Comunistas, católicos anarquistas Quando as lojas eram o ... · era maçon desde os anos 30"....

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Maçonaria Comunistas, católicos e anarquistas juntos Quando as lojas eram o "chapéu- de-chuva" das oposições Em Portugal, em diversos momentos, fruto da conjuntura europeia entre as duas guerras do século XX, as lojas foram o "chapéu-de-chuva" das oposições. Numa lógica frentista, para uns. Na operacionalidade de uma política de alianças, segundo outros

Transcript of Comunistas, católicos anarquistas Quando as lojas eram o ... · era maçon desde os anos 30"....

Maçonaria Comunistas, católicos e anarquistas juntos

Quando as lojaseram o "chapéu-de-chuva" dasoposições

Em Portugal, em diversos momentos, fruto daconjuntura europeia entre as duas guerras do séculoXX, as lojas foram o "chapéu-de-chuva" das oposições.Numa lógica frentista, para uns. Na operacionalidadede uma política de alianças, segundo outros

Nuno Ribeiro

• Comunistas, católicos, republi-canos e anarquistas participaramna Maçonaria, na preparação da Re-

volução de 5 de Outubro, durantea agitada l. a República e em váriasfases da resistência ao Estado Novo.De origem maçónica eram, também,algumas figuras que transitaram parao regime saído do golpe de 28 de Maiode 1926. Três historiadores revelamnomes, casos e revisitam a história.

"A Maçonaria sempre foi e é trans-versal à sociedade, à classe política,tendo reunido republicanos, anar-quistas, socialistas...", observa Antó-nio Ventura, catedrático de HistóriaContemporânea da Faculdade de Le-tras de Lisboa. Uma transversalidade e

uma peculiar porosidade que, nalgunscasos, chegou a extremos. Como o en-volvimento de comunistas nas lojas.

"José Carlos Rates, secretário-geraldo PCP entre 1923 e 24, Sobral de Cam-

pos, um dos fundadores do PC, e Can-sada Gonçalves foram maçons", revelaVentura. A estes nomes, João Madeira,investigador do Instituto de HistóriaContemporânea com um recente dou-toramento sobre a história do PCP,junta outros. "Apesar de haver umadirectiva da Internacional Comunista,na sequência do seu IV Congresso deNovembro e Dezembro de 1922, queproibia a dupla filiação, em Portugalessa situação ocorreu", anota Madei-ra. Embora a directiva correspon-desse a uma tradição do movimentosocialista que, inclusivamente, levouo Partido Socialista Italiano em 1914

a uma vaga de expulsões de franco-maçons, o investigador aponta doisoutros casos de dupla filiação maçó-nica e comunista: "Manuel Alpedrinhae Vítor Hugo Velez".

O que ocorreu, nos anos 20 e 30 doséculo passado, não se deveu a umaheresia aos princípios. Não foi umamera rebeldia. A conjuntura foi decisi-

va. "Nos anos 30, há uma geração mais

nova, oriunda do republicanismo radi-

cal, que pela situação política internae externa se radicaliza e acaba por de-

saguar no PC", explica João Madeira.Este lastro político e ideológico mui-to forte foi sobrevivendo "porque oscomunistas portugueses demorarammuito tempo a bolchevizar-se". Estanova geração de opositores políticos,oriunda das famílias republicanas tra-dicionais e filhos da burguesia liberal,dedicava um olhar crítico à recente

experiência histórica republicana."Eles queriam conferir à Repúblicaum conteúdo social que esta nuncativera, e no período entre guerras vãoaproximando-se do PC", observa.

Uma aproximação forçada pelosacontecimentos. O advento dos fas-cismos na Europa levou a Interna-cional Comunista a enveredar pelapolítica de frente popular. Nestefrentismo encontram-se pessoas devárias ideologias. É o caso dos reu-nidos na Acção Anticlerical e Anti-fascista (AAA), conhecida por trêsA, uma organização paramaçónica,cujos dirigentes pertenciam a várias

lojas. Aí se encontram jovens, mui-tos dos quais estiveram na génese domovimento neo-realista em Portugal.João Madeira refere o nome de MárioDionísio que, no jornal Liberdade, ti-nha como companheiro de redacçãoÁlvaro Cunhal. Defendiam "republi-canizar a República e humanizar oHumanismo".

Houve outros casos também re-veladores. Na loja Revoltar ao Valede Almada estavam João da PalmaCarlos, Alexandre Babo e OrlandoJuncai. Em Coimbra, era preponde-rante o Centro Escolar Republicanoque tinha por detrás a loja maçóni-ca A Revolta, na qual participavamJoaquim Namorado e Ivo Cortesão.Já no Porto, há notícia de uma lojadenominada Revoltando. A esta listado investigador do Instituto de Histó-ria Contemporânea, António Venturasoma outro caso. Peculiar e saboroso,pela designação e a presença de umhomem de longo fôlego: "Era a lojaComuna, à qual pertenceu EmídioGuerreiro [antigo secretário-geral e

presidente do PSD em 1975 por do-ença de Sá Carneiro], com o nomesimbólico de 'Lenine', na qual esta-vam jovens ligados ao PC". Um dosseus símbolos é revelador: um livroaberto, sob o qual aparece a pontade uma foice e se adivinha a cabeçade um martelo.No MUNAF, em forçaA política frentista dita o aparecimen-to de outras organizações e permitenovos encontros. Em 1935/36, Cunhal

lança o Bloco Académico Antifascista,agrupando a Federação das Juven-tudes Comunistas, os "AAA", orga-nizações e personalidades indepen-dentes. A Guerra Civil espanhola de1936/39 e o clima político europeuvai-os empurrando para o comunis-

Símbolo da loja Comuna, à qualpertenceu Emídio Guerreiro como nome simbólico de "Lenine";Carlos Rates, secretário-geraldo PCP e maçon; e um exemplardo jornal O Comunista, órgãodaquele partido, que à data (1924)tinha Rates como director

mo. É um movimento duplo: a radi-calização leva à "marxização". "Foi ocaso de Fernando Piteira Santos, queé possível que tenha tido militânciamaçónica, embora não haja referên-cia à participação dele em lojas", as-sinala Madeira.

Contudo, a Maçonaria está repre-sentada ao máximo nível no Mo-vimento de Unidade Antifascista(MUNAF) que, em 1948, lança a can-didatura a Presidente da República

do general Norton de Matos, anti-go grão-mestre adjunto do GrandeOriente Lusitano Unido. Uma apos-ta frentista, animada pelos comunis-tas. "O PC no seu conjunto nunca se

conseguiu demarcar claramente dahistória republicana, mesmo após a

reorganização de 1940, o núcleo his-tórico nunca teve uma atitude de de-

marcação da experiência histórica da

República para não cortar os laços, o

que está claramente relacionado coma política de alianças", acentua JoãoMadeira. Se a Maçonaria garante, nosanos 40 do século passado, o nívelfrentista na luta contra a ditadura,mantém-se também como repositóriodos ideais da República.

Mais tarde, como observa Fer-nando Rosas, através do DirectórioDemocrata-Social e da Acção Demo-crata-Social, que agrupa nos anos50 Jaime Cortesão ou Cunha Leal,figuras da oposição não-comunista,a Maçonaria ainda se manifesta. "De-

pois, passa a ser uma referência lon-

gínqua, anima a Liga Portuguesa dosDireitos do Homem, mantém algunscentros republicanos em Lisboa, masdeixa de ter participação política di-

recta", salienta Rosas. "A Maçonariaé fraca, tem poucas lojas", corrobora

Madeira: "Acaba por ramificar-se nas

organizações socialistas que, MárioSoares, num trabalho tenaz leva aoPartido Socialista", conclui."Meros contributos"Mas já longe do fulgor dos temposda l. a República. "Três presidentesda República, Bernardino Machado,Sidónio Pais e António José de Almei-da são oriundos da Maçonaria, e tam-bém 17 dos 31 chefes de Governo", re-fere António Ventura. Na verdade, os

maçons estão presentes em quase to-das as direcções partidárias da época,em partidos rivais, entre os autoresdo golpe de 28 de Maio de 1926. Até os

anarquistas Campos Lima e AurélioQuintanilha têm obediência.

"Não há uma política da Maço-naria em relação à República, daíque existissem maçons em todos os

partidos, que compartiam ideias ge-néricas", assegura o catedrático deHistória Contemporânea da Facul-

dade de Letras de Lisboa. Estão deacordo nalguns temas, como a ins-

trução ou a separação da Igreja doEstado. Querem o desenvolvimen-to das colónias, mas não elaboramum discurso sobre a economia. Etêm um episódico relacionamentocom o movimento operário. "Destemodo, não existe um projecto poli-

"É preciso pararestabelecer

a confiança naconsciência políticaque aJustiçaseja implacável

para todos os queprevaricam",alertou MagalhãesLima em 1921tico prático e operativo", destaca."A maçonaria não se envolveu emaspectos concretos da governação,como a economia, embora em 1912 a

loja Comércio e Indústria tenha feitoum relatório sobre a reconstituiçãofinanceira do país e a reorganizaçãoda defesa nacional", prossegue. Odocumento foi entregue a SidónioPais, na altura ministro das Finan-ças. "Eram meros contributos", des-

valoriza o autor de Os constituintesde 1911 e a Maçonaria.

Já a comissão colonial, onde pon-tificavam diversos oficiais da Mari-nha sob a presidência do geógrafoErnesto de Vasconcelos, marcouorientações. Elaborou propostasde desenvolvimento baseadas noscaminhos-de-ferro e nos portos. Asúnicas relações com o operariadoforam indirectas, através da Univer-sidade Popular Portuguesa que che-

gou a funcionar nas sedes maçónicas."Esta escassa relação tem a ver com

os critérios de recrutamento, quementrava na Maçonaria tinha que saberler e escrever e comprometer-se aopagamento de uma quota", explicaVentura. Condições que, na época,eram uma importante barreira.

Daí a influência maçónica residir naburguesia urbana, nos funcionáriospúblicos, comerciantes e empregadosde comércio, professores primários emilitares. 0 que se poderia apelidar declasse média da República. Que nemsempre olhou o regime acriticamente."A política tornou-se um negócio, a

tradição republicana está ameaçadade morte (...) é preciso para restabe-lecer a confiança na consciência polí-tica que a Justiça seja implacável paratodos os que prevaricam", alertava,em Agosto de 1921 numa entrevista

ao diário O Mundo, Magalhães Lima,grão-mestre do Grande Oriente Lusi-tano Unido entre 1907 e 28.

Também teve irmãos ilustres. Ocardeal Saraiva, Patriarca de Lisboano século XIX. Ou profissionais libe-rais e intelectuais. Alguns protagoni-zaram desatinos, fruto da conjuntura."Boa parte dos que fizeram o 28 deMaio de 1926 eram maçons que que-riam uma República conservadora,ordeira", anota António Ventura:"Foi o caso de Mendes Cabeçadas,do coronel Mendes dos Reis, do ca-pitão Vilhena, que depois seria figuradestacada contra o salazarismo e queera maçon desde os anos 30".

Outros passaram-se para o EstadoNovo. 0 catedrático recorda que o al-mirante Sarmento Rodrigues mante-ve, no entanto, as suas amizades naMaçonaria. Que Bissaya Barreto, ami-

go pessoal de Oliveira Salazar, foi car-bonário e maçon, mas fez uma obraassistencial onde se nota a influênciados princípios que abandonou. "Ascoisas não são preto e branco", en-fatiza. Uma constante se manteve. A

atomização organizativa, ou seja, a

proliferação de lojas. "É tradicionalna Maçonaria, na monarquia consti-tucional, antes de 1869, chegaram a

existir entre sete a dez obediênciasdiferentes", recorda Ventura.