, palpitante na labuta diária mas,

Page 112: Condeixa, memória, história e paisagem

paradoxalmente, modorrenta ao ritmo

dos dias passados sem novidades, como

afinal no resto da vila, à noite os

moradores sentavam-se consoante o

local onde viviam, no passeio do

Quintas, no balcão do «Cara de Velha»,

junto à Casa dos Arcos ou lá em baixo,

no rebato do António Braga, frente às

escadas de pedra, em amena conversa,

não tão amena assim, quando era

puxado um assunto que ofendia alguém

presente. Arrufos de vizinhos, depressa

esquecidos.

E bailes? Ou não fosse o bairro

morada de instrumentistas da Música

Nova ou da Música Velha, com esta a

ter lá a sua sede.

Mal rompiam as festas aos santos

populares, por todos os lados surgiam

fogueiras iluminando a noite e as

sardinhas crepitavam nas brasas. O

«palhinhas» corria de boca em boca,

tentando acalmar uma sede nunca

saciada. Um naco de broa e uma

sardinha de molho escorrente

Page 113: Condeixa, memória, história e paisagem

compunham a ceia, prolongada noite

dentro, e os rapazes aproveitavam para

mostrar a valentia, saltando as fogueiras

de alterosas chamas.

Logo à entrada de Condeixinha, a

marcar o cunho operário do bairro, uma

oficina de ferrador, arte entretanto

desaparecida, por falta de bestas que

usem ferraduras. A loja estava instalada

num velho prédio, profundo e escuro,

com desconjuntado portão em frente do

qual estacionavam carroças e animais. A

urina e excrementos destes formavam

forte e pestilento cheiro, atraindo toda a

espécie de bicharada.

Lá dentro, o tronco, uma estrutura em

madeira onde se amarravam bois,

cavalos e burros, para a ferra. Um

aprendiz de ferrador accionava o grande

fole de madeira e cabedal, a soprar as

brasas que na forja punham o ferro ao

rubro para mais facilmente ser batido

na bigorna, até formar a ferradura. Com

ela ainda quente, aplicavam-na nas

patas dos animais. O fumo e o cheiro

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acre do casco ao ser queimado,

transbordavam para a rua.

Mesmo em frente, a casa da Ti Maria

Barbeira, sardinheira. O filho Octávio

(Távio Barbeiro) exercia a profissão de

sapateiro no acanhado rés-do-chão.

Recordo dele a figura magra de paciente

gástrico. Para combater o mal que o

levaria precocemente à cova, colocava

grandes quantidades de bicarbonato de

sódio na palma da mão e engolia mesmo

sem beber água.

O filho José (Zé Chorina), foi meu

condiscípulo. Das muitas aventuras

partilhadas, recordo a mais marcante.

Naquele tempo era hábito a malta ir

para os campos caçar passarada, com os

«elásticos» (fisgas) e as «costelas»,

armações de arame e molas de aço. Um

dia, alguém teve a infeliz ideia de

construir espingardas artesanais.

Compunham-se de um cano de ferro

galvanizado, tamponado num topo e

com um corte em V por cima, onde se

colocava a pólvora do rastilho, prendia-

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se o tubo numa rudimentar coronha de

madeira e, enquanto o atirador fazia

pontaria, um companheiro chegava fogo

ao rastilho e o tiro saía. Só que com o

Zé, saiu também o tampão atingindo-o

num olho, que ficou bastante

maltratado, mas felizmente foi

recuperado. Este quase drama teve o

condão de acabar com a estúpida ideia

de construir armas de fogo.

Ao lado, moravam as Patitas,

simpáticas senhoras com mãos de ouro

para confeccionar bolos. Depois, de

porta em porta, visitavam fregueses

certos transportando os deliciosos

pastéis em tabuleirinhos de verga,

cobertos com alvo pano.

Saltavam-me os olhos gulosos ao ver

aquelas delícias, especialmente as

cornucópias recheadas com creme de

ovos! Eram estas adoráveis criaturas as

únicas pasteleiras da terra, num tempo

em que os estabelecimentos do ramo, os

cafés, por sinal apenas três, davam

pouca importância à especialidade.

Page 116: Condeixa, memória, história e paisagem

Do outro lado da rua, a casa da

Requetinha Rocha, um bonito prédio

que tinha ao centro, resguardado com

portas de madeira, um nicho com o

Senhor dos Passos (seria o mesmo

referido por Santos Conceição?). O

prédio, a ameaçar ruína, foi demolido e

no seu lugar construído um feio edifício,

também com nicho, sem portas de

madeira mas sim grades de ferro a

aprisionar uma imagem só presente nos

dias de Passos.

Depois, o acesso aos Pelomes!

Pelomes ou Pelames, a etimologia é

obscura! Há quem diga terem ali

existido pombais, nos quais se

aproveitavam os excrementos das

pombas para curtir peles. Daí o nome,

Pelames, local de preparação de peles,

ligeiramente alterado através dos

tempos. Verdade ou não, certo é que

este era um dos mais populares sítios de

Condeixinha! Logo de começo, um rio a

aparecer magicamente por debaixo de

uma parede, mas depressa a sumir-se,

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envergonhado da ousadia, sob a casa do

Dr. Juiz!

Na apertada curva do minguado

caminho, o quintal da Ti Rosalina. Hábil

na ciência de tirar dores musculares e

endireitar ossos, com azeite e mãos

mágicas fazia desaparecer num piscar

de olhos o torcicolo mais persistente. Do

muro, pendiam para a rua os ramos de

uma figueira, de figos estaladiços e a

pingar mel, verdadeira tentação para a

garotada.

Dessa figueira ficou uma expressão

ainda hoje utilizada e que demonstra os

difíceis tempos de então. Nessa altura,

quando a fome era companheira de

muitos lares, a caça de pequenas aves e

a fruta furtivamente apanhada nos

quintais, se não satisfaziam as

necessidades alimentares, pelo menos

acalmavam no estômago o bichinho

inquieto. Às crianças rogantes de um

pedaço de pão, respondiam as mães

resignadas com a miséria: «Vai ao figo

da Rosalina!».

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Continuando o caminho, num desnível

de terreno, a Fonte da Costa, curiosa

gruta orlada de fetos e avencas, com o

fundo de areia branca palpitante de

bolhas ansiosas por chegar à superfície.

Mas os Pelomes têm também a casa

do Dr. Juiz! Este belo solar do século

XIX é hoje uma das poucas casas antigas

em perfeito estado de conservação,

graças ao proprietário, Fortunato Pires

da Rocha.

Seu pai, o Dr. António Pires da Rocha,

ilustre condeixense, exerceu durante

algumas décadas o cargo de Juiz de 1ª

classe, em várias Comarcas. Ainda

estudante e em plena monarquia, era

acérrimo defensor dos ideais

republicanos. Em 5 de Outubro de 1910,

já licenciado, ocupou o cargo de

Administrador de Concelho e, em 1914,

foi eleito Presidente da Câmara.

De trato afável e integridade a toda a

prova, o Dr. Juiz era estimado e

considerado por quantos o conheciam. A

sua porta, sempre aberta, recebia da

Page 119: Condeixa, memória, história e paisagem

mesma forma os ilustres visitantes ou a

mais humilde pessoa buscando conselho

jurídico ou até auxílio monetário.

O solar fazia lembrar as casas senhoriais

descritas por Eça, Camilo ou Aquilino: portas

franqueadas, mesa farta e pessoas sempre a

entrar e sair. Quando se subiam as escadas

de boa pedra de Condeixa-a-Velha, surgia a

pesada porta a dar acesso ao corredor. À

esquerda, a cozinha, imensa, com uma lareira

sempre acesa. A esposa do Dr. Juiz, D.

Floripes, afadigava-se aturando e, muitas

vezes, alimentando os muitos amigos dos

filhos. Apesar disso, ainda tinha tempo para

cuidar do moinho que, nos fundos da casa,

transformava o grão em farinha, à época

indispensável, para mais numa casa de

grande consumo como a sua.

Além, no antigo beco do Seiça

(Travessa Nunes Vidal), havia a tasca do

Loirinho, um homem peculiar. Embora

proprietário de estabelecimento, vivia

com muita pobreza. Não seria alheio o

facto de serem os próprios fregueses a

servir-se dos produtos em venda e a

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depositar a quantia numa ranhura do

balcão. Quando depositavam!

Solteirão, um dia resolveu deitar os olhos

para uma vizinha. Naturalmente tímido,

pediu a ajuda de outra pessoa. Esta lembrou-

o que a senhora em questão era coxa.

Resposta pronta dele: « Mas eu não a quero

para jogar futebol!». Pouco amigo de

trabalhar, já perto do final da vida, uma

doença tolheu-lhe as mãos. Quando

lamentavam o facto, respondia com aquele

seu humor irónico: «Deixa lá, eu também

nunca precisei delas…».

E por falar em figuras curiosas, em

Condeixinha vivia também o Zé Caleiras,

carpinteiro de móveis modestos. Nunca

recusava os pedidos da criançada para fazer

rodas ou transformar em carretas as caixas

de sardinha rapinadas à Ti Maria Barbeira.

Com elas desciam, depois, os miúdos

vertiginosamente a ladeira. Conta-se que, um

dia, o Zé Caleiras, indo de bicicleta atropelou

uma mulher. Em vez de socorrer a pobre

estatelada no chão, disse: « Ó Maria, calha

bem porque queria falar contigo!».

Page 121: Condeixa, memória, história e paisagem

A irmã dele era especialista a «tirar o

quebranto», uma prática que consiste

na utilização de um prato com água

onde se vão vertendo gotas de azeite,

acompanhando o acto com rezas, a fim

de exorcizar pragas e mau-olhado.

Casa dos Arcos

Mais adiante, a Casa dos Arcos ou

Casa das Colunas, uma construção do

século XVIII, com três arcos de volta

completa (dois estão fechados), terraço

e águas furtadas. Esta moradia está

quase em total ruína, de nada valendo a

tentativa feita há alguns anos para

evitar a queda das paredes, que podem

desmoronar-se a qualquer momento.

A Câmara pretendeu adquiri-la mas

uma questão de valores monetários

impediu em tempo próprio a

concretização da compra, com grave

prejuízo para a vila.

De facto, o Dr. Deniz Jacinto, ilustre

condeixense, pretendia, na altura, doar

a Condeixa o vasto espólio que possuía,

Page 122: Condeixa, memória, história e paisagem

composto por livros de sua autoria e de

outros escritores, diversos trabalhos

sobre Gil Vicente, de quem foi emérito

estudioso, o guarda-roupa da

personagem «diabo», envergado nas

peças vicentinas em que participou e se

notabilizou no teatro universitário e,

ainda, a Comenda da Ordem do Infante

D. Henrique com que foi agraciado pelo

Presidente da República.

A Casa dos Arcos foi o local escolhido

para instalar o Museu, mas a tal

mesquinha questão da compra do imóvel

e a falta de interesse da Câmara em

proporcionar outro local, contribuíram

para impedir a sua resolução. O espólio

acabou por ser doado ao Museu Paulo

Quintela, de Coimbra!

Em frente, no local actualmente de

acesso aos pavilhões da Santa Casa da

Misericórdia, existiam alguns prédios.

Um deles era habitado pelo Américo

Pato, (Olho e Meio). Era um homem

muito doente, atingido pela tuberculose,

Page 123: Condeixa, memória, história e paisagem

esse terrível mal causador de tantas

mortes.

Impedido de trabalhar pela doença

que o minava, não tinha meios de prover

a subsistência da família. Resolveu,

então, adquirir na oficina do Augusto

Braga uma bicicleta e fazer um sorteio,

para o qual vendeu as respectivas rifas.

É claro que o lucro final seria pequeno,

mas ele tinha a esperança de o prémio

calhar a algum benfeitor que lhe

permitisse fazer novo sorteio.

Infelizmente, isso não sucedeu! O

contemplado, insensível ao drama,

exigiu o velocípede! Tristes tempos,

quando um operário, após passar uma

vida de duro trabalho, quando já não

tinha serventia, apenas lhe restava um

pau e um saco para se juntar à horda de

pedintes famintos. E não se pense que

essa situação se passava em tempos

remotos! A parte substancial dos

direitos e condições sociais, infelizmente

agora em risco, apenas foi adquirida

após a Revolução de Abril!

Page 124: Condeixa, memória, história e paisagem

O Américo tinha dois filhos: o António

e o Américo, este só conhecido como Zé

Cletra. O António, quando era criança

gostava de ir para a Igreja ajudar no

arranjo de andores e altares. Certa vez,

auxiliava Álvaro Pedro Augusto a

decorar a Capela de Nª Sª da

Conceição, em cuja base está uma

imagem de S. António. Uma deficiente

instalação transportava a energia para

iluminar a Virgem. Ao tocar num fio e

desconhecendo o efeito do choque

eléctrico, gritou: «Fuja senhor Alvarito,

que o Santo Antoninho está danado!»

Condeixinha tem três espaços

distintos. Desde o início e até à cortada

para a Lapa é densamente habitada,

com as casas a sucederem-se numa

linha continua. Depois, até Entre-

Moinhos, apenas algumas casas

dispersas e, a partir daí, novo

aglomerado a ser interrompido pela

Estrada Nacional.

Ao virar para a Lapa, a casa outrora

acastelada da Quinta da Lapinha, antigo

Page 125: Condeixa, memória, história e paisagem

solar dos Cunhas, possuía uma linda

gruta de tufo calcário juncada de densa

vegetação, com a água a formar

pequena cascata. Nos anos 40 do século

vinte, chegou a ser atracção turística de

Condeixa. Que pena não continuar a

fazer parte de um roteiro da vila!

Do outro lado, a Quinta da Lapa, ou

Morgadio da Lapa. «…Manuel Sequeira

Coutinho, fidalgo de geração nascido em

Tentúgal, era o senhor do morgadio de

N. Sª da Lapa… no princípio do século

XIX pertencia ao Bacharel João Paulo da

Silva, natural de Condeixa. Um século

depois, a velha casa apalaçada dos

Coutinhos foi alugada ao Rev. Dr. João

Augusto Antunes que fez dela sua

residência e sede do Orfeão de

Condeixa» (elementos retirados da

Monografia «Condeixa-a-Nova» de

Santos Conceição, 2ª edição, páginas

66/67)

O Padre Dr. João Antunes, grande

vulto intelectual, impulsionador da vida

cultural de Condeixa, criou em Condeixa

Page 126: Condeixa, memória, história e paisagem

o primeiro Orfeão popular do País.

Recorrendo a reputados mestres,

António Gonçalves, João Machado, Abel

Manta, Pedro Olaio, etc., fundou

também uma Escola de Artes e Ofícios,

destinada a desenvolver nos inúmeros

artistas da terra, com conhecimentos

apenas empíricos, técnicas de desenho

industrial, noções de pintura, cerâmica,

serralharia e modelação. Da importância

dessa Escola, nos dá conta o romancista

condeixense Fernando Namora: «…

entretanto a vila multiplicava-se em

pintores de domingo, marceneiros-

artistas, ferreiros, compositores

populares…» Tanto os ensaios do Orfeão

como as aulas da Escola, tinham lugar

no grande solar. O prestígio do Dr.

Antunes granjeou-lhe a amizade de

destacados vultos intelectuais da época:

o poeta Afonso Lopes Vieira, o pianista

Rey-Colaço e o musicólogo Ruy Coelho,

eram visitas assíduas da Quinta, tendo

Ruy Coelho, encantado com a paisagem

desfrutada das janelas da casa,

Page 127: Condeixa, memória, história e paisagem

composto uma bela melodia intitulada

«Pôr-do-sol em Condeixa».

Após a morte do Dr. Antunes, a quinta

passou a ser moradia do proprietário,

Lino Pedro Augusto. Seu filho Alvarito,

um homem de rara sensibilidade

artística, ao longo da vida reuniu um

valioso acervo constituído por alfaias

agrícolas, artesanato vário, colecção

numismática, pinturas e documentos

antigos. Este espólio pertence hoje a sua

filha e seria importante, para memória

futura, a Câmara procurar adquiri-lo.

Continuando a descer Condeixinha e

ao cortar para a Várzea, num ângulo

formado com estrada do Penedo,

construiu o Zé Pato a casa quando foi

despejado da que habitava, na Senhora

das Dores, porque nesse local ia ser

edificada a central elevatória de água.

José Rodrigues Pato, pedreiro, vivia com

grandes dificuldades porque tinha

muitos filhos. Quando um dia o Dr.

Celso Franco, primeiro dentista a

montar consultório em Condeixa, lhe

Page 128: Condeixa, memória, história e paisagem

perguntou porque continuava a fazer

filhos, vivendo tão mal, respondeu-lhe:

«O que quer, senhor Dr., isto é o arroz

doce dos pobres!» Hoje existem outras

formas de passar o tempo. Por isso, as

famílias são tão pequenas!

Mesmo ao fundo da ladeira de

Condeixinha, estão as «Escadas do Zé

Curto», antigamente assim designadas,

embora o estabelecimento deste fosse

mais adiante. O Zé Curto, perdão, os

Zés porque a loja era gerida por pai e

filho, ambos com o mesmo nome, faziam

amiúde alarde da fortuna, afirmando

medirem o dinheiro que tinham, em

alqueires de moedas. No entanto, eram

pessoas muito simpáticas. O Curto pai

costumava brincar comigo prometendo

emprestar-me a «cabeça da víbora»,

hipotético amuleto infalível para

conquistar raparigas. A loja, uma

mistura de adega, mercearia, venda de

lenha para queimar no forno, agência de

seguros e «banco particular»,

comercialmente dominava pelo menos

Page 129: Condeixa, memória, história e paisagem

toda a baixa Condeixinha. Mas os lucros

daí advindos não seriam significativos.

Muitas vezes, assisti a pequenas compras de

cinco ou dez tostões de açúcar, café ou arroz.

É certo que «grão a grão, enche a galinha o

papo»; no entanto, penso terem sido os lucros

mais significativos obtidos através do

empréstimo de dinheiro com altos juros.

Já no fim da rua, perto do cruzamento

com o IC2, morava António Alves (Tónio

Amâncio), pintor da construção civil.

Um artista! Dava gosto vê-lo pintar os

finíssimos traços nos quadros das

bicicletas.

Profundamente supersticioso, muito

dado a acreditar em coisas do além, dos

muitos episódios que me contou,

recordo dois.

Dizia a lenda que existia, junto à

Capela da Lapa, um tesouro escondido

sob a terra. Como já tive oportunidade

de referir, aqueles eram tempos de

muitas dificuldades. Um tesouro

despertava a cobiça nas cabeças mais

equilibradas.

Page 130: Condeixa, memória, história e paisagem

Acompanhado pelo «Cavalo Ruço»,

foram tentar descobrir o maná, munidos

de pás e enxadas. Dirigiram-se ao local

e abriram um buraco no chão. Quando a

cova já estava suficientemente profunda

sem nada encontrarem, resolveram sair.

Nesse momento, alguém com voz

profunda perguntou: «Precisam de

ajuda?».

A noite era negra, o local ermo e a

consciência pesada! Pensaram tratar-se

do demónio que vinha castigá-los por

ousarem perturbar as profundezas. No

dia seguinte, nem se lembravam como

tinham chegado a casa! Quanto ao

tesouro, ainda estará no mesmo sítio,

porque depois de conhecido o sucedido,

ninguém mais se atreveu a procurá-lo!

De outra vez, vinha da Eira da

Caldeira, em frente à cortada para o

Travaz, onde « trazia uma terra

amanhada ao ano». Já era noite e o local

nesse momento não tinha iluminação

nem vivalma. Parou para levar um

cigarro à boca e quando procurava os

Page 131: Condeixa, memória, história e paisagem

fósforos no bolso, ouviu a seu lado dizer:

«Precisa de lume?». Olhou e viu uma

figura toda vestida de preto. Julgando

que Lúcifer voltava para o punir pela

aventura da Lapa, desatou a correr

direito a casa, onde chegou certamente

com as calças bastante malcheirosas.

Estas histórias, contadas por quem as

viveu, ou imaginou, não davam vontade

de rir, antes pelo contrário. Muitas

outras lhe ouvi e a minha mente juvenil

ficava sempre bastante impressionada!

Mas nem só a vila tinha locais de

interesse. Embora a Praça fosse o lugar

preferido para brincadeiras, não era

contudo o único local de diversão,

principalmente durante o dia. Às vezes,

até nos aventurávamos a ir às Ruínas,

nesse tempo sem alguém que impedisse

a livre entrada e onde encontrávamos

nos canais subterrâneos moedas que

depois vendíamos por meia-dúzia de

tostões a um comerciante da terra.

Outro sítio lindo era a Quinta de S.

Tomé!

Page 132: Condeixa, memória, história e paisagem

Ao olhar agora aquele edifício em

derrocada, ninguém imagina como era

agradável o local. Tinha três majestosos

portões de ferro, um para cada acesso, que

eram abertos de manhã ao toque das

Trindades, sinal público dos sinos da Igreja

dando início ao trabalho rural, e eram

fechados às Trindades, no final do dia solar.

Dentro apenas ficavam a família Pintaíto, que

cuidava o melhor possível da manutenção da

casa, e a família Ameixoeiro, que porfiava

para que o moinho se mantivesse funcional.

Todo o espaço envolvente da quinta se

multiplicava em sítios misteriosos. A causa de

toda a beleza era o rio que, vindo de

Alcabideque, bordejava a quinta. Este rio,

lindo em toda a extensão, tinha para nós

maior encanto após a Atadoa, o Marachão,

onde uma árvore, possivelmente salgueiro,

estendia os ramos formando trampolim

baloiçante para mergulhos. Mais perto, a

necessidade de abertura do canal que

atravessava a quinta a fim de accionar o

moínho, motivou a formação de um espaço de

terreno de forma triangular, rodeado de água

Page 133: Condeixa, memória, história e paisagem

por todos os lados, embora na parte mais

larga o elemento divisor não passar de

insignificante fio de água.

A este lugar, chamávamos «a ilha».

Junto, um alargamento do rio formou a

«Baixeira» -Bajeira, na gíria -, outro

óptimo lugar para nadar e onde ainda

cheguei a ver pescar barbos e ruivacos

(ao calcão), quando o peixe abundava.

Depois, na continuação da passagem,

loureiros e figueiras bravas quase

cobriam o rio. Não tanto que nos

impedisse de nadar junto ao «Olho».

Com tanta água por todo o lado, quem

sentia sede? « Água corrente não mata

gente, nem de noite nem de dia, nem à

hora do meio-dia, Padre-Nosso, Avé-

Maria!» Afastavam-se as ervas, fazia-se

o sinal da cruz e bebia-se na concha da

mão!

Quando vínhamos de nadar do

Marachão ou da Bajeira, sentávamo-nos

à sombra dos eucaliptos da ilha, a fumar

cigarros de barbas-de-milho

embrulhadas em papel. Confesso não

Page 134: Condeixa, memória, história e paisagem

me recordar do gosto desses

improvisados paivantes, mas devia ser

horrível, misto de palha e papel

queimado. No entanto, dava-nos a

agradável sensação de adultos, a deitar

fumo pela boca. O nariz não entrava

nessas funções porque fazia chegar as

lágrimas aos olhos!

Depois, íamos para o jardim

abandonado, brincar na «árvore dos

macacos», cujos ramos (ou raízes?)

formavam curioso entrelaçado,

permitindo-nos saltar de ramo em

ramo, imitando aventuras de

Tarzan. Esta espécie vegetal,

parece que rara, foi abatida para

madeira, perante a indiferença de

quem devia ter a responsabilidade

de a proteger!

Como já referi, a Quinta de S. Tomé

está hoje em completa ruína. A capela,

parte integrante do edifício, já não tem

os valiosos azulejos e o telhado abateu.

Porém, no seu solo existe ainda o

túmulo dos antigos proprietários,

Page 135: Condeixa, memória, história e paisagem

pessoas que fizeram parte da história de

Condeixa.

A arruinada Quinta de S. Tomé

Por tudo quanto acabo de descrever,

a Quinta de S. Tomé faz parte do meu

imaginário e é com grande mágoa que

tenho assistido à degradação daquele

simbólico edifício, quiçá a exploração

agrícola mais antiga de Condeixa.

Já tive ocasião de referir algumas

figuras típicas de Condeixa. No meu

tempo, muitas outras existiam. O Lisboa

era um vagabundo, mas excelente pintor

da construção civil, que andava sempre

embriagado. Numa noite de chuva,

estava ele caído junto a uma valeta,

perdido de bêbado. O padre Pimenta,

pároco da vila, vendo-o naquele estado,

comentou: - «Que miséria!» Ao que o

Lisboa respondeu: - «Miséria não,

senhor Prior, fartura, fartura!» Referia-

se certamente à quantidade de álcool

ingerida. Mas, na verdade, havia

Page 136: Condeixa, memória, história e paisagem

miséria! Não só no facto de o Lisboa se

embriagar, o que seria suficiente.

Lembro-me de, durante a 2ª Guerra

Mundial e mesmo após esta, ver passar

por Condeixa grupos de homens sujos e

rotos, que percorriam o país procurando

trabalho. Chamavam-lhes «estradeiros»,

nome ainda hoje considerado ultrajante

quando aplicado a alguém. Esses

homens viviam do que podiam, pedindo

ou roubando. Por vezes, algum ficava

pelo caminho porque arranjava trabalho

ou por qualquer outra razão. Seria o

caso do Lisboa, do qual ninguém

conhecia parentes. Ou do André, outra

figura típica. Dormia em qualquer

buraco, de preferência num terreno

vago na Avenida. Comia o que lhe

davam, mas não pedia nada. Por sinal,

muitas vezes recusava rudemente as

ofertas. Recordo um episódio passado

com a esposa do Dr. Rebelo, veterinário

municipal, quando ela lhe disse: «Ó

André, passa lá em casa para te dar

umas calças do senhor Dr.» O André,

Page 137: Condeixa, memória, história e paisagem

perguntou: «Então e o casaco?», tendo

ela respondido: «O casaco não, só as

calças!». Então ele, pondo aquele ar

provocante, disse: «Vá varda… com

elas!».

Irreverente, rude e mal-educado, este

André do qual os garotos tinham um medo

atroz, nem se atrevendo a colher os belos

figos da carregada árvore junto ao seu

tugúrio, se era suposto ele estar presente.

Como andava sempre nauseabundo, um dia

as irmãs Cavaca, Soledade e Conceição,

ajudadas por outras raparigas de

Condeixinha, resolveram dar-lhe banho e

vesti-lo decentemente. Só que o André

adoeceu com gravidade. Seria porque o

esterco funcionava como antídoto contra

viroses?

No Outeiro vivia também uma figura

excêntrica. João Cavaca (João da Costa),

era sapateiro. Teve certo dia um

acidente e ficou psicologicamente

afectado. Andava sempre muito direito,

com ar marcial. De repente parava,

levantava os braços e estalava os dedos,

Page 138: Condeixa, memória, história e paisagem

levantando uma perna. Depois, seguia

imperturbável o caminho. Um dia entrou

numa loja de ferragens que havia entre

a Igreja e a actual Câmara. A

proprietária, D. Conceição Pires

Machado, estava ao balcão e ele pediu:

«Ó Conceição, quero cinco tostões de

pregos». Ela, estranhando o abusivo

tratamento, disse: «Ó Conceição, não!

Dobre a língua!» Retorquiu ele: « Se

calhar quer que a trate por excelência?»

Respondeu a senhora: «Não sou, mas

podia ser!» João Cavaca, fazendo o

característico gesto e desinteressando-

se dos pregos, saiu dizendo: «Também

eu! Também eu!»

O Miguel Atílio, correeiro de

profissão, aliás muito habilidoso, tinha

como defeito ser fiel devoto do deus

Baco. Infelizmente para quem precisava

dos seus serviços e, fundamentalmente,

para ele próprio, passava mais tempo a

cozer as bebedeiras que a coser os

cabedais. Não obstante, era muito

simpático. Dava a ideia de possuir uma

Page 139: Condeixa, memória, história e paisagem

mentalidade de adolescente, com toda a

irreverência e irresponsabilidade da

juventude. O local do cemitério, nesse

tempo bastante ermo e escuro, num dia

de finados brilhava com as luzes de

muitas velas sobre as campas. No

entanto, algumas pobres sepulturas

mantinham-se tristes e abandonadas,

sem que alguém tivesse a caridade de

lhes colocar pelo menos uma flor.

Porquê? Não seriam os tristes despojos

humanos abrigados naqueles pedaços

de terra, tão dignos como os outros, do

culto dos vivos? Para esta questão,

encontrou o Miguel Atílio resposta!

Retirou velas que estavam em profusão

só nalgumas campas e distribuiu-as

pelas que nada tinham. Após este acto

equitativo, foi celebrar com boa

quantidade de vinho, indiferente à

opinião de espíritos conservadores que

consideraram o acto como sacrilégio.

Muitas vezes também juntava um grupo

de crianças com o qual ia buscar canas

para fazer arcos festivos. Depois,

Page 140: Condeixa, memória, história e paisagem

percorriam a vila cantando e gritando

como alegre e barulhenta charanga. É

claro que espírito tão livre e indiferente

às normas das pessoas sisudas, teria de

sofrer forçosamente a incompreensão

das autoridades ríspidas. Junto às

grades da cadeia, lá estavam, então, as

suas amigas dilectas, as crianças,

conversando, rindo e gizando novas

aventuras!

Procissão do Senhor dos Passos

Para terminar a minha maneira de

retratar a Condeixa do meu tempo, vou

descrever a mais antiga manifestação de

fé realizada na vila, a Procissão do

Senhor dos Passos, acto religioso de

grande significado e que se apresenta

sempre com a solenidade própria da

evocação da Paixão de Jesus Cristo na

longa caminhada para o Calvário.

Trata-se de um evento tradicional,

embora até hoje não tenha sido possível

Page 141: Condeixa, memória, história e paisagem

determinar a data da origem. Sabe-se,

no entanto, que este género de

procissões tal como chegaram ao nosso

tempo, teve começo no decorrer do

século XVII.

O livreiro e atento estudioso da

história de Condeixa, Isaac de Oliveira

Pinto, entre muitos trabalhos de

pesquisa, legou-nos um manuscrito

intitulado: «Irmandade das Almas e

Senhor dos Passos, da freguesia de

Condeixa-a-Nova. 1682-1953.» Deixando

bem claro que não pretendo apoderar-

me do estudo cuidado e profundo do

mencionado historiador, passo a

transcrever excertos do referido

manuscrito, também com a intenção de

esclarecer dúvidas que ainda hoje

persistem:

«…a Confraria das Almas só em

Julho de 1885 passou a chamar-se

«das Almas e Senhor dos Passos»,

mas numa acta de 25 de Agosto de

1799, li o seguinte: «logo pela

manhã irá o andador para a Igreja

Page 142: Condeixa, memória, história e paisagem

limpar a imagem e todos os

pertences…» Em 1799 pois, já a

Procissão se fazia. Mas é bem

possível que venha pelo menos do

ano de 1752. Esta data está

marcada num painel de azulejos do

Passo da Rua Direita (actual Rua

Dr. Fortunato de Carvalho Bandeira.

A designação de Passo, refere-se a

um nicho onde se encontra a

imagem sacra.)

Em 1910, reuniu a Mesa para adquirir

nova imagem do Senhor dos Passos. A

que existia estava a precisar de reparos

e estes importavam grossa maquia. Mas,

mesmo que o trabalho fosse perfeito, os

mesários recearam que o povoléu

acreditasse que a imagem enviada para

reparação não fosse a mesma que

depois viria. Muitas pessoas ainda hoje

falam do burburinho causado quando a

imagem de Nossa Senhora da Conceição

voltou do Porto, restaurada. Não

acreditaram que fosse a mesma e isso

deu muitos aborrecimentos à Mesa

Page 143: Condeixa, memória, história e paisagem

(nota: quando o exército de Massena

incendiou a vila e, consequentemente, a

Igreja, em 13 de Março de 1811, um

soldado francês levou consigo a imagem

da Sr.ª da Conceição, mas logo a

abandonou, muito danificada, junto à

Fonte da Caraça, na Faia. Esse facto

motivou do povo ainda mais devoção à

Virgem). Decidiu-se, então, comprar

uma nova imagem. Parece que o Padre

Dr. João Antunes ou António Pena,

conheciam a existência de uma imagem

num santeiro do Porto e a aquisição foi

feita, tendo a veneranda imagem

entrado na nossa Igreja no dia 18 de

Janeiro de 1910, transportada em

caixote desde a casa de Abilino Augusto

da Conceição, um dos mais influentes da

aquisição. A imagem, pela sua perfeição

escultural e impressionante expressão, é

considerada uma das melhores do país.

Alguém que por aqui tem passado e a

tem visto, é de opinião que ali andou a

mão ou o espírito da Teixeira Lopes

(nota: o autor da imagem da Rainha

Page 144: Condeixa, memória, história e paisagem

Santa). Com data de 2 de Fevereiro de

1910, vê-se o seguinte lançamento:

«Pelo que mandou pagar proveniente de

uma imagem do Senhor dos Passos, a

António Almeida Estrela, escultor do

Porto, 63$000 (nota: sessenta e três mil

reis). Parece compreender-se que esta

importância, hoje insignificante, foi para

o inteiro pagamento do primoroso

trabalho, pois jamais vi qualquer registo

ou lançamento de respeito. No ano de

1911, ao terceiro sábado da Quaresma,

saiu esta veneranda imagem pela 1ª vez,

da Igreja Matriz, em procissão pelas

habituais ruas da vila. Ia em camarim

fechado (nota: ainda hoje isso sucede;

trata-se do início de uma tradição?) e,

por isso, só no domingo foi vista e

venerada por uma multidão de devotos,

sendo olhada com verdadeira admiração

por pessoas daqui e de Coimbra.»

«…a Procissão do Senhor dos Passos

sempre se fez ao sábado, da Igreja

Paroquial para a Capela do Senhor da

Agonia, retirada além umas dúzias de

Page 145: Condeixa, memória, história e paisagem

metros do Palácio Sotto Mayor (nota: o

historiador aqui elabora em erro,

porque naquela altura o Palácio ainda

era dos Lemos Ramalho. A capela

pertencia ao Paço dos Almadas e estava

localizada em frente à actual Pousada

de Santa Cristina). No percurso tinha

pequenas paragens junto a cada Passo e

alguns músicos executavam os

«Motetos», uma composição medieval

polifónica, estacionando o Senhor dos

Passos durante um minuto sobre o Rio

do Cais, para os crentes colherem a

água que consideravam milagrosa. No

dia seguinte, à tarde, saía a imagem da

Capela do Senhor da Agonia em

procissão solene, (nota: o andor de

Nossa Senhora da Soledade ficava de

noite na Capela da Senhora da Piedade

e o sermão do Encontro era proferido da

varanda do Palácio), percorrendo as

ruas da vila com a Verónica cantando

«Ó vós omnes qui transitis» diante de

cada Passo. A Capela do Senhor da

Agonia foi demolida em 1940 e os dois

Page 146: Condeixa, memória, história e paisagem

andores passaram a ficar na Capela da

Senhora da Piedade. – Condeixa, 1953 –

Isaac de Oliveira Pinto

Entendi que a melhor forma de falar

sobre esta antiga manifestação religiosa

de Condeixa era transcrever os escritos

de uma das mais preclaras e bem

informadas figuras condeixenses.

Felizmente, não foi em vão que passou

imensas horas vasculhando papéis

poeirentos.

A Procissão do Senhor dos Passos,

embora actualmente um pouco diferente

de outrora, continua a despertar nas

pessoas um profundo sentimento

religioso, especialmente ao ver o

sacrifício dos penitentes que, no sábado

à noite, cumprem de joelhos as

promessas feitas em momentos de

aflição!

Está assim terminada a minha viagem

pela velha Condeixa. Decerto muitas

outras «estórias» ficam por contar e

mais moradores mereceriam ser

recordados. Dei-me ao agradável

Page 147: Condeixa, memória, história e paisagem

trabalho de registar os factos descritos

porque sei que se vão dissipando, não

restando em breve quem ainda os

recorde. Procurei relatar apenas

episódios onde a dignidade dos

protagonistas não fosse ofendida.

Gostaria que o meu trabalho pudesse

um dia contribuir para ser escrita a

história desta Condeixa que amo e onde

vi a primeira vez a luz de uma pálida e

fria tarde de Dezembro, na velha Rua de

S. Jorge (Rua Dr. João Ribeiro), há…

muitos anos!

Cândido Pereira, Condeixa Julho de

2010

Page 148: Condeixa, memória, história e paisagem

Ecos da GuerraCondeixa-a-Nova durante a

II Guerra Mundial

Joaquim Filipe Soares Rebelo

Breve nota introdutória

A História regista a política de

neutralidade adoptada por Portugal no

conflito opondo as chamadas Potências

do Eixo e os Aliados, que deflagrou

entre 1939 e 1945 e ficou conhecido

como a Segunda Guerra Mundial.

Page 149: Condeixa, memória, história e paisagem

Como acompanharam os habitantes

de Condeixa-a-Nova a evolução dos

acontecimentos, desde o desencadear

da Guerra até o respectivo termo? Quais

seriam os ecos do conflito, que se fariam

sentir, necessariamente, nesta terra?

Embora tenha sido produzida

abundante bibliografia respeitante a

esse conturbado período, abordando os

mais variados aspectos relacionados

com as incidências a nível nacional

dessa Conflagração Mundial,

desconhecemos a existência de qualquer

obra versando a temática focada no

âmbito local.

Por mero acaso, viemos a deparar

com um importante acervo de

documentos no espólio de Manuel Alves

Ferreira (nascido no lugar de Valada,

freguesia de Condeixa-a-Velha, a 21 de

Abril de 1920; falecido a 16 de Julho de

2006), que ajudam a fazer alguma luz

sobre o período em apreço.

Manuel Ferreira, de saudosa memória

para todos os conterrâneos que tiveram

Page 150: Condeixa, memória, história e paisagem

oportunidade de com ele contactar

como amigo e comerciante localmente

estabelecido durante décadas, aliava à

faceta de cidadão exemplar uma

extrema modéstia pessoal.

Ao longo dos muitos anos de

convivência, nunca aquele fez alarde da

meritória actividade por si desenvolvida

durante a Segunda Guerra Mundial a

favor da causa dos Aliados, a qual foi,

aliás, após o termo do conflito, objecto

do reconhecimento oficial, em Julho de

1946, através de carta assinada pelo

Embaixador do Reino Unido em Lisboa,

Sir Owen St. Clair O’Malley36.

O tardio conhecimento dessa

distinção, pela família, não possibilitou a

indagação pessoal, em tempo, junto

daquele, acerca das circunstâncias que

rodearam essa sua actuação.

Só após o falecimento do meu sogro,

foram encontrados alguns arquivadores

contendo a volumosa correspondência

trocada entre aquele e os Serviços de

Page 151: Condeixa, memória, história e paisagem

Imprensa das representações

diplomáticas dos Países Aliados37.

A revelação desse material, pelo seu

inegável interesse, não apenas do ponto

de vista da historiografia concelhia, mas

também no contexto nacional, impõe a

exigência de não o deixar ficar no

olvido, lançando-nos o desafio de dar a

conhecer a acção de alguém que, com

risco pessoal, participou no esforço

colectivo em prol do triunfo das Nações

Unidas.

Um tal projecto, pelo manancial de

documentação e bibliografia recolhidos,

implicando um tratamento e explanação

mais desenvolvidos, ficará para mais

tarde.

No âmbito deste despretensioso

apontamento, procuraremos dar um

relance sobre a distribuição das

propagandas dos beligerantes em

Portugal e a situação vivida à época

no concelho de Condeixa-a-Nova.

Não reclamamos a feitura de um

acabado trabalho de investigação, uma

Page 152: Condeixa, memória, história e paisagem

vez que para tal se reconhece faltar-nos

a apropriada formação académica, bem

como, ainda, o tempo necessário para as

indispensáveis pesquisas

complementares nos competentes

Arquivos Nacionais portugueses e

outros38.

Procuramos, no entanto, proceder à

recolha de testemunhos de conterrâneos

que viveram esses difíceis tempos do

século XX. Volvidos que estão mais de

60 anos sobre a eclosão do conflito, a

quase totalidade das pessoas, que

figuravam nas listas de distribuição da

propaganda aliada elaboradas por

Manuel Ferreira, já não é, infelizmente,

viva, enquanto algumas das

remanescentes têm a memória desses

tempos já bastante afectada.

Aquelas que nos foi possível, ainda,

contactar, eram então muito novos,

admitindo a sua inexperiência, ao

tempo, para poderem emitir uma

opinião consistente sobre o assunto.

Page 153: Condeixa, memória, história e paisagem

Cumpre-nos, contudo, realçar os

depoimentos prestados pelas Sra. D.

Isabel Antunes e Sra. D. Otília

Tavares Rosa, bem como o Sr.

Antero Simões Bernardes, e, ainda,

o Sr. Isac Pinto dos Santos, os quais

nos forneceram pistas para a

compreensão do ambiente social

vivido, durante os anos da guerra,

em Condeixa, aqui ficando

registados os nossos

agradecimentos pela prestimosa

colaboração dispensada39.

A Guerra das Propagandas em

Portugal

Ao longo de 1939, a iminência da guerra

tinha apenas alguns ecos na imprensa

portuguesa. Só nas edições de 2 de Setembro

de 1939, os jornais portugueses se referem

com grande destaque à eclosão da Segunda

Guerra Mundial. Nesse mesmo dia,

publicaram a nota oficiosa do Governo

Page 154: Condeixa, memória, história e paisagem

anunciando «Neutralidade Portuguesa no

Conflito Europeu».

Com uma população com fraco poder

de compra e elevado índice de

analfabetismo, não havia o culto dos

jornais.

Era difícil à imprensa portuguesa

falar da guerra. A neutralidade oficial

declarada pelo País não permitia

resvalos à sua imprensa. A própria

guerra era, aliás, invocada como razão

para o aperto do cerco à liberdade de

opinião e expressão. Dominada pelas

normas da censura e o zelo dos

censores, a crónica de guerra da

imprensa portuguesa era cinzenta,

fraca, com pouco impacto. Os jornais,

sem correspondentes de guerra,

limitavam-se a publicar os telegramas

das agências noticiosas internacionais,

filtrados pelos Serviços de Censura.

As notícias sobre a guerra tinham

uma fonte privilegiada – os adidos de

imprensa – que eram fundamentalmente

adidos de propaganda40.

Page 155: Condeixa, memória, história e paisagem

Nos Países Europeus não alinhados

com o Eixo ou os Aliados, que optaram

pela neutralidade - v.g. o caso de

Portugal, Suécia, Eire, Suíça -, travou-se

uma feroz guerra secreta das

espionagens e de propaganda, esta

última de molde a influenciar as

respectivas opiniões públicas nacionais

a favor dos contendores, na procura de

apoios.

Apesar da neutralidade reafirmada

pelo Governo de Salazar através da nota

oficiosa de 1 de Setembro de 1939, após

a invasão da Polónia pela Alemanha, que

desencadeou a declaração de guerra por

parte da Inglaterra e França contra

aquela, foi sobretudo a partir de 1940

que começou a travar-se a grande

batalha pela opinião pública portuguesa.

As propagandas dos beligerantes

procuravam construir um ambiente

favorável à captação de simpatias.

Portugal, apesar do seu reduzido peso

em termos de população ou recursos

económicos, era importante. A aplicação

Page 156: Condeixa, memória, história e paisagem

do bloqueio económico, por exemplo,

gerou da parte de ingleses e alemães

uma larga actividade que procurou

alargar apoios que permitissem àqueles

a sua maior efectivação e a estes a sua

ineficácia. O alargamento da guerra

colocava, por outro lado, a neutralidade

perante o aumento das exigências dos

beligerantes, como o comprova o

crescente interesse dos Açores para os

ingleses e do volfrâmio para os

alemães41.

Razão porque Alemães e Ingleses,

numa primeira fase, e Americanos,

numa segunda, se lançaram na

propaganda no nosso país durante a

Segunda Guerra. Os alemães em

primeiro lugar, e depois ingleses e

americanos, começam a saturar a

população portuguesa com jornais,

revistas, panfletos, cartazes, folhetos e

livros, simultaneamente com os novos

meios técnicos como a rádio e o cinema,

que ultrapassam as fronteiras e chegam

a Portugal. O impacto dos noticiários

Page 157: Condeixa, memória, história e paisagem

estrangeiros em língua portuguesa é

especialmente importante, num país

ainda em grande parte analfabeto e com

más comunicações42.

A Alemanha ensaiou muitas das

técnicas de propaganda, depois

utilizadas pelos beligerantes, em

Portugal. Nos primeiros meses de

guerra, a propaganda do Eixo pura e

simplesmente eclipsa a inglesa, quer em

qualidade como em quantidade. Foi a

Alemanha a primeira a montar os

centros de propaganda regionais com

funcionários permanentes, a que

estavam ligadas as redes de voluntários

e uma «máquina», mais tarde copiada

pelos ingleses.

A criação do Centro Britânico de

Informações (CBI), no Porto, em 1940, é

um passo importante para organizar o

grande apoio que os ingleses têm no

Norte. O CBI não tarda a criar uma

vasta rede de voluntários, os quais não

só distribuem propaganda nas Câmaras,

centros recreativos, clubes, empresas e

Page 158: Condeixa, memória, história e paisagem

departamentos do Estado, como

procuram convencer os comerciantes a

afixar fotografias de Churchill ou da

Rainha da Inglaterra, enviando listas

dos anglófilos da zona a quem convém

remeter folhetos pelo correio43.

O principal veículo da propaganda era

a imprensa.

Podem distinguir-se três tipos de

órgãos: em primeiro lugar, as revistas,

folhetos e livros publicados na

Inglaterra, alguns em inglês vendidos

em poucas livrarias e quiosques das

maiores cidades, sendo, porém, em

português o principal órgão, a Guerra

Ilustrada, tradução da revista inglesa,

onde por vezes se incluíam artigos sobre

Portugal.

Em segundo lugar, as revistas e

jornais feitos em Portugal e com

responsáveis portugueses, mas

claramente financiados pela Inglaterra

e, por ela, influenciados. A mais

conhecida é O Mundo Gráfico, que

começou a ser publicada em Outubro de

Page 159: Condeixa, memória, história e paisagem

1940 e, desde 1942, recebeu dinheiro

americano, passando a incluir artigos

sobre os EUA.

Em terceiro lugar, os órgãos da

imprensa portuguesa, que a propaganda

inglesa procura influenciar de diversas

maneiras.

A maior parte da imprensa

portuguesa favorecia a Inglaterra,

segundo a perspectiva da Censura e da

PVDE44. Em 1944, o MOI45, fazia a

seguinte classificação dos diários mais

importantes: eram «amigáveis» ou

«muito amigáveis», o Século,

Novidades, Diário de Lisboa, República,

Primeiro de Janeiro e Comércio do

Porto; eram «neutros», mas

«melhoravam de tom», o Diário de

Notícias, o Diário da Manhã, ligado à

UN46, considerado pró-alemão até 1943

altura em que é nomeado director

Manuel Múrias, o Diário Popular e o

Jornal de Notícias; eram pró-alemães ou

de «pouca confiança», A Voz e

semanários como a Acção47.

Page 160: Condeixa, memória, história e paisagem

A propaganda americana só chega a

Portugal praticamente, a partir de 1942.

Os EUA não consideram Portugal um

alvo importante para a sua propaganda,

pelo que não oferecem resistência

quando a Inglaterra sugere que se

insiram na rede já existente, alargando-

a e aproveitan- do-a, mas sem fazer um

esforço autónomo. Como os EUA

empenham, desde 1943, substanciais

recursos financeiros, a Inglaterra

diminui o seu esforço próprio, mantendo

no essencial o controle da máquina de

propaganda aliada e impedindo os EUA

de seguirem uma política própria. Um

exemplo típico é O Mundo Gráfico que, a

partir de 1942, recebe o apoio

americano, passando a inserir

reportagens sobre os EUA e,sobretudo,

sobre os portugueses nos EUA48.

A rádio era uma novidade em

Portugal. As primeiras emissões

regulares em onda média foram

efectuadas em 1925, mas só em 1935 se

inaugurou a Emissora Nacional.

Page 161: Condeixa, memória, história e paisagem

A BBC (British Broadcasting

Corporation) inicia as transmissões em

onda curta para Portugal a 14 de Junho

de 1939 mas, ao fim de pouco tempo

torna-se a estação estrangeira mais

ouvida no país. Vários jornalistas

nacionais colaboram no seu

departamento português, dos quais o

mais conhecido é Fernando Pessa.

O interesse despertado pela guerra

parece, aliás, ter sido um dos grandes

incentivos à difusão de aparelhos

receptores de telefonia em Portugal: os

89.000 registados em 1939, tinham-se

já transformado em 120.663 em 194249.

Com o início da II Guerra Mundial,

Portugal toma, a 21 de Setembro, a decisão,

através do Decreto-Lei n.º 29. 937, de

suspender o funcionamento de todas as

estações emissoras particulares, devido à

guerra. O mesmo diploma previa a concessão

de autorizações especiais. Das várias estações

que continuaram a emitir, destacavam-se a

Emissora Nacional, que era controlada pelo

governo, o Rádio Clube Português, que

Page 162: Condeixa, memória, história e paisagem

pertencia a Jorge Botelho Moniz e estava

intimamente ligado ao Estado Novo, e a

Rádio Renascença, pertencente à Igreja

Católica, enquanto outras emissoras

profissionais foram autorizados a emitir após

um requerimento de funcionamento. Os

postos amadores tiveram de encerrar50.

«O Estado Novo e, portanto,

Salazar pessoalmente, tentou, e

conseguiu em alguns casos,

interferir na linha editorial da BBC

de várias formas». O caso «mais

emblemático» ocorre em 1941,

com o despedimento de Armando

Cortesão, exilado em Londres e ao

serviço da secção portuguesa da

BBC. Salazar insurge-se contra a

hipótese de aquele vir a chefiar a

secção e ordena à censura

portuguesa que «corte todas as

notícias» da estação, «o que coloca

a propaganda britânica em

Portugal quase ao nível zero»51.

Page 163: Condeixa, memória, história e paisagem

O contrapeso alemão das emissões

radiofónicas da BBC era o

Reichsrundfunk, também conhecido por

Emissora Europa, que irradiava em

ondas curtas para quase todos os países

em vinte e cinco línguas, entre as quais

a portuguesa. Das 12:45 às 14:00 horas

e durante um quarto de hora,

começaram por ser emitidos noticiários

em língua portuguesa e, a seguir, o

programa Hora Portuguesa. Das 19:45

às 00:45, havia noticiários sucessivos,

comentários aos temas do dia e

considerações sobre os sucessos

militares actuais. Em 1945, o tempo

total diário das emissões era de cinco

horas e quinze minutos. A propaganda

do Reichsrundfunk era feita

essencialmente com a publicação dos

programas em revistas de influência

alemã, como Sinal e A Esfera, ou em

jornais portugueses (p. ex., Diário de

Notícias), subordinada ao título A

Alemanha Fala52.

Page 164: Condeixa, memória, história e paisagem

A estação de Londres deveria superar

em níveis de audiência a própria E.N. e

estava muito acima das outras

estrangeiras, designadamente a Rádio

Berlim, a estação mais anunciada na

imprensa portuguesa da altura,

enquanto a popularidade de Fernando

Pessa excedia em muito a de qualquer

figura da rádio portuguesa. Os EUA

mantinham também a sua estação de

rádio para Portugal, A Voz da América,

que nunca teve a popularidade da BBC,

sendo o seu principal locutor Jorge

Alves53.

Depois da novidade técnica da

radiodifusão, o cinema é a segunda

grande inovação técnica de propaganda

do século XX, tendo sido amplamente

utilizado por todos os beligerantes.

A Alemanha explorou o cinema na sua

propaganda para Portugal, sendo

exibidos inúmeros filmes no cinema

Odeon e, em sessões especiais, no

Colégio Alemão, em Lisboa54. Nunca

conseguiu destronar o predomínio do

Page 165: Condeixa, memória, história e paisagem

filme americano e inglês no circuito

comercial normal e, com o decurso da

guerra, viu reduzida a sua quota do

mercado.

Desde o início do conflito, que as

distribuidoras anglo-saxónicas dominavam o

mercado nacional com filmes ingleses e,

sobretudo, americanos. A partir de 1941,

começam a surgir os filmes especificamente

sobre a guerra, feitos com evidentes intuitos

de propaganda. Os Aliados distribuíam ainda

pequenos documentários que, em teoria,

deviam ser exibidos antes dos filmes,

acompanhando os similares portugueses55.

Se a máquina alemã encontrava

público, principalmente, entre militares

e para-militares portugueses, a indústria

cinematográfica norte-americana ainda

levava a melhor. Ambas as facções

faziam exibições privadas, tendo os

aliados conseguido, após alguma

resistência dos exibidores, que temiam

confrontos entre o público, a exibição de

documentários antes dos filmes. Após o

final da guerra, numa curta fase de

Page 166: Condeixa, memória, história e paisagem

distensão do regime, entram finalmente

filmes como Casablanca, que esteve dez

semanas em cartaz56.

Manuel Alves Ferreira,

um natural de Condeixa que contribuiu

para o triunfo dos Aliados

Como em todas as outras localidades

portuguesas, a guerra embora distante

era acompanhada com interesse, mas

também com apreensão. A formação de

apoios aos blocos beligerantes não

tardou a operar-se, com anglófilos57 de

um lado, e do outro os germanófilos,

sendo desde logo clara a predominância

das simpatias para com a Grã-Bretanha.

Condeixa-a-Nova não permaneceu,

naturalmente, imune à guerra das

propagandas desencadeada pelos Países

beligerantes.

Segundo o Censo de 1940, o concelho

de Condeixa-a-Nova com 4.135 fogos,

tinha uma população presente total de

Page 167: Condeixa, memória, história e paisagem

13.591 habitantes, dos quais 6.311 do

sexo masculino, e 7.280 do sexo

feminino58.

A população presente de 20 ou mais

anos de idade totalizava 8.540 pessoas,

sendo 3.717 homens e 4.823 mulheres.

Sabiam ler 3.270 pessoas, das quais

2.234 eram homens e apenas 1.036

mulheres: possuíam o grau de instrução

primária 555 indivíduos, 376 do sexo

masculino e 179 do sexo feminino;

possuíam habilitação do ensino

secundário 34 pessoas, 21 homens e 13

mulheres; com o ensino superior, havia

20 indivíduos, todos do sexo masculino.

Os varões activos (maiores de 10

anos) em números absolutos eram

4.038, dos quais 71,1 por cento

ocupados na agricultura59.

A freguesia de Condeixa-a-Nova tinha

556 fogos, sendo 1997 o total de

habitantes, 884 homens e 1.113

mulheres. Sabiam ler e escrever 1.076

pessoas e 921 eram analfabetos.

Page 168: Condeixa, memória, história e paisagem

Foi, neste quadro, que Franklim Pires

Machado, comerciante desta Vila,

contactado para o efeito, procedeu à

indicação do nome de Manuel Alves

Ferreira, seu empregado, para se

encarregar da distribuição da

propaganda britânica em Condeixa.

Oriundo do meio rural, de uma família de

parcos recursos, apesar de distinguido, no

ano de 1932, como o melhor aluno da 4.ª

classe da Escola Primária da Atadoa, com o

prémio instituído pelo Dr. Alberto Martins de

Carvalho60, mas sem possibilidade de

prosseguir os estudos, veio, muito novo,

trabalhar para a loja de ferragens de Franklin

Machado.

Caldeado na difícil escola da vida,

empregado de balcão, autodidacta, com

apenas 21 anos de idade, prontifica-se

aquele «gostosamente» a aceitar o

encargo, em carta ao Director do Centro

Britânico de Informações61 anexo ao

Consulado Britânico no Porto, juntando

uma lista de pessoas «eventualmente

interessadas»62.

Page 169: Condeixa, memória, história e paisagem

O material de propaganda, remetido

pelo correio, caminho-de-ferro ou pela

camioneta da carreira Porto-Lisboa, era

constituído, sobretudo, pelas revistas

Guerra Ilustrada, Bandeira da Vitória e

Neptuno; pelo Boletim de Informações e

por folhetos, sobre o esforço de guerra,

acerca dos vários ramos das forças

armadas britânicas63e as instituições

inglesas64, ou, ainda, de denúncia dos

Países do Eixo65.

Havia, além disso, postais, na maioria de

sátira aos líderes alemães nazis e a Mussolini;

estampas litografadas coloridas dos

Soberanos e da Família Real, de políticos

como Churchill, e prestigiados militares como

Montgomery, Alexander, Mountbatten e

outros; quadros com fotografias e cartazes

destinados a serem exibidos em cafés, clubes

ou outros espaços públicos.

No final de cada ano e início dos anos

seguintes, eram também muito

procurados os calendários editados pela

propaganda inglesa.

Page 170: Condeixa, memória, história e paisagem

Em Dezembro de 1941, o CBI remetia,

de acordo com a lista de interessados, já

aumentada por iniciativa de Manuel

Ferreira, 75 exemplares do n.º 12 da

revista Guerra Ilustrada, a par de outro

material de propaganda66.

A distribuição deste material de

propaganda, «por não ser permitida a

entrega casual a qualquer pessoa», era

feita, unicamente, a quem se encontrava

inscrito nos registos (listas e ficheiros)

do CBI, sendo, nesse sentido, dadas

instruções muito precisas aos

distribuidores. Quaisquer novos

interessados na recepção da

propaganda teriam de «estar

previamente inscritos» e, sem o

cumprimento de tal formalidade, não

poderiam de forma alguma receber

aquela. Outrossim, se informava que a

propaganda a distribuir era apenas a

enviada, «não devendo os envelopes

conter qualquer outra coisa»67.

Até mesmo quando os pedidos de

pessoas interessadas no recebimento da

Page 171: Condeixa, memória, história e paisagem

propaganda eram dirigidos

directamente ao CBI, procurava este

junto do encarregado da respectiva

distribuição confirmação sobre se

deveriam ser inscritas, para passar a

ser-lhes enviada68.

Era dada especial atenção à

propaganda distribuída aos

eclesiásticos, de início remetida

directamente aos mesmos, pela

Embaixada em Lisboa e, depois,

expedida aos distribuidores da área da

respectiva residência. De entre as

publicações àqueles destinada em

particular, contavam-se: Querem

destruir a Igreja de Deus, A Perseguição

à Igreja Católica, A Voz do Vaticano.

O Adido de Imprensa inglês mantinha

contactos regulares com a Censura, pela

qual passavam os artigos dos

correspondentes locais e os cedidos aos

periódicos portugueses, sendo, no geral,

tais relações consideradas

satisfatórias69.

Page 172: Condeixa, memória, história e paisagem

Nesse contexto, afigura-se

significativa a carta do responsável do

CBI, datada de 11 de Fevereiro de

194270: «Tendo a Repartição da Censura

pedido à Embaixada Britânica, em

Lisboa, para sustar a distribuição da

nossa propaganda intitulada «TODOS

COMO CARNEIROS» e sendo sempre

norma deste Centro orientar os seus

serviços dentro do espírito da mais

estreita harmonia com os desejos das

autoridades Portuguesas, vimos rogar-

lhe o obséquio de nos devolver com a

maior brevidade, em embrulho

devidamente registado quaisquer

exemplares das referidas brochuras que

ainda tenha em seu poder ou que possa

haver às mãos o que agradecemos.»

Cremos que Manuel Ferreira não

pôde dar satisfação à solicitação feita,

não existindo resposta sua sobre a

devolução: conhecendo-se a sua

subtileza de espírito, e a índole trocista

dos condeixenses, fácil seria adivinhar o

Page 173: Condeixa, memória, história e paisagem

«sucesso» alcançado pela dita

propaganda!

O CBI, considerando ter «muito

interesse em organizar uma estatística,

tão completa quanto possível, acerca do

número, qualidade e condição social das

pessoas que na Província recebem a

nossa propaganda», solicitou aos

distribuidores «uma relação da qual

conste, discriminadamente, esse

número, subordinando-a aos títulos, ou

classes que a seguir indicamos: a)

Militares; b) Padres; c) Professores

Primários; d) Advogados, Notários,

Juízes, Delegados, Escrivães e outros

Bacharéis em Direito e Letras; e)

Proprietários; f) Industriais (de toda e

qualquer natureza); g) Capitalistas; h)

Lavradores; i) Médicos; j) Engenheiros,

Agrónomos, Veterinários e Agentes

Técnicos; k) Agricultores; l) Operários

sabendo ler e escrever; m) estudantes

com mais de 16 anos; n) Analfabetos; o)

Menores de 16 anos.»71

Page 174: Condeixa, memória, história e paisagem

Na resposta à referida solicitação,

Manuel Ferreira juntava uma lista,

agora com 152 inscrições (número que

mais do que duplica, em ano e meio, o

do início da sua actividade), com a

indicação das profissões, a saber: 1

advogado; 15 agricultores; 3 barbeiros;

4 carpinteiros; 24 comerciantes; 1

construtor civil; 2 electricistas; 15

empregados do comércio; 2 empregados

dos correios; 2 empregados de mesa; 5

empregados de escritório; 3

enfermeiros; 9 estudantes; 2

farmacêuticos; 2 ferradores; 2 ferreiros;

3 funcionários das finanças; 3

funcionários judi-ciais; 11 funcionários

públicos; 2 funileiros; 2 magistrados

judiciais; 5 marceneiros; 3 médicos; 4

motoristas; 1 notário; 2 oficiais do

exército; 2 padeiros; 1 pedreiro; 1

pintor; 1 ponteadeira; 2 praticantes de

farmácia; 3 professores primários; 2

proprietários; 1 relojoeiro; 6 sapateiros;

3 serralheiros. Na referida lista estão,

igualmente, incluídos os proprietários

Page 175: Condeixa, memória, história e paisagem

do «Café Central» e do «Café

Conímbriga», bem como, ainda, a

Direcção do Clube de Condeixa.

Na sua quase totalidade, os inscritos

eram do sexo masculino, apenas

integrando a lista duas mulheres, uma

professora primária e uma ponteadeira.

Sendo a maioria residente na Vila de

Condeixa-a-Nova, aqueles distri-buiam-

se, também, por outras localidades do

concelho: Alcabideque, Arrifana,

Atadôa, Barreira, Belide, Campizes,

Casal Novo, Ega, Eira Pedrinha,

Traveira, Valada, Vila Sêca e Zambujal72.

Em nota, acrescentava que «não há

inscritos menores de 10 anos, nem

analfabetos»73.

Em Circular Confidencial para os

distribuidores, era dito que «o facto de

ser quási ou totalmente analfabeto, não

impede que receba as nossas

ilustrações, havendo revistas especiais

para as pessoas de educação elevada.

Lembramos, até, que os analfabetos

Page 176: Condeixa, memória, história e paisagem

merecem mais as revistas ilustradas do

que as pessoas de mais alta cultura».

«Confiamos absolutamente nos nossos

dedicados distribuidores em não se

deixar influenciar nas distribuições pelo

facto de muitas vezes os recebedores

serem inimigos pessoais ou pessoas de

outra política, etc. A distribuição deve

ser encarada debaixo de um ponto de

vista completamente imparcial. A nossa

propaganda visa unicamente espalhar a

verdade sobre os acontecimentos que

actualmente se estão desenrolando»74.

O Grupo Nacional Portugal da AO

[Organização Estrangeira

(Auslandsorganisation –AO)] do NSDAP

[Partido Nacional-Socialista dos

Trabalhadores Alemães

(Nationalsozialistische Deutsche

Arbeiterpartei)., como todos os Grupos

Nacionais dos países neutrais, era a

instância alemã preferida para observar

e obter meios propagandísticos

inimigos. Para ocultar essa actividade

aos olhos do inimigo, era determinante a

Page 177: Condeixa, memória, história e paisagem

colaboração de portugueses. Assim, a

AO tinha cobertura em Lisboa para

envio de material de propaganda de

outros países para a Alemanha com

nomes portugueses. «Pelo menos a

partir de meados de 1941, mas talvez

desde o início da guerra, esses

portugueses facilitaram à Alemanha

muitos nomes e endereço»75.

Entre outros incidentes, foram verificados

casos de «propaganda negra», como a

distribuição de edições falsas de órgãos de

propaganda britânicos.

Assim, o CBI alertava, em circular de

3 de Agosto de 1942: «Tendo aparecido

em público um exemplar de «A Grã-

Bretanha de Hoje» com o nº.56

referente a Julho de 1942, vimos

informar V. Exª. para fazer constar

entre as pessoas nossas amigas que

semelhante número é apócrifo, não

tendo sido publicado pelo Instituto

Britânico em Portugal visto que o último

publicado tem o número 51. Devem ser

manobras dos nossos inimigos».

Page 178: Condeixa, memória, história e paisagem

Na circular de 11 de Janeiro de 1943,

o CBI voltava a denunciar a falsificação

de um número da revista Neptuno,

comentando que «se a propaganda

alemã julga que os Portugueses são tão

fáceis de iludir como isso, fraquíssima

opinião faz deles».

Manuel Ferreira comunicava ter a

propaganda italiana enviado para o

cinema local alguns filmes, motivo

«porque achava interessante no caso de

haver disponível, enviar alguma

propaganda inglesa», adiantando que a

propaganda alemã enviava todas as

semanas fotografias, razão porque

esperava que «a propaganda Inglesa se

faça demonstrar com fotografias

interessantes tal qual têm sido enviadas

para Coimbra»76.

O CBI esclarecia que os

documentários cinematográficos eram

importados pela SONORO-FILMS, de

Lisboa, nada tendo a ver com isso,

podendo, no entanto, interferir junto da

casa distribuidora para que fizesse uns

Page 179: Condeixa, memória, história e paisagem

preços mais convidativos, no caso do

proprietário do Cinema local estar

interessado77.

Na resposta, Manuel Ferreira informa

que a este «não lhe interessam

documentários a mais de dez escudos,

que é o preço por que lhe ficam os da

Paramount e outros»78.

A importância dada ao cinema como

novidade e poderosa arma de

propaganda, transparece dos termos da

Circular do CBI de 30 de Janeiro de

1943, na qual era solicitado, com o fim

de ser enviado ao Adido da Imprensa,

em Lisboa, o fornecimento,

mensalmente, de um relatório de todos

os filmes, documentários de guerra, etc.,

que fossem exibidos no cinema dessa

localidade, dando opinião sobre «se caiu

bem ou não no agrado do público» ou

«se a plateia se manifestou durante a

exibição da película».

No mesmo ano, o Adido de Imprensa

da Embaixada Britânica, Michael

Stewart, remeteu um exemplar do

Page 180: Condeixa, memória, história e paisagem

folheto de apresentação do filme A

Vitória do Deserto, produzido pelos

serviços cinematográficos do Exército e

da Real Força Aérea, inspirado na

campanha do Norte de África, desde que

o Exército Britânico se entrincheirou em

El-Alamein para impedir o avanço de

Rommel para Alexandria e o Cairo até à

entrada triunfal em Tripoli, informando

ser a respectiva distribuição comercial

feita pela Vitória Filme, do Porto79.

Após ter contactado o gerente do

Cine-Avenida (inaugurado em 1932),

Manuel Ferreira transmitiu «existir

bastante interesse por parte da mesma

empresa em exibir o filme, mas que o

seu elevado custo, 300$00 pedidos pela

distribuidora Vitória Filme, a inibe de

poder fazê-lo, pois a frequência nessa

altura era diminuta e, além disso, não

havia público para matinées, sendo,

assim, a fita passada só uma vez na

aparelhagem. Nestas condições, para

que não tenha prejuízo não lhe convém

a fita por preço superior a 150$00, ou

Page 181: Condeixa, memória, história e paisagem

seja, o preço estabelecido pelo Grémio,

motivo porque espero que consiga da

Vitória Filme o contrato isolado por este

preço, pois só assim se poderia exibir,

dando satisfação a todas as pessoas que

se interessam pela Justa Causa

Britânica»80.

Em resposta, o CBI referia haver um

mal entendido, pois o filme estava a ser

distribuído comercialmente como

qualquer outro pela Companhia Victoria

Film, nada tendo a ver com os contratos

ou condições comerciais no respeitante

à sua exibição, acrescentando haver o

mesmo tido «um imenso sucesso, tendo

esgotado as lotações dos cinemas por

onde tem passado», não parecendo

haver razão para ser oferecido um preço

abaixo do normal81.

O CBI insistindo na exibição do filme

A Vitória do Deserto, dizia estarem

«quási certos que ele esgotará a lotação

do cinema» e «não acharem o preço de

300$00 caro para uma só exibição, que

certamente deverá dar lucro»82.

Page 182: Condeixa, memória, história e paisagem

Manuel Ferreira voltava a informar

ter falado com o gerente do cinema, o

qual reiterou «não lhe convir exibir o

mesmo pelo preço indicado, ou seja

300$00, alegando despesas de

transportes, seguros, etc., que o inibe

disso sem prejuízo». Mencionava, ainda,

que «muito embora insistisse para

demover da sua resolução o empresário,

este só aceita pelo preço de 200$00, o

que me contraria bastante»83.

O CBI limitou-se a dizer ter ficado

ciente do informado acerca da exibição

do filme A Vitória do Deserto,

lamentando «não poder fazer nada

sobre o assunto»84.

Algum tempo mais tarde, o CBI volta

à carga, dizendo ter «o prazer de

informar que a Pátria Filmes Lda., de

Lisboa, contratou a película A Vitória do

Deserto para com o seu carro ambulante

fazer a exibição da mesma, por diversas

povoações do país onde não exista

cinema. Se porventura na sua área

estiverem interessados em que o filme aí

Page 183: Condeixa, memória, história e paisagem

seja passado, devem fazer o respectivo

pedido à casa contratadoura (sic), pois

que nada temos com a sua distribuição

nem com a parte comercial do

mesmo»85.

No arquivo a que vimos fazendo

referência, apenas consta a mera

recensão por parte de Manuel Ferreira

da correspondência recebida do CBSI de

1 a 12 do mês em decurso86.

Após novo processo de preparação,

mediante o envio de 150 exemplares de

um folheto referente ao filme Comando

Costeiro - documentário de longa

metragem acerca do patrulhamento dos

mares totalmente desempenhado por

aviadores da R.A.F. (Royal Air Force) -,

estreado com grande êxito no Eden

Teatro de Lisboa, foi aquele, finalmente,

exibido no cinema local, no dia 5 de

Dezembro de 1943, «sendo apreciado

com muito agrado por toda a

assistência, havendo manifestações de

simpatia a favor dos Aliados»87.

Page 184: Condeixa, memória, história e paisagem

Como já foi referido, outro poderoso

meio de propaganda era a rádio. A BBC

(BritishBroadcastingCorporation) emitia

diversos serviços noticiosos para

Portugal, inicialmente através das ondas

curtas, e, a partir de 19 de Dezembro de

1943, também na onda média de 261

metros88 sendo os respectivos horários

dados a conhecer aos encarregados

locais da distribuição de propaganda

para ulterior divulgação ao público

interessado.

Para além da grande audiência que

tinha junto da população portuguesa,

contribuía para o seu particular sucesso

em Condeixa a popularidade de

Fernando Pessa, cuja infância decorreu

no vizinho concelho de Penela, o qual

tinha familiares nesta Vila.

Colocado na secção portuguesa da

BBC - a mais avançada das emissoras do

tempo - Fernando Pessa fez a cobertura

radiofónica da II Grande Guerra, de

Londres para Portugal. A sua voz cheia

de personalidade, os fados contra Hitler

Page 185: Condeixa, memória, história e paisagem

que escreveu e interpretou, as suas

descrições das batalhas aéreas nos céus

da Grã-Bretanha e dos

bombardeamentos das principais

cidades inglesas, marcaram um tempo e

inscreveram-no na galeria dos maiores

repórteres radiofónicos da primeira

metade do século XX89.

Entre 1944 e 1945, também na BBC

era escutada nos lares portugueses a

voz de António Pedro, nas crónicas de

segunda-feira, dando conta do avanço

dos Aliados contra o Eixo90.

À semelhança do que se fazia pelo

País fora, também em Condeixa havia o

costume de colocar um copo de água em

cima da telefonia, a fim de que a PVDE

não pudesse localizar o aparelho a

sintonizar a BBC, conforme testemunhos

que recolhemos.

A BBC remeteu, por intermédio da Secção

de Imprensa da Embaixada Britânica em

Lisboa, aos distribuidores da propaganda um

questionário sobre as condições em que os

Portugueses ouviam as emissões,

Page 186: Condeixa, memória, história e paisagem

pretendendo, principalmente, «saber se as

transmissões para Portugal eram feitas a

horas em que os seus rádio-ouvintes

dispunham de corrente eléctrica para

poderem ligar os aparelhos de telefonia» 91,

revelando a sua eficiente organização .

Outro instrumento da propaganda

inglesa com grande visibilidade era

constituído pelos cartazes e quadros

contendo fotografias – 12 fotos

pequenas e 2 grandes -, destinados a

serem exibidos em montras de cafés e

de estabelecimentos comerciais, por um

prazo definido, a fim de permitir a sua

rotatividade.

Ao tomar conhecimento de que alguns

estabelecimentos expunham, a par da

britânica, também a propaganda alemã,

o CBI manifestava «surpresa»,

afirmando não consentir tal coisa, e

solicitava a imediata retirada do seu

material e respectiva devolução92.

Na resposta, Manuel Ferreira

informava que ao fazer entrega das

fotografias nas casas onde também se

Page 187: Condeixa, memória, história e paisagem

expunha a propaganda alemã, era «para

estabelecer o confronto entre as

falsidades daquela propaganda e a

realidade da inglesa», porém, em vista

do pedido, procedeu, imediatamente, à

retirada das «nossas (sic) fotografias»,

tendo, no entanto, um dos visados

pedido para continuar com a exposição

da propaganda inglesa,

«omprometendo-se a não expôr mais a

propaganda alemã»93, o que veio a ser

aceite pelo CBI94.

Porque, certamente, após a entrada

dos EUA no conflito, haveria

interessados na propaganda americana,

Manuel Ferreira, em meados de 1943,

solicitava ao CBI o envio de algum

material «sempre que seja possível»95.

Os primeiros exemplares da revista

Em Guarda – números 4, 7, 8, 9 e 10 -,

de propaganda americana, começaram a

ser recebidos no decurso de 1944,

juntamente com postais do Presidente

Roosevelt. A sua expedição era feita

pelo CBSI, o qual, para boa regularidade

Page 188: Condeixa, memória, história e paisagem

dos serviços, solicitava o envio de listas

em separado com o nome das pessoas a

quem iriam ser entregues as revistas

americanas, Em Guarda e U.S.A.96.

Porém, no final desse mesmo ano, o

CBI comunicava por carta-circular, que

a distribuição da propaganda dos

Estados Unidos da América passava a

ser feita directamente e não por

intermédio daquele Centro, motivo pelo

qual qualquer pedido referente à mesma

deveria ser dirigido ao Adido de

Imprensa junto da Embaixada dos EUA,

em Lisboa.

Igualmente, noutra circular, de 2 de

Dezembro de 1944, o CBI transmitia

que, a partir de então, «não deveriam

ser aceites novas inscrições para

recepção da propaganda, qualquer que

fosse a razão», não podendo os nomes

eliminados serem substituídos por

outros, ressalvada qualquer mudança de

domicílio, que nesse caso deveria ser

respeitada.

Page 189: Condeixa, memória, história e paisagem

Por essa altura, o número de inscritos

para recepção da propaganda inglesa já

atingia as 190 pessoas97, ou seja,

Manuel Ferreira em três anos conseguiu

motivar para a causa Aliada, apesar do

nível de iliteracia e desinformação98 do

concelho de Condeixa-a-Nova, mais do

dobro de interessados do que quando

assumiu a responsabilidade pela sua

distribuição.

Manuel Ferreira continuou a

desenvolver actividade durante os

primeiros meses de 1945, quando o

desenrolar dos acontecimentos já

prenunciava a vitória dos Aliados.

Assim, toma a iniciativa de solicitar ao

CBSI o envio de dois exemplares do

«Hino Inglês instrumentado para

Banda», mencionando a existência de

duas bandas de música locais, «tendo

interesse que no Dia da Vitória fosse

executado o hino pelas referidas

bandas»99.

O pedido foi prontamente satisfeito,

sendo expedidos pelo correio, sob

Page 190: Condeixa, memória, história e paisagem

registo, e em separado, 2 exemplares do

«Hino Inglês»100. Acabaram,

infelizmente, por não servir para o fim

em vista, pois aqueles «não estavam

instrumentados para Banda»101.

A 29 de Abril, Adolf Hitler designa seu

sucessor o Almirante Dönitz, suicidando-

se no dia imediato no Bunker da

Chancelaria, com os russos a atingirem

o Reichstag.

O CBI, por carta-circular, de 2 de Maio de

1945, chamava a atenção dos distribuidores

para o seguinte : «Como se aproxima o dia da

vitória das Nações Aliadas é não só

perfeitamente natural mas até justo, que os

Portugueses, gente de uma Nação aliada

secular da Inglaterra manifestem o seu

regozijo pelo terminar duma guerra, que há

mais de cinco anos vem flagelando a

humanidade, o façam também no dia da

Vitória. Causar-nos-ia, porém, um grande

desgosto que qualquer dos nossos

distribuidores, ou os amigos que temos nas

terras onde eles fazem a distribuição da nossa

propaganda se envolvam em manifestações

Page 191: Condeixa, memória, história e paisagem

de carácter puramente político, ou

subversivo, que possam acarretar a

intervenção das autoridades locais, as quais,

de resto, estamos persuadidos que desde que

essas manifestações se restrinjam a vivas aos

países aliados, e à alegria natural causada

pela Vitória, não acharão motivo para

intervir,nem para as coibir. Rogamos, pois, a

V. Exa., a fineza de avisar todos os nossos

amigos dessa terra para que evitem envolver-

se em manifestações do carácter daquelas

que acima frisamos, e em alterações da

ordem pública que tragam procedimento

coercivo da parte das autoridades, e com o

que, evidentemente, não podemos solidarizar-

nos.»

No dia 3 de Maio, o Governo de

Salazar decreta luto oficial de três dias

pela morte de Hitler.

A 7 de Maio, o General Jodl assinou o

documento da rendição incondicional de

todas as forças alemãs, no quartel-

general de Eisenhower, em Reims.

Page 192: Condeixa, memória, história e paisagem

Por seu lado, Churchill e Truman

declararam o dia 8 de Maio como V.E.

Day - o Dia da Vitória na Europa.

Assim, a guerra acabou na Europa,

após 5 anos, 8 meses e 5 dias.

Por carta de 9 de Maio, o CBI expressou

sincero reconhecimento pela recepção de um

telegrama de Manuel Ferreira, de felicitações

pela Vitória alcançada pelos exércitos das

Nações Unidas, referindo ter o mesmo sido

motivo de grande satisfação e muito

apreciada essa gentileza.

Não obstante o termo da guerra, quer

na frente europeia, quer com o acto de

capitulação do Japão, assinado pelo

Ministro dos Negócios Estrangeiros

Togo, a 2 de Setembro, a bordo do

couraçado dos EUA Missouri fundeado

na baía de Tóquio, a distribuição da

propaganda britânica prosseguiu até,

pelo menos, Maio de 1946.

No final do referido mês, o CBSI

informou Manuel Ferreira ter já

encerrado definitivamente a sua

actividade, manifestando «sincera

Page 193: Condeixa, memória, história e paisagem

gratidão pela valiosa e leal colaboração

que nos prestou, cooperando na

distribuição da nossa propaganda, a

qual mostrou o esforço dispendido pela

Grã-Bretanha em prol da Vitória das

Nações Unidas sobre o inimigo»,

anunciando que, oportunamente, iria

aquele receber directamente da

Embaixada Britânica uma comunicação

oficial, testemunhando igualmente o

reconhecimento pela óptima

coadjuvação que deu à causa dos

Aliados102.

Com efeito, em missiva endereçada a

Manuel Ferreira, subscrita pelo Adido

de Imprensa G.M.F. Stow, refere este

haver sido incumbido pelo Embaixador

de Sua Magestade Britânica de lhe

remeter a Carta junta103, com a sua

respectiva tradução104, «em homenagem

aos valiosos serviços prestados por V.

Exa. à Secção de Imprensa durante toda

a guerra». Mais acrescenta, aproveitar a

oportunidade para testemunhar o seu

«profundo reconhecimento pessoal pela

Page 194: Condeixa, memória, história e paisagem

sua leal cooperação e pela confiança

indefectível na causa aliada de que deu

provas durante os longos e amargos dias

de luta que juntos tiveram de

enfrentar», expressando a crença de

que «o seu apoio e amizade perdurarão

na memória de quantos dentre nós

tiveram o privilégio de trabalhar com

V.Exa.»105.

Com o savoir faire, de que sempre

deu provas ao longo da sua vida, Manuel

Alves Ferreira, em breves linhas, acusou

a recepção da carta, agradecendo a

distinção conferida, rogando a subida

fineza de transmitir ao Embaixador de

Sua Magestade Britânica as suas

cordiais saudações e reconhecimento

pelas atenções que sempre lhe foram

dispensadas durante o período em que

«pela mesma causa lutámos»106.

À distância de quase sete décadas

sobre estes acontecimentos, não se pode

deixar de sentir admiração pela

extraordinária actividade desenvolvida

por alguém que, ainda jovem adulto,

Page 195: Condeixa, memória, história e paisagem

sem formação académica e desprovido

de meios de fortuna, soube assumir,

com zelo e grande dignidade, a pesada

responsabilidade da distribuição da

propaganda aliada, num meio rural

pobre, como era ao tempo, o concelho

de Condeixa-a-Nova.

Tarefa não isenta de riscos, desde

logo face à posição de «neutralidade»

oficial declarada pelo Governo de

Salazar.

Dentro do Regime, não tardou, contudo, a

operar-se a formação de apoios aos

beligerantes e, se se contavam importantes

simpatizantes da Inglaterra107, muitos dos

contornos ideológicos do Estado Novo

deixaram marcas profundas na formação

política de outros, com poder e influência nos

Organismos que eram o seu sustentáculo,

como a P.V.D.E., a L.P., a M.P. , etc., cujas

opções germanófilas eram conhecidas108.

Por outro lado, embora a neutralidade

se vá manter até ao final do conflito,

para a compreender é preciso estudar a

evolução da situação, fase por fase:

Page 196: Condeixa, memória, história e paisagem

pode, assim, falar-se do período de

supremacia do Eixo109; ao qual se

seguiu, o período do equilíbrio de

forças; e, por último, o período da

supremacia Aliada110.

Entre Junho de 1940 e Junho de 1941,

abre-se o período de maior perigo em

relação à manutenção da neutralidade

portuguesa, fase em que a Alemanha

domina a Europa Ocidental, enquanto a

guerra alastra ao Sul da Europa, ao

Mediterrâneo e ao norte de África.

Sabe-se, hoje, que a operação «Félix»,

o planeado ataque a Gibraltar a partir

de Espanha, previa que se manteriam na

fronteira portuguesa (Cáceres e

Badajoz) uma divisão blindada e duas

motorizadas prontas a realizar um

avanço fulgurante sobre Lisboa. O

exército espanhol estava preparado para

apoiar uma eventual ocupação de

Portugal111.

A Grã-Bretanha criou, em Junho de

1940, o Special Operations Executive

Page 197: Condeixa, memória, história e paisagem

(SOE), especializado na formação de

guerrilha e sabotagem na Europa.

Jack Gros Beevor, o representante do

SOE em Portugal, organiza em 1941,

quando esteve iminente a invasão do

nosso País pelos alemães, um grupo de

trabalho para a estruturação da defesa e

resistência no Alentejo, sob a orientação

e comando do Coronel Rosado, irmão do

Dr. Domingos Rosado, advogado em

Évora e líder local da Oposição.

A rede clandestina foi formada a

partir da malha de funcionários da

empresa Shell em Portugal, tinha como

objectivos: a tentativa de criar os apoios

necessários às forças britânicas

especializadas nas sabotagens e

destruições; a recolha de elementos

topográficos de determinadas regiões do

País; a criação de redes de

comunicações; a criação de casas de

abrigo, podendo servir também de

pontos de passagem para refugiados de

guerra; a organização da resistência

civil.

Page 198: Condeixa, memória, história e paisagem

Além daqueles objectivos, havia o

interesse em tornar Portugal um centro

difusor de propaganda aliada, fazendo

penetrar propaganda inglesa em

Espanha, e, através dela, na Alemanha e

países ocupados, utilizando os correios

portugueses, para a sua distribuição

também no Norte de África112.

Acabou aquela por ser desmantelada

pela PVDE, em 1942, provavelmente a

partir de informações fornecidas pela

Seguridad espanhola (que, por sua vez,

as recebera da Gestapo). Aquela polícia

informou Salazar de que «indivíduos de

nacionalidade portuguesa», cujos nomes

denunciou, auxiliavam, em vários pontos

do país, a distribuição de boletins

noticiosos da Embaixada Britânica113.

Obviamente, muitos dos elementos

detidos eram também os responsáveis

pela difusão da propaganda aliada em

Portugal114

Ante a incerteza do desfecho do

conflito, o receio de uma eventual

invasão do País, a permanente

Page 199: Condeixa, memória, história e paisagem

confrontação com as actividades da

propaganda alemã, para além da

vigilância da polícia política, só uma

inabalável convicção na justeza da causa

dos Aliados e na certeza do seu triunfo

explica a dedicação e o empenho postos

ao respectivo serviço por parte de

Manuel Ferreira, durante o conturbado

período de mais de um lustro.

Essa actuação permitiu, mesmo nos

tempos mais difíceis, manter acesa a

esperança, que residia no íntimo da

maioria da população do concelho de

Condeixa-a-Nova, no triunfo das Nações

Unidas.

Numa época em que tantos são

laureados por razões que nada têm a ver

com o mérito pessoal ou a dedicação à

causa pública, seria da mais elementar

justiça não deixar cair no esquecimento

o exemplo de Manuel Alves Ferreira!

A isso nos propusemos.

Os efeitos da Guerra em Condeixa

Page 200: Condeixa, memória, história e paisagem

Portugal, embora sendo um País

neutral, não deixou de sentir os efeitos

da Guerra à escala planetária e, apesar

do não envolvimento directo no conflito,

o Povo Português veio a sofrer os seus

efeitos colaterais, sobretudo as classes

economicamente mais desfavorecidas,

como o racionamento de bens

essenciais, as consequentes filas, o

mercado negro, e, até mesmo, a fome.

Dada a estrutural dependência da

economia portuguesa relativamente ao

exterior (o estrangeiro e as colónias) em

matérias-primas, bens intermediários e

outros bens de consumo essenciais – a

sofrer os efeitos conjugados do bloqueio

económico naval anglo-americano, da

guerra submarina, e da consequente

rarefacção, insegurança e

encarecimento dos transportes

marítimos –, apesar da posição de

neutralidade do País, tal implicou a

adopção, ou o reforço, de uma política

económica que, em termos estritos, em

Page 201: Condeixa, memória, história e paisagem

nada se distinguia das «economias de

guerra» dos países beligerantes

europeus, salvo, obviamente, no tocante

a destruições materiais, à perda de

vidas humanas, à intensidade de certas

carências a que houve que responder,

ou à diversidade organizativa ou

quantitativa de certas soluções115.

As dificuldades provocadas pela

guerra podem ser também

exemplarmente observadas através da

evolução dos preços tabelados,

anualmente, pelas câmaras municipais,

em Agosto ou Setembro de cada ano.

Até 1942, os preços permaneceram

estáveis, com prejuízo para os

produtores, situação insustentável a

partir desse ano, em que, para

responder ao mercado negro, e a uma

maior carência dos produtos, aqueles

subiram em flecha.

Apesar de existirem na Vila diversos

armazéns de mercearia, o racionamento

na venda de determinados produtos é

uma das recordações mais fortes de

Page 202: Condeixa, memória, história e paisagem

quem viveu essa época. Cada família

tinha de levantar as senhas de

racionamento necessárias, distribuídas

pela Comissão Reguladora do Comércio

Local, controlada pela Intendência Geral

dos Abastecimentos116, a qual funcionou

na Avenida Visconde de Alverca.

Segundo vários testemunhos

recolhidos, para se conseguir um bem

essencial como o pão, era necessário ir

para a fila de madrugada. Para a

padaria de Adelino Ferreira Guiné,

localizada na Rua Dr. Oliveira Salazar

(actual Rua 25 de Abril), a fila atingia as

imediações da Farmácia Rocha, na

Praça da República, acontecendo, por

vezes, que ao chegar a vez do

atendimento o pão já se encontrava

esgotado.

A alternativa para se obter

determinados produtos era o recurso ao

mercado negro, para quem dispusesse

de meios para tal.

O sabão era um dos produtos cuja

falta se fazia sentir. Havia mesmo quem

Page 203: Condeixa, memória, história e paisagem

o fabricasse em casa artesanalmente,

para consumo próprio. A matéria-prima

local eram as borras de azeite, que se

misturavam com água, potassa, soda

cáustica e pez louro, secando depois ao

sol em caixas de madeira117.

Esses tempos difíceis, de crise

generalizada, afectando particularmente

os estratos populacionais de menores

recursos, em que mais se acentuaram as

clivagens económicas da sociedade,

obrigaram a procura de soluções que

pudessem acorrer às graves situações

de carência alimentar e, até mesmo, de

fome verificadas no concelho.

Em 18 de Fevereiro de 1940, a

Assembleia Geral da Santa Casa da

Misericórdia de Condeixa-a-Nova

deliberou introduzir nos seus Estatutos,

entre outras alterações, uma disposição

em que criava a Sopa dos Pobres,

«humanitária instituição para mitigar a

fome a pedintes, inválidos do trabalho e

famílias de operários» e «socorrer

pequeninas criaturas sem pão»118.

Page 204: Condeixa, memória, história e paisagem

A inauguração da Sopa dos Pobres

ocorreu a 24 de Fevereiro de 1940,

estando o refeitório instalado em

terrenos do Hospital D. Ana Laboreiro

d’Eça, licenciado pela Câmara Municipal

de Condeixa-a-Nova no mandato do Dr.

Joaquim Simões de Campos Júnior.

A respectiva Comissão era presidida

por Fortunato Pires da Rocha, sendo

secretário Isac de Oliveira Pinto, e

vogais o P.e Augusto Neves Pimenta e

Abílio Simões Pires do Reis.

A 30 de Março de 1940, foi eleita a Mesa

da Santa Casa da Misericórdia de Condeixa-a-

Nova, ficando a Mesa constituída do modo

seguinte: Dr. Cândido Sotto Mayor, Provedor;

Comandante Fortunato Pires da Rocha, Vice-

Provedor; Abílio Simões Pires dos Reis, 1.º

Secretário; Isac de Oliveira Pinto, 2.º

Secretário; Padre Augusto das Neves

Pimenta, Tesoureiro. Substitutos: Dr.

Sebastião Marques d’Almeida, António

Simões Fernandes, Joaquim da Costa,

Joaquim Simões Cravo e Amadeu dos Santos

Ferreira.

Page 205: Condeixa, memória, história e paisagem

A Obra da Sopa dos Pobres era

sustentada por cerca de duas centenas

de benfeitores subscritores mensais,

entre particulares de todos os estratos

sociais, e empresas, nomeadamente os

armazéns de mercearias locais, para

além de donativos especiais, em

dinheiro e em géneros diversos,

exercendo a função de cobrador o Sr.

Álvaro Pedro Augusto.

Presidia à Comissão Central das

Senhoras Protectoras da Obra, D. Maria

Elsa Franco Sotto Mayor, grande

benfeitora da mesma.

A Sopa dos Pobres, com a qual

colaboravam as Irmãs a prestar serviço

no Hospital D. Ana Laboreiro d’Eça,

recebeu, a 18 de Junho de 1940, a visita

da Madre Geral das Religiosas

Hospitaleiras de Portugal, D. Dolores

Meireles.

Nos dez meses entre 24 de Fevereiro

e 31 de Dezembro de 1940, foram

servidas na Sopa dos Pobres 40.853

refeições, sendo a média diária de 149

Page 206: Condeixa, memória, história e paisagem

utentes, entre adultos e crianças de

ambos os sexos, a quem era servida uma

única refeição diária, constituída apenas

por sopa, salvo nos dias festivos, como a

Páscoa, em que era proporcionado um

repasto mais substancial, e o Natal, com

uma segunda refeição, ao jantar.

A média dos géneros gastos,

mensalmente, no primeiro ano de

funcionamento, era de 278 quilos de

milho, 106 quilos de batata, 102 quilos

de feijão, 79 quilos de arroz, 55 quilos

de macarrão, 7 quilos de grão de bico,

49 quilos de pão, 13 quilos de trigo, 31

quilos de carne, 13 litros de azeite, e 22

alguidares de hortaliças.119

A sua actividade, segundo

depoimentos recolhidos, continuou

mesmo para além do final do conflito, no

difícil período do Pós-Guerra, embora

não tivesse sido possível averiguar,

concretamente, quando cessou e as

razões para o seu encerramento.

Page 207: Condeixa, memória, história e paisagem

Perdurará, certamente, como um

marco indelével do espírito solidário, em

tempos de crise, do Povo de Condeixa!

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Figura 1 – Manuel Alves Ferreira, em 1945

Figura 2 – Manuel Alves Ferreira, em 2006, ano do seu falecimento

Figura 3 – Carta do Embaixador do Reino Unido

Sir Owen O’Malley

Figura 4 – Tradução que acompanhava a carta

do Embaixador Britânico

Figura 5 - «A Guerra Ilustrada» P.W.P. 20, do

ano de 1941

Page 210: Condeixa, memória, história e paisagem

Figura 6 – Postal com a caricatura de Winston

Churchill, reproduzida do Daily Sketch

«Estórias» da oposição em Condeixa

no tempo de Salazar

Paulo Marques da Silva

Foi quando me encontrava a fazer

pesquisas para um trabalho sobre Fernando

Namora, no âmbito de um seminário de

licenciatura em História, que culminou com a

publicação, em Maio de 2009, do livro

Fernando Namora por entre os dedos da

PIDE – a repressão e os escritores no Estado

Novo, que encontrei alguns documentos com

referências à vila de Condeixa. Sensivelmente

pela mesma altura, quando efectuava

diversas leituras transversais a esse trabalho,

li alguns livros de Alberto Vilaça, com uma

atenção particular para dois deles, onde o

autor disseca as aventuras e desventuras dos

homens (sempre com referência a muitos

nomes) que fizeram a história do PCP e do

Page 211: Condeixa, memória, história e paisagem

MUD Juvenil em Coimbra, existindo, também

aqui, algumas observações a reter sobre

pessoas de Condeixa120. Decidi então, findo

o trabalho sobre Fernando Namora,

realizar uma pesquisa sobre a PIDE e a

oposição ao regime em Condeixa-a-

Nova. O resultado deste trabalho será

convertido em novo livro, caso se venha

a revelar profícuo e se consigam reunir

outras boas vontades, sempre

necessárias quando se chega ao

momento de uma publicação. O que

agora apresento aqui, são algumas

notas soltas dessa investigação (ainda

em pleno decurso) que, espero, mais

tarde, se transforme em obra mais

aprofundada e completa.

Estas primeiras linhas contam-nos,

genericamente, algumas histórias

avulsas com alguns ingredientes típicos,

quanto à forma de actuação da PIDE, e

como esta obtinha as suas informações

sobre os elementos «desafectos» ou

sobre as actividades da oposição, por

mais incipientes que fossem,

Page 212: Condeixa, memória, história e paisagem

nomeadamente, através das diversas

denúncias e dos informadores que

faziam chegar as notícias à polícia

política, colmatando a carência de meios

existentes no terreno, particularmente

nas décadas de 40 e 50. Tentaremos,

também, mostrar como a oposição se

organizava e qual o seu modo de

actuação.

Um gráfico elaborado ou, pelo menos,

transmitido à PIDE pela Legião

Portuguesa, em 1949, revela-nos como a

oposição ao regime estava organizada

nas localidades em torno da cidade de

Coimbra. Existindo sempre uma

dependência a esta cidade, por parte

das outras localidades, segundo a

informação da Legião, ao observarmos a

parte superior do gráfico, vemos que o

semicírculo representava aquelas

localidades que se supunha manterem

entre si ligações directas e, para além

disso, com ligações independentes a

Coimbra, como são os casos da Manuel

Deniz Jacinto no seio da oposição, nas

Page 213: Condeixa, memória, história e paisagem

regiões referidas, nomeadamente em

Condeixa, onde mantinha família, sendo

ele, claramente, quem exercia

influência, contactos e ligações nesta

vila.

Nascido em Condeixa, em 8 de

Janeiro de 1915, filho de famílias

modestas, foi actor, encenador, crítico

de teatro, poeta e professor. Pertenceu

à denominada Geração de 40, sendo

contemporâneo de Egídio e Joaquim

Namorado, João José Cochofel, Carlos

de Oliveira, Fernando Namora, Jofre

Amaral Nogueira ou Armando e Raul

Castro, com quem privou na

universidade (e fora dela) e que foram

activos elementos do neo-realismo em

Coimbra.

Pertenceu, igualmente, ao sector

intelectual de Coimbra do PCP, tendo

sido preso, no ano de 1949, na Figueira

da Foz. Encerrado no Aljube e

transferido para Caxias no ano seguinte,

esteve proibido de receber visitas

durante 45 dias por «manifestações de

Page 214: Condeixa, memória, história e paisagem

indisciplina». Foi libertado em Fevereiro

de 1953, após cumprir a pena de prisão,

mais as famosas «medidas de

segurança».

Um relatório de 21 de Agosto de

1946, existente no processo da PIDE de

Deniz Jacinto, dá conta de alguns dos

elementos oposicionistas organizados na

cidade de Coimbra e as suas ligações a

Condeixa. Vejamos uma parte dessa

informação:

«Em Coimbra, fazem parte do

Partido Comunista: Dr. MÁRIO DA

SILVA, Dr. MANUEL DENIZ

JACINTO, Dr. ÁLVARO CUNHA,

JOÃO JOSÉ DE MELO AIRES DE

CAMPOS COCHOFEL, FERNANDO

BATISTA, Dr. EDUARDO CORREIA,

Dr. PAULO QUINTELA, estudante

ARQUÍMEDES DA SILVA SANTOS,

FRANCISCO SALGADO ZENHA,

MANUEL BREDA SIMÕES, Dr.

ANTÓNIO RIBEIRO SIMÕES, Dr.

ACÚRCIO LOPES, JAIME

Page 215: Condeixa, memória, história e paisagem

AZEVEDO REDONDO, ÁLVARO DE

SEIÇA NEVES, JOAQUIM

MANUEL, Dr. COIMBRA e

NAMORADO.

[…] Em CONDEIXA, estiveram

reunidos os Srs. Dr. MANUEL

DENIZ JACINTO e NAMORADO,

que veio de Portalegre a Condeixa,

com os seguintes elementos

daquela localidade: ALFREDO

MIRANDA, JOÃO PIMENTEL e

EVARISTO PEREIRA MOREIRA e

os avançados: JÚLIO ROCHA,

ANTÓNIO MATEUS e JOAQUIM

DA SILVA BANDEIRA, na Livraria

do Café Conímbriga, entre os dias

10 e 17 do corrente.»122

Já um relatório de Fevereiro de 1948,

elaborado por um informador que

conhecia muito bem o meio coimbrão e,

concretamente, os elementos da

oposição, até porque com eles convivia e

se fazia passar por um entre pares,

comunica à PIDE quem estava por

Page 216: Condeixa, memória, história e paisagem

detrás das organizações oposicionistas,

nomeadamente do MUD, que se

preparava para as eleições, existindo

uma referência concreta a Condeixa e a

Manuel Deniz Jacinto. O informador dá

conhecimento do entusiasmo da

oposição na criação de comissões com o

intuito, entre outras coisas, de efectuar

o recenseamento dos seus apoiantes

para o próximo acto eleitoral, ao mesmo

tempo que crítica o marasmo da União

Nacional em termos de acção.

Transcreve-se um excerto dessa

informação, que tinha o título de

«Manobras para o recenseamento

eleitoral»:

«Os mudistas DR. FERNANDO

LOPES, LUÍS BAETA DE CAMPOS,

bem como o comunista chefe DR.

MANUEL DENIZ JACINTO, estão a

trabalhar activamente no

recenseamento dos seus adeptos

para o acto eleitoral. Para isso, tem

havido umas bem simuladas

Page 217: Condeixa, memória, história e paisagem

reuniões no escritório do DR.

FERNANDO LOPES, na Rua

Ferreira Borges e no Colégio

Portugal, propriedade do BAETA

DE CAMPOS. A tais reuniões tem

assistido o FRANCISCO ALVES

CORREIA e algumas vezes o DR.

MÁRIO AUGUSTO DA SILVA.

Esta comissão está trabalhando

com uma ordem e método deveras

interessante, que lhes deve dar

bom resultado e rendimento, pois

não limitam a sua acção só à

cidade de Coimbra. Todo o Distrito

é por eles bem trabalhado e estão

organizando comissões nas

principais vilas e sedes dos

concelhos, para o trabalho

eleitoral. O fim destes indivíduos é

ter o maior número de adeptos

inscritos nos seus livros para

quando houver o sinal de eleições

terem assim já todo o trabalho feito

para não serem colhidos de

surpresa. Tal prática, segundo eles

Page 218: Condeixa, memória, história e paisagem

dizem, está a ser seguida

habilmente por todo o País.

O DR. DENIZ JACINTO já tem em

Condeixa um elemento seu a

trabalhar, segundo declarou

ontem. Está também em ligação

com o DR. RAÚL MADEIRA, em

Soure, e, na Figueira da Foz com o

ex-tenente RAFAEL DE SAMPAIO e

JOSÉ RIBEIRO. No Distrito de

Aveiro, tem o MAIA ALCOFORADO

que agrega a si um respeitável

número de camaradas.»123

O relatório prossegue com várias

outras informações, destacando um

encontro entre Deniz Jacinto e o médico

Fernando Valle que, segundo o

informador, organizava a comissão do

concelho de Arganil, bem como de

outras importantes vilas beirãs. Refiro

este encontro, em virtude das ligações

familiares destes homens a Condeixa,

que haverá de ser referido numa

Page 219: Condeixa, memória, história e paisagem

denúncia de um condeixense à PIDE,

como veremos mais adiante.

No tocante à União Nacional, o

informador revela o que pensa a

oposição, nomeadamente Baeta de

Campos, quanto à sua acção,

corroborando da opinião deste:

«Em simples conversa com o

BAETA DE CAMPOS, este referiu-

se à União Nacional dizendo que

tal organismo já não oferece

receio, pois, a sua acção,

presentemente nada vale e quando

quiserem acordar, já as comissões

que estão a organizar devem ter o

trabalho todo feito.

O Padre JOSÉ DA CRUZ DINIZ tem

vindo ao Colégio Portugal falar

com o BAETA DE CAMPOS e está

com ele para trabalhar.

Devo informar que no Distrito de

Coimbra a U.N. está muito mal

organizada nada se fazendo. É uma

organização morta e até em alguns

Page 220: Condeixa, memória, história e paisagem

concelhos os próprios componentes

das comissões não se entendem

entre si e tudo corre sem qualquer

acção que traga benefícios ao

Estado Novo. Política nacionalista

não se faz. Captação de adeptos é

letra morta. Propaganda é zero e

tudo isto vem redundar em

benefício dos anti-situacionistas,

que sabedores de tais factos, tiram

disso partido junto do povo.

Devo esclarecer que os mudistas e

comunistas, tudo à mistura, são

muito mais trabalhadores pela sua

causa que os nacionalistas da U.N.,

pois estes revestem-se de um

comodismo pasmoso e não estão

para se incomodar, ao passo que os

outros são ardentes na luta e

trabalham sempre.

Nada os detém, isto é o que eu vejo

diariamente.»124

Uma denúncia do Presidente da

Câmara Municipal de Condeixa,

Page 221: Condeixa, memória, história e paisagem

Fernando de Sá Viana Rebelo, ao

director da PIDE, datada de 9 de Abril

de 1948 (cerca de dois meses depois do

relatório que vimos antes) confirma, de

alguma maneira, a opinião do

informador da polícia política, quanto à

ineficácia da União Nacional e às

movimentações consequentes dos

opositores ao regime. Ele lamenta-se do

facto de os elementos ligados à oposição

estarem a ocupar cargos de direcção ou,

simplesmente, a conseguir que

integrassem os quadros, de algumas das

instituições concelhias. Vejamos este

relatório na íntegra:

«Com os meus respeitosos

cumprimentos venho expor a V.

Ex.ª que, como me cumpre e é do

meu inteiro agrado, tenho prestado

à PIDE todas as informações que

me têm sido pedidas acerca de

indivíduos deste concelho que

pretendem lugares oficiais ou

oficiosos.

Page 222: Condeixa, memória, história e paisagem

No entanto, noto que para o Grémio da

Lavoura de Condeixa, têm sido

nomeados directores e funcionários,

desafectos à Situação Política actual,

elementos de perturbação na vida

administrativa e política de Condeixa,

sem que esta Câmara ou, pelo menos,

eu, tenham sido ouvidos acerca da

conveniência da nomeação ou

manutenção desses indivíduos para os

cargos referidos.

Assim, à testa do Grémio da

Lavoura tem estado o Snr.

FORTUNATO PIRES DA ROCHA,

capitão de fragata na Armada na

situação de Reserva, pessoa que,

na minha frente, pediu para assinar

uma lista do MUD a seu primo e

único amigo, em Condeixa, DR.

ALFREDO PIRES DE MIRANDA,

funcionário distinto, homem de

carácter, mas … o chefe da

Comissão do MUD condeixense.

Este Sr. PIRES DA ROCHA,

elemento tão perturbador que

Page 223: Condeixa, memória, história e paisagem

acaba de, acobertado com a farda

que envergou, se queixar do actual

Governador Civil de Coimbra a Sua

Exª. O Senhor Ministro do Interior,

irmão de um dos farmacêuticos de

Condeixa, o DR. JÚLIO PIRES DA

ROCHA (também da Comissão do

MUD), mentor político do prof.

primário ANTÓNIO MATEUS

(também da Comissão do MUD);

irmão do Dr. ANTÓNIO PIRES DA

ROCHA, velho evolucionista,

padrinho do conhecido mudista

conimbricense DENIZ JACINTO,

etc, etc,; esteve, desde o início do

Grémio da Lavoura à testa dele e

nele tem feito a política que lhe

convém e que…não convém à

Câmara, por ser anti-situacionista.

Instalou-se também na Presidência

da Casa do Povo e nela fez a

mesma política até que, nas

últimas eleições, foi afastado pelos

elementos do Estado Novo e,

felizmente, por larga maioria.

Page 224: Condeixa, memória, história e paisagem

Vendo que se preparavam estes

últimos para o afastarem também

do Grémio, demitiu-se porém…deu

homem por si, seu cunhado cap.

ANTÓNIO PITA, elemento amorfo,

pelo menos politicamente, mas

cego executor das ordens do Snr.

ROCHA.

Como gerente do Grémio, nomeou

um tal ANTÓNIO CORREIA,

funcionário aposentado dos

Correios, crê-se que por motivos

não estranhos à política e que nas

últimas eleições fez propaganda

contrária à lista apresentada pelo

Governo.

O único funcionário legionário que

ali havia, foi despedido sob a

acusação de, quási ladrão,

acusação que não se provou em

tribunal, tendo o Sr. PIRES DA

ROCHA e a direcção sendo

condenados a pagarem-lhe uma

indemnização de perto de

10.000$00.

Page 225: Condeixa, memória, história e paisagem

Tendo a Comissão da U.N.

deste concelho enviado,

recentemente, ao Grémio da

Lavoura uma lista para ser

preenchida pelos funcionários

que quisessem – à semelhança

do que fez com as outras

repartições – esse Snr. ROCHA

e o tal gerente, enviaram-na,

creio que «confidencialmente»

para Lisboa, acusando a

Comissão da U.N. de «rasteira

política», etc, etc, etc.

Estamos num momento crítico em

que é necessário ter nos «pontos

estratégicos» da política,

elementos de toda a confiança.

Ora o Grémio da Lavoura de

Condeixa, com larga projecção no

concelho, está entregue a

elementos que não são de

confiança e por isso, antes que seja

tarde, eu peço a V. Ex.ª se digne

mandar informar-se a fim de que

uma instituição do Estado Novo

Page 226: Condeixa, memória, história e paisagem

não seja, exactamente, o baluarte

político do Estado Velho.

Creia-me V. Ex.ª com toda a

consideração»125

De facto, a oposição parece marcar

pontos na sua estratégia de ocupação de

lugares considerados de influência

política, nomeadamente, como refere,

desiludido, Fernando Rebelo, nas

instituições do próprio Estado Novo,

onde deveriam estar presentes pessoas

de confiança, que seriam garantes dos

objectivos eleitorais do regime de

Salazar.

Revelam-se interessantes, por outro

lado, os laços familiares entre

elementos, muito activos, da oposição

em Condeixa, com o seu contacto e

ligação à cidade de Coimbra, Manuel

Deniz Jacinto. Este, por sua vez, tem

laços com o médico Fernando Valle,

conhecido opositor na região de Arganil.

Mas é, igualmente, genro de um homem

do regime, o tenente Beato, presidente

Page 227: Condeixa, memória, história e paisagem

da União Nacional e figura de referência

do regime em Condeixa. No entanto,

como veremos, os laços de família

falarão alto e o tenente Beato agirá, por

vezes, de modo a criar amargos de boca

aos situacionistas de Condeixa.

Utilizando, até agora, apenas

revelações que chegam à PIDE através

de denúncias e informadores (refiro-me,

no caso dos informadores, a pessoas que

trabalham para a PIDE, recebendo

salário, isto para fazer a distinção dos

denunciantes, que acabam por ser

igualmente informadores mas, de forma

ocasional ou sem vínculos efectivos),

relembro que, pelo menos até ao início

da década de 50, os efectivos da polícia

política eram muito escassos. Um estudo

de Maria da Conceição Ribeiro126 aponta

para cerca de 400 elementos, no ano de

1945, segundo as estimativas mais

credíveis. Neste contexto, a colaboração

da PSP, da GNR, da Guarda Fiscal, da

Legião Portuguesa, dos Governadores

Civis, dos Presidentes de Câmara e de

Page 228: Condeixa, memória, história e paisagem

outros responsáveis concelhios, era

fundamental, face à deficiente cobertura

do território nacional por parte da PIDE.

Assim, em grande parte dos casos, são

as autoridades locais e a Legião

Portuguesa, que fazem as denúncias dos

indivíduos considerados subversivos ou,

potencialmente subversivos, já que

comunicavam à polícia situações como a

existência de conversas suspeitas em

locais públicos, hábitos como usar

vestuário vermelho ou não frequentar a

missa, caindo num nítido exagero. Mas,

é um facto, conforme vimos nos

relatórios já referidos, como nos que

vamos ainda citar, que estas

informações permitiram à PIDE ter

referenciados, praticamente, todos os

elementos da oposição ao regime, desde

os mais activos aos menos empenhados,

podendo a polícia política actuar contra

aqueles quando assim entendesse, como

efectivamente o fez, conforme veremos

alguns exemplos.

Page 229: Condeixa, memória, história e paisagem

Um dos nomes referidos na denúncia

que acabámos de ver é o do professor

primário António Mateus, nome ligado,

desde sempre, à oposição ao regime em

Condeixa, sendo este, um bom exemplo

do que o regime podia fazer aos seus

opositores.

António Augusto Mateus nasceu em

Condeixa-a-Nova, em 21 de Dezembro

de 1910. Foi professor primário durante

cerca de 16 anos, tendo exercido na

Escola Masculina desta localidade.

Muito estimado em Condeixa, ainda hoje

se realiza, anualmente, um almoço-

convívio entre os seus antigos alunos.

A consulta dos seus processos da

PIDE permite traçar algumas linhas

sobre aspectos importantes da sua vida

como oposicionista ao regime, desde

logo, a interrupção da sua carreira como

professor.

De facto, o seu apoio à candidatura do

General Norton de Matos, nas eleições

para a Presidência da República, veio a

tornar-se um facto marcante na sua

Page 230: Condeixa, memória, história e paisagem

vida, pois valeu-lhe o afastamento do

ensino. Um despacho do Conselho de

Ministros, de 12 de Setembro de 1949,

publicado no Diário do Governo, ainda

nesse mês, ao abrigo do art.º 1.º do

Decreto-Lei n.º 25317, de 13 de Maio de

1935, formalizava a situação.

Confrontado com esta realidade, em

22 de Setembro de 1949, o Prof. Mateus

apresenta uma reclamação,

acompanhada de um abaixo-assinado,

negando pertencer a qualquer núcleo de

resistência contra o Estado ou a autoria

de qualquer acto que pudesse perturbar

o mesmo.127

Face a esta reclamação, em 11 de

Outubro de 1949, o Serviço de Cadastro

e Informativo da PIDE instrui o chefe da

delegação da PIDE de Coimbra, para

que procedesse a minuciosas

averiguações sobre a idoneidade moral

e política do Prof. Mateus, conforme o

solicitado pela Secretaria da Presidência

do Conselho.

Page 231: Condeixa, memória, história e paisagem

Ainda nesse dia, o responsável da

Delegação de Coimbra, incumbe um

chefe de brigada de efectuar diligências

com vista ao cumprimento do solicitado.

No dia seguinte, pede igualmente ao

Governador Civil de Coimbra para que

forneça todas as informações que ali

existam sobre o Prof. Mateus. O

Governo Civil dará nota da existência de

dois requerimentos, de finais de 1945,

onde os signatários (entre os quais o

Prof. Mateus) solicitavam autorização

para efectuar uma reunião, cuja

organização pertencia à comissão

concelhia do MUD. Quanto ao chefe de

brigada, não tem dúvidas de que o Prof.

Mateus é «elemento possuidor de ideias

avançadas, não pactuando, de maneira

alguma, com qualquer coisa que seja do

Estado Novo», apontando-o como activo

oposicionista na campanha eleitoral do

ano de 1945 e também no apoio à

campanha «nortista», em 1949.128

A reclamação não foi atendida.

Page 232: Condeixa, memória, história e paisagem

Afastado do serviço veio a fixar

residência em Coimbra, na rua D.

Manuel Bastos Pina, 15 – 1.º. Aqui,

concluiu o Curso dos Liceus e,

posteriormente, a licenciatura em

Direito, em 1957.

Em Agosto de 1957, o Prof. Mateus

vê-se na necessidade de enviar nova

exposição, para que fosse revisto o

processo de inquérito e lhe fosse dada a

possibilidade de cumprir o estágio legal,

para poder ser admitido a concurso de

notário e conservador.

No seguimento da exposição, em 22

de Outubro de 1957, a PIDE solicita ao

Inspector-Adjunto José Barreto Sachetti,

que informe aquela Direcção sobre o

porte moral e político do Prof. Mateus. A

resposta segue a 12 de Novembro.

Desta vez, o relatório refere que não lhe

são conhecidas actividades políticas,

quer durante o curso universitário, quer

na última campanha eleitoral, pelo que

«é de admitir que se tenha operado uma

transformação política na sua forma de

Page 233: Condeixa, memória, história e paisagem

pensar acerca das Instituições

Vigentes».

Ainda na sequência do exigido no

ofício da PIDE, dirigido à Delegação de

Coimbra em 27 desse mês, o Prof.

Mateus é chamado a prestar

declarações perante Sachetti, onde

declara, no respectivo «Auto», «não ter

quaisquer actividades políticas que

hostilizem as Instituições vigentes e que

vive absolutamente para os seus

afazeres profissionais e sua família».

Assim, o Prof. Mateus efectuará o

estágio pretendido.129

Mas, no seu processo, podemos ainda

encontrar, em Julho de 1959, novas

solicitações da PIDE para a sua

Delegação de Coimbra (mas com origem

na Direcção Geral dos Registos e

Notariados) pedindo que se averiguasse

o seu porte moral e político, para efeitos

de admissão a Conservador (interino) do

Registo Civil de Oleiros. Desta feita,

Sachetti, após solicitar informação ao

Presidente da Câmara Municipal de

Page 234: Condeixa, memória, história e paisagem

Condeixa e de se socorrer, também, de

uma informação do célebre «Inácio»

(informador da PIDE em Coimbra),

responde reiterando a validade da

informação já enviada em 1957, onde se

dizia nada constar em seu desabono,

quanto ao seu porte moral e político.130

Apesar de lhe ser permitido,

superiormente, o acesso ao estágio e

concurso referidos e de, nas averiguações

efectuadas nada lhe ser apontado, a PIDE

parece usar da máxima «suspeito uma vez,

suspeito sempre».

Assim, em 1960, uma informação da

Subdelegação da PIDE de Coimbra, após

a publicação no Diário do Governo da

nomeação do Prof. Mateus como

Conservador do Registo Civil e Predial

de Condeixa-a-Nova, regista o regozijo

dos elementos da oposição de Condeixa

com esta nomeação e o facto de, sempre

que o Prof. Mateus se deslocava a

Condeixa, ser «assaltado»

imediatamente pela falange da oposição

aqui residente.131

Page 235: Condeixa, memória, história e paisagem

Também, em 1962, uma outra

informação desta Subdelegação dá nota

das «demoradas» conversas

«escolhendo locais menos

movimentados» em Coimbra, entre o

Prof. Mateus e o Prof. Alexandrino

Ribeiro, após regressarem de Condeixa,

onde ambos trabalhavam.132

Vejamos: o simples apoio a um

candidato da oposição a eleições, que o

regime dizia livres, numa pequena vila

de Portugal (sabendo-se que as

principais acções e a maior mobilização

e visibilidade da oposição, eram

patentes apenas nas principais cidades

do país) podia ser o suficiente para valer

a demissão da função pública.

Lembremo-nos que os quadros que

ingressavam na função pública eram

obrigados, sob juramento, a repudiar

formalmente o comunismo e à aceitação

da ordem social estabelecida pela

Constituição Politica de 1933, segundo o

Decreto-Lei nº 27.003, de Setembro de

1936. Era esta a formula que um

Page 236: Condeixa, memória, história e paisagem

funcionário tinha que subscrever:

«Declaro por minha honra que estou

integrado na ordem social estabelecida

pela Constituição Política de 1933, com

activo repúdio do comunismo e de todas

as ideias subversivas».

Mesmo os cidadãos que não eram

comunistas, mas eram considerados

«desafectos» do regime ou, tão só,

suspeitos de o serem ou terem sido,

podiam ser punidos com a não

contratação. Aliás, o Decreto-Lei nº

25.317, de 13 de Maio de 1935, com

base no qual foi afastado do ensino o

Prof. Mateus, dizia no seu artigo

primeiro: «Os funcionários ou

empregados, civis ou militares, que

tenham revelado ou revelem espírito de

oposição aos princípios fundamentais da

Constituição Política, ou não dêem

garantia de cooperar na realização dos

fins superiores do Estado, serão

aposentados ou reformados, se a isso

tiverem direito, ou demitidos em caso

contrário».

Page 237: Condeixa, memória, história e paisagem

Como se vê, ainda antes da utilização

de duas das instituições que foram

pilares fundamentais do Estado Novo e

muito contribuíram para o longo período

de vigência deste, como são os casos da

PIDE, punindo quem ousava pôr em

causa o regime, ou da Censura,

silenciando as opiniões discordantes, já

antes, por via administrativa, através

das leis, se conseguia dominar, de forma

eficiente, a maior parte do país.

Mas, vejamos também, o caso do

condeixense António Pocinho que, na

campanha para as presidenciais, de 1949,

participou, juntamente com outros seis ou

sete rapazes, na colagem de cartazes do

candidato apoiado pela oposição, General

Norton de Matos. Acontece que, durante a

noite, os cartazes afixados por Condeixa do

candidato do regime, o Marechal Carmona,

apareceram todos sujos com excrementos.

Embora, António Pocinho afirme que não teve

nada a ver com o assunto133, a verdade é que

foi chamado à GNR, pois julgavam que ele

era um dos responsáveis. Presente no Posto

Page 238: Condeixa, memória, história e paisagem

esteve, também, o Presidente da Câmara de

Condeixa, Fernando Rebelo. Foi depois

chamado à delegação da PIDE, de Coimbra,

onde foi interrogado pelo agente Eurico

Geraldo, que queria saber quem sujou os

cartazes. António Pocinho disse que não

sabia. De facto, na nossa conversa, confirmou

ainda hoje não saber quem foram os autores

daquele acto. Enfim, depois de uma troca de

palavras mais azedas com o agente da PIDE,

A. Pocinho teve coragem para dizer, entre

dentes, « e estamos nós no século vinte», o

que lhe valeu um soco na boca.

Certo é que, seis ou sete anos depois,

por volta de 1955 ou 1956 (não

consegue precisar), A. Pocinho queria

obter um trabalho que lhe desse mais e

melhores garantias, tendo-se

candidatado a um emprego nas

Finanças. No entanto, foi excluído de

prestar provas, por motivos políticos,

face ao seu apoio à candidatura de

Norton de Matos, conforme informação

vertida no Diário do Governo.

Page 239: Condeixa, memória, história e paisagem

Fez, então, uma exposição a Salazar

sobre o assunto, tendo, posteriormente,

recebido autorização para prestar

provas. Foi admitido em 1956, seguindo

para a Ilha Terceira, nos Açores, onde

exerceu as suas funções. A verdade é

que, apenas conseguiu o emprego,

devido à acção do Tenente Beato,

Presidente da União Nacional, em

Condeixa. Este, sempre que ia fornecer-

se de mantimentos à firma Pinheiro &

Viseu, armazém onde A. Pocinho

trabalhava, dizia-lhe para ele se filiar na

União Nacional., se quisesse obter um

emprego público. Nessa altura, A.

Pocinho inscreveu-se. E, quando fez a

exposição a Salazar, alegou ser membro

da União Nacional., tendo o Tenente

Beato emitido um documento com a

respectiva confirmação. Foi isso que lhe

valeu o trabalho nas Finanças,

encontrando-se, hoje, reformado deste

serviço.

Outro habitante de Condeixa que

sofreu na pele a repressão do regime,

Page 240: Condeixa, memória, história e paisagem

foi o médico João Ribeiro. Sem dúvida, o

maior dinamizador da oposição ao

regime nesta vila, várias vezes preso

pela PIDE, com dezenas e dezenas de

relatórios de informadores da polícia

política, homem sem medo, como já não

se usa, foi um nome transversal no

tempo, em termos de luta contra o

regime em Condeixa.

Companheiro e amigo de Alberto

Vilaça (frequentaram ambos a

Universidade de Coimbra) é

referenciado, por este, como um activo e

irrequieto elemento no meio

universitário coimbrão, entre, pelo

menos, 1946 e 1953.

Membro do MUD Juvenil integra,

desde 1949, os órgãos directivos da

Universidade, tendo estado presente na

reunião dos representantes das

comissões das três Academias (Lisboa,

Porto e Coimbra), realizada no dia 21 de

Outubro de 1951, onde se instituiu o Dia

do Estudante.134

Page 241: Condeixa, memória, história e paisagem

Durante a campanha presidencial do

General Norton de Matos, em 1949, os

membros do MUD Juvenil, incluindo

João Ribeiro, tiveram importante

participação na propaganda eleitoral.

Com dois comícios realizados em

Coimbra, em Janeiro e Fevereiro, os

elementos do MUD Juvenil cobriram as

paredes na cidade com a colagem de

cartazes e panfletos, frequentes vezes

ao longo das noites, com grande

azáfama e aparato de baldes, cola,

pincéis, escadotes e maços de cartazes.

João Ribeiro esteve, igualmente, no

comício de apoio ao general realizado na

Quinta da Fonte da Moura, no Porto.135

O MUD Juvenil já tinha, de resto,

alguma tarimba para este género de

acções. Face à repressão do Estado

Novo e para além de recorrer a abaixo-

assinados ou à distribuição de

documentos, era usual a recorrência às

inscrições murais a tinta de óleo e

nitrato de prata, visíveis não só em

Coimbra, mas, igualmente, em Condeixa

Page 242: Condeixa, memória, história e paisagem

e na Figueira da Foz, bem como em

outras zonas. Pela descrição de Alberto

Vilaça, um dos participantes nestas

acções, juntamente com João Ribeiro, o

nitrato de prata comprava-se «às

escondidas» numa farmácia, diluía-se

em água e, seguidamente, as frases

eram pintadas. Estas ficavam ilegíveis,

já que estas acções decorriam, por

norma, durante a noite e só pela manhã,

com a luz do dia, ocorria a reacção

química que tornava as letras bem

visíveis.136

O MUD, por finais dos anos 40 e, mais

concretamente, entre 1950 e 1953,

estava implantado na Universidade de

Coimbra e em alguns meios

trabalhadores e colectividades desta

cidade, bem como em meios operários

do concelho da Figueira da Foz, com

ligações asseguradas por correio,

comboio e, mais localmente, por

bicicleta. Mas, havia também outros

contactos, designadamente em

Condeixa. Ainda segundo Alberto Vilaça,

Page 243: Condeixa, memória, história e paisagem

as ligações a Condeixa existiam já desde

os primeiros anos do MUD, numa rede

que abrangia, para além de Coimbra (o

elemento central) e a Figueira da Foz,

algumas localidades do distrito de Viseu

e Guarda.137

João Ribeiro era a figura central da

oposição em Condeixa. Quando se

encontrava na vila era um autêntico

furacão mobilizador e agregador de

vontades contra o governo de Salazar.

Se, em Coimbra, como sabemos, os

aderentes do MUD ou da oposição, de

um modo global, se juntavam nos cafés

da baixa da cidade, como o Café

Brasileira, o Café Montanha, o Café

Nicola, entre outros vários locais, onde

se combinavam encontros e outras

actividades de índole diversa, em

Condeixa, embora haja nos processos da

PIDE referências ao Café Livraria

Conímbriga, ao Café Imperial ou ao Café

Faia Bar, toda a gente sabe, ainda hoje,

que as reuniões da oposição ao regime

se realizavam em casa de João Ribeiro.

Page 244: Condeixa, memória, história e paisagem

De facto, podemos comprová-lo, não só

pelos abundantes testemunhos orais,

como pelos inúmeros documentos da

PIDE que se encontram na Torre do

Tombo, nomeadamente pela autêntica

«marcação cerrada» do informador

«Morcego», que residia em Condeixa e

que produziu fartura de relatórios sobre

o médico condeixense.

As entrevistas que venho realizando

não deixam dúvidas: oposição em

Condeixa, sensibilização e captação de

jovens, reuniões, planeamento de

acções, organização, têm por detrás o

médico João Ribeiro. Por exemplo,

Miguel Pessoa afirma que, quando tinha

19 anos, passou a alinhar com a

oposição, sobretudo por influência de

João Ribeiro, participando em sessões

clandestinas em Condeixa, Coimbra,

Arganil e Marinha Grande, lembrando-

se bem das reuniões em casa do médico,

nomeadamente no seu consultório.

António Pocinho confirma a grande

influência de João Ribeiro e relembra a

Page 245: Condeixa, memória, história e paisagem

formação de uma biblioteca do MUD,

em sua casa, quando tinha 20 ou 21

anos, após uma reunião com João

Ribeiro, no seu consultório, uma das

várias em que participou. Os livros,

cerca de 200, ficaram em sua casa e de

seus pais, na Rua do Outeiro. Era no 1.º

andar que funcionava a biblioteca, onde

se situava a sala de jantar, existindo

ainda um biombo que fazia uma divisão,

que servia de quarto para António

Pocinho. No rés-do-chão da casa, existia

uma oficina de marcenaria, que era

propriedade do seu pai. António Pocinho

trabalhava mesmo em frente à sua casa,

na firma Pinheiro & Viseu, onde alguns

rapazes iam ter consigo para requisitar

livros da biblioteca.

A acção do médico João Ribeiro, que

vimos referindo desde finais dos anos 40

e inícios da década de 50, mantém-se na

década de 60 e na década de 70. Uma

denúncia enviada ao director da PIDE

por um condeixense, datada de 19 de

Novembro de 1962, é bem elucidativa

Page 246: Condeixa, memória, história e paisagem

quanto à capacidade e dinâmica de

acção do médico João Ribeiro, ao mesmo

tempo que são reafirmadas as críticas à

União Nacional, que já vimos atrás, com

as informações chegadas à PIDE

referentes ao ano de 1948, sendo, desta

vez, uma crítica mais específica,

aludindo, em concreto, ao presidente

concelhio da União Nacional, o Tenente

José Pires Beato:

«Excelentíssimo Senhor Major e

meu sempre querido Director:

Ao tomar a liberdade de me dirigir

a V. Ex.ª, com o devido respeito

peço o maior perdão.

Mas, sinto-me na obrigação de,

com a mesma lealdade de sempre,

informar V. Ex.ª, o desgostoso, que

reina neste concelho, dos

Nacionalistas com o Chefe Político

Snr. Tenente JOSÉ PIRES BEATO,

Presidente da Comissão Concelhia

da União Nacional.

Page 247: Condeixa, memória, história e paisagem

O cavalheiro em referência é um

indivíduo que só tem feito asneiras,

sem escrúpulos, persegue os

situacionistas e defende os

oposicionistas.

Além das várias asneiras que tem

vindo a fazer, acontece que no

passado dia 14 de Novembro

corrente, desloca-se, muito em

segredo, a Lisboa, na companhia

d‘alguns reviralhistas de Condeixa e

Coimbra, para defender – segundo

dizem na instrução contraditória – no

processo em organização na Polícia

Internacional contra o médico Dr. João

Ribeiro, que se encontra detido.

Ora, o Dr. JOÃO RIBEIRO, já é

conhecido o suficiente da Polícia e,

sem dúvida, trata-se de um

adversário perigoso, que tem

«minado» toda ou quasi toda a

mocidade deste concelho, grande

propagandista das suas ideias

Políticas, desenvolve grande

actividade a quando das eleições,

Page 248: Condeixa, memória, história e paisagem

dificultando o trabalho, reúne-se

com os do seu Partido várias vezes,

etc.

Por intermédio da imprensa viemos

também a saber que o Dr. J.

RIBEIRO, estava ligado ao Partido

Comunista, o que mais revoltou os

Nacionalistas.

E, com espanto geral, aparece o

Tenente BEATO, Presidente da

União Nacional, que se desloca a

Lisboa com os reviralhistas, a

defender tal indivíduo.»138

Como se vê, causa estranheza aos

situacionistas, pelo menos aos mais

fervorosos, algumas atitudes do Tenente

Beato. Já atrás, tínhamos dado breve

nota, em relação às ligações familiares,

que podiam ainda ser reforçadas com

outros laços de amizade entre as pessoas de

Condeixa ou da região. O autor desta

denúncia relembra aqui, essas conexões

familiares e as amizades existentes, que

poderiam, inclusivamente, face ao prestígio

Page 249: Condeixa, memória, história e paisagem

das pessoas em questão, ser um factor

inibidor para os apoiantes do regime em

Condeixa tomarem acções mais concretas e

incisivas. Vejamos mais um pequeno excerto

desta informação enviada à PIDE:

« O Tenente BEATO é sogro dos

Dr. MANUEL JACINTO, que há

tempos respondeu e ficou

condenado por actividades

subversivas, e do Dr. LUÍS VALE,

Professor e marido da Directora do

Colégio nesta vila, e este é filho do

médico em Arganil, Dr. VALE, que

há meses, segundo consta, também

foi detido pela Polícia. Quer o Dr.

VALE ou o pai, são elementos

declaradamente da oposição.

Os situacionistas neste concelho já

por várias vezes, pensaram fazer

um abaixo assinado para que o

Tenente BEATO fosse

imediatamente demitido do cargo

de Presidente da U.N., mas têm

receio das represálias, pois é,

Page 250: Condeixa, memória, história e paisagem

protegido também do Professor Dr.

BYSSAIA BARRETO.

A propósito, tomo a liberdade de

invocar o nome do Exm.º Senhor

Dr. FERNANDO REBELO, que mais

minuciosamente, poderá informar

V. Ex.ª das qualidades do Tenente

BEATO.

É pelo exposto que me apresso a

informar V. Ex.ª, pois os

Nacionalistas estão a

desinteressar-se de tudo, e de tal

modo que não querem saber de

nada, que se relacione com os

interesses da Nação, pois a maior

parte sente-se envergonhado com

as atitudes que o Tenente BEATO

tem vindo a assumir e a

desenvolver.»139

Acrescente-se que, já um pouco antes de

1962, ano que data este documento, mais

concretamente em 17 de Julho de 1960, uma

informação do escriturário da PIDE, de nome

Serrano, sob o título «Informações policiais

sobre Condeixa», a propósito da nomeação de

Page 251: Condeixa, memória, história e paisagem

Antero Simões Bernardes para 1.º Secretário

do Clube de Condeixa, dava conta de que o

cidadão Antero Bernardes estava ligado à

oposição e, se esta nomeação havia sido

sancionada, não seriam alheios a esta

situação o Presidente da Câmara, que era,

neste período, Evaristo Cerveira de Moura e,

de novo, o Tenente Beato. Estes dois,

aparentemente, tentam defender-se sobre

quem tinha dado uma avaliação política

favorável de Antero Bernardes, indispensável

para aceder ao cargo, empurrando ambos a

responsabilidade para cima do outro. Veja-se

o referido documento policial que parte,

inicialmente, de uma notícia de jornal:

«Para conhecimento de V. Ex.ª a seguir

tenho a honra de transcrever uma

notícia publicada no jornal «Expansão»,

do qual é colaborador o Capitão

CONCEIÇÂO, indivíduo conhecido

como não afecto à actual Situação:

«Foi com muita satisfação que

recebemos a notícia de que o Sr.

Ministro da Educação Nacional

Page 252: Condeixa, memória, história e paisagem

homologou a eleição em que a

Assembleia Geral do Clube de

Condeixa escolheu, por

unanimidade, para o cargo de seu

1.º secretário, o nosso prezado

amigo Sr. ANTERO SIMÕES

BERNARDES, pessoa que pelos

seus dotes morais e de

generosidade se tem sabido impor

à estima e consideração de todos

os bons condeixenses. Como não

podia deixar de ser o Senhor

Ministro da Educação Nacional, ao

homologar a nomeação daquele

nosso amigo corrigiu, e muito bem,

o erro que injustamente se havia

cometido. Pelo facto, está de

parabéns não só o Sr. ANTERO

SIMÕES BERNARDES, mas

também o concelho e o Club de

Condeixa.»

Cumpre-me dar conhecimento a V.

Ex.ª que, o ANTERO BERNARDES

no ano findo, por informação

política, segundo creio, não foi

Page 253: Condeixa, memória, história e paisagem

sancionado superiormente para os

corpos gerentes daquele Club.

O BERNARDES na campanha

eleitoral finda desenvolveu franca

actividade a favor da «oposição»,

quer em distribuição de

propaganda, quer ainda

transportando no seu automóvel

correligionários para onde a sua

presença se fazia sentir.

Mais uma vez a camada da

oposição se regozijou com a

nomeação de tal indivíduo, o qual

apregoa possuir uma credencial de

Sua Excelência o Ministro da

Educação Nacional.

Por último cumpre-me ainda levar ao

conhecimento de V. Ex.ª, que o Sr. Presidente da

Câmara de Condeixa, Dr. EVARISTO

CERVEIRA DE MOURA, em plena Praça da

República, daquela vila, acompanha com os

conhecidos elementos activos de combate ao

Estado Novo, ANTERO SIMÕES

BERNARDES, LUÍS SIMÕES DIAS

CARDOSO DO VALE, ARTUR VARELA, JOÃO

Page 254: Condeixa, memória, história e paisagem

PIMENTEL DAS NEVES, ANTÓNIO

POCINHO CHITA (NICO), CARLOS PEÇA,

CARLOS PRECES JACINTO e FERNANDO

PRECES JACINTO.

Consta que a informação política

de ANTERO SIMÕES BERNARDES

para efeito do cargo que agora vai

desempenhar na direcção do Club

de Condeixa, foi fornecida pelo Sr.

Tenente BEATO em colaboração

com a Câmara Municipal.

Sucede que, após terem conhecimento

que o seu nome foi sancionado, o Sr.

Tenente BEATO diz que a informação

foi prestada pelo Sr. Presidente da

Câmara Dr. CERVEIRA DE MOURA e,

este, por seu turno, diz que foi o Sr.

Tenente BEATO quem forneceu a

informação.»140

São muito curiosas estas situações em

que, figuras com responsabilidades

políticas em organismos conotados com

o governo, nomeadamente o partido que

o apoia, tem acções tendentes a ajudar

Page 255: Condeixa, memória, história e paisagem

elementos desafectos do regime ou

mesmo ligados à oposição a este e, por

outro lado, também, verificar as

reacções que se lhe sucedem, por parte

dos adeptos do regime.

Se saltarmos no tempo, do início dos

anos 60, datas a que se vinculam estes

dois últimos documentos, para os anos

70, verificamos que é o médico João

Ribeiro que continua na linha da frente

da oposição ao regime em Condeixa. Um

período concreto, produziu bastante

informação para a PIDE sobre a

oposição em Condeixa: as

comemorações do 5 de Outubro, em

1973, já nas vésperas do final do Estado

Novo. Em relatório, produzido pelo

informador «Morcego», sobre este

assunto, podemos aferir do grau de

pormenor das notícias que chegam à

sede da PIDE, em Lisboa, já que estas

informações serão dactilografadas pelo

sub-inspector Sérgio Avelino Pereira

para o chefe da polícia política da

delegação de Coimbra, Armindo

Page 256: Condeixa, memória, história e paisagem

Ferreira da Silva141, que, por sua vez, as

remete para a sede. O nome das pessoas

presentes, o que disseram, quem e como

prepararam esta comemoração, todos os

pequenos pormenores, como por

exemplo, onde se foi buscar

determinado material, quem o

emprestou, quem lá foi, etc, etc., está ali

tudo e quase dispensa qualquer

investigação policial adicional. Aliás,

refira-se que, em mais de 100 processos

por mim analisados, na investigação

realizada para o trabalho sobre

Fernando Namora, nunca vi um

relatório efectuado por uma brigada da

PIDE que se assemelhasse aos

produzidos pelos informadores, no que

respeita à validade e ao pormenor da

informação. Parece-me normal, pois o

informador, muitas vezes, como no caso

presente, estava infiltrado na própria

organização ou alinhava com a oposição

nas suas acções, sendo uma parte

integrante e, muitas vezes, activa da

mesma.

Page 257: Condeixa, memória, história e paisagem

Este relatório prossegue, para além do

assunto das comemorações do 5 de Outubro,

com outras informações avulsas, relacionadas

ou não, com o assunto central.

Transcrevemos aqui, apenas, a primeira parte

deste documento, onde se faz referência à

efeméride acima designada:

«Cópia de uma informação de

Morcego de 21-10-1973

Os meus cumprimentos

Em seguimento das nossas

conversas, informa:

1.– 5 de Outubro: Na parte da

tarde deste dia, o BANDEIRA

(funcionário dos CTT – guarda-fios,

natural do lugar do Sobreiro,

residente em Condeixa, casado 2.ª

vez com uma mulher conhecida por

«CAVACA») acedeu ao pedido

formulado pelo Dr. João Ribeiro

para nos conduzir no seu

automóvel a Soure. Nesta

localidade, contactámos, na firma

Roxo & Cera, com José Silvestre,

de Condeixa, que, na própria

Page 258: Condeixa, memória, história e paisagem

oficina e imediatamente, desenhou

três cartazes com os dizeres

seguintes:

«Amnistia»

«Viva o Povo Português Livre»

«Paz Sim, Guerra Não»

os quais foram colocados nas

paredes do Café Faia-Bar, em

Condeixa, bem como a Bandeira

Nacional que o CARLOS PEÇA

(pai) conseguiu arranjar.

O referido BANDEIRA emprestou,

a meu pedido, um pequeno

aparelho de «Sasseti» [sic] onde

gravaram os discursos e

intervenções feitas no final do

jantar que no Faia-Bar ali se

realizou pelas 21 horas.

Presentes mais de 150 pessoas que

iam aparecendo com o pretexto de

tomar a «bica». Destacava-se a

presença de JOSÉ MARTINS,

JOAQUIM CORREIA, ambos da

Figueira da Foz; Dr. ORLANDO DE

CARVALHO, MISARELAS

Page 259: Condeixa, memória, história e paisagem

(Deputado pela Oposição

Democrática); JORGE (estudante),

de Coimbra; VILAR, (que gravou

absolutamente tudo, utilizando um

aparelho de grandes dimensões),

uma filha do ROSA E. (proprietário

de uma retrosaria sita nas Escadas

do Gato – frente à Casa Viriato) de

Coimbra.

De Condeixa: MARIA PENA,

MANUEL BRANQUINHO (seu

namorado), CARLOS PEÇAS (pai e

filho), JOSÉ PESSOA, ANTÓNIO

MENDES DA CRUZ, MANUEL

FONTES, ANTÓNIO CANICEIRO

DA COSTA, JOÃO POCINHO,

JÚLIO DOS SANTOS, filho de

MANUEL DOS SANTOS OLIVEIRA

(O NICHA), CURTO (conhecido

pelo filho do PARENTE),

funcionário da Secção de Finanças,

do lugar do Sebal Grande;

JOAQUIM GORGULHO, muitos

jovens estudantes de ambos os

Page 260: Condeixa, memória, história e paisagem

sexos, quer de Condeixa, quer de

Coimbra.

O Dr. JOÃO RIBEIRO principiou

por ler uma mensagem de

saudação do Movimento

Democrático de Coimbra; em

seguida recordou os que, em 1910,

sacrificaram a própria vida por um

Portugal Livre. Depois usou da

palavra JOSÉ MARTINS, da

Figueira da Foz, para dizer que já

vai sendo tempo de acabar com o

«medo» imposto pelo fascismo.

Procedeu-se à votação sobre o

assunto a debater e todos optaram

pelo da «Guerra no Ultramar». O

Dr. RIBEIRO, JOSÉ MARTINS,

ORLANDO DE CARVALHO,

JOAQUIM CORREIA, VILAR, um

indivíduo também da Figueira da

Foz que cumpria o serviço militar

na Guiné, CARLOS PEÇA (pai),

JORGE (falando em nome do

Movimento Estudantil) disseram

que a Guerra no Ultramar devia

Page 261: Condeixa, memória, história e paisagem

terminar imediatamente, mediante

negociações com os Movimentos de

Libertação, pois a guerra «destrói

a nossa juventude em benefício dos

fascistas que acumulam riquezas e

oprimem os povos». O CURTO

(funcionário das Finanças em

Condeixa) observou que, a ida às

urnas, se obteria agora

confirmação se a guerra no

Ultramar deve ou não continuar. O

Dr. JOÃO RIBEIRO e o Dr.

ORLANDO DE CARVALHO

disseram que as eleições são uma

farsa, que a forma como os

cadernos eleitorais se encontram

elaborados nunca o povo pode

testemunhar a sua vontade. Basta

«sabermos que em França se

encontram 60 mil portugueses a

ganhar o seu pão, já que isso lhes é

negado na sua Pátria».

O Dr. JOÃO RIBEIRO tem

contactado de perto com os

indivíduos da Figueira da Foz,

Page 262: Condeixa, memória, história e paisagem

localidade onde esteve nas noites

dos dias 4 e 12 do corrente.

Encontra-se em seu poder a

«casseti» (do gravador que o

BANDEIRA emprestou), a qual

contém a gravação de todas as

intervenções mas, como tenho dito,

sempre que insisto para que ela me

seja cedida, o Dr. RIBEIRO diz

«qualquer dia à noite, vamos ouvir,

pois está muito boa a gravação».

Vejamos se consigo o combinado.

[…]

Coimbra, 23 de Outubro de

1973"142.

Por agora, ficamos sem saber se, de

facto, o «Morcego» conseguiu ficar na

posse do gravador para fornecer à PIDE.

Ficará para depois, a revelação de

muitas outras informações relativas a

acções da oposição, aos nomes das

pessoas envolvidas e a pequenas

histórias da vila, por vezes ocorridas nos

cafés, como o de António Miro, e que se

Page 263: Condeixa, memória, história e paisagem

encontram documentadas nos arquivos

da PIDE/DGS.

Para concluir, saliente-se, como

refere Miguel Pessoa, que as acções da

oposição em Condeixa, aliás, à

semelhança do que acontecia um pouco

por todo o país, resumiam-se,

essencialmente, às épocas de eleições

ou aos períodos em que se comemorava

determinada efeméride, como vimos no

caso das comemorações do 5 de

Outubro, em Condeixa. Existindo

actividades (e falamos das mais visíveis)

apenas em determinadas alturas, como

os períodos eleitorais, que justificavam

maior mobilização de pessoas e meios

de acção, as iniciativas e a participação

das pessoas nas mesmas, tinham que

ser espaçadas no tempo, com longos

hiatos e até, quando a situação política o

exigia e a Censura e a PIDE

aumentavam a repressão, resultavam

numa quase completa inacção.

Deve-se ter também a noção, quando

nos referimos à oposição, da

Page 264: Condeixa, memória, história e paisagem

elasticidade do conceito, no tocante aos

seus elementos. A noção não era muito

clara. O simpatizante implicava uma

certa ligação e alguma colaboração, com

alguma regularidade, distinguindo-se

dos aderentes, mais solidamente

organizados ou dos meros apoiantes

(que se podem confundir com

simpatizantes), que apenas

participavam em determinadas

actividades específicas e esporádicas. As

fronteiras são ténues. Mas, voltaremos

ao assunto.

Page 265: Condeixa, memória, história e paisagem

As Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de

Jesus em Condeixa

José Amado

A Casa de Saúde Rainha Santa Isabel

Page 266: Condeixa, memória, história e paisagem

A Vila de Condeixa acolhe no seu seio, há

cerca de cinquenta anos, uma Instituição que

se orgulha de ser uma das mais relevantes

instituições de Saúde Mental do País: a Casa

de Saúde Rainha Santa Isabel (CSRSI).

Com efeito, remonta aos anos finais da

década de cinquenta do século passado a

fundação desta Casa de Saúde, pertença do

Instituto das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado

Coração de Jesus, e um dos 14 centros

hospitaleiros que a referida Congregação

Religiosa possui em Portugal.

A presença da Congregação em

Portugal data de 1894, ano em que foi

fundada a primeira Casa na Idanha,

Belas, Concelho de Sintra. A

constituição da «Província Portuguesa

de Nossa Senhora de Fátima» ocorreu

em 27 de Outubro de 1946 e tem a sua

sede social em Lisboa. Esta Província

Hospitaleira é constituída por 15

comunidades religiosas que

desenvolvem a sua acção em 14 Centros

distribuídos por Portugal Continental,

Regiões Autónomas dos Açores e

Page 267: Condeixa, memória, história e paisagem

Madeira e ainda o País Lusófono de

Moçambique.143

A missão hospitaleira que professam

desenvolve-se nas áreas da Saúde

Mental: psiquiatria, psicopedagogia,

psicogeriatria, gerontopsiquiatria,

toxicodependência e reabilitação

psicosocial. Responde, ainda, a outras

áreas da saúde segundo as necessidades

de cada tempo e lugar, dando

preferência aos mais pobres e

desfavorecidos. Procura conciliar os

avanços técnico-científicos com o

critério da centralidade e dignidade

incondicional da pessoa, promovendo

um modelo terapêutico integral que

contempla as áreas da prevenção à

reabilitação e reinserção sócio-

profissional.

A sua missão é levada a cabo em

Centros próprios (dispõe, em Portugal,

de um total de 2.800 camas de

internamento) e em colaboração com

instituições públicas ou da Igreja. A sua

actividade orienta-se pelos critérios do

Page 268: Condeixa, memória, história e paisagem

Evangelho e da ética cristã, procurando

oferecer o melhor que é possível à

pessoa que sofre, verdadeiro centro da

sua Acção.

A Congregação das Irmãs

Hospitaleiras do Sagrado Coração de

Jesus foi fundada em 1881 em

Ciempozuelos, próximo de Madrid e

surgiu como resposta à situação de

exclusão social e abandono no campo da

saúde das doentes mentais da época. Os

seus fundadores Bento Menni144, Maria

Josefa Récio e Maria Angústias Giménez

sentiram-se chamados por Deus a criar

uma instituição religiosa feminina que

desse uma resposta humana, técnica e

espiritual a essa necessidade social. A

amplitude do problema fez com que os

primeiros tempos fossem

particularmente difíceis. A falta de

meios e de recursos económicos e

assistenciais foi mitigada com a entrega

gratuita das Irmãs e de numerosos

colaboradores.

Page 269: Condeixa, memória, história e paisagem

Desde a sua fundação, a Congregação

sublinhou entre os seus objectivos

proporcionar aos doentes e acolhidos

nos seus Centros uma oferta de saúde

integral que inclui os aspectos físicos,

psíquicos, sociais, éticos e espirituais.

Realçou neles o carácter eminentemente

humanista e enfatizou a sua qualidade

relacional e respeito pelos direitos da

pessoa.

Trata-se de «curar» a pessoa na

sua totalidade, reinserindo-a na

sociedade, integrando-a nas redes

de saúde e de recursos públicos e

devolvendo-lhe a dignidade a que

tem direito.

A Missão apostólica das Irmãs

Hospitaleiras centra-se, assim, no

acolhimento, assistência e cuidado

especializado de saúde integral dos

doentes mentais, deficientes físicos e

psíquicos e doentes de outras

Page 270: Condeixa, memória, história e paisagem

patologias, de acordo com o carisma

fundacional.

Para dar resposta a este Compromisso são

necessárias pessoas verdadeiramente

comprometidas com quem sofre, imbuídas de

qualidades que as torne membros da

Comunidade Hospitaleira: respeito pela

pessoa e defesa dos seus direitos; especial

dedicação aos que mais sofrem e estão mais

limitados; mansidão e amor para com os

doentes; preparação e actualização

profissional.

A Congregação de Irmãs

Hospitaleiras do Sagrado Coração de

Jesus centra a sua espiritualidade no

«Cristo compassivo e misericordioso do

Evangelho», nas preferências que

manifesta pelos mais pobres e na

atenção com que privilegia os que mais

sofrem: Hospitalidade no sentido de

Misericórdia e Amor para com as

pessoas concretas, que se manifesta

através de profundas atitudes de

bondade, ternura, gratuidade,

Page 271: Condeixa, memória, história e paisagem

solidariedade, assim como no serviço

paciente, contínuo, abnegado e alegre.

Em pouco mais de dois séculos, o

projecto hospitaleiro concretiza-se num

amplo conjunto de serviços que

constituem a Obra Hospitaleira que se

alarga já a 24 países, espalhados por

quatro Continentes145 e o seu

desenvolvimento incorpora um grande

número de colaboradores que,

juntamente com as Irmãs, tomaram e

continuam a tomar possível a missão da

Congregação:

Dispositivos de assistência

psiquiátrica, adaptados às

necessidades das pessoas e às

novas técnicas da ciência médico-

psiquiátrica.

Centros ou serviços

psicopedagógicos que utilizam

meios e técnicas que possibilitam o

máximo desenvolvimento das

capacidades das pessoas

deficientes.

Page 272: Condeixa, memória, história e paisagem

Centros ou serviços geriátricos e

psicogeriátricos onde se oferecem

um acompanhamento e cuidado

terapêuticos adequados à situação

do idoso e às suas possibilidades

de recuperação.

Hospitais gerais e estruturas extra-

hospitalares: ambulatórios, centros

de saúde, etc, nos quais se atende

todo o tipo de doenças.

Resposta pontual a «situações de

emergência» que se apresentam

nos diferentes países onde está

implantada a Obra Hospitaleira,

especialmente no campo da Saúde

Mental.

A Congregação, respondendo às

exigências das pessoas, tempos e

lugares, assim como às modernas

orientações de planificação da

saúde, criou numerosas estruturas

extra-hospitalares, especialmente

na área da saúde mental, ao

mesmo tempo que realiza uma

progressiva redefinição das suas

Page 273: Condeixa, memória, história e paisagem

tradicionais instituições

hospitalares.

A Obra Hospitaleira distingue-se,

não tanto pela quantidade de

serviços que presta,

particularmente em alguns países,

mas pela qualidade dos mesmos,

devido ao profundo sentido de

solidariedade com a pessoa que

sofre e ao carisma que vê no

doente a Cristo, «que recebe como

feito a si próprio quanto fazemos à

pessoa necessitada».

Para poder levar a cabo o projecto de

«saúde integral» que quer realizar, a

Congregação Hospitaleira objectiva a

criação da Comunidades Hospitaleiras

em todos os seus Centros.

A Comunidade Hospitaleira é

constituída por doentes e seus

familiares, colaboradores

(trabalhadores, voluntários, benfeitores,

as pessoas em formação e amigos) e

Irmãs.

Page 274: Condeixa, memória, história e paisagem

Os doentes são o centro e a razão

de ser do Projecto Hospitaleiro e a

sua «cura» – mental, física, social e

espiritual – o principal objectivo.

Os familiares vivem com o doente e

a problemática da doença e fazem

parte integrante do processo

terapêutico.

Os trabalhadores dos centros

contribuem com o seu saber e o

seu trabalho para a recuperação

dos doentes, partilhando a mesma

cultura hospitaleira.

Os voluntários, os benfeitores e

amigos, contribuem com o valor da

gratuidade, do compromisso e da

solidariedade com os mais

necessitados.

As pessoas em formação também

dão o seu contributo ao Centro ao

mesmo tempo que recebem dele,

como lugar docente,

conhecimentos teórico-práticos.

Page 275: Condeixa, memória, história e paisagem

As Irmãs, além do seu trabalho,

constituem, individualmente e

como comunidade religiosa

hospitaleira, o núcleo histórico

carismático inspirador da

Hospitalidade, sendo por isso uma

referência da Comunidade

Hospitaleira.

A Comunidade Hospitaleira cultiva-se

assumindo a correspon-sabilidade no

desenvolvimento da instituição,

valorizando as pessoas e o trabalho que

realizam, criando um clima de confiança

e de convivência entre os diferentes

grupos, promovendo encontros de

reflexão sobre o carisma hospitaleiro,

sendo auto-críticos e respeitando os

direitos das pessoas.

A Comunidade Hospitaleira em

Condeixa146 depois da abordagem

global, sucinta e possível do passado,

presente e porvir da Obra das Irmãs

Hospitaleiras é tempo de nos focarmos

na sua presença nesta Vila de Condeixa,

propósito último deste nosso trabalho.

Page 276: Condeixa, memória, história e paisagem

Reconhecendo a importância da acção

das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado

Coração de Jesus em Condeixa,

deliberou a Edilidade Condeixense

atribuir o nome do Santo fundador da

Congregação de Religiosas

Hospitaleiras, à rua onde se localiza a

Casa de Saúde Rainha Santa Isabel bem

como erigir na rotunda ajardinada que a

antecede, porta de entrada Norte da

Vila, uma imagem de S. Bento Menni.

Esta rotunda e a respectiva imagem

foram solenemente inauguradas pelo

Bispo da Diocese de Coimbra D. Albino

Cleto e pelo Presidente da Câmara

Municipal Engº. Jorge Bento, no dia 21

de Setembro de 1999, com a presença

de muitas outras autoridades e muito

público que assim fez preito de gratidão

à acção das Irmãs Hospitaleiras do

Sagrado Coração de Jesus.

Também outras Instituições de âmbito

local e regional reconheceram, em

devido tempo, com gestos de

homenagem a missão Hospitaleira da

Page 277: Condeixa, memória, história e paisagem

Casa de Saúde Rainha Santa Isabel.

Entre estas, a Fundação Concelho de

Condeixa, deliberou atribuir à

Instituição Hospitaleira a primeira

edição do prémio Fundação Concelho de

Condeixa referente ao ano de 1996. No

diploma que materializa este acto, pode

ler-se:

A Fundação Concelho de Condeixa

agradece a Deus a presença das

Irmãs Hospitaleiras do Sagrado

Coração de Jesus entre as gentes

do concelho, em memória do que

lhe atribui o prémio da Fundação

1996, ano da sua primeira edição.

Deve-se, ainda, à Fundação Concelho

de Condeixa a dinamização e realização

de um ciclo de homenagem à Casa de

Saúde Rainha Santa Isabel, sob o lema

O Coração da Hospitalidade, inserido no

ano comemorativo do Cinquentenário da

fundação da referida Casa de Saúde. O

primeiro tempo ocorreu a 18 Abril 2009

Page 278: Condeixa, memória, história e paisagem

no auditório do Museu de Conímbriga,

tendo como orador convidado o

Presidente da Cáritas Portuguesa Dr.

Eugénio da Fonseca. O segundo

momento, também ele consignado à

hospitalidade para com os mais débeis,

ocorreu a 23 de Maio, no mesmo local,

tendo como orador principal o

Presidente da União das Misericórdias

portuguesas, Dr. Manuel de Lemos. O

coroamento deste ciclo comemorativo

veio a ter lugar no Santuário de Nossa

Senhora do Círculo, no dia 21 de Junho,

com uma Eucaristia de Acção de Graças

e uma tarde de convívio e

confraternização entre os presentes.

Na mesma linha de reconhecimento, a

Associação dos Bombeiros Voluntários

de Condeixa, em 2004, atribui a sua

medalha de ouro às Irmãs Hospitaleiras:

...Pela sua benevolência dedicada

não só à Corporação dos

Bombeiros, mas também à

Page 279: Condeixa, memória, história e paisagem

população do Concelho de

Condeixa...

Para além de outros, também o

Estado entendeu reconhecer o mérito da

acção da Congregação Hospitaleira do

Sagrado Coração de Jesus, atribuindo a

medalha de mérito do Ministério da

Saúde à Casa de Saúde Rainha Santa

Isabel em cerimónia oficial do Dia

Mundial da Saúde, ocorrido a 07 de

Abril de 2010.

A posse da Quinta dos Silvais e a

evolução da área construída

O dia 24 de Janeiro de 1959 é

lembrado como o da a tomada de posse

efectiva da Quinta dos Silvais com a

ocupação da casa nela existente por um

pequeno número de Irmãs, verdadeiro

núcleo do actual Complexo Hospitaleiro

que enobrece Condeixa e a sua região. A

Page 280: Condeixa, memória, história e paisagem

função clínica e assistencial, entendida

como o internamento das primeiras

doentes, ocorre, cerca de dois anos mais

tarde, com o termo da construção do

primeiro pavilhão: o Sagrado Coração

de Jesus.

O ritmo das construções nos anos

subsequentes foi marcado pela

necessidade de aumentar a lotação, mas

muito em especial, na perspectiva de

proporcionar melhores condições às

utentes, como também aos diversos

prestadores de cuidados médicos, de

enfermagem ou, simplesmente, de

apoio. Deu-se ainda cumprimento a

necessidades tais como: a construção da

Clausura, da Capela (1967/69), do

Colégio Apostólico que funcionou entre

os anos 1972/78147, e ainda, um pouco

mais inserida na área agrícola da

quinta, a Residência das Irmãs Idosas.

A par de todas estas instalações

hospitalares, consideradas como do

melhor que em Portugal se fazia

projectavam-se e construíam-se os mais

Page 281: Condeixa, memória, história e paisagem

variados serviços de apoio a toda

actividade assistencial, como gabinetes

de consulta e de meios auxiliares de

diagnóstico, salas de fisioterapia e de

terapia ocupacional, farmácia, etc.

Construíram-se, também, áreas de apoio

administrativo e técnico, bem como as

mais diversas áreas de apoio geral:

cozinhas, armazéns, lavandaria, central

térmica, oficinas, parqueamentos,

cabeleireiro, cafetaria, recepção e,

ainda, áreas de apoio especializado,

como piscina, ginásio e salão

polivalente.

Contudo, a inauguração oficial, só

vem a acontecer no dia 1 de Fevereiro

de 1964148, com a entrada em

funcionamento do Pavilhão de S. José, o

segundo pavilhão de internamentos a

ser construído e recentemente demolido

para dar lugar a um dos «mais

modernos edifícios de tratamento

hospitalar para doentes do foro

psiquiátrico» cuja inauguração marcou o

Page 282: Condeixa, memória, história e paisagem

final do ano comemorativo do

cinquentenário.

Este novo edifício, no qual o Instituto

das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado

Coração de Jesus acabam de investir

quatro milhões de Euros, marcará, no

futuro, uma nova era no funcionamento

e nos cuidados de saúde prestados pela

Casa de Saúde Rainha Santa Isabel.

Estrutura que foi construída de

raiz, substitui a velha unidade

assistencial e significa um aumento

da capacidade de alojar utentes em

mais do dobro... A nova legislação

obrigou-nos a converter os espaços

de modo diferente, sobretudo a

nível de alojamento de utentes. Os

quartos têm, no máximo, três

camas... Inclui áreas diversificadas

como unidades de consultas,

internamento e terapia, ateliês

quartos para os utentes, salas de

visita, refeitórios, gabinetes

médicos, espaços de enfermagem,

Page 283: Condeixa, memória, história e paisagem

arquivos e arrumação... É um

edifício com bastante luz, equipado

com materiais simples, mas

resistentes. Tem energia solar e

cinco unidades de saúde

independentes umas da outras ...

Estas palavras, dos responsáveis pela

construção e gestão futura, projectam-

nos imagens de Hospitalidade

plasmadas no devir. É, por outras

palavras, confirmar o compromisso

expresso sobre o lema Olhando o Futuro

no âmbito mais lato da breve mas

explícita identificação da sua Identidade

e Missão:

A Congregação das Irmãs

Hospitaleiras deu testemunho,

durante mais de um século, do seu

compromisso com os doentes

mentais e pessoas afectadas por

outras patologias, desenvolveu um

modelo de instituição e de gestão,

baseada na corresponsabilidade e

Page 284: Condeixa, memória, história e paisagem

na entrega solidária de todos os

seus recursos humanos e

económicos.

Valorizando positivamente o

trabalho realizado pela

Comunidade Hospitaleira, ao longo

de 125 anos de existência,

queremos estar abertos aos sinais

dos tempos através dos quais Deus

nos fala e nos conduz, para

respondermos às necessidades

actuais e enfrentarmos com

audácia os desafios do futuro.

A Congregação, fazendo seus a

coragem, a fé e o compromisso dos

fundadores, olha para o passado

com gratidão, para o presente com

responsabilidade e para o futuro

com esperança.

A Hospitalidade, que define o carisma

hospitaleiro, é um valor – humano,

social, cristão – que transcende o tempo

e que como Comunidade Hospitaleira

estamos empenhados em viver e

transmitir à sociedade do nosso tempo.

Page 285: Condeixa, memória, história e paisagem

Nessa projecção insere-se também

uma outra concretização da Casa de

Saúde Rainha Santa Isabel nestes

tempos de comemoração do

Cinquentenário: a quem visite a quinta

dos Silvais será notória uma pequena

aldeia de casas pré-fabricadas em

madeira, onde nem falta o largo do

pelourinho, cujas residentes integram

um cientificamente avançado projecto

terapêutico liderado pelos Psicólogos da

Instituição.

A Quinta Pedagógica das

Romanzeiras é uma infra-estrutura

que comporta várias vertentes:

reabilitação psicossocial,

psicopedagógica, residencial,

ocupacional e de lazer. A infra-estrutura

é composta por quatro vivendas

unifamiliares, fabricadas em madeira

tratada que formarão uma mini aldeia,

servindo de morada para vinte utentes

da Casa de Saúde em processo de

Page 286: Condeixa, memória, história e paisagem

reabilitação. Ao redor da mini aldeia

existirá um circuito pedonal que

conduzirá os visitantes por áreas onde

poderão observar e interagir com

animais e plantas de várias espécies,

constituindo um ecossistema

terapêutico relaxante e promotor da

Saúde Mental ... O seu objectivo

principal é a desinstitucionalização e

refamiliarização das utentes da Casa de

Saúde, a sua introdução em redes

sociais de apoio, tal como preconizam

as actuais leis de Saúde Mental...

Tentar-se-á que a interacção destas

pessoas, sobretudo com grupos de

crianças e jovens das escolas

circunvizinhas, possa contribuir para

esbater o estigma social da doença

mental.

Esta constitui a primeira referência

que encontramos na imprensa escrita à

Casa de Saúde Rainha Santa Isabel.

Trata-se da notícia do acto inaugural

num artigo assinado pelo, então,

Page 287: Condeixa, memória, história e paisagem

correspondente local de vários órgãos

da imprensa: Sr. Ramiro de Oliveira.

Este Condeixense, enquanto Jornalista,

acompanhou grande parte da vida da

Casa de Saúde e da sua pena saíram as

mais finas análises e elogiosas palavras

à Instituição e à Nobre Missão da

Congregação Religiosa que a titula.

A notícia alonga-se com a publicação

dos discursos de vários convidados e

considerações do autor sobre a

Instituição inaugurada. Tais

considerações repetem-se, ao longo de

vários anos em que o Jornalista

Condeixense escreveu sobre a Casa de

Saúde dando-nos com a sua análise uma

perspectiva da sua evolução. Dessa

análise se infere, ainda, dos largos

rumos que, desde logo, vaticinava à

inaugurada Instituição e que o futuro

não desmentiu.

A Casa de Saúde Rainha Santa Isabel é,

hoje, uma realidade bem diferente da que era

nesses já recuados tempos, ainda que o

Carisma Hospitaleiro que a rege, referência

Page 288: Condeixa, memória, história e paisagem

maior dos seus fundadores, seja marca

perene da sua identidade. É, no presente e no

dizer dos seus mais altos responsáveis,

«Instituição de referência na saúde mental,

aberta à diferenciação de cuidados, pondo em

prática um modelo exemplar do cuidar».

Tem por finalidade essencial a

prevenção, tratamento e

reabilitação de doentes em Saúde

Mental e Psiquiatria, numa visão

integral da pessoa, segundo o

carisma dos fundadores S. Bento

Menni, Maria Josefa Récio e Maria

Angústias Giménez.

No horizonte da centralidade da

pessoa doente mental, destinatária

da missão hospitaleira, empenha-se

a Casa de Saúde Rainha Santa

Isabel na prestação de um serviço

global, que se articule numa

dinâmica interdisciplinar

abrangendo as dimensões

Biológicas, Psicológicas,

Page 289: Condeixa, memória, história e paisagem

Espirituais, Éticas e Sociais da

Pessoa.

É nesta perspectiva que dispõe de

várias unidades149 vocacionadas para o

internamento de longa duração com

capacidade para 327 doentes e, ainda,

cerca de 30 camas destinadas a

internamentos de curta duração

(agudos), acolhendo, no seu todo, cerca

de três centenas e meia de utentes com

patologias do foro mental e psico-

geriático. Nela exercem funções, para

além de um pequeno grupo de Irmãs

Hospitaleiras do Sagrado Coração de

Jesus, cerca de duas centenas de

colaboradores distribuídos por um

diversificado leque de funções

profissionais: médicos, psicólogos,

enfermeiros, terapeutas ocupacionais,

fisioterapeutas, técnicos de serviço

social, administrativos e auxiliares de

várias áreas de apoio, bem como

também um considerável grupo de

voluntários, tudo enquadrado numa

Page 290: Condeixa, memória, história e paisagem

pirâmide hierárquica em que pontificam

a Direcção Gestora de Recursos

Financeiros e Humanos, a Direcção

Clínica e a Direcção de Enfermagem.

Numa dinâmica ponderada que leva à

busca permanente das melhores

condições para o cabal cumprimento da

sua Missão, a Casa de Saúde Rainha

Santa Isabel integra os seguintes

serviços:

- Serviços de Recepção e Admissão

- Serviços Administrativos

- Serviços Assistenciais:

Médicos

Enfermagem

Psicologia

Serviço Social

Terapia Ocupacional

Fisioterapia

Reabilitação

- Serviço Religioso:

Pastoral da Saúde

- Serviços Sócio-Terapêuticos:

Page 291: Condeixa, memória, história e paisagem

Bar

Bazar

Biblioteca

Cabeleireiro

Salão Polivalente

Piscina

Salas de Terapia Ocupacional e

Reabilitação

Campo Ludoterapático

- Unidades de Internamento

- Serviços de Apoio Geral

Nas Unidades de Internamento são

diariamente implementadas diversas

actividades seleccionadas por

Psicólogos e Terapeutas consoante o

grau de capacidade e patologia das

pessoas a que se destinam. Todas estas

actividades têm como objectivo a

ocupação das doentes numa perspectiva

ergonómica e terapêutica:

Alfabetização;

Trabalhos Manuais;

Actividades Lúdicas:

Page 292: Condeixa, memória, história e paisagem

(Jogos Tradicionais e Didácticos,

Leitura, Música, Dança, Teatro,

Cinema, Colaboração no Jornal

Interno «A Prenda», Passeios,

Natação, Ginástica, Atletismo,

etc.);

Manutenção e Limpeza dos

Espaços Verdes;

Apoio Psicológico e Estimulação

Psicossocial;

Actividades na Área Agrícola;

Actividades de Culinária;

Actividades Religiosas.

As Utentes são, além disso,

estimuladas a participar activamente em

todas as festas recreativas da CSRSI,

designadamente nos aniversários das

demais doentes, na comemoração de

datas, épocas ou factos importantes

para a Instituição. Colaboram, também,

nos eventos ou organizações exteriores,

mormente nos promovidas pela Câmara

Municipal e/ou Escolas locais: Desfiles

Page 293: Condeixa, memória, história e paisagem

de Carnaval, Marchas Populares, Festas

Anuais, Dias da Família, etc.

Vimos já, quando enunciámos os vértices

da Comunidade Hospitaleira, como os

familiares dos doentes se inserem no seu

objectivo: os familiares vivem com o doente e

a problemática da doença e fazem parte

integrante do processo terapêutico. Os

voluntários, os benfeitores e amigos,

contribuem com o valor da gratuidade, do

compromisso e da solidariedade com os mais

necessitados.

Na prossecução deste objectivo, os

responsáveis pela Instituição envidaram

esforços no sentido de darem corpo a

uma Associação de Familiares e

Amigos das Utentes da Casa de

Saúde Rainha Santa Isabel, que veio

a designar-se por «Dar Voz»

A Associação «Dar Voz» é uma instituição

de direito privado, com funções sociais e sem

fins lucrativos. Foi criada em 1999 e tem a

sua sede na Casa de Saúde Rainha Santa

Isabel. O seu objecto é ajudar as Irmãs

Hospitaleiras, oferecendo a colaboração dos

Page 294: Condeixa, memória, história e paisagem

familiares e amigos dos que vivem na Casa de

Saúde para a criação de condições que

permitam aos seus utentes um adequado e

harmónico desenvolvimento, no pleno

respeito pela diferença que os distinguem,

diferenciam e enriquecem.

As actividades a que a «Dar Voz» se

vota são de carácter espiritual, cultural

e social, privilegiando a ligação das

famílias dos utentes com a Direcção do

Instituto Hospitaleiro. Nesta perspectiva

a «Dar Voz» é uma presença habitual

nas actividades da Casa de Saúde,

participando nos seus eventos bem

como na comemoração de datas e

acontecimentos importantes

dinamizados no exterior, sempre que a

Casa de Saúde é a isso chamada.

Tem uma acção constante na

sensibilização e motivação dos

familiares e amigos das doentes

internadas para que as visitem ou

contactem sempre que possível,

principalmente em dias especiais como

o Natal, Páscoa, aniversários, festas de

Page 295: Condeixa, memória, história e paisagem

vária ordem promovidas pela Casa de

Saúde ou pela própria Associação.

Tenta, ainda, sensibilizar a sociedade

civil, principalmente a comunidade onde

está inserida, para os problemas da

saúde mental e para a realidade que é a

Casa de Saúde Rainha Santa Isabel, no

contexto geral e regional.

Desde logo reconhecendo que, na

vertente da promoção económico-social

da área em que se insere, a Casa de

Saúde Rainha Santa Isabel constituise

como o maior empregador do Concelho

de Condeixa, facto que é assumido pelas

entidades do maior relevo concelhio,

como são a Edilidade, o Arciprestado, a

Fundação de Condeixa, a Associação dos

Bombeiros Voluntários e outras

instituições ou meros particulares que,

repetidamente, o reconhecem.

Referências fundacionais: Tempo,

Espaço e Pessoas

Page 296: Condeixa, memória, história e paisagem

No contexto de uma publicação, como

esta, que reúne uma pequena série de

artigos sobre o passado e o presente de

Condeixa, temos como pertinente uma

breve referência aos tempos da

fundação da Casa de Saúde Rainha

Santa Isabel, que mais não seja, como

preito de homenagem devida no seu

recente Cinquentenário.

Na década de cinquenta do século

passado foi Bispo da Diocese de

Coimbra, o Senhor D. Ernesto Sena de

Oliveira150. D. Ernesto, na linha dos

cuidados vividos pelos prelados que o

antecederam, interessou-se por todas as

instituições de solidariedade da sua

diocese, porém, manifestou particular

atenção pelo Refúgio Rainha Santa,

atento à faixa de população a que a sua

acção se destinava: jovens mulheres em

risco de marginalização.

Desde a sua fundação, em meados dos

anos trinta, esta Obra Social vinha

sendo patrocinado pelos Prelados

Coninbrigenses. Nesta linha não

Page 297: Condeixa, memória, história e paisagem

escapou ao Senhor D. Ernesto a grande

questão do Refúgio Rainha Santa, que

era o rumo a dar às utentes que, por

doença, eram incapazes de se integrar

quer no mundo do trabalho quer na

família, escopo primeiro da Instituição.

De início, o número destas seria

pequeno, mas, com o decorrer dos anos,

este número começou a aumentar e as

soluções esporadicamente encontradas

deixaram de ser viáveis.

Foi neste contexto que o Senhor Bispo

e os seus colaboradores consideraram a

possibilidade do recurso às Irmãs

Hospitaleiras do Sagrado Coração de

Jesus, institucionalizando a ajuda

esporádica que, ao longo dos vários

anos, prestaram ao Refúgio Rainha

Santa, aceitando nos seus centros de

Lisboa ou Braga algumas doentes desta

Instituição.

Era, então, Superiora Provincial das

Irmãs Hospitaleiras a Madre Eloísa de

Jesus Pires. Foi com esta Responsável

que a Diocese estabeleceu contactos

Page 298: Condeixa, memória, história e paisagem

que culminaram com a compra da

Quinta dos Silvais e a instalação da

Comunidade Hospitaleira hoje existente.

A Condeixa, interessará conhecer

também algumas das razões ou acasos

da sua escolha para acolher a

Hospitaleira Instituição:

Nas suas vindas a Coimbra, sempre

que não utilizava o comboio, a Provincial

Hospitaleira passava obrigatoriamente

pelo centro de Condeixa. Não escapava

à sua atenção observadora a vetustez e

beleza dos seus palácios, o traçado das

suas ruas a enquadrar várias casas

solarengas, a lhaneza das suas gentes.

Mas, o que mais sensibilizou a sua

índole prática e decisora, foi o verde dos

muitos pomares, os pequenos rios e

ribeiros cujas águas fertilizavam as

hortas que, por todo o lado,

despontavam.

Importante ainda reconhecer a sua

inserção no espaço geográfico local e

regional: Condeixa, secular

encruzilhada de caminhos. De Norte

Page 299: Condeixa, memória, história e paisagem

para Sul, das Beiras para o Litoral ou

nos sentidos opostos, quem quisesse

cruzar o coração de Portugal, tinha que

passar por lá.

Teve a Superiora Hospitaleira

conhecimento do interesse, manifestado

pelo mais recente proprietário da

Quinta dos Silvais, na sua venda. Não

perdeu tempo o espírito prático da

responsável. Visitou o espaço, sem aviso

prévio, apenas na companhia da sua

secretária. Diríamos, «em missão

secreta», utilizando a expressão de

quem nos deu esta informação. Badalou

a campainha do portão...esperou que lho

abrissem...apresentou-se vagamente

curiosa e entrou empurrando, sem

esperar mesmo a autorização de quem,

desconfiadamente, lho abriu.

... ... ...Raio de vida... Agora entram-

me por aqui adentro duas freiras...

Parece qu’isto já nem tem dono!...

Resmungava, para si, o Ti Manel

Russo151, no pleno dos seus trinta

quarenta anos. Mas, a Irmã olhou

Page 300: Condeixa, memória, história e paisagem

atentamente...Inteirou-se de alguns

pormenores e despediu-se num, até

breve, que entristeceu o Caseiro...Afinal

trabalhava ali desde os dez anos!...Fazia

parte daquilo tudo!...Mudara de patrão

algumas vezes, mas nunca de emprego!

– Agora...Se me caiem aqui estas!...

Apontada a causa próxima da

fundação da CSRSI e acompanhada a

dinâmica das vontades que o

possibilitaram, é tempo agora de

caracterizarmos o espaço onde a mesma

foi implantada: uma velha e pouco

funcional residência numa quintinha,

onde predominavam um laranjal, uma

horta e um pequeno e tradicional lagar

de azeite.

A quinta tinha, até então, apenas uma

vocação agrícola, a que, até hoje, deram

continuidade as Irmãs residentes.

Contudo, a capacidade agrícola inicial

tem sido, pouco a pouco, reduzida para

dar lugar às sucessivas construções que,

antes, referenciámos.

Page 301: Condeixa, memória, história e paisagem

Também Condeixenses notáveis foram

alguns dos anteriores proprie-tário da

Quinta dos Silvais. Por isso, num escrito

que aos Condeixenses se destina, nos

parece caber uma breve referência a

alguns deles:

Os Silvais eram, à data da sua

aquisição pelas Irmãs Hospitaleiras,

propriedade do Senhor Manuel Luís

Silva, comerciante residente em

Coimbra, mas natural de Bruscos, lugar

da freguesia de Vila-Seca.152

Outro proprietário dos Silvais,

normalmente o mais identificado como

tal, foi o Dr. Sebastião Marques de

Almeida, figura carismática da antiga

Condeixa, conhecido por «Dr. Sebastião

das Barbas». Coube-lhe a Quinta com

outros bens no COncelho de Condeixa,

na legítima da esposa. O Dr. Sebastião,

numa tradição familiar, exerceu alguns

cargos nas instituições de benemerência

local, nomeadamente o de Provedor da

Misericórdia153.

Page 302: Condeixa, memória, história e paisagem

Fixada pela voz das mais antigas

Irmãs residentes, de alguns

colaboradores doutros tempos, e de

todos os que tiveram qualquer contacto

com os Silvais, nos tempos em que ainda

pertenciam ao Dr. Sebastião, repete-se a

lenda que pelos Silvais passaram, em

recreio, personalidades da vida

intelectual e política de tempos

anteriores à sua venda. Não custa muito

a acreditar nesta tradição, tendo em

vista que Condeixa e os seus arredores

foram percurso de desenfado de várias

gerações de académicos da

Universidade Coimbrã. Isso mesmo nos

atesta o Poeta António Nobre ao

convidar o seu Amigo Manuel a visitar

Condeixa, entre outros arredores, «que

vistos uma vez, ah! Não se esquecem

mais»154

A estrada que permitia o deslize fácil

de uma «charrete», o encanto das

paisagens, a simpatia das gentes, a

beleza das raparigas, tudo concorreria

para que tal pudesse acontecer.

Page 303: Condeixa, memória, história e paisagem

Recuando um pouco mais no tempo,

algumas referências apontam para a

vinda do poeta António Feliciano de

Castilho (1800-1875), aos Silvais. Poeta

Romântico, Pedagogo e Homem de

Letras, embora cego, não deixou de

fruir, enquanto estudante ou mesmo

depois, de alguns dos momentos de

lazer ou de «estudantil estúrdia»,

própria do seu tempo e condição.

Estudiosos da sua obra tendem a

identificar nela algumas referências que

apontam para a sua passagem pelos

Silvais. A sua presença, a ter-se como

certa, arrastaria a de condiscípulos e

seguidores e não é difícil imaginar, na

sombra dos antigos laranjais, o eco de

muitos dos seus melhores poemas. De

notar que, Condeixa era extensão

natural do percurso que o levou muitas

vezes à Quinta das Canas (Lapa dos

Esteios), onde, aí sim provadamente,

reunia muitas vezes a tertúlia que o

Poeta liderava.

Page 304: Condeixa, memória, história e paisagem

Mas, a presença que a tradição mais

invoca não é a de um poeta, mas a de

um político. Todas as pessoas que ainda

conheceram o Dr. Sebastião das Barbas

recordam a «vaidade» com que referia a

sua condição de condiscípulo, amigo e

hospedeiro do Doutor Salazar. Por via

dessa relação, sussurrava-se que o todo-

poderoso Presidente do Conselho

visitava com frequência os Silvais.

Não sei como acreditar!... Homem

pouco dado a bucolismos, Sua

Excelência, se alguma vez sujou as

célebres botas na terra, foi na sua

Quinta do Vimeiro. Em Condeixa, só de

passagem. Nos Silvais, talvez e somente

enquanto estudante; mesmo assim,

sempre com a sebenta debaixo do braço

e pouco atento aos versos que lhe

cantavam.

Mais provável é que tudo não passe

de uma lenda que se fixou a partir do

facto, não provado, de ambos terem sido

condiscípulas e o Dr. Sebastião disso

fazer gala junto dos seus conterrâneos.

Page 305: Condeixa, memória, história e paisagem

Bibliografia e outras fontes

Manuscritos

Crónicas dos anos 1960 a 1986155

Meios de comunicação social

(Imprensa, TV, Rádio):

Gazeta de Coimbra: 1964, 02, 08/ 1972,

09 28.

Diário de Coimbra, 1983, 01, 22/ 1983,

03, 30/ 1984, 04,18/ 1984, 05, 11/

1984, 10, 24/ 1984, 10, 29/ 1985, 06,

20/ 2006, 06, 04/ 2008, 10, 11/ 2010,

01, 24.

Diário das Beiras: 2009, 04, 24.

Correio de Coimbra: 2006, 06, 01/

2006,06, 08/ 2006, 06, 22/ 2010, 04,

15.

RTP (País, País), 1983, 07, 28.

Rádio Comercial (Programa transmitido

a partir da CMC).

Publicações

Page 306: Condeixa, memória, história e paisagem

Brochado, Costa, S. João de Deus,

Portugália Editora, Lisboa 1950.

Cárcel Orti, Vicente, História de La

Congregación de Hermanas

Hospitalarias Del Sagrado Corazón de

Jesus. Volume I, El Beato Benito

Menni y Las

Hospitalarias, Cidade do Vaticano, 1988.

Cardoso, António Brito, Figuras da

Igreja na Diocese de Coimbra – D.

Ernesto Sena de Oliveira.

Conceição, Santos e Gaspar, José Maria,

Monografia de Condeixa, 2ª. Edição.

Montonati, Ângelo, O Preço da

Coragem, São Bento Menni, Tradução

de Benjamim Ferreira, Edições

Âncora 1999.

Moura, Evaristo Cerveira de,

Nascimento, Vida e Morte do Hospital

D. Ana Laboreiro D’Eça – Condeixa.

Iglésias S.J., Manuel, São Bento Menni,

Profeta da Hospitalidade.

Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração

de Jesus, Identidade e Missão.

Page 307: Condeixa, memória, história e paisagem

Soroldini, Mário, Santidade a Toda a

Prova, Vida de Bento Menni,

Fundador das Irmãs Hospitaleiras do

Sagrado Coração de Jesus, Tradução

de Moreira de Andrade, Livraria

Apostolado da Imprensa, Porto, 1984.E Continua a Amar, Vida de Maria Josefa Récio, Tradução de Delfim Janela, Livraria Apostolado da Imprensa, Braga, 1987.