Comunicação, Jornalismo e Fronteiras Acadêmicas

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“Comunicação, Jornalismo e Fronteiras Acadêmicas” é uma edição comemorativa dos cinco anos do curso de Jornalismo. O livro é a primeira produção do Grupo de Pesquisa de Mídia Jornalística (G. Mídia), que faz parte do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e também a primeira obra da Edufma em Imperatriz. O prefácio do livro foi escrito pelo reitor da universidade, Natalino Salgado. Organizada pelos professores Marcos Fábio Matos e Marco Antonio Gehlen e contém 14 artigos da área da comunicação escritos pelos professores do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus Imperatriz.

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Este livro é dedicado a noss@s alun@s, com quem

travamos todos os dias nossos diálogos fronteiriços

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Marcos Fábio Belo MatosMarco Antônio Gehlen(Organizadores)

Alexandre Zarate MacielDenise Cristina Ayres GomesEmilene Leite de SousaGilbert AngeramiLi Chang Shuen Cristina Silva SousaLucas Santiago Arraes ReinoLuciana da Silva Souza ReinoMarcus Túlio Borowiski LavardaMaria da Penha Nunes da RochaPatricia TeixeiraRoseane Arcanjo PinheiroThaísa Bueno

Imperatriz (MA), 2011

ComunicaçãoJornalismoe Fronteiras Acadêmicas

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COMUNICAÇÃO, JORNALISMO E FRONTEIRAS ACADÊMICAS

Copyright @ 2011 dos autores dos textos | Todos os direitos reservados à EDUFMA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

REITORProf. Dr. Natalino Salgado Filho

VICE-REITORProf. Dr. Antônio José Silva Oliveira

DIRETOR DO CCSSSTProf. Dr. Marcelo Chaves

COORDENADORA DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMOProfa. Msc. Roseane Arcanjo Pinheiro

ORGANIZAÇÃOMarcos Fábio Belo Matos

Marco Antônio Gehlen

CAPAMarcus Túlio Borowiski Lavarda

PROJETO GRÁFICOMarco Antônio Gehlen

REVISÃOMarcos Fábio Belo Matos

CONSULTORIA TÉCNICAAlesandra Saraiva de Sousa

UFMA - UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃOCampus Universitário de Imperatriz (CCSST) Rua Urbano Santos, S/N - CEP: 65900-410

Fones: (99) 3221.7625 | Imperatriz - Maranhão

C728 Comunicação, Jornalismo e Fronteiras Acadêmicas / Organizadores: Marcos Fábio Belo Matos, Marco Antônio Gehlen - São Luís: EDUFMA, 2011. 222p.

ISBN: 978-85-7862-208-4

1. Comunicação. 2. Jornalismo. 3. Discurso Social. I. Organizadores. Matos, Marcos Fábio Belo; II Gehlen, Marco Antônio.

CDU 070 | CDD 659-3

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SUMÁRIO

Aqui Imperatriz!: perfis de pessoas comuns no Jornal Correio PopularAlexandre Zarate Maciel

O normal e o patológico: a institucionalização das fontes no discurso jornalístico sobre a reforma psiquiátricaDenise Cristina Ayres Gomes

A Identidade pelas mãos do bricoleur: a tatuagem como dispositivo de identificaçãoEmilene Leite de Sousa

A comunicação empresarial como ferramenta da responsabilidade socialGilbert Angerami

Sequestro midiático: informação, entretenimento e construção midiática da realidade na cobertura do caso EloáLi Chang Shuen Cristina Silva Sousa

Mídias sociais como ferramentas de marketing digitalLucas Santiago Arraes Reino

Viva o Lado Coca-Cola da Vida: análise de um slogan publicitárioLuciana da Silva Souza Reino

Gestão da informação em arranjos produtivos agroindustriaisMarco Antônio Gehlen

Modernidade, Imprensa e Discurso: de como a imprensa escrita efetivou o discurso modernizadorMarcos Fábio Belo Matos

Visões e versões da barbárie: o discurso fotográfico da Guerra do ParaguaiMarcus Túlio Borowiski Lavarda

Jornal do Brasil: os anos dourados da imprensa brasileiraMaria da Penha Nunes da Rocha

Feira do Som, identidade e memória nas ondas do rádioPatricia Teixeira

Nas linhas de O Conciliador do Maranhão: jornalismo e política no primeiro jornal do MaranhãoRoseane Arcanjo Pinheiro

Semiótica como ferramenta de estudo do jornalismo contemporâneoThaísa Bueno

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PREFÁCIO

Compartilhar saberes, legar conhecimento

“Viver é melhor que sonhar”(Belchior)

2011 é um marco para estudantes, profissionais e apaixo-nados por Comunicação, uma vez que neste ano foi celebrado o centenário de Marshall McLuhan, autor de termos e expressões como “aldeia global” e “o meio é a mensagem”, tão propaladas e conhecidas que até viraram jargões. McLuhan foi um gênio que antecipou com seus estudos e pesquisas uma série de reflexões e situações que viriam a se confirmar décadas depois.

E é o espírito dessa proeza e ineditismo que certamente deve ter pautado a iniciativa do livro “Comunicação, Jornalismo e fronteiras acadêmicas”, assinado pelos professores do curso de Comunicação - Habilitação Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão em Imperatriz, reunindo diversos trabalhos inédi-tos e outros já apresentados em eventos da área, que revelam o esforço conjunto de homens e mulheres que se debruçaram so-bre temas instigantes e apresentaram dados novos, propondo-se a formatar conceitos e refletir tendências, estimulando o debate saudável e a descoberta de novos paradigmas nesse que é um dos saberes que mais evoluíram nos últimos anos.

A escolha do tema para titular a obra também demons-tra a sintonia do grupo de autores ao relacionar comunicação (uma necessidade inata do homem para exercer na plenitude a sua vida em comunidade, levando-o a inventar diversas alterna-tivas comunicacionais), jornalismo (que, como ensina Elias Ma-chado, demanda uma formação específica que parta da realidade da prática em todas as suas dimensões, corroborando com o que Paulo Freire define como pedagogia da pergunta) e fronteiras acadêmicas (o que denota o intercâmbio de ideias e pessoas para resultar no fato de que o conhecimento é um bem público que pode ser utilizado por muitos indivíduos e nações).

O livro também tem o mérito de reunir comunicólogos que transitam em áreas de pesquisas aparentemente díspares,

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mas que na realidade convergem para uma bem estruturada tecitura de ideias mediante um relato dotado de um toque hu-manista, principalmente nos seus aspectos históricos e vivências particulares. Correria o risco de cometer injustiças ao destacar textos em detrimento de outros componentes deste trabalho, mas adianto aos leitores para que mergulhem com prazer nas análises minuciosas e caprichadas de temas abordados como mí-dias sociais, discurso jornalístico, identidade, responsabilidade social, construção midiática, modernidade, discurso, semiótica, além de abordagens sobre casos particulares na história da co-municação deste país (não seria melhor do Brasil).

A Universidade Federal do Maranhão não apenas apoia como também incentiva ações como esta, fiel ao seu caráter de ser um ambiente inclusivo, propagador de inovação, pesquisa e extensão, com olhos voltados para o futuro ao mesmo tempo em que valoriza o passado. Estimular é também oportunizar ações concretas que possibilitem cenários propícios para o florescer de descobertas que venham dar visibilidade à nossa produção em todas as áreas.

A base e o objetivo da inteligência coletiva são o reco-nhecimento e o enriquecimento mútuo das pessoas, preconiza Pierre Lèvy, para nos dizer do desapossamento da detenção do saber. Compartilhando seus saberes, os professores e pesquisa-dores revelam ainda o compromisso com o ambiente acadêmico que não esgota em si mesmo, mas que objetiva a evolução e apri-moramento da sociedade na qual estão inseridos.

Se queres ser universal, começa a pintar tua aldeia - pre-gou Tosltoi, um dos mais cultuados escritores russos. Relatando suas experiências a partir desta cidade, cantada de forma poética nos versos de Carlinhos Veloz, “No Tocantins / E os nobres fi-lhos da princesa/ Frutos da mãe natureza/ cheios de beleza”, estes professores e pesquisadores certamente inspirarão outros pelo mundo afora a trilhar caminho semelhante. Parabéns a todas e a todos e prossigam nesta fantástica jornada do ser humano que é a construção do conhecimento.

Natalino Salgado FilhoReitor da Universidade Federal do Maranhão

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APRESENTAÇÃO

A busca pela maturidade acadêmica marca a trajetó-ria do curso de Comunicação Social – Habilitação Jorna-lismo da UFMA Imperatriz, que alcança os cinco anos de fundação em 2011. Os desafios não foram poucos, o curso surgiu em meio às novas políticas do Governo Federal desti-nadas ao ensino superior no país. Em Imperatriz, a iniciativa partiu da sociedade local e das organizações de classe dos jornalistas. Esses segmentos estavam cientes da necessidade de novos horizontes para a profissão. Tratava-se de uma ci-dade em expansão em um cenário de mudanças, avanço eco-nômico e cruzamento de diversas culturas e interesses.

Agregar ensino, pesquisa e extensão envolvendo as mídias locais para renovas as práticas se tornou um hori-zonte, ao mesmo tempo em que se buscou a estruturação de laboratórios e a elaboração de produtos que sedimentassem a relação com a comunidade. Foram impulsionados ainda esforços na pesquisa com olhar local e com perspectivas re-gionais e globais. Investir em um corpo de professores com experiência no mundo do trabalho, capaz de valorizar a pro-dução do conhecimento científico no campo comunicacio-nal e envolver os discentes nos projetos ainda são objetivos em curso. Atualmente o percurso está sedimentado com mais maturidade, metas construídas coletivamente com do-centes, discentes e técnicos.

Esforça-se pela renovação do conhecimento cientí-fico, pois não há prática sem criticidade, ação sem reflexão, caso contrário, não exercitaríamos a característica tão essen-cial ao gênero humano de sermos seres históricos, capazes de refazer rotas e excluir caminhos equivocados. A presença da Universidade em Imperatriz e sua expansão significa a tentativa de preparar profissionais e cidadãos que ousem ir além das lições conhecidas e, embasados no conhecimento e experiências acumulados no Brasil e no mundo, possam construir saídas, empreender novas ações e superar desafios em favor da sociedade, a mantenedora do curso.

A primeira publicação, o livro “Comunicação, Jor-

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nalismo e Fronteiras Acadêmicas”, com artigos dos profes-sores da UFMA Imperatriz do Curso de Jornalismo, orga-nizado pelos docentes Marco Fábio Belo Matos e Marco Antonio Gehlen, concretiza a certeza desse compromisso com a produção científica e as conexões da área específica da formação – o Jornalismo – e a área maior, a Comunica-ção. Ao longo dos capítulos, espelha os matizes acadêmicos e os recortes interdisciplinares, diálogos fundamentais do campo comunicacional.

É sinal do fôlego do curso no âmbito científico e dos professores, que em parceria com estudantes engajados, já obtiveram pesquisas aprovadas em órgãos de financia-mento como a Fundação de Amparo à Pesquisa e o Desen-volvimento Científico e Tecnológico do Maranhão-Fape-ma e o CNPq. Além disso, os projetos de extensão também congregam ações de êxito, a exemplo do projeto Comcul-tura, com recursos aprovados no Ministério da Educação-MEC, e o Cineclube Muiraquitã, com potencial de pro-mover a cultura cinematográfica em Imperatriz-MA.

Portanto, boa leitura do livro a todos os interes-sados em conhecer o Jornalismo, forma de conhecimento sobre o cotidiano tão essencial em um mundo complexo e multifacetado como o nosso, e aos que torceram e se empe-nham em vencer os dilemas e desafios de construir o Curso de Comunicação Social – Habilitação Jornalismo na se-gunda maior cidade do Maranhão, ladeada pelos Estados do Tocantins e Pará. Vida longa as nossas intenções e obje-tivos.

Roseane Arcanjo Pinheiro Coordenadora do Curso de Comunicação Social – habilitação

Jornalismo

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Alexandre Zarate Maciel

O AUTOR

Professor assistente do curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus II, em Imperatriz. Mestre em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília (UnB), graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Atua nos campos do jornalismo literário, livro-reportagem, jornal-laborário, jornalismo impresso e teorias da comunicação. Integrante do grupo de pesquisa cadastrado no CNPq G Mídia. email: [email protected]

Aqui Imperatriz!: perfis de pessoas comuns no Jornal Correio Popular1

¹ Trabalho apresentado no DT 1- Jornalismo do XIII Congresso de Ciências da Comunicação da Região Nordeste, realizado de 15 a 17 de junho de 2011.

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JOIA RARA

A prática do perfil jornalístico é cada vez mais rara nos jornais impressos. Acorrentados às lógicas das pressões do tempo e do espaço e amedrontados com a concorrência da internet e outros meios de comuni-cação, aqueles que produzem o jornal tendem, muitas vezes, a se dedicar mais ao relato dos fatos imediatos. Há pouco espaço para os personagens, a não ser que sejam fontes oficiais, em geral figuras proeminentes. O anô-nimo, a pessoa comum, quando representado nas reportagens, em geral está ligado a catástrofes, infrações, ou é vítima de crimes, sendo apenas em casos ímpares protagonista de destaque.

Este artigo tem a proposta de registrar e entender a experiência da coluna Aqui Imperatriz!, publicada regularmente no jornal Correio Popular, a partir do seu número 33 (9 de abril de 2011). Trata-se de um espaço diário garantido para a presença das histórias de vida do cidadão comum da cidade de Imperatriz, segunda maior do Maranhão, local de circulação do jornal, que chega às bancas de terça a domingo. Quase sem-pre com um texto solto, que utiliza alguns elementos do jornalismo lite-rário ou narrativo, a seção já trouxe histórias, entre outros personagens populares, de uma merendeira, um vendedor de raízes, um cabeleireiro que prefere ser chamado de barbeiro, um amolador de alicates e um ven-dedor de apostilas.

A análise da seção Aqui Imperatriz! concentra-se em 17 perfis de cidadãos comuns apresentados do número 33 ao 50 do jornal (9 de abril a 1 de maio de 2011). Tomando por base conceitos de humanização, per-fil jornalístico, jornalismo popular, suas tendências e formas de prática, foi possível iluminar a importância de um espaço na imprensa diária, no interior do Nordeste, não reservado ao factual ou à fonte oficial e, sim, ao personagem que não está na ordem do dia.

O jornal Correio Popular é descendente de outra publicação, chamada Correio de Imperatriz, que circulou com poucos números em 2010. A sua primeira edição foi publicada em uma terça-feira, no dia 1 de março de 2011. Chamado de Trocando em Miúdos, publicado na parte de baixo da capa, o primeiro editorial classificava o jornal de “bo-nito, atraente, ousado, popular”. E estabelecia uma relação do momento em que a “internet evolui incontidamente” com a chegada da publicação. No segundo parágrafo, justificava que o jornal é bonito e atraente, pois é “metade colorido, dando à notícia as cores que ela tem em todos os seus

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meandros; e a outra metade preta e branca, que é como a comunicação dos fatos deve chegar ao leitor. O preto no branco...”

Interessante perceber que a ideia das cores é ressaltada, pois os dois jornais mais antigos em atividade na cidade, O Progresso (41 anos) e Diá-rio Capital (16 anos), são impressos em preto e branco. No entanto, para justificar a ausência das cores em todas as páginas, o autor associa o preto e o branco à informação veraz, nua e crua, direta. A forma de apresentar e descrever a informação foi exposta como um compromisso: “pesquisada, detalhada, porém enxuta, sem vícios, sem linguiça”.

Quanto ao valor do exemplar, 0,25 centavos (“o troco de um pão, a moeda que sobra de um pacotinho de petas”), o autor do editorial garante que não é objetivo do jornal sustentar-se pela venda em banca. O compro-misso com “todas as classes sociais” que a publicação firma no primeiro editorial é curiosamente expresso: “De Dr. Pacheco ao Chico Padeiro, do Zé do Peixe à Chica Faxineira. Correio Popular, nunca popularesco”. E promete estar em lugares tão diferentes como os semáforos e no gabinete do prefeito, mas, acima de tudo, “nas mãos do cidadão”.

O Correio Popular é tablóide, tem mantido o número de 12 páginas, sendo colorido na capa, contracapa e nas páginas centrais. As manchetes, sempre com letras garrafais, caixa alta, realçadas em branco, na maioria das vezes trazem notícias de crimes ou problemas estruturais, como as enchentes e seus prejuízos. Houve, em algumas edições, uso de fotografia de corpos na capa e até de suicidas. Até o número 34 outro expediente comum era o de sempre trazer a foto de uma celebridade se-minua na capa, relacionada a notícias de fofoca. Esportes, celebridades, jornalismo de serviço e notícias policiais são, portanto, os temas mais comuns em todas as capas, sendo que a partir do surgimento da coluna Aqui Imperatriz! esta nunca deixou de ser mencionada na capa, sempre com a foto da pessoa entrevistada.

Com uma equipe escassa, o jornal apresenta notícias curtas, factuais, muitas delas nacionais, o que indica falta de estrutura maior para coberturas. Mas tem apresentado como diferencial, além da seção Aqui Imperatriz, outra, surgida na edição de número 13, intitulada Qual é a bronca? que, até a edição 50, tinha produzido 25 experiências. O formato básico é a fala na íntegra do leitor com alguma reclamação, em geral em termos de falta de infraestrutura no seu bairro e, abaixo, completando a página 9, uma reportagem que procura aprofundar o contexto do assunto.

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Antes da análise das principais características da coluna Aqui Im-peratriz!, é necessário fazer um retrospecto da opinião dos pesquisadores que apresentaram definições a respeito do jornalismo humanizado, de perfil, tendo o cidadão comum como elemento central e com os pés fin-cados na prática do jornalismo literário, bem como as configurações do jornalismo popular.

HUMANIZAR É PRECISO

Pesquisadores que analisam a prática diária dos jornais de referên-cia ou populares são unânimes em afirmar que são cada vez mais raras as reportagens em que a pessoa comum aparece como protagonista dos fatos. Os perfis jornalísticos são mais escassos ainda e, quando ocorrem, tendem a privilegiar celebridades ou ocupantes de cargos proeminentes da sociedade. Vilas Boas (2003, p. 10-1) lembra da experiência saudosa da revista Realidade em sua fase áurea, entre 1966 e 1968, quando os repór-teres “(...) podiam passar dias inteiros com a pessoa sobre a qual estavam escrevendo, semanas em alguns casos. Era primordial estar no local onde ocorriam cenas dramáticas para captar conversas, gestos, expressões fa-ciais, detalhes do ambiente, etc. (...)”. E acrescenta o seu diagnóstico sobre a prática do jornalismo impresso atual, argumentando: “Hoje, as condi-ções materiais e humanas são desfavoráveis a um jornalismo visceral como daquele tempo. As idéias têm de nos acudir já bastante enxutas e ligeiras. Nem por isso devemos sucumbir” (VILAS BOAS, 2003, p.11).

Vale a pena ressaltar que publicações como as revistas Piauí, Bra-sileiros, Trip e TPM têm produzido perfis jornalísticos de excelência nos últimos anos, representando não só pessoas famosas, mas, principalmente no caso da coluna mensal de pequenas matérias da Piauí, entitulada Es-quinas, histórias de vida de pessoas comuns em geral envolvidas em situ-ações inusitadas, curiosas. Mas no jornalismo impresso diário essa práti-ca é muito mais difícil de ser encontrada. Há, mesmo assim, destaques como a seção Paulistânia, publicada semanalmente no jornal O Estado de São Paulo, com perfis de moradores da capital paulista em destaque. Ou mesmo a experiência na coluna de Mortes do jornal Folha de São Pau-lo, desenvolvida pelo repórter Estêvão Bertoni, com um perfil diário de um falecido, muitas vezes pessoas populares em seus bairros. Por ironia, o anônimo aparece já morto, nesse caso, nas páginas do jornal.

Em Imperatriz os jornais carecem de estrutura e material huma-

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no para simples coberturas diárias. As publicações mais antigas em circu-lação na cidade, O Progresso e Diário Capital, são praticamente reprodu-toras de releases copiados na íntegra. O Correio Popular, embora conte com pouquíssimos repórteres ativos, tem evitado essa prática, mesmo com o costume de reformular várias matérias nacionais publicadas origi-nalmente na internet, o que denuncia sua estrutura deficitária. Portanto, seções como Aqui Imperatriz! e Qual é a bronca? são diferenciais em meio a uma imprensa escrita local pouco autoral e longe de representar os protagonistas comuns do cotidiano da cidade.

Para Vilas Boas, os perfis cumprem o papel importante de gerar empatias:

Empatia é a preocupação com a experiência do outro, a tendência a tentar sentir o que sentiria se estivesse nas mesmas situações e circunstâncias experimentadas pelo personagem. Significa compartilhar as alegrias e tristezas do seu semelhante, imaginar situações do ponto de vista do interlocutor. Acredito que a empatia também facilita o autoconhecimento (de quem escreve e de quem lê). (VI-LAS BOAS, 2003, p. 14).

Opinião compartilhada por Medina (2006, p.74), ao analisar a recepção da experiência de livros reportagens de perfis publicados na série São Paulo de Perfil. A pesquisadora constatou que “pesa para o leitor de uma narrativa o grau de identificação com os anônimos e seu cotidiano. De certa forma, a ação coletiva ganha uma sedução quando quem a pro-tagoniza são pessoas comuns que vivem a luta do dia-a-dia”. Medina de-fende que os jornalistas devem ter como missão “descobrir essa trama dos que não têm voz”, ou, em outros termos, “recriar os falares, a oratura dos que passam ao largo da mídia convencional”.

Ao privilegiar as figuras do comércio informal, muitas vezes en-contradas pelo leitor no seu cotidiano, a coluna Aqui Imperatriz! busca gerar, com certeza, o mencionado processo de identificação com os seus leitores. São sempre histórias de pessoas que superaram dificuldades fi-nanceiras e encontraram uma forma de serem reconhecidas por meio do mundo do trabalho.

Os autores chamam esse processo de humanização. Lima reco-menda essa prática de colocar o ser humano como centro da narrativa:

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Toda boa narrativa do real só se justifica se nela encontra-mos protagonistas e personagens humanos tratados com o devido cuidado, com a extensão necessária e com a luci-dez equilibrada onde nem os endeusamos nem os vilipen-diamos. Queremos antes de tudo descobrir o nosso seme-lhante em sua dimensão humana real, com suas virtudes e fraquezas, grandezas e limitações. Precisamos lançar um olhar de identificação e projeção humana da nossa própria condição nos nossos semelhantes, sejam celebridades ou pessoas do cotidiano. (LIMA, 2009, p.359).

Jornal que se pretende popular, conforme demonstrou em com-promisso editorial assumido em sua capa, o Correio Popular parece ter entendido o recado até certo ponto. Os editores abrem espaço para a prática diária do perfil, sempre reproduzida na primeira página, com fotografias de pessoas comuns. A ideia da seção Aqui Imperatriz! surgiu do próprio acadêmico do curso de Jornalismo da UFMA e funcionário da empresa, Hemerson Pinto. Cabem pesquisas mais aprofundadas para verificar, junto ao público, como tem sido a recepção da coluna, mas o repórter relata que tem recebido elogios pelo seu trabalho provenientes, principalmente, de leitores populares.

Vicchiatti (2005, p.90) é outro que defende a humanização como prática importante para o jornalismo diário. Para ele, a partir de uma aná-lise empírica, “a humanização da informação (uso de cases como ponto de aproximação com a realidade do leitor) e o jornalista no papel de nar-rador (o contador de histórias) buscam melhorar a forma de recepção da notícia”. O curioso é que na pauta televisiva, de grande identificação com os telespectadores populares, os personagens comuns são utilizados cons-tantemente como exemplos para contextualizar reportagens sobre temas diversos, uma prática bem menos ocorrente no jornalismo impresso diá-rio.

No campo do jornalismo popular, Amaral (2006, p. 68) apresen-ta algumas ressalvas com relação ao discurso do personagem comum na imprensa. Ela concorda que, ao conceder lugar “para a fala dos populares, os jornais inovam porque no mercado simbólico do campo jornalístico a manifestação popular tem uma tímida história de inclusão nos jornais im-pressos”. Considerando, portanto, que não se pode “deslegitimar a partici-pação do cidadão como fonte jornalística”, Amaral pondera que, ao tornar os leitores protagonistas de suas matérias, “o jornalismo popular tem de

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tomar cuidado para não forçar a mão e tentar transformar em jornalismo aquilo que não é”.

Na verdade, Amaral está alertando sobre a prática comum nos jor-nais populares de leitores aparecerem com reclamações muito específi-cas, como, por exemplo, o muro do vizinho que foi construído no limite do seu terreno. Qual seria a importância social dessa informação para a coletividade? Essa crítica não cabe à coluna Aqui Imperatriz!, que não está focada em reclamações dos personagens interpretados, mas, sim, em histórias de superação de limites e busca da felicidade. Mas pode ser perti-nente à seção Qual é a bronca?, cujos exemplos presentes diariamente no jornal podem servir de objeto para uma análise valiosa em outro artigo.

Ao recomendar práticas para um bom jornalismo popular, Amaral (2003) destaca como princípios:

O jornalismo, para popularizar-se, não poderá ignorar “o cotidiano do leitor”; e tem de fazer uma ponte entre sua posição de leitor do mundo e o mundo do leitor. O jorna-lismo popular só tem viabilidade se responder a deman-das sociais da população e estiver inserido culturalmente no segmento de leitores a quem se dirige. (AMARAL, 2006, p.130)

Para uma análise posterior das especificidades dos textos publica-dos na seção Aqui Imperatriz! será útil, agora, definir algumas caracterís-ticas básicas do perfil jornalístico. Lima (2009, p.427) classifica-o como um texto que retrata um indivíduo como em uma “ arqueologia psicoló-gica que vai escavando e trazendo à tona seus valores, suas motivações, talvez seus receios, seus lados luminosos e suas facetas sombrias, quem sabe”. Já Vilas Boas (2003, p.13) afirma que, diferente das biografias em li-vro, “os perfis podem localizar alguns momentos da vida da pessoa. É uma narrativa curta tanto na extensão (tamanho do texto), quanto no tempo de validade de algumas informações e interpretações do repórter”.

Dica essencial de Vilas Boas (2003, p. 13), é que, além de seguir os conceitos e técnicas de reportagem conhecidos, bem como os recursos literários, o perfil deve estar atado “ao sentimento de quem participa. A frieza e o distanciamento são totalmente nocivos. Envolver-se significa sentir”. Por isso, o uso da narração em primeira pessoa, recurso caro ao jornalismo literário, não é proibida. Vilas Boas (2003, p.10) lamenta que somente em colunas opinativas se permita o uso dessa técnica atualmente.

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“Creio que é uma maneira utópica e intransigente de pretender que o nar-rador inexista”, opina. E acrescenta que é preciso quebrar a “lógica indus-trial da pirâmide invertida, com seus leads, subleads”, que seriam “inúteis” em perfis jornalísticos.

Outra recomendação para o perfil humanizado é que este não pre-cisa ser factual. Deve, sim, segundo Vilas Boas (2003, p.11), trazer à tona “o evento da entrevista, a vida do personagem, sua trajetória, seus altos e baixos, suas realizações”. O autor, destilando a sua preocupação com a ausência de textos instigantes na mídia impressa, comenta:

Acredito que os leitores sempre encontrarão tempo para narrativas que identificam seus destinos com o destino de outras pessoas, como quando dizem “putz, isso pode acontecer comigo”. O problema é que simplesmente desa-pareceram as reportagens hipnotizantes, aquelas que nos fazem esquecer o pão dentro da torradeira no café da ma-nhã, perder o ônibus ou dilatar nossa ida ao banheiro du-rante o horário de trabalho. (VILAS BOAS, 2003, p.12)

Como veremos, a seguir, na análise específica de 17 exemplos da coluna Aqui Imperatriz! publicados no jornal Correio Popular, todos os elementos citados são comuns no processo de apuração e transformação dos textos finais. Nenhum dos personagens interpretados pelo repórter está envolvido em uma situação factual; quase sempre o autor tenta elabo-rar leads menos formais; a voz dos protagonistas é respeitada em sua fala original, inclusive com regionalismos; os recursos da narração em primei-ra pessoa e até mesmo o relato da interação do jornalista com a fonte em pleno processo de captação também são comuns. Portanto, o autor está longe de se colocar em uma posição fria e distante com relação às suas fon-tes, contribuindo para um relato humanizado de suas experiências, ainda que em textos curtos.

TIOZINH@S FIGURAS

“Mais uma novidade no Correio Popular. Uma seção que tem a cara da nossa cidade. Hoje, os milagres do seu Chico raizeiro”. O Aqui Imperatriz! foi apresentado dessa forma aos leitores na capa do número 33 (9/04/2011). Na foto, o personagem observando as raízes medicinais em sua banquinha. Sempre publicada na parte de baixo da página cinco, a

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seção é simbolizada por uma logomarca padrão, com o detalhe de foto aérea da cidade e o seu nome. O perfil é publicado em um boxe, sempre com a foto do personagem comum abaixo de um pequeno título. No caso do pioneiro, “O doutor do Mercadinho”. Todos perfis analisados foram assinados pelo repórter Hemerson Pinto.

Do número 34 ao 50 foram apresentados outros 16 perfis, com os seguintes personagens, na ordem: comerciante que trabalha na porta do estádio de futebol; casal que mantém um cavalinho para tirar foto-grafias com crianças; um cabeleireiro que prefere ser chamado de bar-beiro; uma costureira; um vendedor de apostilas para concursos; um amolador de objetos; uma mulher que limpa túmulos de cemitérios; um homem que conserta panelas; um vendedor de redes; uma comer-ciante de milho cozido; um dono de banca de revistas; um homem que trabalha com a venda de cocos; uma merendeira; uma comerciante de pipoca e algodão doce; um picolezeiro e, no número 50, um vendedor ambulante de salgados.

Pelo mosaico de personagens, percebe-se uma característica co-mum: a maioria é composta por trabalhadores, adultos, muitas vezes idosos, conhecidos da população por exercerem atividades comerciais ou de serviços, em geral informais. O repórter utiliza uma série de recur-sos apontados pelos autores como viáveis para elaboração de um perfil jornalístico, entre os quais se destacam a quebra da estrutura formal do lead; o resgate da fala popular; a interação com os personagens; o resga-te da memória e da trajetória de vida particular e, em geral, de superação de obstáculos e o uso da primeira pessoa em alguns casos.

A forma como os personagens são apresentados costuma seguir um padrão de centrar a fala do personagem logo no lead. Muitas ve-zes, o repórter conta para o leitor como se deu a interação com a fonte, utilizando a primeira pessoa. No perfil de Chico raizeiro (número 33, 9/04/2011) que trata de Francisco Joaquim de Sousa, 76 anos e 26 tra-balhando com o comércio de “garrafadas feitas com raízes e plantas”, o texto começa dessa forma: “- Fala, menino! É assim que o pernambu-cano Francisco Joaquim de Sousa, o Chico raizeiro, nos recebe em sua banca no Mercadinho”.

Apresentando o personagem Antônio de Conceição Pereira, 66 anos que há 53 corta cabelos, em perfil com o título “O homem que corta cabelos”, o repórter lembra de uma experiência sua como recurso para abrir o texto:

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Um dia presenciei uma brincadeira do seu Antônio com um cliente:-Se dormir na cadeira eu cobro, viu?Ele é assim mesmo. Brinca, conta histórias, fala de fute-bol, política e dos assuntos que acontecem no dia a dia da nossa cidade. Para se manter informado, o velho e com-panheiro rádio fica sempre ligado, dividindo com a TV a atenção do dono. (CORREIO POPULAR, número 36, 13/04/2011)

Outro exemplo de lead no qual a voz do personagem é o abre-alas para a sua apresentação, já demonstrando características de sua linguagem própria, é “Amola-se alicate” (número 39, 16/04/2011):

“‘Cheguei aqui em 1958, num pau-de-arara cheio de ga-linha, porco e saco de tudo quanto é coisa’. Ele fala baixo, mas gosta de conversar. Seu Horácio Bezerra tem 83 anos e é mais um cearense que veio para Imperatriz e nunca mais saiu. Em dois casamentos somou 18 filhos (...)”.

Esse texto também demonstra uma característica comum a quase todos os personagens escolhidos: o relato de uma trajetória de vida cheia de percalços que só é amenizada com a “estabilização” atual, em alguma atividade de trabalho.

Publicado no número 34, o perfil “Torcedor fanático, mas do lado de fora” é um dos mais criativos na série analisada. O repórter utiliza a técnica da vivência, ou seja, a imersão no ambiente da reportagem, des-crevendo o que acontece em torno do personagem, o que gera um resul-tado bastante consistente. Esses elementos já estão presentes na descrição do ambiente do lado de fora de um estádio, no lead:

Portões abertos para o jogo Imperatriz x Sampaio Correia. Na frente do estádio Frei Epifânio de Abadia, a charanga aparece afinando os tambores e a outra parte da torcida ainda encara uma fila gigante. Do outro lado da rua, na Praça Mané Garrincha, seu Antonio Moraes da Silva, 66 anos de idade, sintoniza o radinho de pilha para acompa-nhar as emoções do clássico prestes a começar. Ele é um dos vendedores de lanche que se ajeitam na extensão da praça Mané Garrincha em dias de jogo colorado. Quem

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acha que ele se incomoda está enganado. (CORREIO POPULAR, número 34, 10 e 11/04/2011)

Também é bastante curioso, no texto mencionado, o trecho em que a entrevista é interrompida porque a fonte deseja comemorar um gol que ouviu acontecer lá dentro do estádio. Essa parte exemplifica bem como o a aproximação do repórter com a fonte, deixando-a manifestar-se em sua plenitude, ajuda muito a traçar o perfil psicológico de alguém. Um texto convencional provavelmente não relataria essa circunstância do processo de apuração:

Nesse instante a conversa é interrompida. O rádio anun-cia e a torcida vibra. É gol do Imperatriz! Seu Antônio não sabe se comemora ou se continua o bate-papo. -Ah, comemora, seu Antônio!Ele abaixa e pega dois foguetes, dentro de uma sacola, na gaveta do seu carrinho. Acende e dispara. Nesse momento a fila do lado de fora ainda era grande. O gol foi marcado logo no início da partida. (CORREIO POPULAR, nú-mero 34, 10 e 11/04/2011)

No texto “Hospital das panelas”, a fonte apareceu na foto da capa em meio a um monte de utensílios de cozinha e com uma máscara de ar. Impossível não chamar a atenção. Mais uma vez é relatada a interação com o personagem ajudando a deixá-lo mais solto para destilar o fluxo de sua memória. Aqui também está presente o resgate da linguagem típica e o relato da trajetória de vida difícil, o que parece ser um dos principais critérios de escolha:

“Antes de tu começar a escrever, tu não quer falar do sofri-mento que eu já passei não?” Pode falar, Chico. “Já fui pescador, quebrador de coco, juquireiro, vaqueiro, cavador de poço, oleiro, carpinteiro, feirante e ferreiro. Só não fazia era ganhar dinheiro”. Feirante ele ainda é. Está de volta à feira da Nova Impera-triz (...). Francisco Gomes tem 63 anos e há 24 mora em Imperatriz. (...) Hoje tem casa, família, barraca na feira, mas lembra muito bem do tempo em que era lucro quan-

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do conseguia fazer duas refeições por dia. “Era uma só, só a janta. Quando almoçava, já era lucro”. Pois não é que o homem virou doutor?” (número 41, CORREIO POPU-LAR, 19/04/2011)

Para humanizar o personagem com humor, o repórter refere-se a ele como “Dr. Chico” pela sua habilidade de consertar panelas. E segue a brincadeira em outros momentos do texto. “Deu certo e precisou montar uma mesinha só para ‘operá-las’”, diz sobre a sua prática cotidiana. E em outro trecho divertido: “Fura daqui, aperta dali, corta do outro lado e...Pronto! De uma panela de pressão consegue fazer até três frigideiras”. Na fala final do personagem entende-se quem criou a referência desdobrada de forma criativa pelo repórter ao longo do texto: “’Se for só de primeiros socorros eu faço na feira mesmo. Agora, se for mais grave, aí é preciso internar’”.

Em cidades do interior é comum ver a figura do trabalhador in-formal que utiliza um pônei para chamar atenção das crianças e fazer fo-tografias com elas montadas. O raro é ver esse tipo de personagem nos jornais, como no texto “Quando o cavalinho de fotografar vira uma gati-nha”. Mais objetivo, o repórter apresenta a história de Raimundo Santos e Eunice Marques, que percorrem toda a cidade com a pequena Gatinha, fêmea da raça pônei que eles possuem há cinco anos. A novidade é que a tecnologia está abalando o meio de vida:

-Ela é o nosso xodó. Se não fosse esse cavalinho a situação estava feia pra gente, garante dona Eunice. Ela comenta que após a chegada da câmera digital e dos celulares com a opção foto, a clientela diminuiu e a renda da família pegou carona. (CORREIO POPULAR, nú-mero 35, 12/04/2011)

Escolher uma fonte a partir do inusitado do seu cotidiano de tra-balho, como os exemplos acima, é uma ótima opção para chamar aten-ção do leitor em um texto de perfil. Nesse sentido, um dos personagens mais curiosos apresentados pela coluna Aqui Imperatriz! foi “A mulher do cemitério” (número 40, 17 e 18/04/2011). Já no lead, com o padrão comum da fala da personagem, uma frase curiosa: “’De tanto trabalhar aqui, já ganhei até o meu lugarzinho’”. O texto segue apresentando Rai-munda de Araújo Pereira, que trabalha como zeladora de túmulos. Chega

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a estimar o seu lucro: “Hoje ela cuida de quase trinta túmulos. O valor por cada (sic) um depende do tamanho ou da ‘bondade’ de quem vai pagar. Ela calcula que varia entre R$ 20 e R$ 50 reais”. E, no final, mais um toque irônico: “Medo de alma dona Raimunda não tem mais. Dos vivos, sim...dos vândalos que às vezes se escondem por lá”.

Relatar trajetórias de vida difíceis com finais aparentemente fe-lizes tem o forte poder de gerar o que os autores definem como empatia, ou identificação direta com o leitor, ou, ainda, o efeito da já menciona-da lembrança: “putz, poderia ter acontecido comigo”. Todos elementos potentes, portanto, para justificar o jornalismo de perfil. Nesse sentido, o texto “A dona das agulhas” (número 37, 14/04/2011) é um dos mais representativos. Apesar de ser mais formal, o texto comove pela história de Ducília Pereira Xavier, 61 anos, “e muita garra”. Já no lead, o elemento de identificação: “Ela criou nove filhos após ser deixada pelo marido. Seu equipamento de trabalho tem mais de 20 anos de uso. Ela tem 25 anos de profissão, no mesmo local”.

Hoje vendendo água de coco, o personagem do texto “Geral-do do coco” (número 13, 27/04/2011) “lembra que trabalhou muito na roça e que já foi mensageiro de vários hotéis da cidade”. Deste últi-mo emprego, tem boas lembranças: “Já carreguei malas para a Fafá de Belém, Sula Miranda e Roberto Carlos”. Em uma cidade marcada pelo comércio, notadamente o informal, como Imperatriz, o poder de iden-tificação desse tipo de trajetória é marcante. E o que dizer das “Apos-tilas do Careca”, tipo comum em várias cidades? João Batista, 51 anos, conforme diz o texto, fica no mesmo canto há 19 anos, desde quando “começou a vender cigarros e preencher formulários para CPF”, já que muitos vinham aos Correios e não sabiam como resolver essa burocra-cia. Nas lembranças de Careca, um ponto de identificação direta com as impressões de muitos leitores. Imperatriz tem a sua população compos-ta, em mais da metade, por migrantes de outras cidades do Maranhão e mesmo outros estados:

(...) de Bacabal, há 34 anos morando em Imperatriz. Sabe o que mais lhe chamou atenção quando chegou aqui? “Foi o rio Tocantins. Eu era do interior, lá só tinha uns brejinhos. Quando cheguei vi a imensidão de água dessas e fiquei abismado”, lembra o Careca. (CORREIO PO-PULAR, número 38, 15/04/2011)

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Nesse mesmo gênero de texto que mostra a evolução da traje-tória pessoal, pode ser classificado “Redes e bagagens”. Em certo trecho do perfil, José Lupercínio Alves da Costa, artesão de 48 anos, que hoje vende redes, relata um diálogo que teve com o seu empregador quando foi procurar emprego em um frigorífico. É grande a chance de algum leitor já ter passado dificuldades para conseguir emprego e a história desperta interesse também por isso.

“Eu estava na porta pedindo emprego. O dono chegou e perguntou o que eu sabia fazer, fiquei embaraçado”. Lu-percínio conta que antes mesmo que respondesse, o ho-mem mesmo retrucou: “Nada! Você não sabe fazer nada, não é?” A resposta de José foi rápida: “mas se oferecer uma chance eu aprendo”. (CORREIO POPULAR, nú-mero 47, 20/04/2011)

Artifício comum nos perfis do Aqui Imperatriz! é relatar a rotina do entrevistado para gerar identificação, como ainda no caso da costurei-ra: “Muito disposta, Ducília começa a trabalhar na costura todas as noites por volta das 7 horas e vai madrugada adentro. Às vezes só termina às seis da manhã”. Esse tipo de construção também é utilizado no texto “O Zé do lanche”, logo no início: “O dia para o José da Conceição começa às 3h da manhã, quando acorda para a etapa final de preparação dos salgados que vende. Sai de casa às 6 h da manhã e por volta das 6:30 já está vendendo os primeiros lanches do dia. Isso se repete há 20 anos”. E, no final, o relato da continuidade do ciclo de trabalho que parece incessante:

Depois das 10 da manhã ele já vendeu tudo. Pega a bicicle-ta e vai ao centro comprar material para fazer os lanches do dia seguinte. A tarde prepara e deixa “no ponto”, para 3h da manhã começar outra batalha. Ele atende em média 160 pessoas em menos de quatro horas. (CORREIO PO-PULAR, número 50, 1 e 2/05/2011)

Rotina produtiva e mudança de trajetória de trabalho são ele-mentos, ainda, do texto “Olha o picolé” (número 49, 30/04/2011), que conta o cotidiano de Damião Alves Medeiros, 68 anos, há 49 morando em Imperatriz. “De rua em rua empurrando o seu carrinho de picolés e sorvetes, durante o dia. Sai da casa às 6 da manhã, vai para a sorveteria,

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apanha os produtos e começa mais uma batalha”. Ou ainda: “Só costu-ma retornar depois das 6 da tarde. Faz isso há 18 anos”. No passado? “Foi carpinteiro ‘e respeitado, viu?’. Deixou a profissão porque estava cansado e queria vender picolé”.

Resgatar elementos de memória histórica da cidade pelo recurso das lembranças dos próprios personagens é uma forma de gerar empatia com o leitor mais velho e informar os mais jovens sobre aspectos de Imperatriz que talvez eles não conheçam. Para esse efeito, o perfil de comerciantes famosos, de longa data, cumpre bem as funções. Francis-co Melo Filho, que é retratado no texto “O Chico da Banca”, é uma das personalidades mais populares da cidade e o texto reúne trajetória pessoal, memória saudosa e histórica, além de interação com o repórter, como no trecho abaixo:

“Cada um é feliz do seu jeito”. E o jeito do Chico foi ven-dendo jornal na rua, trocando e comprando revistas e li-vros na porta do antigo Cine Marabá. Tudo isso até os seus 14 anos. Se não teve tempo para brincar? Chico jo-gou bola, soltou pipa, brincou de peteca, leu muitos gibis (hoje são revistas em quadrinhos) e aproveitou o auge do cinema em Imperatriz.- Foi um tempo bom, Chico?“Cada época é boa para quem vive nela. Hoje, por exem-plo, tem a internet que é a diversão de muitos jovens. No meu tempo a gente era feliz com cinema, com gibis, com os amigos”. (CORREIO POPULAR, número 45, 25/04/2011)

Já o perfil de “Maria do milho” começa com um misto de interação com a fonte e conversa com o leitor:

Maria de Jesus Araújo Silva.“Me chame só de Maria, seu menino!”Maria é mais uma personagem imperatrizense que às ve-zes passa despercebida. Por ser uma simples vendedora de milho, será?Simples, que nada!Maria tem a honra de ser a primeira vendedora de milho da avenida Beira Rio. Só se sente mal quando vê gente pas-sando de um lado para o outro sem cumprimentá-la, pelo

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menos com um “boa noite”. (CORREIO POPULAR, número 43, 21/04/2011).

Outras frases de Maria apelam para a memória histórica, como no trecho: “Começou a trabalhar ‘ainda mocinha’ na praça Mané Garrincha, ‘no tempo daquela primeira estátua do Garrincha em pé, lembra?’”. Ou quando se recorda que teve um ponto em frente ao estádio Frei Epifânio, “no tempo daquele jogador pequenininho, o Batoré”. A todo momento, esses diálogos provocam respostas do imaginário do leitor que pode, ou não, se lembrar das referências locais mencionadas.

Em “Pipoca ou algodão doce?” (número 48, 29/04/2011), perfil do comerciante Raimundo Nonato, o curioso é a mudança da forma de trabalho, como evidenciado no trecho: “Em 1982 começou a fabricar e a vender algodão doce. ‘Naquele tempo dava trabalho, as máquinas eram artesanais. Hoje é mais tranquilo, tem máquina industrial, é bem rápido”.

Em poucos dos perfis analisados, particularmente em “A meren-deira”, o repórter utilizou o recurso que pode ser mais comum em perfis nos quais são entrevistadas outras pessoas que fazem parte do universo do personagem, legitimando a sua descrição. No lead do texto já consta a fala do diretor do estabelecimento de ensino onde Francisca Rodrigues de Sousa, 61 anos, há 23 “serve lanche às criançadas das escolas”: “Ela é alegre na escola, é corajosa, uma pessoa que nunca desiste. Até o suco ela prepara separadamente para mim, eu não tomo com açúcar”.

Nesse texto, ainda há um forte elemento de identificação com a trajetória pessoal de Francisca, que nasceu em Juazeiro, no Ceará. Ela é “devota de Padre Cícero Romão e se orgulha de já ter trabalhado na roça. Fica triste cada vez que lembra do filho, que ela perdeu para a violência de Imperatriz”. No fim, outra vez o recurso comum do diálogo com o repór-ter: “Ainda emocionada, e cada vez mais tímida diante da câmera fotográ-fica, Francisca faz um apelo tão humilde quanto ela: ‘Tá bom, seu moço. Eu não gosto de sair em foto, nem em aniversário’”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ANÔNIMOS EM FOCO

Fica patente, com a análise dos perfis publicados diariamente no jornal Correio Popular, que esse tipo de recurso, além de gerar a men-cionada empatia com o leitor e detonar o consequente processo de iden-tificação - já que lida com o conceito primordial da proximidade do seu

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universo - também pode ser uma excelente forma de atrair mais público para um jornal, seja de referência ou popular.

Em outras reportagens do periódico, a pessoa comum muitas ve-zes aparece na condição de desafiadora das leis vigentes, vítima de desas-tres ou crimes, desrespeitada no seu direito de não ter o seu corpo ensan-guentado exibido em “praça pública”, na capa de um jornal. No entanto, na coluna Aqui Imperatriz!, sem dúvida, ela é interpretada na condição de respeito. Não precisa ter se envolvido em nenhum acontecimento factual, ocupar um cargo público proeminente ou ter alterado o estado “normal” das coisas. É notícia, sim, pois tem uma história curiosa, um trabalho inu-sitado, uma trajetória de superação de limites, evoca o passado da cidade, ou representa parcelas significativas de uma população de migrantes que vieram procurar oportunidades de sobrevivência e foram acolhidos por Imperatriz.

Cabe recomendar, por fim, que, além do destaque diário na capa - o que já é bastante salutar e inusitado na imprensa escrita - dessa pessoa, antes anônima, o espaço para o relato de sua vida apareça com mais desta-que na página 5. Se a seção Aqui Imperatriz! ao que parece, tem público leitor e gera interesse estratégico comercial na concepção dos donos do jornal, por que não permitir que a coluna ocupe pelo menos meia página, privilegiando o espaço maior para o texto? O uso mais ousado dos recur-sos que aparecem ainda tímidos em muitos textos, como a interação do repórter e da fonte e a descrição de ambiente mais vívida, também seria bem vindo.

Possíveis desdobramentos desse estudo da coluna Aqui Impe-ratriz! seriam a recepção do público ou entrevistas qualitativas com os próprios personagens dos perfis para perceber como eles se sentiram in-terpretados pelo jornal. E, mesmo, a rotina produtiva de sua elaboração, acompanhada de forma etnográfica. Valem, ainda, outros artigos com análises de discurso mais apuradas que captem outros elementos textuais da coluna.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Márcia Frans. Jornalismo popular. São Paulo: Contexto, 2006. CORREIO POPULAR. Edições do número 33 ao 50, coluna “Aqui Impera-triz!”LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: livro-reportagem como extensão do jornalismo. São Paulo: editora Manole. 4 edição, 2009.

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MEDINA, Cremilda. O signo da relação: comunicação e pedagogia dos afetos. São Paulo: Paulus, 2006.VICCHIATTTI, Carlos Aberto. Jornalismo: comunicação, literatura e com-promisso social. São Paulo: Paulus, 2005. VILAS BOAS, Sérgio. Perfis e como escrevê-los. São Paulo: Summus Edito-rial, 2003.

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Denise Cristina Ayres Gomes

A AUTORA

Denise Cristina Ayres Gomes, professora e pesquisadora da Uni-versidade Federal do Maranhão (UFMA); mestre em Ciências da Comunicação pela Unisinos (2007), especialista em Midiologia e Cultura na Sociedade Contemporânea pela Universidade Fede-ral do Pará – UFPA (2000) e Jornalista.

O normal e o patológico: a institucionalização das fontes

no discurso jornalístico sobre a reforma psiquiátrica

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O jornal é um espaço discursivo no qual os campos sociais lu-tam pelo poder simbólico, ou seja, pela imposição de seu modo de in-terpretar a realidade. Através de representantes, as fontes, os discursos dos campos se tornam públicos e constroem a realidade. Este estudo identifica as fontes e analisa sua representatividade no discurso do campo jornalístico. O corpus é constituído por 19 textos jornalísti-cos referentes à reforma psiquiátrica, em que se verificou a dicotomia entre fontes institucionais, representadas pelo campo da medicina e, de outro lado, as fontes não institucionais, constituídas pelos pacien-tes psiquiátricos. Em meio à polêmica criada pelos campos sociais, o legislativo estadual aprovou a lei que instituiu um novo modelo de assistência. Até então, os pacientes psiquiátricos ficavam asilados em hospitais especializados como o Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), fundado em 1884 e símbolo de confinamento e ostracismo a que os doentes mentais eram submetidos no Rio Grande do Sul.

Com a aprovação da lei da reforma psiquiátrica, em 1992, o estado gaúcho foi palco de inúmeros embates entre campos sociais que utilizaram a mídia para dar visibilidade aos seus discursos sobre a reforma psiquiátrica. O jornal Zero Hora (ZH), como exemplar da grande imprensa, constituiu-se em um locus de tensão entre os vários discursos.

Nesse contexto, a escolha das fontes, parte do processo de pro-dução da notícia, foi crucial para tornar público o discurso de certos campos sociais como o científico, no qual figuraram representantes da medicina e que também faziam parte do poder político constituído. Por outro lado, segmentos não organizados tiveram dificuldade de as-cender à condição de fonte. Dessa forma, ZH desempenhou um papel importante na condenação do modelo vigente e na proposição de uma nova política de saúde mental, ao eleger o discurso dos campos sociais dominantes e calar as fontes que tecessem críticas ou se contrapuses-sem ao novo modelo.

O estudo analisou 19 matérias jornalísticas referentes à refor-ma psiquiátrica no HPSP em 1992 com o objetivo de identificar as fontes, dividindo-as em institucionais, quando se referem a entidades e movimentos organizados; e não institucionais, referindo-se a fontes sem representatividade social. A partir da análise, pôde-se constatar dois polos: as fontes representativas da área médica e, de outro lado, a dos pacientes psiquiátricos.

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O PODER DE SE IMPOR: A VISIBILIDADE DOS CAMPOS SOCIAIS

Os campos sociais são espaços onde forças lutam para se impor, instituir e legitimar práticas e visão de mundo, ou seja, uma forma de in-terpretar a realidade. Os campos sociais advêm dos processos de divisão do trabalho que se institucionalizaram e se constituem em estruturas que lutam pelo poder. Através de organizações, tais campos disputam senti-dos, isto é, desejam legitimar o modo próprio de ver o mundo e, portanto, a soberania do discurso.

Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações cons-tantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço - que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. Cada um, no interior desse universo, empenha em sua concor-rência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e, em conseqüência, suas es-tratégias (BOURDIEU, 1997, p. 57).

Ainda que os campos sociais desejem tornar público e impor seu discurso, paradoxalmente, este nem sempre é acessível. Como afirmou Foucault (2004), certas zonas são “altamente proibidas”, ou seja, herméti-cas, esotéricas, pertencentes a um grupo restrito de iniciados que, através do discurso, do saber, resguardam, mantêm ou ampliam o poder. O dis-curso também é um lugar onde o poder e o saber se articulam. Aquele que tem a palavra está em um contexto social e investido de legitimidade para enunciar e, consequentemente, exercer poder.

A medicina é um exemplo de instituição que, através do discur-so esotérico, hermético e do fazer científico, procura manter o status da profissão e se reafirma perante outras atividades que também disputam espaço na sociedade e pretendem se legitimar. Disso decorre um tensio-namento entre os diversos campos sociais mediados pelo discurso, numa relação dinâmica e descentralizada. E, mesmo diante de um campo que adquiriu, ao longo do tempo, a legitimidade para lidar com a doença e possui certo prestígio social, ainda assim, a disputa com outras instâncias sociais continua a existir.

Assim, cabe ao campo jornalístico a tarefa de mediar e eleger os discursos representativos dos campos sociais. Ao dar visibilidade a setores

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da sociedade, o discurso jornalístico lhes confere legitimidade do poder de enunciar a verdade.

O PODER DE MEDIAR: O CAMPO JORNALÍSTICO

O campo jornalístico articula e processa os discursos dos de-mais campos sociais para então produzir sentidos. Como prática social, o jornalismo capta, processa e divulga os acontecimentos dotando-lhes de legitimidade. É uma instituição constituída de valores próprios que mediam os demais campos sociais e tem a prerrogativa de operar, através do discurso, a representação e até as tarefas destes. Não consiste em ser apenas instância transmissora de significados, mas produtora de discursos simbólicos e dotados de um estatuto próprio.

O campo jornalístico mobiliza a sociedade em torno de valores comuns, contrariando a inclinação fragmentadora da sociedade contem-porânea e a consequente autonomização dos vários campos. Esse tensio-namento é mediado pelo discurso que busca convencer, constituindo-se na função pragmática do campo jornalístico, ou seja, atuar sobre os cam-pos sociais ao criar um efeito de realidade.

Através de vários mecanismos, o campo jornalístico tem o po-der de definir os próprios interlocutores na construção da realidade. Para isso, agenda os assuntos a serem tematizados na sociedade, hierarquiza os acontecimentos ou ainda elege as fontes que possibilitam a emergência de um determinado discurso.

Os campos sociais exercem influência sobre o campo jornalístico na tentativa de impor suas práticas, seus valores e legitimar seu discurso. Através das fontes oficiais, detêm o “monopólio da informação legítima”, no dizer de Bourdieu (1997, p. 103 e 104). Como explica o autor, as au-toridades tentam manipular as informações

e a imprensa, por seu lado, manipular os detentores da informação para tentar obtê-la e assegurar para si sua ex-clusividade. Sem esquecer o poder simbólico excepcional conferido às grandes autoridades do Estado pela capaci-dade de definir, por suas ações, suas decisões e suas inter-venções no campo jornalístico (entrevistas, entrevistas coletivas, etc), a ordem do dia e a hierarquia dos aconteci-mentos que se impõem aos jornais.

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O poder da informação desempenha um papel importante a ponto de configurar a realidade, uma vez que o campo jornalístico se inter-relaciona e se impõe sobre os demais campos sociais exercendo in-fluências que reformatam a sociedade e o próprio campo em questão.

Segundo Bourdieu (1997), o campo jornalístico originou-se no século XIX, a partir da dicotomia entre os jornais sensacionalistas e aque-les considerados analíticos e que se propunham a ser objetivos. Mas foi no século seguinte que essa instância se tornou refém das regras do mer-cado e dependente da audiência e dos anunciantes. Tal lógica vai interferir diretamente no fazer jornalístico, buscando a novidade e o “furo”, num frenético empenho pela renovação e numa luta desenfreada contra o fator tempo.

O texto jornalístico possui uma materialidade discursiva que ex-pressa sentidos diversos. As palavras possuem intencionalidades e a ma-neira como são utilizadas pode revelar, omitir informações, conduzir o leitor a determinadas conclusões, ou simplesmente silenciar. O sentido do texto não está dado, mas é construído pelas enunciações, através de estratégias simbólico-discursivas.

O discurso jornalístico constrói modelos de compreensão da rea-lidade e, por isso, é ideológico e intervém de maneira simbólica no social. Ideologia entendida aqui como um conjunto de ideias e conceitos que permeia os valores sociais, atua no discurso e no comportamento dos in-divíduos, ou seja, é um mecanismo de produção de sentidos.

O discurso jornalístico é também um dispositivo de poder que se articula a uma rede de instituições e circunscreve-se em um campo no qual as palavras operam e abrem-se a construções imaginárias, a relações sociais, produz significados e sujeitos e também possibilita a disciplina e o controle. As formas como esse poder é exercido através dos tempos va-riam conforme os interesses dos grupos dominantes e as condições sócio-históricas, porém, cada vez mais, tendem a tornarem-se formas de contro-le tão persuasivas que passam a ser introjetadas e “naturalizadas”.

Esse processo de “naturalização” pode ser entendido a partir da no-ção de poder simbólico (BOURDIEU, 1998). O jornal exibe um recor-te da realidade, publicando a notícia de acordo sob um ponto de vista e como se este se constituísse no retrato real dos fatos, portanto, a verdade. Afinal, as produções simbólicas funcionam como instrumentos de domi-nação e demarcação e envolvem relações de poder.

As tensões entre os campos sociais são enquadradas pelo discurso

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jornalístico que trata as informações e as divulga. Ao jornalista é conferi-da a autoridade de selecionar e definir o que é notícia, deixando de lado uma infinidade de informações às quais o público, provavelmente, não teria acesso. Entre o fato e a notícia existe uma série de mediações que vão desde os critérios editoriais, a definição das fontes ou o destaque dado à matéria.

A luta que é travada no interior do campo do jornalismo gira em torno do ato de nomear, pois, nele, se encontra o poder de incluir ou de excluir, de qualificar ou desqua-lificar, de legitimar ou não, de dar voz, publicizar e tor-nar público. Este poder se concentra em quem escolhe a manchete, a foto, a notícia de primeira página, o espaço ocupado, o texto assinado ou não. É esta a luta que os jornalistas travam no interior do campo do jornalismo em suas concretas e históricas relações de trabalho (BER-GER, 2003, p. 22).

O jornalismo é um instrumento de objetivação da realidade, pois transforma a ocorrência em relato, a priori, confiável e que possui a pre-tensão de buscar a universalidade e formar consensos. E é justamente o princípio da transparência que lhe confere credibilidade.

O PODER DE ENUNCIAR: AS FONTES NO DISCURSO JORNALÍSTICO

As fontes são parte do processo de produção da notícia. Elas se caracterizam por repassar informações ao jornalista ou mesmo podem ser apenas observadas. Embora qualquer pessoa tenha potencial para se tor-nar fonte, a mídia estabelece uma rede de fontes diretamente relacionadas aos setores político, econômico, social ou cultural; são as chamadas fontes institucionais. Portanto, setores organizados da sociedade tendem a ser procurados rotineiramente por jornalistas para fornecer informações. As-sim, fontes podem ser definidas como

as pessoas que o jornalista observa ou entrevista (...) e as que fornecem apenas informações de base ou as ocasiões para uma notícia (...). A característica mais saliente das fontes é que elas fornecem informações enquanto membros ou representantes de grupos (organizados ou não) de interesse ou de outros seto-res da sociedade. (GANS, 1979 apud WOLF, 2005, p. 234)

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O indivíduo tomado isoladamente ou sem representatividade so-cial enfrenta maiores dificuldades para se tornar fonte. Normalmente ele é procurado apenas quando está envolvido ou testemunha algum fato; é a chamada fonte não institucional.

A luta pela visibilidade no campo jornalístico decorre, em termos noticiosos, de fatores que vão crivar as fontes aptas a fornecer informação ou promover a notícia e outros setores sociais que dificilmente se tornam fonte.

Além do barulhento processo da produção jornalística (linha editorial, interesses políticos e econômicos, cons-trangimentos profissionais, pressões do deadline), é pre-ciso perceber que as fontes e os leitores utilizam-se de estratégias para ter sua fala publicada (desde consagrar-se como especialistas, como auto-intitular-se vítima em alguma situação, até vestir-se como as páginas do jornal para chamar a atenção e redigir as cartas de acordo com as regras pré-estabelecidas pela publicação. Ou seja, há uma disputa pelo poder da fala, embora a posição social e simbólica do jornal como um todo na maioria das ve-zes garanta sua hegemonia na hora de falar (AMARAL, 2004, p. 114 e 115).

A busca pela imparcialidade do texto jornalístico, por exemplo, é conferida, em grande parte, pela pluralidade de fontes que o compõem e lhe dão credibilidade. No entanto, esse procedimento não garante a re-presentatividade dos vários segmentos sociais e seus pontos de vista. A im-prensa exerce um controle sobre as fontes e tende a favorecer os interesses da empresa jornalística e de seus associados.

No jornalismo contemporâneo, ideais como a objetividade, vera-cidade e neutralidade são buscados de modo a produzir um efeito de real, uma vez que a credibilidade é seu maior valor.

Para obter informações, o jornalista recorre às fontes e, como par-te de um processo, acontecem várias mediações entre a ocorrência até a notícia, porém nem todas as fontes são relevantes e o acesso a elas ocorre de maneira diferenciada. As fontes mais recorrentemente utilizadas pela empresa jornalística refletem a estrutura social e de poder dominantes.

(...). Enquanto temos agentes sociais que têm acesso pra-ticamente imediato aos meios de comunicação (seja para

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promover informações, ou para conseguir que sejam publicadas as devidas correções), outros agentes sociais quase não conseguem entrar no circuito da informação. (ALSINA, 2009, p. 163)

O autor afirma ainda que existe uma institucionalização de fontes, ou seja, agentes sociais se tornam informantes rotineiros e têm acesso fa-cilitado aos meios de comunicação, por isso, seus discursos são mais vei-culados.

O jornalista seleciona as fontes segundo diversos critérios, desde a acessibilidade, o fator tempo, mas se pode destacar a autoridade, a pro-dutividade e a credibilidade. A autoridade se refere à respeitabilidade da fonte, ou seja, ao poder econômico e/ ou simbólico que a mesma repre-senta. Disso se origina a recorrência a fontes oficiais ou que têm posição de autoridade. De acordo com Gans (1979 apud TRAQUINA, 2005, p. 191), “presume-se que essas fontes sejam mais credíveis, quanto mais não seja porque não podem permitir-se mentir abertamente e porque são também consideradas mais persuasivas em virtude de as suas ações e opi-niões serem oficiais”. Quanto mais notória for a fonte, mais credível ela será considerada.

A credibilidade relaciona-se à veracidade das informações passadas pela fonte para que o material não precise necessariamente ser checado através de outras fontes. Apesar de ser um procedimento rotineiro no jor-nalismo, a checagem é limitada devido ao fator tempo. Por isso, fontes credíveis tendem a ser valorizadas pelo profissional e acabam sendo fre-quentemente acionadas.

As fontes oficiais possuem maior capacidade de responder às exi-gências do campo jornalístico quanto à produção de material, enquanto que, por outro lado, um indivíduo, isoladamente, dificilmente mostrará aptidão para lidar com as rotinas da mídia. Mas este pode ter a informa-ção que o jornalista necessita e, então, assumir a condição de fonte.

Entende-se por fontes oficiais as que representam o poder insti-tuído, sejam elas representativas do estado ou dos diversos campos so-ciais, isto é, setores organizados da sociedade. O critério de produtividade baseia-se no tipo e na disponibilidade das informações dadas pela fonte. Uma boa fonte é aquela que proporciona material suficiente para uma boa notícia, além de conhecer o funcionamento da empresa jornalística e saber que o fator tempo é primordial no processo de produção da notícia.

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“A autoridade da fonte é um critério fundamental para os membros da comunidade jornalística. O fator da respeitabilidade refere-se aos proce-dimentos dos jornalistas que preferem fazer referência a fontes oficiais ou que ocupam posições institucionais de autoridade” (TRAQUINA, 2005, p. 191).

A relação entre fontes e jornalistas deve ser permeada por regras que regulam a prática jornalística, como a pluralidade de fontes e a neces-sidade de ouvir instâncias que possuem pontos divergentes sobre um mes-mo assunto. As rotinas jornalísticas e a própria ideologia que traspassa a empresa jornalística nem sempre permitem que essa premissa seja cum-prida, prejudicando assim a equidade da expressão dos posicionamentos das fontes.

Para efeito desta pesquisa, dividimos as fontes em dois tipos con-forme achamos pertinentes ao corpus, ainda que várias outras distinções pudessem ser feitas. Consideramos fonte institucional aquela representa-tiva de setores organizados da sociedade, seja ela o estado, associações de funcionários, empresas ou mesmo o terceiro setor. A fonte não institucio-nal é desprovida de uma ligação com o poder instituído, representando o indivíduo ou grupo tomado isoladamente.

A partir dessas considerações, vê-se a importância de se pesquisar as fontes no discurso jornalístico, principalmente no que concerne ao pa-ciente psiquiátrico que, a priori, é desprovido de legitimidade para forne-cer informações fidedignas que tenham potencial para se transformar em notícia. No entanto, existe um discurso sobre esse indivíduo nas páginas dos jornais. O estudo visa a investigar quais fontes aparecem nos textos jornalísticos e como são representadas.

DISSECAÇÃO DO CORPUS

O estudo analisou 19 textos jornalísticos, entre matérias e repor-tagens do ano de 1992 do jornal Zero Hora (ZH). Os textos se referem à reforma psiquiátrica no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP) que, desde 1884, é referência no tratamento de pacientes psiquiátricos.

As fontes foram classificadas em institucionais, quando repre-sentam organizações, e não institucionais, quando se referem a pacientes e/ou grupo de pessoas não organizadas. Entre as fontes consideradas ins-titucionais, observa-se o predomínio do campo científico, representado pelas fontes da área médica que normalmente ocupam também cargos

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políticos. O campo científico, de acordo com Bourdieu (1983, p. 155), é o lugar de disputas pela autoridade científica, resultante da competência técnica e poder político.

De outro lado, têm-se os pacientes psiquiátricos que representam as fontes não institucionais. O estudo identificou nos textos jornalísticos um total de 62 fontes, sendo 42 institucionais e 20 não institucionais. Enquanto as primeiras estão presentes em todos os textos analisados, as fontes não institucionais se restringem a cinco textos.

A análise reafirma que as fontes institucionais se tornam roti-neiras e têm mais acesso à mídia, pois são consultadas constantemente sobre determinados temas, como é o caso da reforma psiquiátrica. No caso deste estudo, as fontes da área médica são rotineiras e somam 24, do total de 62 encontradas. Fontes como o diretor geral do hospital e tam-bém médico, psiquiatras do hospital, médicos da secretaria de saúde são sistematicamente consultada s para dar versões sobre a problemática da reforma psiquiátrica.

Além de predominar nas matérias, o campo médico é o único consultado em três textos. Em momentos importantes como a polêmica sobre o possível fechamento do hospital, a venda do prédio e as reformas no hospital, somente as fontes representativas da medicina apareceram no texto. A narrativa jornalística excluiu do debate os demais segmentos representativos da sociedade e outros setores não organizados.

As fontes não institucionais são esparsas e representadas pelos pacientes psiquiátricos. Embora sejam os mais afetados com a mudança no modelo de assistência, esses pacientes dificilmente são instados sobre o que pensam, como vivem e o que querem para si.

No entanto, ao analisar como as fontes não institucionais são apro-priadas pelo jornalista e aparecem nas páginas do jornal, nota-se a dis-crepância entre o discurso institucional e o discurso ou o silêncio do não institucional. Na primeira matéria que enfoca o assunto, embora se tenha contabilizado 14 pacientes como fontes (alguns deles estão agrupados, conforme o texto jornalístico descreve e mais uma fonte classificada como não institucional), somente seis fontes são entrevistadas pelo jornalista e, destas, apenas quatro têm suas falas reproduzidas.

Os demais pacientes são apenas observados pelo jornalista, que parece estar atento às atitudes dos internos, principalmente quando estes externam violência, expõem a sexualidade ou mostram comportamentos estranhos ou chocantes. É como se os pacientes não precisassem ser ouvi-

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dos, mas apenas observados, porque o jornalista toma para si a responsa-bilidade de retratar a realidade, descrever o ambiente e narrar o cotidiano dos internos.

O texto faz a seguinte descrição sobre a fonte não institucional: “Uma mulher esquelética, nua, com um monte de comida podre espar-ramada pelo chão, encostada num pilar na Unidade Esquirol, é como se fosse o cartão postal do setor de moradia.” (Zero Hora, 12 jan 1992. Ge-ral, p. 26)

O texto descreve as fontes institucionais, em sua maioria, apontan-do o nome da pessoa e a respectiva função. O discurso dessas fontes recai sobre a necessidade de mudança no modelo de assistência, as mazelas do sistema vigente e elucidação sobre o contexto do paciente psiquiátrico. Somente o fato de ser médico ou possuir um cargo na instituição já é sufi-ciente para legitimar o discurso da fonte e considerá-lo verdadeiro.

As falas institucionais dão o tom da abordagem sobre a política adotada no setor. O jornal afirma: “A política é incentivar o tratamen-to ambulatorial, evitando o internamento. Segundo o médico Antônio Quinto Neto, diretor de saúde mental da Secretaria da Saúde e Meio Am-biente (SSMA), no território gaúcho existem 2.065 leitos psiquiátricos, sendo que o São Pedro ainda tem o maior número.” (Zero Hora, 12 jan 1992. Geral, p. 26 e 27)

Não é preciso discorrer acerca do comportamento dos membros da instituição ou sequer citar alguma curiosidade ou deformidade física que algum deles possa ter. Por outro lado, os pacientes tornam-se fontes porque são pessoas vistas como “diferentes” das consideradas “normais”, como neste exemplo: “Bento gosta de cantar a música “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos, e de ver novela na televisão. “Agora quero trabalhar na capina com meus novos amigos, diz.” (Zero Hora, 23 mar 1992. Geral, p. 33)

Disso decorre a necessidade de intensificar os qualificativos que vão evidenciar o grotesco, o feio, a sujeira, a animalidade, a periculosida-de, a fala desconexa, afinal, elas aparecem nas páginas do jornal porque têm as marcas da anomalia como a “negra velha desdentada”, a “gringa ve-lha” ou a “mulher esquelética, nua”, seres que, a exemplo da Idade Média, estão a meio-termo do animal e do humano.

O discurso médico é amplamente utilizado como fonte de referên-cia na matéria. A partir dele, os internos do Hospital São Pedro são consi-derados como “moradores” para os que residem no hospital, e “pacientes”

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aos que precisam de tratamento, portanto, são submetidos à atuação de um poder disciplinador. O poder legitimado da medicina determina o que é são e o que é patológico e é evocado visando a acentuar a tecnicida-de da fonte, legitimar o discurso jornalístico e, consequentemente, criar um efeito de verdade.

Na matéria “Internos do São Pedro vão para Itapuã”, aparecem três fontes sendo que duas delas têm o discurso citado. Outra fonte é um grupo de 19 pacientes que estão sendo transferidos do São Pedro e são observados pelo jornalista e, neste estudo, são considerados como uma única fonte. A observação do repórter traduz o posicionamento do jornal em enunciar o ponto de vista institucional pelo desmonte do São Pedro e a oportunidade de viver melhor em outro local. “Os pacientes demons-traram estar satisfeitos com o novo lar, onde poderão conviver com a na-tureza e os animais, além de executar trabalhos de agricultura, pecuária, padaria, lavanderia, jardinagem, serviços de consertos e outras atividades como ajudantes de copa, limpeza, etc.” (Zero Hora, 23 mar 1992. Geral, p. 33)

Posteriormente, desmembrado, o grupo foi entrevistado pelo re-pórter que buscou informações para corroborar o discurso do campo da medicina. Por isso, não aparece dissenso quanto à decisão de remover os internos para outro hospital.

Na matéria “Especialista inglês reprova o São Pedro”, aparecem duas fontes apenas, ambas institucionais e representativas da área médica. A competência técnica é utilizada para reiterar a necessidade de um novo modelo de assistência. O médico critica a institucionalização de pacientes e relata experiências de tratamentos alternativos em diversos países. Por ser factual, a matéria não aprofunda a problemática e deixa de citar fontes contrárias às críticas do médico.

A reportagem que contextualiza a aprovação da lei que instituiu a reforma psiquiátrica utiliza doze fontes. Existe uma disparidade quanto às fontes institucionais que são predominantes no relato jornalístico, totali-zando sete, enquanto as não institucionais são apenas três.

O ponto de vista das fontes oficiais ganha destaque por se tratar de instituições legitimadas pela sociedade. Apesar de a lei interferir di-retamente na vida de internos de hospitais psiquiátricos, somente uma paciente é utilizada como fonte. A fala se refere à nova vida possibilitada com a ressocialização e também cita o passado, quando era paciente do hospital.

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“Vanda Ginbrunski, de 53 anos, uma esquizofrênica pa-ranóica, recorda as visitas constantes ao Hospital Psiqui-átrico São Pedro. ‘Levava injeção, mas como era muito nervosa, penduravam aqueles fiozinhos e lá vinha cho-que’, lembra, imitando o barulho da descarga elétrica.” ( JASPER JR., 19 jul 1992. Geral, p. 34 e 35)

Outra distinção a ser feita é quanto à caracterização das fontes. As institucionais são nomeadas e definidas pela profissão e, principalmente, pelo cargo que ocupam. A única informação que aparece no texto sobre elas é a idade. No caso das não institucionais, como a paciente, além da idade, a patologia é o carro-chefe e, associada a ela, a descrição de uma pessoa que, não obstante estar reintegrada à comunidade, parece ter um aspecto exuberante, uma “alegoria dos loucos”, devido aos aspectos ressal-tados como maquilagem permanente, o uso de brincos, correntes e pulsei-ras. O fato de ter se submetido à eletroconvulsoterapia é relevante porque além de ser um tratamento controverso e que é estigmatizado socialmen-te, possui a força de apelar para a emoção e a repulsa do leitor, alçando a paciente à condição de vítima e, consequentemente, de fonte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um olhar mais atento verifica que o periódico reproduz estigmas sociais em relação ao paciente psiquiátrico, fazendo deste um mero figu-rante dos relatos e privilegiando fontes que possuem poder e disputam espaço, através da imposição do discurso.

Na maioria dos casos, porém, o jornalista tende a buscar fontes institucionais ou setores organizados da sociedade para figurar como fon-tes. No caso desta pesquisa, os pacientes psiquiátricos têm existência a partir de outras fontes que os caracterizam e estão relacionados a instân-cias de poder que decidem e falam por eles.

Assim, seja o louco ou o paciente psiquiátrico, expressão emprega-da atualmente, este sujeito social foi sempre concebido e “falado” através da lógica do outro. Quando houve o “sequestro” para dentro dos manicô-mios, a autoridade médica se legitimou como competente para julgar e tratá-los. Na atualidade, o discurso sobre a insanidade ainda provém dos sujeitos considerados sãos e, principalmente, da autoridade médica.

Como vimos nas ocorrências analisadas, a mídia viabiliza tais dis-cursos hegemônicos, colocando-os em circulação na sociedade, visando a

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formar consensos. Observa-se que os campos sociais disputam a hegemo-nia do discurso e vários fatores influenciam para que algumas instituições se tornem fontes.

O relato jornalístico, entre as inúmeras possibilidades de dizer, aponta o louco como o diferente, aquele que está confinado, possui gestos incompreensíveis, precisa ser tutelado, em oposição aos que estão do lado de fora dos portões do Hospital São Pedro e, por isso, considerados nor-mais, podendo transitar, agir livremente e opinar sobre o outro.

Os insanos ilustrados no corpus analisado são caracterizados como desgraçados, dignos de pena, maltratados, esquecidos pela sociedade, cer-ceados por portões e que vivem num lugar decadente e impróprio para uma possível reabilitação.

O discurso jornalístico oculta os mecanismos de sua produção construindo uma realidade, apropriando-se do fato e veiculando-o como o real. Esse mecanismo de ocultamento de quem produz o texto provoca uma “naturalização” do discurso, ou seja, produz um efeito de verdade.

A não neutralidade do discurso jornalístico é percebida também através desse “silenciar” dos pacientes e na busca por fontes institucionais que reiteram a necessidade de se realizar a reforma psiquiátrica e abando-nar o modelo hospitalocêntrico. Ao longo do ano de 1992, os textos jor-nalísticos procuraram evidenciar as mazelas do antigo modelo, a inefici-ência dos manicômios e abordaram as vantagens da reforma psiquiátrica. Percebe-se que as matérias tomaram o novo modelo como um “ideal” de tratamento e deixaram de enfocar vários outros aspectos sobre o paciente psiquiátrico. Verifica-se também que as fontes contrárias à reforma não aparecem nas páginas do jornal, nem os problemas acarretados pelas defi-ciências do novo modelo são abordados.

Assim, ao negar a fala a certas instituições, aos pacientes ou mes-mo não assumindo declaradamente a posição diante dos fatos, o veículo apenas reitera o discurso dominante, abrindo espaço para que os atores sociais hegemônicos discutam suas ideias de forma a não comprometer o periódico. Constrói-se uma realidade na qual os mecanismos de produ-ção da notícia são ocultados e as fontes têm o espaço para “falarem por si mesmas”, como se não houvesse intervenções, mas apenas o relato dos acontecimentos.

Se a luta antimanicomial propõe um novo modelo de assistência em saúde mental, paradoxalmente, o conteúdo veiculado em ZH tende a reafirmar preconceitos, a reforçar a autoridade do médico como especia-

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lista que fala sobre o paciente enquanto este é silenciado.

REFERÊNCIAS

ALSINA, Miguel Rodrigues. A construção da notícia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.AMARAL, Márcia Franz. Lugares de fala do leitor no Diário Gaúcho. Porto Alegre: 2004. Tese de doutorado apresentada no programa de pós-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.BERGER, Christa. Campos em confronto: a terra e o texto. 2. ed. Porto Alegre: Ufrgs Ed., 2003.BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp, 2004.______. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989______. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10. ed. São Paulo: Loyola, 2004TRAQUINA. Nelson. Teorias do jornalismo. A tribo jornalística – uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis: Insular, 2005.WOLF, Mauro. Teoria das comunicações de massa. São Paulo: Martins Fon-tes, 2005.

EDIÇÕES DO JORNAL ZERO HORA CITADAS:

O mundo de Argeu acaba num portão. Zero Hora, 12 jan 1992. Geral, p. 26 e 27.Internos do São Pedro vão para Itapuã. Zero Hora, 23 mar 1992. Geral, p. 33JASPER JR., Gilberto. A humanização ganha espaço com a reforma dos hospitais psiquiátricos. Zero Hora, Porto Alegre, 19 jul 1992. Geral, p. 34 e 35.

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Emilene Leite de Sousa

A AUTORA

Professora do Curso de Comunicação Social/Jornalismo do cam-pus II da UFMA em Imperatriz. Graduada em Ciências Sociais pela UFCG. Mestre em Sociologia pela UFPB. Doutoranda em Antropologia Social pela UFSC. Líder do Grupo de Estudos Cultura e Identidade na Contemporaneidade/GECIC-UFMA. Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Povos Indígenas/NEPI-UFSC. Desenvolve pesquisas sobre infância camponesa, infância indígena e das crianças quebradeiras de coco babaçu. Trabalha ainda com os temas corpo e identidade.

A Identidade pelas mãos do bricoleur:a tatuagem como dispositivo

de identificação

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SOBRE A NECESSIDADE DE ORDENAÇÃO DO REAL: ARTE E CIÊNCIA

Estamos diante de arte se o ob-jeto é executado e diante de uma ciência se o obje-to é contemplado (Diderot).

Para Lévi-Strauss, em O Pensamento Sel-vagem (1989), a exigência de organização é uma necessidade comum à arte e a ciência, pois a orde-nação do real possui um valor estético eminente.

Segundo o autor, a cultura emerge da capa-cidade e necessidade de ordenação do real, dada pela nomeação, classificação e hierarquização. A ciência opera essa ordenação por meio da taxo-nomia. A arte também exerce esse poder, uma vez que engendra a classificação a partir da percepção estética. Assim, Lévi-Strauss traça um paralelo as-sociando arte e ciência, demonstrando que o que nelas haveria em comum seria o desejo de ordenar a realidade.

Ao contrário de Lévi-Strauss, Michel de Certeau (1994) demonstra em A Invenção do Co-tidiano: artes de fazer que a razão técnica acredita saber organizar da melhor maneira possível pessoas e coisas, a cada um atribuindo um lugar, um papel e produtos a consumir, enquanto o homem ordiná-rio escapa silenciosamente a essa conformação, in-ventando o cotidiano graças às artes de fazer, “astú-cias sutis, táticas de resistência pelas quais ele altera os objetos e os códigos e se reapropria do espaço e do uso ao seu jeito” (CERTEAU, 1994)1 .

A essa reação dos indivíduos à tentativa de ordenar o real pela ciência, Certeau chama anti-disciplina, que seria uma rede formada pelas artes

1 Neste sentido, o indivíduo certeauniano nos permite pensar o uso da tatuagem como uma forma de es-capar a classificação dada pela cultura, no momento em que este indivíduo age para modificar o seu cor-po, tornando-o diferente do padrão geral que rege o social, embora ele recaia numa nova forma de clas-sificação, uma classificação secundária. Assim, uma espécie de reinvenção do cotidiano parece-nos útil para refletir sobre o uso da tatuagem como um modo de fugir a ordenação pri-meira do real.

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de fazer no cotidiano, esta arte de viver a sociedade de consumo (BAU-DRILLARD, 2003; CANCLINE, 2006; DEBORD, 2003).

Ao tratar da etnologização das artes, Certeau (1994, p. 136) parte da distinção entre teoria e prática afirmando que elas constam de duas operações diferentes: uma discursiva (teoria) e uma não-discursiva (práti-ca). Assim, ao contrário do que normalmente ouvimos, para o autor não é verdade que a arte é, antes de tudo, contemplação.

Por isso, para Certeau, a arte executa, opera e é a ciência que se fundamenta na contemplação. Deste modo, as ciências seriam línguas operatórias, cuja gramática e sintaxe formam sistemas construídos e con-troláveis, portanto, escrevíveis. Já as artes seriam técnicas à espera de um saber esclarecido e que lhes falta (CERTEAU, 1994, p. 137).

Logo, “toda arte tem sua especulação e sua prática: sua especula-ção, que nada mais é que seu conhecimento inoperante das regras de arte; sua prática, que outra coisa não é senão o uso habitual e não reflexivo das mesmas regras” (CERTEAU, 19914, p. 137). Para Certeau a arte é, portanto, um saber que opera fora do discurso esclarecido. É prática pura sem teoria.

Mas a arte forma um sistema e se organiza por fins, isto é, conserva em seu lugar o discurso próprio de que está privada, ou seja, escreve-se no lugar e em nome dessas práticas, falando por ela mesma. A arte sobre o corpo, como ocorre com a tatuagem, carrega em si um discurso que fala pela própria imagem registrada. Um signo que fala por ele mesmo.

Ainda nessa discussão sobre a ciência e a arte é que Lévi-Strauss (1989) nos fala sobre o ofício do bricoleur: a arte de re-significar. De acordo com Lévi-Strauss, o bricoleur é aquele que trabalha com as mãos. “Seu trabalho é a expressão auxiliada por um repertório cuja composição é heteróclita e que, mesmo sendo extenso, permanece limitado”. Faz-se necessária a utilização desse repertório, pois é tudo de que dispõe. O bri-coleur executa um trabalho usando meios e expedientes que denunciam a ausência de um projeto a priori e de técnica. Caracteriza-o especialmente o fato de operar com materiais fragmentários já elaborados. O seu produ-to é o resultado de todas as oportunidades que se apresentaram disponí-veis.

O bricoleur fala com e através das coisas. Sua narrativa é constru-ída pelas escolhas que faz entre o que está ao seu alcance, construindo assim a história de vida do próprio autor. Fazendo do seu trabalho um eterno vir-a-ser, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si, o seu

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produto em tudo lhe revela.Para Certeau, a bricolagem é também uma arte, conhecida como

artes manuais, aquelas que se limitam a adaptar os materiais cortando-os, talhando, unido etc., como o fazem as artes manufatureiras (CERTEAU, 1994, p. 137).

Semelhante ao bricoleur operaria o indivíduo da pós-moderni-dade na construção de sua identidade ou no processo de identificação. Para isso transforma o corpo que possui com os acessórios de que dispõe, dando a ele uma nova roupagem. Re-significa o antigo (corpo), que está dado, com inscrições (tatuagem) que lhe dão uma nova forma, apenas re-significando o objeto primeiro, mas mantendo a sua essência.

As velhas identidades do mundo social estão em declínio e o indi-víduo moderno fragmenta-se. Estamos vivendo o que comumente cha-mamos de crise de identidade provocada pela descentração, deslocamento e fragmentação das identidades modernas (HALL, 2005).

A primeira dificuldade para entender esta crise reside na própria definição do termo identidade, pois “esse processo amplo de mudanças desloca estrutura e processos centrais das sociedades modernas e os qua-dros de referências que davam aos indivíduos uma ancoragem estável do mundo social” (HALL, 2005).

Assim teríamos, grosso modo, três concepções básicas de identida-de. Uma primeira concepção individualista do sujeito e de sua identidade, resultante do iluminismo, que aposta no sujeito com uma essência, unos, indiviso. Uma concepção essencialista da identidade.

Uma segunda concepção do sujeito sociológico, na qual a identi-dade resultaria do diálogo, interação ou confronto entre sujeito e estrutu-ra. Uma interpretação sociológica da identidade.

E uma terceira concepção, essa pós-moderna, com uma noção de identidade líquida, não-fixa e circunstancial (BAUMAN, 2001; BHA-BHA, 1998).

É importante enfatizar que a identidade coerente resulta em gran-de parte da narrativa do “eu”, e a mudança se dá exatamente porque a So-ciologia contemporânea prefere, de certa forma, falar da pluralidade de “eus” em vez de falar de um eu essencial. Além disso, esses eus múltiplos não seriam necessariamente harmoniosos, podendo entrar em conflito em algumas situações (GOFFMAN, 1985).

Também porque as sociedades contemporâneas são sociedades de mudanças constantes, rápidas, sociedades efêmeras, o que resulta em par-

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te dos impactos da globalização sobre a identidade cultural (BAUMAN, 1998; HALL, 2005; SEMPRINI, 1999).

Assim, temos cada vez mais a diferença como característica dessas sociedades, onde sinais diacríticos e identidades são parcialmente articu-lados, não desintegrando sociedades e compondo a história. Agora a força da sociedade é o movimento, a descontinuidade, a fragmentação, a ruptu-ra, o deslocamento (HANNERZ, 1997).

Por essa razão, alguns autores acreditam que o termo mais ade-quado para falar desse processo pelo qual passa o sujeito descentrado se-ria “identificação” e não “identidade”, pois identidade nos remete a algo dado, pronto, acabado e identificação nos faz pensar na construção cons-tante da identidade a partir da ação, como processo e não como produto e cuja ênfase estaria no por-vir, no vir-a-ser, no devir, no “está sendo”.

Assim, as identidades da pós-modernidade são híbridos culturais (HANNERZ, 1997) línguas, religiões, costumes, tradições, sentimentos de lugar e de pertença. O indivíduo na contemporaneidade agregando todos estes elementos nos aparece como um mosaico, colcha de retalhos, caleidoscópio.

Para Alain Touraine (1994), seria o fim da definição de ser huma-no como um ser social, definido por seu lugar na sociedade, que deter-mina seu comportamento e suas ações. Haveria agora uma possibilidade de escolha, construção e seleção de identidades. Teríamos, então, o que chamamos de identidades experimentadas.

Nesse sentido, o consumo desponta como um fator essencial, como um modo de selecionar a própria identidade e mantê-la enquanto assim se desejar. A sociedade do consumo, tal qual definem a sociedade atual, substituiu o “penso, logo existo”, do sujeito cartesiano, pelo “com-pro, logo existo”. Deste modo, classificação e identificação são exercidos pelo consumo. Consumir é um ato de identificação. Nós classificamos as coisas e elas nos classificam (BAUDRILLARD, 2003; DEBORD, 2003; CANCLINE, 2006).

É importante ressaltar que o debate sobre a construção da identi-dade se mantém atual. Partimos, pois, de uma definição centrada do sujei-to iluminista para quem a razão era garantia maior da identidade (“Pen-so, logo existo”), para uma discussão que se coloca na Sociologia entre estrutura/agência, na qual a identificação seria garantida pela interação sociedade/indivíduo (ELIAS, 1994).

A concepção estruturalista da sociedade alerta para os riscos de

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tomar o indivíduo moderno como fluido, líquido (BAUMAN, 2001), efêmero, circunstancial. Pois para essa vertente de pensamento o indiví-duo transita pelas esferas sociais construindo a sua própria trajetória e identificação, mas esse indivíduo está preso às referências dadas pela so-ciedade (estruturas estruturadas), que faz com que ele construa e execute a sua trajetória, mas a partir, somente a partir dos elementos que a própria sociedade oferece (BOURDIEU, 2005). Assim, o estruturalismo termi-na por transformar o indivíduo contemporâneo em bricoleur.

Logo, para o estruturalismo o indivíduo moderno tem a ilusão de uma autonomia, pelo fato de se tornar transeunte das esferas sociais, mas escolhe sempre entre aquilo que está dado, os meios-limites, tendo que compor uma identidade a partir da associação e re-significação destes ele-mentos, lutando ainda pela autenticidade nesse mercado maior de sinais-diacríticos.

Ora, se a construção da identidade toma como referência ou ba-luarte o corpo, como pensar o corpo e o uso que fazemos dele na pós-modernidade?

Como pensar uma identidade não-fixa, circunstancial, descartável, fragmentada, presa a um corpo que permanece uno, indiviso, fixo? Esse me parece o grande desafio na discussão sobre o corpo como dispositivo, mecanismo de identificação na atualidade.

COMPREENDENDO O CORPO ATRAVÉS DAS CONCEPÇÕES SÓCIO-ANTROPOLÓGICAS

O corpo parece explicar-se a si mesmo, mas nada é mais enganoso (Le Breton, 2006).

A Sociologia do corpo nasce a partir da compreensão de que a cor-poreidade humana é um fenômeno social, objeto de representações e ima-ginários, assim, o corpo seria um construto cultural especialmente rico em simbologia, o que o torna importante objeto de estudo.

O valor semântico do corpo está dado pelo fato de que ele é moldado pelas circunstâncias históricas sendo legitimado no contexto sociocultural em que está inserido. Ou seja, as sociedades se expressam diferentemente por meio de corpos diferentes. Como instrumento cultural, o corpo é res-ponsável pela ligação do homem com o mundo, pela concretização de sua existência que é, sobretudo, corporal (LE BRETON, 2006).

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Ademais, o corpo permite ao homem apropriar-se da substância de sua vida, traduzindo-a para os demais membros da sociedade, sempre a partir dos sistemas simbólicos que compartilha com estes membros.

Ele emerge como um dos principais instrumentos a serviço do ho-mem na produção de sentidos. Nessa produção de sentidos através das técnicas corporais (MAUSS, 2003) é que o homem se torna ser social. Prova disso é que um corpo não domesticado pelas técnicas culturais não torna o seu portador um ser social.

Através do corpo o homem produz sentido e se insere num sistema simbólico específico que legitima continuadamente os sentidos inven-tados pelo corpo. Assim, o corpo é produtor e produto destes sentidos numa relação ambivalente.

Ao pensarmos sobre o corpo, podemos incorrer no erro de encará-lo como simplesmente biológico, lugar universal onde a cultura escreveria histórias diferentes. Entretanto, existe um conjunto de significados que cada sociedade escreve nos corpos dos seus membros ao longo do tempo, e estes significados vão definir o que é corpo de maneiras variadas.

Horace Miner (1973), em conhecido artigo intitulado “Rituais Corporais entre os Nacirema”, revelou com perspicácia o modo como os norte-americanos concebem o corpo através de uma descrição minuciosa que nos leva a enxergar as concepções de corpo que nos são familiares, no mínimo, como exóticas.

Esta descrição nos faz questionar práticas tidas há muito tempo como familiares devido ao processo de socialização, in(corpo)ração, que nos inseriu nessas práticas. Rituais cotidianos que envolvem o corpo como fazer a barba, arrumar as unhas, escovar os dentes passaram a ser reveladores da obsessão deste povo obcecado pela magia e pelo próprio corpo, materialização do ser social.

A corporeidade pode ser pensada como o lugar onde o homem transcende os determinismos biológicos e torna-se efetivamente humano. Esta transformação do ser em ser social se dá pelo processo de socialização do corpo que tem início durante a infância e só termina com a morte físi-ca do indivíduo. Isto porque as culturas estão renovando constantemen-te suas técnicas corporais, livrando-se daquilo que julgam ter se tornado inútil, reforçando as técnicas julgadas indispensáveis e criando novos có-digos de utilização do corpo.

Apesar do corpo transportar os códigos construídos e recebidos pelo indivíduo que o detém, ele também é significado pelos membros da

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comunidade que fazem uma leitura do corpo do outro a partir dos sím-bolos sociais que conhecem. Afinal, “o corpo quando encarna o homem é a marca do indivíduo, a fronteira, o limite que, de alguma forma, o dis-tingue dos outros” (LE BRETON, 2006, p. 10), ao mesmo tempo em que o associa aos seus pares. O corpo é, sem dúvida, o traço mais visível do ator, fator de identificação e de individualização. Ele conecta e inclui na medida em que diferencia e separa.

Se o corpo atua como lugar de rompimento, da diferenciação in-dividual, a tentativa constante dos agentes sociais é de torná-lo o lugar da inclusão. Essa crença denota o vai e vem das teorias sociológicas sobre o corpo, que já conceberam o corpo como produto do homem e já coloca-ram o homem como produto do corpo, sendo este último o determinante do primeiro.

Tal vertente da sociologia inverteu a noção de que a corporeidade seria um efeito da condição social do homem e fez da condição social do indivíduo um produto do corpo. Essa concepção nos remete à atual dis-cussão sobre as políticas de ação afirmativa, especialmente as cotas para negros e índios nas universidades públicas, a serem asseguradas através de padrões corporais.

O corpo passou por inúmeras análises das mais variadas vertentes: da compreensão dele como uma linguagem secreta que expressa desejos (na psicanálise de Freud) até a ideia de que os movimentos do corpo con-tribuem para a transformação social de sentido (para Marcel Mauss).

Muitas vezes, deixou-se mesmo de questioná-lo como tão bem o fez Le Breton:

o próprio corpo não estaria envolvido no véu das represen-tações? O corpo não é uma natureza. Ele nem sequer existe. Nunca se viu um corpo: o que se vê são homens e mulheres. Não se vê corpos. Nessa condição, o corpo corre o risco de nem ser um universal (LE BRETON, 2006, p. 24).

Mas as representações do corpo são representações da pessoa. E as representações das pessoas e do corpo estão sempre inseridas nas visões de mundo das diferentes culturas.

O corpo é socialmente construído, não é um dado inequívoco, mas o efeito de uma elaboração social e cultural. As concepções do corpo partiram da crença de um homem separado do cosmo, separado de ou-

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tros e, finalmente, separado de si mesmo (LE BRETON, 2006). Todas compreendiam a corporeidade como estrutura simbólica, com represen-tações, imaginários variáveis conforme as sociedades. O homem e o corpo são, na verdade, indissociáveis e este último integra o primeiro no seio de um grupo na medida em que o diferencia dos demais indivíduos.

O corpo não existe em estado natural, só se torna passível de com-preensão na trama social de sentidos devendo, por isso, ser analisado em seu contexto. Seria, pois, o lugar onde a sociedade se torna homem ao passo que atua como o lugar onde o homem se torna social. Devemos, por isso, atentar para o risco de fragmentação da identidade humana entre o indivíduo e o corpo. A identidade cultural tal qual a memória social não está inscrita apenas pela literatura oral ou escrita, ela se inscreve também no corpo por meio de suas técnicas, gestos e escarificações.

Para Mauss (2003), o corpo seria o primeiro e o mais natural ins-trumento do homem. É objeto técnico e, ao mesmo tempo, meio técni-co do homem. Segundo este autor, existiria um conjunto de técnicas do corpo, uma série de atos montados no indivíduo por ele próprio e por sua educação, na sociedade da qual faz parte, conforme o lugar que nela ocupa.

A concepção de Mauss de que o corpo seria o primeiro e o mais na-tural instrumento do homem nos remete inevitavelmente a Lévi-Strauss, para quem o corpo seria o lugar de encontro entre a natureza e a cultura.

A antropologia emerge da discussão sobre a oposição binária na-tureza/cultura. A primeira representada pela universalidade e a segunda pela particularidade. Deste modo, a natureza estaria associada ao invari-ável, enquanto a cultura representaria a necessidade de criar regras para ordenar a natureza.

O estruturalismo lévistraussiano aponta a proibição do incesto como a primeira regra a formar a cultura, ocupando esta o limiar entre a natureza e a cultura. Isto porque, como nos diz Lévi-Strauss (1982), a proibição do incesto é universal na medida em que toda cultura classifica os cônjuges possíveis e os cônjuges proibidos – aqueles com quem pode-mos casar e aqueles com quem não podemos -, todavia, esta classificação é ao mesmo tempo particular porque cada cultura se utilizará de critérios distintos para diferenciar estes dois grupos.

Assim, o corpo estaria para Lévi-Strauss na base de todo funda-mento da construção cultural, atuando como o primeiro dispositivo a so-frer a diferenciação imposta pela dicotomia natureza/cultura, estando no

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limiar destas duas dimensões.Hertz (1980), no conhecido artigo “A Preeminência da mão direi-

ta”, discute a construção cultural de um universo pensado para as pessoas destras. A mão direita emerge como associada sempre ao correto, ao bom, ao sagrado em oposição à mão esquerda, associada ao profano, ao ruim, ao errado. Embora exista uma explicação biológica para esse fato, a de que haveria um maior desenvolvimento do hemisfério cerebral esquerdo, que governa os músculos do lado direito, Hertz acredita que este argumento não daria conta de justificar uma série de fatores culturais que surgiram desta utilização sobremaneira da mão direita, cuja predominância teria sido acentuada com o passar do tempo.

Rodrigues (2006) compartilha a ideia de que o corpo humano é socialmente concebido, razão dos seus esforços em analisar as represen-tações sociais do corpo. Segundo este autor, a cultura ditaria normas em relação ao corpo, uma evidência disso é a classificação constante que faze-mos das pessoas através de suas aparências.

Mas a concepção do corpo como possível objeto de estudo deve proceder à diferenciação entre os aspectos instrumentais e expressivos do comportamento humano (RODRIGUES, 2006). Os primeiros, por serem naturais e universais, não conformam objeto de estudo das ciên-cias sociais, mas os segundos constituem codificações particulares de um grupo social, uma vez que a sociedade se apropria do corpo humano e se expressa nele e através dele. Isso justificaria o interesse pela tatuagem, por exemplo, como importante dispositivo de comunicação social.

O corpo seria, assim, símbolo da estrutura social, massa de mode-lagem à qual a sociedade imprimiria formas segundo os seus interesses. Por isso dizemos que não há sociedade que não fira de alguma forma os seus membros, na medida em que nenhuma prática se realiza sobre o cor-po sem um sentido social, pois as práticas sobre o corpo são signos de pertença ao grupo e de concordância com os seus princípios.

Arranhando, rasgando, perfurando, queimando a pele – imprimem-se cicatrizes-signos que são formas artísticas ou indicadores rituais de status, como as mutilações do pavilhão auricular, corte ou distensão do lóbulo, perfura-ção do septo, dos lábios, das faces, decepamento das falan-ges, perfuração do ouvido, amputação das unhas, circun-cisão, incrustações, apontamento dos dentes, deformação cefálica, atrofiamento dos membros, obesidade, complei-

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ção atlética, prescrição de peso, forma e cor considerados desejáveis esteticamente, pintura das unhas dos pés, das mãos, barbeamento, corte de cabelos, transformações de coloração da pele por meios químicos ou físicos, tatua-gem (injeção de pigmentos embaixo da pele, ficando a superfície inteiramente lisa), moko (estrias praticadas so-bre a pele e sobre as quais se esfregam pigmentos), kakina (introdução de uma agulha e linha impregnados) (RO-DRIGUES, 2006, p. 86).

As ações sobre o corpo são também ações sobre o cosmos. Nenhum animal transforma voluntariamente o seu próprio corpo, com exceção do homem. E estas transformações variam de lugar para lugar tornando-se inesgotável e indispensável fonte de conhecimento cultural.

DE COMO A SOCIEDADE SE INSCREVE NOS CORPOS DOS INDIVÍDUOS

A sociedade sempre se utilizou do corpo para inscrever suas regras, esforçando-se por colocá-lo sob a lei de uma escritura, sendo o corpo sig-nificado, definido por aquele que o escreve.

Assim, o corpo funciona como tábula rasa onde se inscrevem as iniciações (rituais de passagem, situações de liminaridade). O processo pelo qual o indivíduo submete o seu corpo à inscrição de um signo pela tatuagem nos remete ao estudo sobre a liminaridade que se originou quando os ritos tribais passam a ser compreendidos como expressões da dinâmica social. Os ritos deixam de ser interpretados a partir de padrões fisiológicos - os chamados ritos de puberdade - devido às mudanças no corpo, para serem entendidos como de natureza coletiva e não individual, construções sociais que teriam um padrão recorrente, o chamado padrão dos ritos de passagem que implicava três fases distintas: separação (isola-mento), incorporação (numa nova posição, grupo ou status) e, entre estas, uma fase liminar, fronteiriça e ambígua que, embora existisse em todas as outras fases, era destacada, focalizada e valorizada (DAMATTA, 2000).

Na arte sobre o corpo, produção de inscrições no corpo, a limina-ridade é experiência de individualização dentro do coletivo, identificação individual no seio do grupo social. Haveria então uma ênfase no processo mais do que no produto, daí a importância de verter sangue, sentir dor, narrar a dor, sofrer, como nos rituais de passagem. O sofrimento de ter o corpo escrito com a lei do grupo durante um ritual é seguido de um prazer,

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o de ser reconhecido, identificável, palavra legível numa língua social.Conforme registrado no estudo das sociedades primitivas, o ritu-

al de passagem deveria necessariamente seguir alguns preceitos: ser uma coisa física, causar dor, verter sangue mesmo que em pequena quantidade – ou pelo menos estar na iminência de que isto aconteça – e preferivel-mente deixar uma marca no corpo. Esta será o registro, a referência dessa passagem, a lembrança física que fará o indivíduo ter sempre em mente a sua nova condição. Essa marca identifica o indivíduo, relembrando sua posição na sociedade (PIRES, 2005).

No ritual de escarificação do corpo pelas inscrições da tatuagem existem duas operações que convergem: os indivíduos são postos num texto, contextualização individual; e o sentido de uma sociedade se ins-creve na carne, encarnação do social.

Como nos diz Certeau (1994), não só o social se inscreve no cor-po, mas a própria antropologia, etnologia ocidental se escreve no espaço que o corpo do Outro lhe oferece, quando esta ciência nasce para pensar o exótico, o diferente, para estranhar e ao mesmo tempo atribuir sentido ao estranhamento. Se a tarefa da cultura é classificar, significar, nomear, as inscrições sobre o corpo o nomeiam, com as regras, leis sociais, alte-rando-o para se fazer um símbolo de um grupo, diferi-lo de um Outro, identificá-lo.

O corpo funciona assim como mecanismo de memória que atua por toda a vida, onde podem ser registradas as suas histórias, através de tatuagens ou cicatrizes. Escrever sobre o corpo requer – como na própria simbologia, de um social que se registra com força sobre a pele - um apa-relho de intervenção que mediatize a relação da natureza com a cultura. São estes os instrumentos utilizados na escarificação, na produção da ta-tuagem e em toda a sorte de rituais de iniciação primitiva.

A inscrição sobre o corpo organiza o espaço social: separa e articu-la ao mesmo tempo o texto e o corpo, a linguagem social e o pergaminho sobre o qual se inscreve. A inscrição transforma os corpos individuais em corpo social, articulando-os apesar de toda a individualidade, formando um todo homogêneo, um grupo social, apesar da soma das diferentes par-tes.

Esta inscrição não está apenas no nível da tatuagem, mas os acessó-rios, os brincos a priori femininos, evidenciam a definição do corpo por meio do aço que agindo sobre ele o marca e organiza. Assim, introduz o social na carne pelo aço e não reconhece os corpos numa cultura, que não

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estejam modificados pelo instrumento.A transformação dos corpos pela inscrição funciona como registro

da memória e produção de identidades. Assim, conforme ocorre com a tatuagem, os sinais da aparência viram marcas de identidade, embora a tradução/leitura desta identidade tenha sempre mil possibilidades, tor-nando a leitura dos corpos uma leitura caleidoscópica.

No caso dos corpos marcados por cicatrizes e tatuagens, se o pas-sado consiste em silêncio ou segredo o corpo opera como arquivo vivo e revela mesmo aquilo que se deseja esquecer.

Assim é o corpo do homem na pós-modernidade um pergaminho onde ele e a sociedade, atuando juntos, escrevem um texto. No corpo re-side a inscrição dos acontecimentos do dia a dia e da construção da iden-tidade de nossos sujeitos portadores de corpos cada vez mais polifônicos. Uma construção individual por ser inscrita e significada pela história e pela linguagem não-verbal de seu sujeito portador; e ao mesmo tempo uma construção coletiva porque significada pelos olhos de cada um que o observa.

Daí a importância de pensar a identidade de grupos ou indivíduos a partir da tatuagem, inscrição nos corpos. A tatuagem produz sentidos de identificação individual e/ou coletiva.

A arte das inscrições, marcas sobre os corpos, é utilizada desde lon-ga data. As razões para a sua manifestação variam no espaço e no tempo, indo muitas vezes de funcional a ornamental, da utilidade à estética.

Nas sociedades ditas primitivas, as transformações corporais ti-nham, via de regra, caráter preparatório para que os indivíduos pudessem exercer determinadas atividades. O xamã era quem escolhia o desenho que tornava o indivíduo capaz de cumprir o papel esperado pela tribo ou pela família.

Com o passar do tempo, os significados atribuídos às marcas no corpo foram sofrendo modificações e hoje elas atuam como relatos, memória de um acontecimento. A tatuagem e o piercing, especialmen-te, marcam um momento na vida, uma viagem, um relacionamento. É a concretização da memória que passa a ser compartilhada com terceiros, como quando é narrada. Neste caso a narrativa é quase silenciosa, se dá pela exposição do corpo e, com ele, a exposição de uma história. Um discurso inscrito na pele.

Foi com o intuito de concretizar o que era uma abstração, de ins-crever a lei no corpo, que o mercado de escravos instituiu a marcação dos

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escravos com as iniciais de seus donos; o nazismo tatuou os judeus nos campos de concentração; cangaceiros do sertão nordestino marcavam a ferro rubro as mulheres inimigas e os traidores (LINS, 2000).

Nas Cartas de Pero Vaz de Caminha chama a atenção dos desco-bridores os corpos nus, apenas pintados, dos índios brasileiros que se uti-lizavam principalmente de urucum e jenipapo (CAMINHA, 2002).

As marcas são comumente elaboradas pelos Tupinambá, Tabajara, Cabila, Guarani e Bororo no nascimento, na entrada na puberdade, nos rituais religiosos, nas danças sagradas, na culinária, na medicina e no ca-nibalismo. Para os Bororo, uma boa cozinheira deveria ter a mão tatuada. Ao longo do tempo, a tatuagem foi utilizada sobremaneira para a identi-ficação de indivíduos em suas habilidades ou status (LINS, 2000).

No século XVIII, a inscrição corporal assume seu caráter transgres-sivo: aparecem na Europa numa prática reduzida aos marinheiros (como ilustrado no desenho Popeye), aos soldados e aos prisioneiros: àqueles que estiveram em contato com os primitivos das colônias.

Em fins do século XX, a tatuagem tornou-se um símbolo indivi-dual, marca da moda. Restaria, pois, apenas a dimensão estética. Hoje a tatuagem, de per si, traz poucas informações sobre o seu portador. Mas busca, talvez, a distinção nessa época de homogeneização gerada pela glo-balização.

As inscrições no corpo - que transformam cada vez mais, na socie-dade atual, corpos em pergaminhos – transformam o sujeito em objeto de exposição por todo o tempo de vida do indivíduo e em todo e qualquer espaço por onde ele transite.

Assim, a contemporaneidade é caracterizada pela arte que transita sobre os corpos dos indivíduos modernos, cuja identidade circunstancial, efêmera, não-fixa só encontra como referência estável, lugar de ancora-gem no mundo social, o próprio corpo transformado em mosaico, perga-minho, colcha de retalhos pela atuação do indivíduo de re-significar o que está dado, transformando a natureza com as marcas da cultura, exercendo o seu papel de bricoleur do social.

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Gilbert Angerami

O AUTOR

É Pós-Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de Trás -os - Montes e Alto Douro, Pós-Graduando em Gestão Pública pelo Programa Nacional de Formação em Administração Pública - PNAP e Graduando em Administração Pública pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA. É Doutor em Gestão da Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Mestre Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Especialista em Marketing Empresarial e Gestão de Turismo e Hotelaria pela Universidade Estácio de Sá - UNESA/RJ e Graduado em Comunicação Social pelo Centro Universitário Augusto Motta - CEUAM/RJ, além de possuir o núcleo básico em Engenharia Civil pelo Centro Universitário Augusto Motta - CEUAM/RJ. Atualmente é professor Adjunto III da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Tem experiência nas áreas de Administração e Comunicação Social com ênfase em MARKETING, atuando principalmente nos seguintes temas: publicidade e propaganda, jornalismo, assessoria de comunicação, gestão de pessoas, entretenimento, eventos, turismo, hotelaria, marketing e seus correlatos e administração organizacional; e na área da Comunicação Organizacional, trabalhando com temas ligados a comportamento, cultura e sub-cultura. É consultor de empresa, auditor, jornalista, publicitário e ator profissional.

A comunicação empresarial como ferramenta

da responsabilidade social

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INTRODUÇÃO

O objetivo do presente estudo é apresentar a Comunicação Empre-sarial como uma ferramenta estratégica que se consolida a cada dia como um instrumento primordial no diferencial competitivo das organizações públicas e privadas. Essa Comunicação Empresarial tem um importante papel a desempenhar nos programas de responsabilidade social desen-volvidos pelas empresas, pois identifica não apenas os públicos a serem atingidos como também define os canais de relacionamento mais eficazes para esta interação, ao mesmo tempo que consolida a imagem positiva e a reputação da empresa divulgando sua atuação social.

A comunicação é fundamental na gestão, nos procedimentos das organizações, auxiliando na condução de suas políticas para que não se es-palhem boatos, rumores e suposições – que acarretam, muitas das vezes, piores consequências do enredamento de crises. Como diz Magalhães: Um caminho a ser percorrido pelas empresas é a consolidação de uma maior fundamentação teórica para o exercício da comunicação empre-sarial, pois as organizações dependem de uma comunicação eficiente, que possa acompanhar o ritmo de desenvolvimento e a alta competiti-vidade do mercado globalizado. Por isso, a necessidade de profissionais que, embasados no conhecimento da teoria, não tenham medo de ousar, experimentar, colocar em prática ideias inovadoras. Estes profissionais precisam criar novas perspectivas, demandas, canais de comunicação, pois esta atividade vai muito além da produção de peças institucionais, home pages, folders, jornais e outros, é uma ferramenta primordial no diferencial competitivo das organizações públicas e privadas. Quando se tem uma comunicação eficiente não se deve ignorar, de forma alguma, a comunicação interna que, quando bem trabalhada, faz com que todos os indivíduos se sintam parte importante do processo de gestão. Assim há o compromisso na legitimidade do processo de decisão e se estabelece uma relação de confiança entre empresa e público interno.

Comunicação Empresarial em concomitância com a Gestão Par-ticipativa e a Responsabilidade Social têm requerido, de empresas e pro-fissionais, uma conduta adequada aos novos tempos e aos novos desafios. Eles continuam valorizando a intuição e a criatividade, mas precisam ser pensados em outro patamar, caracterizando-se pelo planejamento, pelo de-senvolvimento de sistemas de avaliação, pelo uso intensivo das tecnologias

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e pela obediência aos princípios da ética, transparência e da cidadania.Não posso negar que tenho pretensões com este trabalho. Em pri-

meiro lugar, seria importante que, mais do que lido e avaliado como um artigo, ele pudesse elucidar e extrair informações, conhecimentos, opini-ões e estimulasse o debate. Em segundo lugar, seria ainda mais recompen-sador se ele incomodasse algumas pessoas que, em represália, se dispuses-sem a refutar alguns comentários meus, obrigando-me a um repensar, o que é especialmente salutar. Por fim, e acho que essa é a pretensão maior, ficaria feliz da vida se meu trabalho estimulasse professores, alunos, pes-quisadores e, sobretudo, profissionais a colocar em prática as ações que aqui descrevo cujo sucesso pode ser demonstrado se implementadas com competência e de maneira eficiente e eficaz.

A COMUNICAÇÃO EMPRESARIAL COMO VANTAGEM COMPETITIVA

As empresas passaram por fantásticas transformações nas últimas duas décadas, num processo que continuará provavelmente nos próximos anos, com consequências ainda imprevisíveis, tal a velocidade e a natureza das mudanças.

O impacto da Revolução da Informação já redesenha as empresas e o universo dos negócios, mas está apenas começando. A revolução tecno-lógica, particularmente a Internet, determinará o fracasso ou o sucesso de empresas e negócios, mudará a estrutura dos mercados, o comportamen-to dos consumidores e as relações trabalho-capital. Com o tempo, vai im-pactar toda a vida social, os valores, a política e a cultura. Apesar de toda essa revolução, a tecnologia, cada vez mais acessível em qualquer parte do planeta, costuma colocar as empresas num mesmo patamar, sem grandes diferenciais e sem abismos em relação às vantagens competitivas.

Nesse novo cenário, quais serão as vantagens competitivas de uma empresa ou de uma marca? Os publicitários são os únicos com uma res-posta na ponta da língua. Para eles, diferenciais ou vantagens competiti-vas não precisam ter ligação com o mundo real, pois elas podem ser pu-ramente subjetivas e conceituais. Atualmente, não importa mais oferecer preço baixo e oferecer serviços de qualidade. Hoje o grande diferencial de mercado é o atendimento. Cada vez mais, o consumidor e a sociedade como um todo estão impondo novas exigências às empresas, o que esta-belece outros parâmetros para se determinar as vantagens competitivas de uma empresa ou de uma marca.

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Diante desse cenário, a sociedade começa a entender que, tanto quanto os governos nacionais ou os organismos internacionais, as empre-sas são também responsáveis pela transformação social. Assim, deve ser cobrada delas uma atuação socialmente responsável na proporção de sua riqueza e de seu poder de ação – e na proporção daquilo que recebem da sociedade. Outro aspecto importante: assim como o capital privado expandiu-se, exercendo impacto sobre as economias e a vida das pessoas, os governos nacionais perderam força e restringiram sua área de atua-ção, abrindo mão, por exemplo, do papel de empresário que costumava exercer em boa parte dos países. Mais que isso, declararam-se impotentes para resolver problemas que competem a eles resolver. Da mesma forma, a produção cultural do País e, como destaque, o ressurgimento do cinema brasileiro, está se fortalecendo com o patrocínio das empresas, com ou sem incentivos fiscais. O que concluir de tudo isso? A constatação mais óbvia é a de que a sociedade não mais encara a empresa como um mero fabricante de produto ou prestador de serviços que atende às suas neces-sidades imediatas e gera empregos. Ela quer saber como a empresa fabrica seus produtos; se usa ou não mão de obra infantil; se emprega pesticidas que degradam o meio ambiente ou se desenvolve ações e programas para protegê-lo; se discrimina ou valoriza as mulheres e as minorias; se, de fato, está contribuindo para reduzir os desequilíbrios sociais. Com a conscien-tização e a mobilização crescentes da sociedade pela defesa de seus direi-tos de cidadania, em várias partes do mundo, aumenta a cobrança sobre as empresas. Exatamente nesse momento, aumenta também a responsabi-lidade de uma comunicação empresarial de qualidade. O professor ameri-cano James Grunig, da Universidade de Maryland, especialista em comu-nicação empresarial, fez uma extensa pesquisa entre as maiores empresas dos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido para descobrir que aspectos determinam a excelência do gerenciamento da comunicação empresarial. Em seu livro “Excellence in Public Relations and Communication Ma-nagement”, aponta 12 características que definem a excelência da comu-nicação de uma empresa. Algumas são extremamente óbvias e valem para todos os setores da empresa, como a necessidade de recursos humanos competentes, de uma estrutura orgânica e de liderança. Mas ele inclui ou-tras qualidades que só tiveram reconhecimento na última década, mesmo em países mais desenvolvidos. Uma delas é a responsabilidade social, ou como as empresas administram o negócio com os olhos voltados para os efeitos que suas decisões possam provocar na sociedade.

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O professor concluiu que a excelência empresarial, incluindo a excelência de sua comunicação com os diversos públicos, não está des-vinculada do comportamento social da empresa, da forma com que ela se envolve nas questões sociais ou de seu comprometimento com as causas sociais mais amplas. Outra característica que Grunig observou nas em-presas bem-sucedidas é o apoio às mulheres e às minorias. Ele constatou que as organizações que têm uma comunicação excelente – e são exce-lentes nos outros setores – reconhecem o valor da diversidade, empre-gando mulheres, deficientes físicos e minorias e permitindo seu acesso a cargos de decisão. Antes, esse tipo de decisão empresarial tinha a ver com paternalismo, assistencialismo ou com os princípios cristãos da caridade. Hoje, é exercício da responsabilidade social. Mas é também um diferen-cial estratégico do negócio e pode constituir-se em vantagem comparativa e competitiva.

No Brasil, ainda estamos engatilhando nesse caminho. Mas, cada vez mais, o lucro e o sucesso das empresas nacionais dependerão não só de suas competências essenciais, de tecnologias avançadas, de suas formas de gestão e da confiança dos acionistas, mas também de como elas se com-portam socialmente.

A organização transparente está, por definição, aberta ao diálogo. Isso significa que ela se empenha tanto em falar quanto em ouvir, estabe-lecendo canais permanentes com os seus públicos e buscando, diligen-temente, adaptar-se às novas demandas ou desafios. Ela está pronta para incorporar as sugestões dos seus colaboradores e admite rever ações e es-tratégias, se elas não se mostrarem adequadas. A organização transparen-te prioriza o atendimento, favorece o contato e, sob nenhuma hipótese, manipula dados ou informações, com o objetivo de conseguir vantagens. Ela pratica, como diz o mercado, o jogo limpo. A história recente tem registrado casos emblemáticos de empresas (Coca-Cola, Schering do Bra-sil, Union Carbide etc) que, um dia, transgrediram o princípio da trans-parência e se deram mal. Como regra geral, o mercado não admite ser ludibriado e cobra caro das empresas ou entidades que gostam de agir nos bastidores. Da mesma forma, valoriza aquelas que, com franqueza, reve-lam suas virtudes ou confessam seus deslizes. Em tempos de Internet, em que prevalece a informação rápida e qualificada, a comunicação truncada não tem vez. Os especialistas continuam com a razão: a empresa ou enti-dade que não se comunica, ou tem pouco para contar ou tem muito para esconder. Em qualquer um dos casos, ela estará em desvantagem no mer-

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cado. Empresas que pretendem sobreviver no mercado e, consequente-mente, crescer têm como premissa a adoção de uma atitude transparente diante de seus públicos, divulgando constantemente sua cultura, valores e projetos. É imperioso apresentar claramente sua filosofia e missão eco-nômica e social através da comunicação empresarial. A comunicação da “nova economia” deve valorizar o destinatário que se apresenta ativo, ou seja, ele elege o que quer saber e precisa ter a possibilidade de livre acesso à informação para absorver e compreender o conteúdo da mensagem.

Segundo Norberto Odebrecht, “as únicas forças que existem con-cretamente numa organização são os líderes e suas equipes, os respectivos negócios e a comunicação entre eles; tudo mais é conseqüência” (ODE-BRECHT, 1998, p. 53). Os líderes adquirem um papel importante, pois a delegação de responsabilidades e autoridade é considerada o motor do crescimento das organizações. Ainda de acordo com Odebrech (1998, p. 80/81),

a comunicação é o instrumental de mão dupla que liga o líder ao liderado, pela via do contato pessoal e direto. Por meio dela, o liderado solicita e obtém o apoio do líder para superar os resultados pactuados, bem como ambos acompanham, avaliam e julgam o desempenho do lidera-do.

Na verdade, a comunicação permitirá o acompanhamento, a ava-liação e o julgamento dos resultados. Por isso, deve envolver todos os ato-res que direta ou indiretamente participem do processo de satisfação do cliente, a fim de que todos possam compartilhar do mesmo sentimento de missão e oferecer sua contribuição para o sucesso. Assim, ao desenvol-ver propostas comunicacionais, as empresas devem levar em conta que o público externo é atingido por ações de comunicação de marketing e corporativa.

Para Chiavenato (1999, p. 104),

os paradigmas da normalidade artificial não resistem aos novos tempos de transformações rápidas e radicais. A efi-ciência deixou de ser a base referencial à produtividade da mesma forma que as relações hierarquizadas de poder e de regulamentação das comunicações. (...) O paradigma vitorioso é agir rápido, lucrar logo e descartar ligeiro, em

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favor de novas demandas e propostas.

Trabalhar a comunicação interna é muito mais que informar fun-cionários das decisões da diretoria e das novas regras que devem ser obser-vadas para o comportamento em situações diversas. Exige sensibilidade para perceber que o diálogo não deve ser procurado apenas em situações de emergência e que manter a credibilidade dos empregados na organiza-ção é uma atitude democrática que contribui para a harmonia na relação capital/trabalho, líder/liderado, empresa/empregado, ou como é deno-minado atualmente, colaborador.

A COMUNICAÇÃO COMO INTELIGÊNCIA EMPRESARIAL

A próxima etapa a ser vencida pela Comunicação Empresarial é a de sua consolidação como instrumento de inteligência empresarial. Ape-sar da crescente profissionalização da área, o empirismo ainda governa a maioria das ações e estratégias de comunicação postas em prática pelas empresas. Em razão de seu caráter estratégico, Bueno (2003) afirma que:

A Comunicação Empresarial deve respaldar-se em banco de dados inteligentes, em um conhecimento mais profun-do dos seus públicos de interesse, dos canais de comuni-cação e da própria mídia, superando o planejamento e o processo de tomada de decisões que se balizam unicamen-te pela visão impressionista de seus profissionais.

A comunicação como inteligência empresarial não pode fazer con-cessão ao improviso. Apoia-se em metodologias, em pesquisas, em desen-volvimento de teorias e conceitos a serem aplicados a novas situações e, sobretudo, na necessidade imperiosa de dotar a comunicação de um novo perfil: a passagem real do tático para o estratégico.

Essa comunicação como inteligência empresarial exige uma nova postura. Provavelmente, as empresas – com a parceria de importantes universidades brasileiras e de grupos de pesquisa – estarão investindo certamente no futuro para estabelecer um novo paradigma. Nele a expe-riência e a intuição, como acontece em todo o campo científico, não serão descartadas; pelo contrário, a investigação, a pesquisa, a sistematização dos dados deverão se impor como instrumentos de legitimação das ações, estratégias e canais de comunicação.

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MUITO ALÉM DO LUCRO

Paulo Nassar e Rubens Figueiredo em seu livro: O que é Comunica-ção Empresarial (1995) afirmam que: “A sociedade e o mercado consumi-dor tornaram-se bastante hostis às “empresas analfabetas”, que não aprende-ram a ouvir, falar, se expressar e principalmente dialogar no ambiente onde atuam.” E hostilidade, no caso, significa boicotar produtos, dificultar a ope-ração da empresa, tornando-as, de alguma forma, persona non grata.

Como se pode ver hoje em dia, a propaganda é apenas uma parte da comunicação atual das empresas. A comunicação empresarial se uti-liza de muitas linguagens, que não têm necessariamente como objetivo imediato o processo de vendas, mas que não deixam de ser ferramentas fundamentais do marketing na empresa. Dentre essas linguagens estão a das relações públicas, a da imprensa e a de atendimento direto ao con-sumidor. As ações dessas áreas de comunicação empresarial, se não são diretamente mensuráveis num balanço contábil, podem significar, no mí-nimo, a simpatia da sociedade, a fidelidade dos consumidores e um bom relacionamento com os trabalhadores. A comunicação da empresa com a sociedade, com o consumidor, com os seus empregados, virou parte da fórmula de cada um dos seus produtos. Os consumidores querem cada vez mais que sejam adicionados aos seus produtos e serviços preferidos qualidade e respeito social; melhores preços e materiais biodegradáveis; assistência técnica e respeito aos direitos trabalhistas. Os olhos da socie-dade e dos consumidores querem ver o que move a empresa além do lu-cro. As ações da Comunicação Empresarial agindo de forma conjunta e integrada, mostrando a personalidade da empresa para o social em todas as suas ações.

A MASSA QUER O LUXO

Num contexto de grande competitividade entre as empresas e de uma cobrança cada vez maior por parte dos consumidores e da sociedade, a comunicação com os mais diversos públicos se torna indispensável para o sucesso. A Comunicação Empresarial é uma verdadeira guerra com mui-tas frentes de batalha: uma voltada para mostrar que a empresa tem uma relação de respeito com a natureza, visando, sobretudo, a sua preservação; e a outra para manter e conquistar novos consumidores – a frente de bata-

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lha da comunicação interna, dirigida para os imensos exércitos de empre-gados uniformizados que constituem os recursos humanos das empresas modernas. Nessa guerra de comunicação, as empresas vão construindo as suas imagens institucionais, ou seja, aquela imagem que é a soma de todas as outras imagens da empresa. Isso acrescentado a outros tantos aspectos simbólicos que a comunicação e as ações das empresas vão passando aos mais diversos públicos ao longo da história de cada uma dessas organiza-ções. A imagem institucional de uma empresa é um ser vivo, dinâmico. Hoje pode estar saudável, bem vista, aceita, festejada. Amanhã? Vai de-pender da história de hoje. Uma boa comunicação empresarial é condição primária para uma boa imagem institucional da empresa. A comunicação requer agilidade e rapidez para se evitar na imprensa a tão prejudicial ex-pressão: “A empresa se recusou a falar sobre o assunto.” A comunicação das empresas com os seus públicos internos tem todas as características de uma comunicação de massa. Ela revela uma faceta interessante que não pode ser desprezada pelos comunicadores empresariais e pelos gestores: o público empresarial é hostil às formas artesanais de comunicação. A mas-sa quer o luxo na sua comunicação interna, isso porque o público interno confronta, a todo tempo, os padrões de criação e produção das mídias internas de massa com as externas tradicionais. O que quero dizer com isso é que os públicos internos rejeitam, por exemplo, os quadros de avisos sem programação visual, o jornal da empresa feito amadoristicamente, o vídeo empresarial sem edição profissional e sem o glamour e o dinamismo dos recursos eletrônicos. Outra necessidade importante dessa comunica-ção empresarial é medir, de forma científica, a eficiência e a credibilidade dos veículos de comunicação utilizados aos públicos internos.

COMUNICAÇÃO EMPRESARIAL E RESPONSABILIDADE SOCIAL

A sociedade moderna descobriu as coisas ruins do progresso. Entre elas está a degradação do meio ambiente, representada pelo impacto da ati-vidade industrial sobre os elementos arquétipos: ar, água, fogo e terra. O que a atividade industrial está fazendo com esses elementos é uma questão de sobrevivência da humanidade que extrapola as classes sociais, as diferenças étnicas e as barreiras culturais. É por essa importância que a comunicação que as empresas estão fazendo sobre o seu relacionamento com seus públi-cos é algo que deve estar ao alcance de todos os sentidos da sociedade. Essa sociedade, como um todo, requer ética na condução dos negócios e está dis-

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posta a combater a corrupção, os lobbies ilegítimos e os monopólios. Das organizações modernas passa a ser exigido mais do que o cumprimento das obrigações legais, como o pagamento de impostos, por exemplo. As organi-zações começaram a perceber que sua imagem pública depende da avaliação de um conjunto diversificado de públicos, mesmo daqueles com os quais ela não tem contato direto, o que torna mais difícil o seu gerenciamento. Em contrapartida, para as empresas que cumprem à risca sua responsabilidade social sobram as referências elogiosas na mídia, o respeito da comunidade e dos cidadãos, em particular.

A EVOLUÇÃO DE UM CONCEITO

O uso ampliado da expressão responsabilidade social certamente evidencia sua importância, mas ao mesmo tempo tem propiciado leituras muito distintas, que se estendem do comportamento ético à prática da ca-ridade. Tomando por base a literatura existente e o exemplo de empresas e entidades que têm praticado, com sucesso e adequação, a responsabilidade social, adotei aqui o seguinte conceito: “Responsabilidade Social é o exer-cício planejado e sistemático de ações, estratégias, e a implementação de canais de relacionamento entre uma organização, seus públicos de interes-se e a própria sociedade” (BUENO, 2003, p.106). Algumas considerações devem ser feitas em complemento a este conceito, visando a esclarecer e ex-pandir algumas ideias nele inseridas. Na verdade, a responsabilidade social, por estar vinculada ao processo de gestão, deve ser como vista mais do que uma simples prática: deve estar umbilicalmente associada a uma filosofia negocial que contemple aspectos que extrapolam a mera relação comer-cial/financeira das empresas. Ela não se viabiliza com base em uma decisão ou vontade do topo da organização, mas deve permear todos os seus públi-cos e parceiros, sendo expressão da própria cultura da organização.

A responsabilidade social não se restringe ao relacionamento com públicos determinados, mas engloba a interface com todos os públicos de interesse e com a própria sociedade, de modo que ela deve ser vista num sentido global. O conceito moderno de stakeholders, tomado generica-mente como todos os públicos de interesse que, direta ou indiretamente, contribuem para moldar a imagem da empresa, sinaliza para a necessidade de uma conduta íntegra, ética, transparente, a ser desenvolvida perante to-dos os públicos e em todos os momentos. A responsabilidade social tam-bém não se confunde com o marketing social em seu sentido estrito, por

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dois motivos:1. Ela compreende mais do que os simples projetos destinados à

valorização da cultura, do esporte, etc., ainda que eles possam fazer parte desta prática responsável;

2. Muitos projetos de marketing social têm como inspiração maior – às vezes única – alavancar negócios e vendas, tangenciando o social ape-nas como uma forma de ludibriar o consumidor e o cidadão de maneira geral. Geralmente, esses projetos têm uma duração efêmera – enquanto dura a campanha ou a ação de marketing – não se sustentando em longo prazo, ficando evidente o seu caráter oportunista.

A VERTENTE COMUNICACIONAL

A Comunicação Empresarial é uma componente nevrálgica de todo o processo de gestão focado na responsabilidade social. Ela sinte-tiza e explicita o compromisso da organização com a sociedade e com os stakeholders, e quando realizada com competência, ética e transparência, agrega valor fundamental aos negócios e contribui, decisivamente, para a formação de uma boa imagem pública. Segundo Wilson Bueno (2003):

Algumas empresas têm uma leitura equivocada da aplica-ção dos conceitos dos princípios éticos e de responsabi-lidade social à sua prática comunicacional. Muitas vezes, sobrepõem os seus interesses ao da sociedade, manipulan-do informações, pressionando veículos ou profissionais de imprensa que possam contrariar os seus interesses, proclamando vantagens que seus produtos e serviços não oferecem, limitando a participação e o diálogo dos cola-boradores e exercendo, censura, velada ou manifesta, aos seus house-organs.

A responsabilidade social e o exercício da cidadania não devem ja-mais ser confundidos com estes espasmos de filantropia às avessas, porque na prática só a aristocracia se beneficia; as organizações pouco lucram e a comunidade nada usufrui. Vale frisar sempre que, quando se abraça uma causa social, é por muito tempo e o abraço tem que ser sincero e apertado. Os tapinhas nas costas não podem ser catalogados como ações legítimas e nem deveriam figurar no balanço social das empresas.

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CONCLUSÃO

Embora o processo de comunicação seja imprescindível para qual-quer organização social, o fato de existir uma Comunicação Empresa-rial formalizada não garante que todos os problemas da empresa sejam resolvidos. Afinal, o aspecto relacional da comunicação do dia a dia nas organizações sofre interferências e condicionamentos variados dado o volume e os diferentes tipos de comunicações existentes. A gestão estra-tégica veio aprofundar a busca de integração com o ambiente externo defendida pela teoria sistêmica, oferecendo métodos de prospecção de oportunidades e ameaças no mercado e mecanismos mais sofisticados de planejamento corporativo. Esses são os desafios com que se defronta hoje a área de Comunicação Empresarial. Com isso ganha força a necessidade de a comunicação tornar-se função de toda a organização, incorporando-se ao papel gerencial, integrando-se efetivamente ao processo de decisão da empresa. Para as empresas sobreviverem aos desafios do novo milênio será necessário não só a adoção de uma estrutura de Comunicação Em-presarial profissionalizada e integrada ao processo de decisão, como tam-bém a incorporação de novos valores, processos de gestão participativa – incluindo constante avaliação dos efeitos comunicacionais - e novas formas de relacionamento com a sociedade, assumindo de forma plena a sua responsabilidade social. Uma série de fatores tem concorrido para alterar o perfil tradicional da Comunicação Empresarial, que se aproxima rapidamente de um novo paradigma. Fundamental, ela se coloca como estratégia e como vital para o processo de tomada de decisões, ocupando posição destacada no organograma das organizações. O aumento acelera-do da circulação de informações e a convicção de que a imagem de uma empresa é construída com base em leituras distintas feitas por um número formidável de públicos de interesse (stakeholders) tornam o processo co-municacional mais complexo.

Quando a Comunicação Empresarial fala das pessoas e para as pes-soas, ela interioriza e dissemina os conceitos de credibilidade, relevância e significado nas atitudes do dia a dia e passa a atribuir valor a quem de-tém esse valor. E, quando a comunicação empresarial sai do veículo para o comportamento, causa um genuíno movimento de dentro para fora, no qual todas as relações dos funcionários com clientes, fornecedores, parceiros também passarão a estar alicerçadas. Portanto, o desafio está

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lançado: criar as condições para que haja a percepção desse valor. Cabe a cada um de nós, estudiosos da administração, comunicação e gestores organizacionais, adquirir a consciência de que a comunicação empresarial integrada à responsabilidade social não surge por geração espontânea. São criados por pessoas como nós, que poderemos, portanto, aperfeiçoá- los, se tivermos abertura mental e coragem suficiente para tanto. Nossas or-ganizações deverão ser, no futuro, aquilo que construímos hoje, seja com nossa passividade seja com nossa proatividade e ações para as mudanças.

REFERÊNCIAS

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Li-Chang Shuen Cristina Silva Sousa

A AUTORA

Professora Assistente no Curso de Comunicação Social/Jornalismo da Univer-sidade Federal do Maranhão, Campus II. Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal do Maranhão (2002) e mestrado em Comu-nicação pela Universidade Federal de Pernambuco (2005). Atualmente é dou-toranda do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas da Univer-sidade de Brasília. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo, atuando principalmente nos seguintes temas: televisão, jornalismo, entretenimento, esporte, cultura e globalização.

Sequestro midiático: informação, entretenimento e construção midiática da realidade na cobertura do caso Eloá1

1 Artigo apresentado na VIII Reunião de Antropologia do Mercosul, em 2009, Buenos Aires-Argentina.

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INTRODUÇÃO

No início da tarde do dia 13 de outubro de 2008, a rotina da ado-lescente Eloá Cristina Pimentel foi alterada quando o ex-namorado in-vadiu o apartamento em que estudava na companhia de três colegas de escola. Algumas horas depois, foi a vez da rotina midiática ser alterada com a notícia do sequestro passional. Até o desfecho do caso, quase uma semana depois, toda a mídia – a eletrônica em especial – ofereceu ao pú-blico um espetáculo macabro que culminou na morte da menina. A mídia satisfez a curiosidade pública? Sem dúvidas. Se não houvesse um público interessado na história, o acontecimento não seria notícia. Entretanto, se não houvesse a disposição midiática em pinçar o acontecimento do ano-nimato e dar a ele o destaque dado seria apenas mais um caso de crime passional a inflar as estatísticas da polícia e da prática psiquiátrica.

Um acontecimento só é alçado à categoria de notícia se a conjun-tura de sua publicização for favorável, o que implica dizer que a noticia-bilidade não é um dado estrutural, intrínseco ao fato que irá ser transfor-mado em notícia, mas algo dependente de seu contexto de produção e circulação. A noticiabilidade é o conjunto de elementos que indicam ao jornalista se um acontecimento merece romper o anonimato cotidiano e transformar-se em notícia, implicando uma série de valores – os valores-notícia, atributos encontrados no acontecimento que o diferenciam dos demais e o credenciam para estampar as páginas dos jornais e ocupar tem-po na mídia eletrônica.

Podemos citar como critérios de noticiabilidade aquilo que des-perta o interesse do público, o que atinge o maior número de pessoas, o que diz respeito a pessoas importantes, a fatos inusitados, a novidades, a personagens com as quais o público pode se identificar e que ofereçam boas imagens, no caso da televisão. Pode-se adicionar a essa lista uma série de valores associados. Para ser notícia na televisão, o acontecimento deve atender a mais algumas exigências, identificadas por Calabrese (Apud Coutinho: 2003, mimeo), que aponta quatro critérios de noticiabilidade fundamentais na televisão: o acontecimento deve ser marcado por uma forte unicidade, ser parte de uma grande narrativa, ter impacto passional muito forte ou ter um potencial para ser apresentado de forma muito es-petacular.

A unicidade diz respeito à capacidade de os fatos poderem ser

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contados como uma estória com início, meio e fim de forma uniforme e encadeada. Também têm forte possibilidade de serem noticiados aqueles acontecimentos que remetem às narrativas presentes na memória coletiva do público. Um exemplo é o que ocorre no noticiário esportivo, no qual situações que possam remeter ao esporte como meio de fugir da violên-cia e da pobreza sempre encontram espaço na televisão. O mesmo ocorre com o impacto passional que as notícias podem ter: em televisão, mais que informar é preciso emocionar como forma de despertar o interesse para um produto que concorre, por exemplo, com filmes e com dramas explorados pela teledramaturgia.

A notícia na televisão deve ser apresentada de forma a não destoar do conjunto da programação da emissora que a veicula:

enquanto nos jornais é o gênero mais importante, na TV, o noticiário tem de disputar, sobretudo com os programas de entretenimento, um lugar na programação. Com isso, a duração dos telejornais tem de reduzir drasticamente o número de notícias, por meio de uma rigorosa seleção de matérias levadas ao ar nos programas informativos. (...). Os constrangimentos causados pela falta de tempo afe-tam a produção jornalística também pela influência da di-tadura do padrão publicitário: a maioria das notícias em TV tem de caber no formato de 20 a 30 segundos, que, não por coincidência, é o tempo que duram os comerciais exibidos pelas emissoras (REZENDE: 2000, p.86).

Logo, podemos concluir que outro critério de noticiabilidade aplicado na seleção para o telejornal é que o acontecimento, de alguma forma, deve se enquadrar em uma linha editorial próxima à da emissora para ter mais chan-ces de ser “coberto” e tornado público. Logicamente existem aqueles aconte-cimentos — ou pessoas — que escapam a esse enquadramento. Neste caso, as notícias que geram, na maioria das vezes, ou não são publicizadas ou são secundarizadas no fluxo informativo, veiculadas como “notícias menores”.

No caso em análise, observamos que o acontecimento, uma notícia dura, reuniu todos os elementos necessários para ser tornado público. E mais: por suas características e por elementos intrínsecos à constituição da televisão brasileira, a notícia saiu do âmbito dos telejornais para ganhar espaço em toda a programação, sendo mantida uma unicidade narrativa que a transformou em evento midiático.

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DA DUREZA DA NOTÍCIA À HUMANIZAÇÃO DO RELATO

Tuchman (1983: 59) identifica cinco tipos de notícias: duras, sú-bitas, brandas ou leves, em desenvolvimento e notícias de sequência. Esta classificação, explica a autora, diferencia tipos de conteúdos ou de temas. A notícia dura representa o que é de interesse público, questões importan-tes para as pessoas enquanto cidadãs. Já a notícia branda trata de questões interessantes, comumente identificadas com relatos de interesse humano. Mas a autora lembra que é difícil diferenciar se um dado acontecimento é importante ou interessante ou se é interessante e importante ao mesmo tempo.

Se existe dificuldade de distinção entre notícias duras e brandas, o mesmo ocorre entre as notícias súbitas e em desenvolvimento e as de sequência. Notícias súbitas e em desenvolvimento são como subclassifi-cações das notícias duras e, no caso das súbitas, definem-se pelos acon-tecimentos não programados, imprevistos, que devem ser processados e publicizados com rapidez. As notícias em desenvolvimento se referem a situações de emergência, que não se esgotam em sua irrupção no espaço público e continuam a gerar fatos novos.

Já as notícias de sequência são acontecimentos pré-programados que se constituem numa série de relatos sobre o mesmo tema e tais relatos são baseados em acontecimentos que ocorrem durante um determinado espaço de tempo. As referidas tipificações, porém, não devem ser vistas como classificações fechadas, porque as notícias são dinâmicas, assim como dinâmicos são a sociedade e o Jornalismo.

Acontecimentos pré-programados, pensados e executados com o objetivo de ocupar a mídia, podem ser chamados de eventos midiáticos. De acordo com Dayan e Katz (1999:17), são acontecimentos que dão “forma a um novo gênero de narrativa que emprega o potencial único dos media eletrônicos para exigir uma atenção universal e simultânea, com o objetivo de a fixar numa história que está a ser contada sobre a actualida-de.” Os autores complementam a definição, explicando que

as audiências recebem-nas como um convite – ou mesmo uma ordem – para pararem a rotina diária e partilharem uma experiência festiva, e se esta festividade está para a normalidade como um feriado está para o comum dos dias, estes acontecimentos são os dias de férias da comu-nicação social (ibdem).

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Podemos adaptar o conceito dos autores e incluir, ao lado do ter-mo festividades, também as tragédias e angústias prolongadas que a mídia apropria em seu fluxo regular, transformando-as em eventos midiáticos. Um exemplo recente foi a morte da princesa Diana, em 1997. Foi o que aconteceu, também, com o sequestro da jovem Eloá Pimentel. Interessan-te notar que o elemento de interesse humano presente em uma hard news foi decisivo para que o acontecimento fosse apropriado pela mídia, em especial pela televisão, que por suas características pode atualizar a audi-ência a cada mínima mudança ou movimentação no cenário da notícia.

Sequestros são, em certa medida, comuns. O incomum é uma situ-ação de cárcere privado como a que aconteceu com a menina, cárcere mo-tivado por pressão emocional. Em todo caso, o acontecimento se revestiu de um caráter hard, de urgência. Havia ali, entretanto, elementos que fo-ram habilmente manipulados para que a audiência mantivesse o interesse. Acompanhar o desfecho de uma história ao vivo dá ao telespectador o sen-tido de pertença, de identidade, de compartilhamento da realidade, mesmo que midiática. Afinal, conforme Wolton (1996:15), o caráter principal da televisão é “reunir indivíduos que tudo tende a separar e oferecer-lhes a pos-sibilidade de participar de uma atividade coletiva”, uma forma de aliança entre o individual e o coletivo, entre o indivíduo e a comunidade.

Outro fator importante a ser considerado é o modo de funciona-mento da TV brasileira que, de acordo com Bucci (1996), obedece a cinco constantes: o telejornalismo é organizado como um melodrama; a teleno-vela funciona como um elo entre o Brasil real e o Brasil imaginário; há a reprodução da exclusão social ao mesmo tempo em que se promove a inte-gração; existe a dependência de eventos que tenham a pátria por objeto; e a televisão brasileira sente necessidade de ir além de seus limites.

Organizado como um melodrama, o jornalismo então encontra-se sem amarras para operar a transmutação de um acontecimento que, a prin-cípio, deve ser tratado como hard news em notícia de interesse humano. Humanizando os personagens envolvidos, transformando-os em pessoas iguais aos telespectadores, aproximando-os do cotidiano do cidadão co-mum, temos que o telejornalismo nos oferece uma telenovela – no caso, pela duração e intensidade, uma espécie de minissérie – cujo roteiro se es-creve diariamente, ao vivo, diante dos olhos de uma multidão perplexa e que não consegue, e nem quer, apertar o botão off do controle remoto e se desligar daquela realidade. Realidade que ela sabe não ser a sua, mas que se impõe como se assim fosse.

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Um evento midiático tem a capacidade de se alimentar retroativa-mente. Até a falta de novidades é notícia. Os programas vespertinos da te-levisão aberta, voltados para um público interessado em fofocas de artistas e outras frivolidades, foram os principais responsáveis pela midiatização do sequestro de Eloá Pimentel, ao lado dos programas policialescos que entram no ar em seguida, pegando carona na audiência já consolidada no acompanhamento do evento. Não restou opção ao telejornalismo senão aquela de manter a cobertura do caso no mesmo nível de intensidade, secundarizando, inclusive, o noticiário sobre a crise financeira mundial. Entre algo que afeta o bolso mas parece distante da realidade diária do telespectador médio e aquilo que não o afeta de forma alguma, mas que é mostrado e sentido como “se fosse com um parente seu”, o público prefe-riu a segunda opção.

Podemos pensar além: não foi dada a ele opção nenhuma. A crise, o mundo da alta política e da alta economia, as eleições municipais – nada disso teria o apelo que a história de uma bela adolescente prisioneira de um homem perturbado tem em um mundo de referência no qual amor, intrigas, alegrias e decepções estão mais próximos de cada um de nós do que uma catástrofe financeira. Assim, alguém escolheu o que pautaria as conversas de botequim naquela semana. Mas a escolha, que fique clara, não tem nada a ver com uma manipulação maniqueísta orquestrada por pessoas que não querem deixar o povo pensar sobre o que realmente inte-ressa. De forma alguma. A escolha foi pautada por um critério midiático: a audiência presumida.

Colocando-se “no lugar de quem assiste”, os jornalistas selecionam os assuntos noticiáveis a partir daquilo que acreditam o telespectador querer ver. Assim, o público também está presente na fase de produção da notícia (ALSINA: 1996). A audiência presumida é um fator importante, portanto, na construção da realidade noticiada porque os produtores — jornalistas nas mais variadas funções, e emissoras em geral — levam em consideração o que pode ir ao encontro das expectativas de quem assiste à televisão.

MIDIATIZAÇÃO DA MISÉRIA HUMANA: ENTRETENIMENTO E ESPETÁCULO

Desde os primórdios do jornalismo moderno, histórias envolven-do sentimentos e crimes ganham espaço nas páginas dos jornais. O século

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XIX, identificado por Traquina (1993) como o século das luzes do jorna-lismo, também viu nascer a imprensa barata e a imprensa marrom, aquela cujas páginas eram preenchidas com histórias extraordinárias e escânda-los os mais variados. Gabler (1999) afirma que desde o século XIX nos Estados Unidos e Europa, com o advento dos jornais baratos e da impren-sa sensacionalista, o jornalismo se transformou no canal de disseminação daquilo que proporcionava às massas trabalhadoras uma espécie de fuga do cotidiano e de seus problemas.

De acordo com Alsina (1996), a notícia não se esgota em sua pro-dução — mas se define por e engloba, também, a sua circulação e o seu consumo. Qualquer crítica ao conteúdo oferecido pelos jornais e notici-ários de meios audiovisuais deve levar em consideração os aspectos rela-tivos ao meio em que é veiculada e aqueles que dizem respeito à audiên-cia específica de cada conteúdo. Kunczik (1997:106), inclusive, afirma que a distinção entre jornalismo e entretenimento em um meio como a televisão, por exemplo, é dada em nível apenas dos produtores, não dos consumidores:

para o receptor, o entretenimento é simplesmente aquilo que entretém, vale dizer, a ausência de tédio. Basicamente, a separação de informação e entretenimento, que ainda existe nos organogramas de muitas empresas dos meios de comunicação, não tem nenhum sentindo para os recepto-res. Para eles, o oposto da mensagem de entretenimento dos meios de comunicação não é o conhecimento infor-mativo, mas o conteúdo que não lhes agrada.

O conteúdo que agrada ao público tende cada vez mais a ser espe-táculo social mediado pelas imagens e, mais categoricamente, espetáculo construído sobre o social através das imagens do cotidiano. Limitado em seu poder de representação total da realidade, o jornalismo se encarrega de criar consenso em torno do que é constituído e mostrado como real. Desta forma, a representação passa a ser aquela do consenso. O consenso, acrescente-se, reduz a possibilidade de interpretações próprias por parte de uma audiência que é cada vez mais domesticada a aceitar o espetáculo que a mídia lhe oferece sem questionamentos. Para ficar em apenas um exemplo, não se questionou, em momento algum, a responsabilidade dos pais da garota no episódio. Afinal, o fato de uma criança de 12 anos rece-ber autorização para namorar um homem de 19, que três anos depois se

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revelaria ciumento e violento ao ponto do sequestro e do assassinato, tam-bém é um elemento crucial para o entendimento da história que acompa-nhamos ao longo de uma semana, mas que em momento algum foi posto para discussão. Talvez porque julgou-se que tal elemento destoaria do ro-teiro previamente seguido pela mídia.

A redução da experiência/conhecimento de mundo dos indivídu-os ao que é representado nos meios de comuniação de massa é sintetizada no pensamento de Guy Debord (1997:188). Ele nos diz que

no plano das técnicas, a imagem construída e escolhida por outra pessoa se tornou a principal ligação do indiví-duo com o mundo que, antes, ele olhava por si mesmo, de cada lugar aonde pudesse ir. A partir de então, é evi-dente que a imagem será a sustentação de tudo, pois den-tro de uma imagem é possível justapor sem contradição qualquer coisa. O fluxo de imagens carrega tudo; outra pessoa comanda a seu bel-prazer esse resumo simplificado do mundo sensível, escolhe aonde irá esse fluxo e também o ritmo do que deve aí manifestar-se, como perpétua sur-presa arbitrária que não deixa nenhum tempo para a re-flexão, tudo isso independente do que o espectador possa entender ou pensar.

Em resumo: o mundo é espetacularizado pela mídia e resta ao pú-blico adaptar-se. Entretanto, a própria mídia tem que, continuamente, adaptar-se às demandas e desafios impostos pela diversificação de opções de entretenimento e informação disponíveis e ao alcance do público. Nis-so, adaptam-se também os critérios de seleção da notícia e as formas de publicá-las.

A REALIZAÇÃO MIDIÁTICA DO HOMEM

Nas sociedades altamente mediatizadas, tecnicizadas e individua-lizadas é comum as pessoas trocarem o espaço público tradicional de dis-cussão e convívio social por experiências de sociedade em rede, no qual o sentimento de pertença em uma comunidade se dá por meio da vivência e das informações fornecidas pelos meios de comunicação massivos, em especial a televisão. Os aspectos mais comuns da vida cotidiana passam a ter uma dimensão midiática, ou seja, os indivíduos pautam-se pela mídia

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para tomar decisões relativas a compras, ao comportamento social ou, por exemplo, à organização do tempo (exemplificado pela marcação do tem-po arquetípica no Brasil, onde parte significativa da população agenda seus compromissos em função do horário de seus programas favoritos na televisão).

Podemos afirmar que a televisão cumpre, no Brasil, uma função social específica ao possibilitar uma aliança entre o individual e o coletivo, entre o indivíduo e a comunidade. Em um país de dimensões continen-tais, a TV geralmente é o único elemento de convergência entre realidades regionais tão distintas. Wolton (1996) defende ser a televisão um meio de forjar — e manter — laços sociais via um mecanismo de identificação. Vilches (1996) afirma que a televisão é uma forma de expressar experiên-cias culturais e estéticas diversas que acabam por relativizar o conceito de realidade.

A diversidade de experiências partilhadas, mediadas pelas ondas hertzianas, ajuda a construir não apenas os laços sociais, o sentimento de povo em comunidade como afirma Wolton, mas também a própria rea-lidade. No caso da televisão brasileira, por exemplo, ela foi capaz de criar um elo entre os indivíduos de todas as partes do país forjando uma ideia de identidade nacional, entendendo por identidade a definição de Cas-tells (1999:22) como sendo “a fonte de significação e experiência de um povo”. Identidade esta talvez não nacional, mas midiática. Afinal, como afirma Wolton (1996:16),

a força da televisão está no religamento dos níveis da ex-periência individual e da coletiva. Ela é a única atividade a fazer a ligação igualitária entre ricos e pobres, jovens e velhos, rurais e urbanos, entre os cultos e os menos cultos. Todo mundo assiste à televisão e fala sobre ela. Qual outra atividade é, hoje, tão transversal? Se a televisão não exis-tisse, muita gente sonharia em inventar um instrumento capaz de reunir todos os públicos.

Tal reunião de públicos, observada durante a cobertura do seques-tro de Santo André, levou a uma comoção nacional em torno de um drama privado. Exprimir opinião sobre o acontecimento, angustiar-se com a de-mora na resolução do caso, indignar-se com o desfecho trágico e compar-tilhar tais sentimentos com milhões de pessoas são ações que permitem ao indivíduo sentir-se cidadão participante da vida nacional. Se na arena po-

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lítica o indivíduo nem sempre tem a prerrogativa de atuar como cidadão, participando das decisões e influenciado as ações governamentais, diante de um evento midiático ele tem a oportunidade de se sentir inserido em uma realidade compartilhada por outros indivíduos que não se conhecem mas que sabem, naquele momento, que fazem parte de uma coletividade – real ou imaginada.

A coletividade midiática, no caso do Brasil, é algo que remonta à década de 1970, época em que um moderno sistema de telecomunicações foi im-plantado no país pelos governos militares a ponto de ser possível afirmar que o Brasil foi integrado via Embratel2. A partir daí, a televisão passou a ofere-cer uma autoimagem ao brasileiro integrado via sa-télite, em nível do imaginário, com as telenovelas, os telejornais e as transmissões dos jogos da sele-ção brasileira de futebol (Bucci:1996). Da mesma forma, as tragédias – coletivas ou privadas – fazem parte desse repertório de eventos que unem os bra-sileiros por meio da experiência midiática.

A coletivização de tragédias particulares é uma das estratégias mais comuns de criação de laços sociomidiáticos que ajudam a cimentar um sentimento de pertença entre sujeitos anônimos, isolados e que não se conhecem. A exposição a esse tipo de cobertura reforça ainda a ideia de que o ho-mem submetido à ordem da sociedade do espetá-culo é levado a deixar de viver o mundo das experi-ências palpáveis para viver aquele das experiências que só lhe são reais– só se tornam reais para ele – porque existem, por um lado, um discurso que a todo instante procura criar uma prática coletiva e, por outro, uma prática que corrobora o discurso (que lhe é anterior) e realimenta o processo de in-clusão do homem a uma sociedade midiatizada, na qual seus direitos são midiáticos.

A experiência e o conhecimento de mundo

2 Empresa Brasileira de Te-lecomunicações, criada em 1969 durante o governo do general Arthur da Costa e Silva como parte de um ou-sado projeto de integração nacional executado pelo re-gime militar (1964-1985). A Embratel foi responsável por desenvolver e implantar toda a infra-estrutura de te-lecomunicações no imenso território nacional até sua privatização em 1998.

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do indivíduo são reduzidos ao que se apresenta nos meios de comunica-ção massivos, os quais valorizam o espetáculo. De acordo com Debord (1997), espetáculo é uma ordem social mediada por imagens. O autor lembra que o caráter do espetáculo é a repetição de imagens e de temas, que dá origem a uma sociedade hipermidiatizada. O indivíduo da socie-dade espetacular tem na mídia o espelho de sua vida, ou da vida que gos-taria de ter.

Diariamente o indivíduo — a dona de casa, o empresário, o estu-dante, o cidadão comum — finge ser um sujeito que escapa à simplicidade de seu próprio cotidiano e passa a viver a vida de outras pessoas por meio do mecanismo de compartilhamento fornecido pela exposição midiática. Sua personalidade pode ser anônima, mas suas aspirações e sentimentos não. Esta parte do indivíduo está devidamente documentada na mídia. Todos os dias os jornais contam um capítulo de sua história, apenas tro-cando os nomes e os endereços. Todos os dias este mesmo ser se identifica no entretenimento midiático, vive romances, torna-se astro de cinema, vê suas atitudes imitadas por alguma personalidade famosa. Pelo menos imaginariamente.

O sequestro da jovem Eloá Pimental pode ser enquadrado na ca-tegoria de evento espetacular, potencializado que foi pela hipermidiati-zação que sofreu. O espetáculo da vida cotidiana foi capaz de sobrepujar a produção ficcional e oferecer ao público uma daquelas oportunidades de convívio público-midiático. Em determinado momento, a vivência do evento deixou de ser virtual para se tornar real, especialmente para aqueles que moravam próximos ou tinham acesso ao local dos acontecimentos.

Nos espaços públicos distantes do cenário do crime, as pessoas se aglomeravam em frente aos aparelhos de televisão – invariavelmente sin-tonizados em alguma emissora oferecendo cobertura intensiva – e cons-tituíam ali uma comunidade ligada pelo interesse em um dado assunto. Pessoas que não se conheciam, que geralmente acabavam de se reunir em um local público ao ver de relance uma novidade sobre o caso, mas que tinham algo em comum, sentimentos em comum, e encaravam aquela oportunidade, entre desconhecidos, para afirmar-se enquanto cidadãos dotados de opinião que merecia ser compartilhada.

O desfecho do caso, que resultou na morte da garota sequestra-da, desencadeou nova polêmica a respeito da responsabilidade social dos meios de comunicação, os quais foram acusados de espetacularizar o cri-me com a cobertura ininterrupta de tal forma que o próprio trabalho da

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polícia foi prejudicado. Interessante é notar que a crítica partiu do mesmo público que acompanhou aquela novela da vida real com afinco, espe-cialmente pela televisão. Cabe perguntar se, esgotada a fonte de catarse e comoção pública, os indivíduos voltariam à realidade pouco espetacular de suas vidas cotidianas temendo serem, eles mesmos, os protagonistas do próximo drama midiático e que essa suposta consciência da possibilidade de midiatização da vida privada os lembrasse do verdadeiro sentido do ser indivíduo e de viver em sociedade.

MIDIATIZAÇÃO DOS DRAMAS SOCIAIS E A RITUALIZAÇÃO MIDIÁTICA DO COTIDIANO

Todas as sociedades vivenciam dramas, que podem ser coletivos ou individuais. Na era da hegemonia dos meios de comunicação de massa como espaço público por excelência da sociedade, é comum que dramas individuais tornem-se sociais, ou sejam socializados, por meio de um pro-cesso de ressignificação operado através da exposição midiática. A noção de drama social utilizada aqui é adaptada do pensamento de Victor Tur-ner (1974). Para ele, o drama social é a ruptura de relações costumeiras. Tal ruptura instala uma crise com movimento ascendente até o ponto em que são acionados mecanismos de regeneração e conciliação, resultando em um processo de reintegração dos elementos que operaram o drama. A recomposição, porém, dá-se em novos termos, diferentes em graus varia-dos daqueles anteriores à ruptura dramática.

Um sequestro é, a princípio, um drama individual para um peque-no grupo de pessoas afetadas diretamente pelo acontecimento. Torna-se social quando a coletividade é informada. Passa a ser midiático quando a exposição nos meios de comunicação leva aquele drama para a sociedade mais ampla de forma a que o evento passe a fazer parte do cotidiano de pessoas que não são por ele diretamente afetadas, mas que se interessam por seu desfecho porque foram mobilizadas pela mídia. Há, ainda, um processo de ritualização midiática. Turner nos informa que os processos de regeneração das situações engendradas pelos dramas sociais são da or-dem do ritual. Toda sociedade tem rituais que se perpertuam pela prática reiterada.

Nas sociedades midiáticas, os ritos tradicionais dão lugar às novas práticas rituais estabelecidas pelos meios de comunicação de massa, assim como esses meios dão nova dimensão aos dramas sociais. O acompanha-

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mento do drama passa a ser o ritual por excelência da sociedade midiática. Afinal, o jornalismo – apenas para ficar em nosso foco de análise imediato – assenta-se na busca por dramas e conflitos que possam ser publicizados como histórias do cotiano. Naturaliza-se a situação dramática, como se a ruptura que o drama pressupõe fosse algo permanente. Ora, se o dra-ma é permanente e se a ruptura é a ordem das coisas, não há mudança e regeneração no sentido proposto por Turner. Há apenas banalização do cotidiano. Foi o que aconteceu com o caso da garota sequestrada em San-to André. A notícia logo se transformou em um drama social e o público passou a seguir um ritual diário de busca por novidades que não existiam, compartilhando opiniões e escolhendo culpados para a situação que se agravava a cada dia.

A manutenção da tensão dramática é uma ferramenta para segurar a audiência. Normalmente isso é feito de forma lícita, ou seja, o próprio acontecimento evolui de maneira tal que à imprensa resta apenas estar lá para mostrar o desenrolar dos fatos. Em outras situações, é preciso criar factóides para que a audiência não perca o interesse. Isso também aconteceu com o caso em tela, quando uma emissora de televisão fez uma entrevista ao vivo, por telefone, com o sequestrador. A entrevista foi ao ar em um programa vespertino de variedades e fofocas de artistas. Para o público, aquilo foi o equivalente a transformar o criminoso em cele-bridade. Eticamente condenável, o comportamento da emissora revelou apenas que o que importava, naquele momento, era manter o ritual de peregrinação midiática à casa da jovem, de forma a manter aquele drama comum a um público que precisava cuidar de sua própria vida.

Sintomático do comportamento dos meios de comunicação no caso do sequestro de Santo André, a “humanização” e socialização do drama pessoal é o tipo de tema que levanta questionamentos desde o surgimen-to da imprensa moderna, em idos do século XIX. O cinema não tardou em tratar dessa dimensão espetacularista do jornalismo. Em A Montanha dos Sete Abutres (Ace in the Hole, EUA, 1951), o diretor Billy Wilder mostra a história de um repórter que manipula o drama de um homem preso em uma montanha, postergando a solução do problema para poder abastecer os jornais com matérias por uma semana. O homem acaba mor-rendo. O repórter, em uma de suas frases de efeito, resume o senso comum das redações: a morte de milhares de pessoas é apenas um número; a mor-te de uma pessoa é história de interesse humano e todos vão se interessar em saber os detalhes da vida dela. Exatamente como aconteceu com a

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jovem Eloá, repentinamente transformada em celebridade enquanto viva e encarcerada, e em mártir depois de morta.

Não que a culpa pela duração do sequestro e de seu desfecho te-nha sido dos meios de comunicação, mas há de se refletir sobre a ética e a responsabilidade da mídia ao dar visibilidade a uma situação dramática ao ponto do espetáculo. Isso confunde a opinião pública e, de certa for-ma, pode até atrapalhar o trabalho dos órgãos de segurança que se veem constrangidos pela presença constante das câmeras. Com o drama se de-senrolando ao vivo na casa de cada telespectador, a polícia tem seu campo de manobra reduzido, pois sabe que basta uma manobra errada para que a condenação pública seja transferida do criminoso para a corporação. Como, de fato, acabou por acontecer com o desfecho do caso. A televisão mostrou, ao vivo, a invasão frustrada da polícia ao apartamento, os tiros, as explosões e, por fim, a retirada da garota e de sua amiga baleadas de dentro do cativeiro. Eloá morreu e durante alguns dias ainda foi assunto de primeira página de jornal, de abertura de telejornais e de rodas de con-versas em todo o país. Seu drama e sua história, porém, cederam lugar a outros dramas e histórias, já que os meios de comunicação estão sempre ávidos por novidades ritualizáveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sequestro de Eloá Pimentel foi um acontecimento real. Sua morte também. Pode não ser possível, porém, afirmar o mesmo a respei-to da comunidade de curiosos e interessados no desenrolar de seu drama pessoal forjada a partir da hipermidiatização do acontecimento. Findo o caso, findou-se aquela comunidade midiática que envolveu, de um lado, a mídia em si e, de outro, o público imenso e disperso reunido imagina-riamente por uma pauta comum de discussão. Os meios de comunicação passaram a dar atenção a outros dramas e a outros assuntos, enquanto o público passou a se reunir, midiaticamente, em torno de novas comuni-dades virtualmente constituídas em torno desses novos dramas e novos assuntos.

O homem midiático é, desta forma, um homem que busca cons-tantemente integrar-se a uma comunidade maior situada além do alcance físico. É, também, alguém que busca fora de si a essência da vida cotidia-na. É uma fuga de sua realidade imediata. Para esse indivíduo, a integra-ção midiática às vezes é a única forma possível de integração, assim como

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a identidade midiática pode ser a única identidade possível para ele. Em sociedades cada vez mais permeadas pelos meios de comunicação como elementos capazes de romper o isolamento que a vida moderna impõe a seus membros, incapazes de desenvolver ou mesmo de manter formas tradicionais de convívio social, esse tipo de coletividade – a midiática – é cada vez mais importante como meio de forjar um tipo de coesão social, que passa a ser coesão midiática.

A televisão é, por excelência, o meio de comunicação que mais tem cumprido esse papel em um país como o Brasil. Aqui, os governos militares lograram uma integração via satélite e uma cidadania televisiva dissociada da cidadania política. Transferiu-se, mesmo com a redemocra-tização, a participação popular dos foros políticos e sociais tradicionais para a esfera televisiva, assim como se modificou a pauta das discussões, que fica à mercê dos dramas e sucessos captados pelas lentes a cada dia. A diversidade cultural e regional também é outro fator que contribui para essa integração midiática. Frequentemente, os meios de comunicação pre-cisam reforçar os estereótipos do que é ser brasileiro para os brasileiros, reduzindo a complexidade da identidade nacional a uma série de imagens e conceitos superficiais.

Acontecimentos como o sequestro que se tornou midiático são, portanto, oportunidades que se apresentam como catalisadoras de senti-mentos e criadoras de comunidades que, mesmo sendo dispersas tão logo sejam encerrados tais acontecimentos, conferem um sentido diferenciado para os indivíduos que se veem participando de uma história que não é sua, mas que poderia ser. Ou passa a ser a partir do momento em que o indivíduo se apropria da história para construir sua própria narrativa a respeito dela, inserindo aí suas impressões e opiniões, suas propostas de solução, bem como a expressão de seus sentimentos.

REFERÊNCIAS

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Lucas Santiago Arraes Reino

O AUTOR

É professor na UFMA de Imperatriz, onde ministra a disciplina de laboratório de Webjornalismo. Formado em Jornalismo pela UFMS, é especialista em Comunicação Empresarial pela Uniderp e mestre em Ciência da Informação pela UnB. É um dos fundado-res da 80 20 Marketing Digital, empresa de destaque nacional na área de comunicação pela Web.

Mídias sociais como ferramentas de marketing digital

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INTRODUÇÃO

Todos os anos a revista Time, uma das maiores publicações em nú-mero de exemplares e de influência no mundo, divulga na última edição do ano o nome da personalidade mais influente dos 12 meses anteriores. Em 2006 a personalidade escolhida foi “você”, diz a revista, que enumera a participação massiva das pessoas através da internet em diversas decisões e principalmente na produção de mudanças na sociedade “Essa é uma his-tória sobre comunidade e colaboração em uma escala nunca antes vista. É sobre o compêndio cósmico do conhecimento, como a Wikipedia, sobre uma rede de divulgação de vídeos utilizada por milhões de pessoas, como o YouTube e sobre metrópoles on-line como o MySpace. Essa história é sobre tirar o poder de poucos e ajudar um ao outro por nada e como isso irá não só mudar o mundo, mas também mudar a maneira como o mundo muda”, diz a revista.

Assim a proposta deste artigo é discutir a participação das pessoas através da Internet em decisões importantes, a de o que deve ser notícia ou não. É possível perceber que esse relacionamento sempre existiu e foi por causa dele que os jornais nasceram também, mas que em algum ponto da história sua importância foi esquecida. É nesse ponto vital que a Ciência da Informação embasa o estudo, teorizando sobre a gestão da informação e seu valor dentro deste processo.

Como jornalistas poderiam escrever todos os dias para um leitor que não conhecem? Produzir matérias para TV e rádio sem saber o que essa pessoa que está do outro lado está querendo ou achando? Chega a ser absurdo imaginar que isso acontece, mas acontece mesmo.

Na prática, uma matéria para um jornal é feita da forma mais sim-ples para que todos leiam, mas e se o leitor quer algo mais aprofundado? E o baixo número de leitores não seria uma consequência da falta de in-teresse pelos assuntos abordados? Talvez, as perguntas são muitas e este trabalho só pode tentar responder algumas poucas.

MÍDIAS SOCIAIS, A SAÍDA PARA A INTERAÇÃO NO JORNALISMO

Um dos grandes desafios das empresas é conhecer o comporta-mento do consumidor e atender as suas expectativas, e os jornais são empresas. O fenômenos da tecnologia, especificamente da internet, desencadeou várias mudanças no comportamento de consumo e,

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naturalmente, no cotidiano empresarial. Um novo ambiente de in-teração, onde as informações ficam disponíveis todo o tempo e as pessoas podem interagir e comentá-las.

Pesquisa feita em 2010 pelo Cerias (sigla em inglês para Cen-tro de Educação e Pesquisas de Garantia e Segurança da Informa-ção), em 17 países, aponta que no Brasil mais 90% das empresas usam aplicativos de rede social da Internet como ferramentas de negócios. De acordo com os dados levantados pelo Centro, nove de cada dez empresas brasileiras pesquisadas afirmam ganhar dinheiro com os aplicativos.

Foram 1.055 pequenos, médios ou grandes empresários entre-vistados e apenas os brasileiros e indianos afirmaram receber pressão do mercado para adotar ferramentas de relacionamento online. 58% das empresas nacionais pesquisadas relataram que os consumidores exigiram a adoção desse tipo de ferramenta.

Os números crescem diariamente, mas para compreender melhor a dimensão do que é dito é preciso citar a pesquisa Ibope/NetRatings de dezembro de 2009, que registrou 67,5 milhões de brasileiros acima de 16 anos com contato frequente com a Web em ao menos um lugar, casa, trabalho, escola, lan-house, telecentro, bi-blioteca ou outro. Desses internautas, 86,3% afirmaram, em pesqui-sa de fevereiro de 2010 também da Ibope/Netratings, usar a Internet para acessar sites de relacionamento.

Em pesquisa feita com os leitores de webjornal, Reino (2006, p.75) identificou o desejo dos leitores em participar mais ativamen-te do conteúdo produzido pelo veículo noticioso, fosse informando a respeito de fatos que poderiam vir a se tornar notícia, opinando sobre polêmicas ou mesmo para alertar sobre erros. Os internautas querem ser ouvidos, mais de 50,7% gostariam de ser contatados para participar conforme seu interesse (REINO, 2006, p.75).

A adoção de ferramentas de mídias sociais por parte das em-presas deixou de ser uma opção para empresas que desejam perma-necer competitivas, esses novos canais de relacionamento são o novo espaço que os comunicadores devem olhar, não como modismo ou como ferramenta específica para um grupo ou mesmo um gueto di-gital, não são só as empresas que estão conectadas e se relacionando no ambiente digital, são principalmente as pessoas e elas estão nas redes sociais.

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INFORMAÇÃO, GESTÃO E MARKETING

Atualmente a Informação é produto essencial e de maior valor em nossa sociedade. A informação tem características únicas que a diferem de qualquer outro bem em sua época. Do petróleo ao ouro, nada pode ser comparado à informação em sua forma e importância. Ela também é insumo básico para qualquer organização. Kotler destaca a importância da informação nas organizações:

Informações podem ser produzidas e comercializadas como um produto. É essencialmente isso que escolas e universidades produzem e distribuem, mediante um pre-ço, aos pais, aos alunos e às comunidades. Enciclopédias e grande parte dos livros de não ficção vendem informa-ções. Revistas, como Road and Track e a Byte, fornecem informações consideráveis sobre os universos dos carros e dos computadores, respectivamente. Compramos CD-ROMs e visitamos a Internet em busca de informações. A produção, a embalagem e a distribuição de informações constituem um dos principais setores econômicos da so-ciedade de hoje (KOTLER, 2000, p.26).

Há variadas formas de uma empresa atuar. Kotler (2000, p.39) aponta como orientações da atuação das organizações: (a) a orientação de produção, que sustenta que os consumidores dão preferência a pro-dutos fáceis de encontrar e de baixo custo, concentrando as energias da organização em uma alta produção, baixo custo e distribuição em larga escala; (b) a orientação de produto, que ao contrário da de produção, va-loriza a qualidade do produto, não sua disponibilidade em massa e seu baixo preço; nesta orientação, o importante é obter um produto de alta qualidade; (c) a orientação de vendas, que valoriza o esforço em vender, considerando que os consumidores devem ser persuadidos para comprar; (d) e a orientação de marketing, que “sustenta que a chave para alcançar as metas organizacionais está no fato de a empresa ser mais efetiva que a con-corrência na criação, entrega e comunicação de valor para o cliente de seus mercados-alvo selecionados” (KOTLER, 2000, p. 41).

Para Churchill Jr. e Peter (2003, p. 10), marketing voltado para o valor “é uma orientação para se alcançar objetivos desenvolvendo valor superior para os clientes, que se apóia em vários princípios e

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pressupostos sobre aqueles.”Para compreender melhor a orientação de marketing, algumas de-

finições desse conceito. Marketing não é apenas venda ou propaganda, estas são atividades de marketing. Marketing busca a definição e o enten-dimento de um público-alvo, seus desejos e a melhor forma de atendê-los. Considera-se que é preciso conhecer melhor os consumidores para atendê-los satisfatoriamente.

Para Drucker (1973), o objetivo do marketing é tornar a venda supérflua. A meta é conhecer e compreender tão bem o cliente que o pro-duto ou o serviço se adapte a ele e se venda por si só. O ideal é que o ma-rketing deixe o cliente pronto para comprar. A partir daí, basta tornar o produto ou o serviço disponível.

A American Marketing Association, em seu dicionário online, de-fine: “marketing é uma função organizacional e um conjunto de proces-sos para criação, comunicação e entrega valor para clientes e para relações de gerenciamento de clientes de forma que beneficiem a organização e stakeholders”. Entregar valor para o cliente é um dos conceitos mais im-portantes do marketing, mas existem outros.

O marketing se aplica, segundo Kotler (2000), a produtos, ser-viços, experiências, eventos, pessoas, lugares, propriedades, organizações, ideias e informações. Há várias técnicas que são utilizadas na gestão de marketing. A segmentação de mercado, por exemplo, divide os consu-midores em grupos, que se tornam mercados-alvo. São opções infinitas e quanto mais se segmenta mais se encaminha para a segmentação por pes-soa, quando se amplia o marketing um-a-um (one-to-one). “Afirmar que determinado produto não tem o mesmo apelo para todos é um truísmo” (SHETH et al., 2001, p.412), requer então a compreensão a respeito do cliente, de suas características, para classificá-lo em um segmento.

Profissionais de marketing identificam grupos de consumidores e suas necessidades e a partir daí desenvolvem um produto voltado para um segmento. Cada mercado-alvo deve ter um produto, uma oferta vol-tada para esse mercado. Kotler (2000, p.30) afirma que a oferta é posi-cionada na mente dos compradores-alvo como possuidora de algum(ns) benefício(s) fundamental(ais) e cita o exemplo da Volvo, que desenvolve carros para um mercado-alvo que busca segurança, portanto, seu posicio-namento é de fabricar carros mais seguros.

A diferença entre necessidade, desejo e demanda também é impor-tante para o entendimento do cliente. O profissional de marketing atua

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identificando necessidades e demandas que influenciam desejos. Kotler (2000, p.33) define estes três termos da seguinte forma: necessidades des-crevem exigências básicas do ser humano, elas se tornam desejos quando são dirigidas a objetos específicos que possam lhes satisfazer. A deman-da é o desejo por um produto e a possibilidade de poder adquiri-lo. Fica clara então a interligação da necessidade, do desejo e da demanda com o mercado-alvo, já que a segmentação de um grupo passa pelo conhecimen-do de suas necessidades, desejos e demandas, pois nem todas as pessoas podem comprar um carro, por exemplo, mesmo desejando a segurança que ele traz.

Kotler (2000, p.33) afirma que um produto é uma oferta que pode satisfazer a uma necessidade ou desejo e que uma marca é uma oferta de fonte conhecida. A marca de um determinado carro pode trazer diversos valores a ela, dentre esses valores, a segurança.

Valor e satisfação são determinantes para o sucesso do produto ou da oferta, explica Kotler (2000, p.33). O autor define valor como a razão entre o que o cliente recebe e o que ele dá, entendendo que ele recebe be-nefícios e assume custos, sendo que entre os benefícios podem ser incluídos os benefícios emocionais, como o prazer em ter um carro único. Churchill et al.(2000, p.13) afirmam que “valor para o cliente é a diferença entre as percepções deste quanto aos benefícios e quanto aos custos da compra e uso de produtos e serviços”. Portanto, o valor é uma questão subjetiva do cliente. Cabe ao provedor do produto elevar a compreensão dos benefícios do produto para o cliente. Em um mercado com produtos iguais, o valor é o que levará o cliente a fazer sua escolha.

Para uma empresa, o mais importante é o número de pessoas que desejam seus produtos, porém é vital saber quantas pessoas estão habilitadas e dispostas a comprar seus produtos. Ainda segundo Kotler (2005, p. 27): “Desejos tornam-se demandas quando apoiados por poder de compra.”. E assim os administradores de marketing, com base na demanda de um pro-duto e seu público-alvo, maximizam o aproveitamento de suas ações atin-gindo somente o público que possui habilidade e disposição de compra, pondo abaixo a tese de que “marketing cria necessidades” ou “marketing induz as pessoas comprarem coisas que não desejam”.

Kotler considera a troca como conceito central de marketing, que envolve a obtenção de um produto desejado de alguém, oferecendo-se algo em troca (KOTLER, 2000. p.34). Para que o potencial de troca possa exis-tir, Kotler cita cinco condições essenciais: que existam duas partes; que to-

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das as partes possuam algo que possa ter valor para as outras partes; tenham capacidade de comunicação e entrega; estejam livres para aceitar ou recusar a oferta de troca; e que acreditem ser adequado participar da negociação.

Kotler (2000) afirma ainda que a troca é uma das quatro alternati-vas de que o homem dispõe para obter um produto. A primeira delas é a autoprodução, quando o próprio homem satisfaz suas necessidades; a se-gunda é a coerção, quando o homem é capaz de arrancar, à força, o objeto de desejo sem oferecer nenhum benefício em troca; a terceira é a súplica, quando o homem é capaz de suplicar e implorar comida, por exemplo, sem ter nada de tangível a oferecer a não ser a gratidão. “A troca é um processo de criação de valor, normalmente as partes envolvidas concluem a transação em melhor situação” (KOTLER, 2000, p.34).

Para Cobra (2007), “A compra de determinados produtos ou marcas são necessidades muitas vezes levadas a um nível emocional e não necessariamente a um nível racional.” Assim sugere que realmente as for-ças que acionam as necessidades em direção às respostas têm a ver com a personalidade do indivíduo.

Para desenvolver boas estratégias, é necessário entender um pouco do mix do marketing, chamados de 4P’s, estabelecidos no início dos anos 1960 pelo professor Jerome McCarthy, são eles : produto, praça, preço e promoção. Os 4 P’s são vistos sob a ótica empresa, com a visão dirigida para o produto e não para o cliente. Produto são suas variedades, qualida-des, marca, embalagem, garantias, devolução, etc.; preço é o preço básico estabelecido para venda, prazos de pagamento, condições de credito, etc.; praça refere-se aos canais de distribuição, transporte etc. e promoção são as propagandas, estratégias de venda pessoal, marketing direto etc.

Para aumentar a eficiência da analise dos 4 P’s foi então criado um novo conceito dos 4 C’s desenvolvido por Robert Lauterbom, no início dos anos 1990, que tem como propósito direcionar o composto para o cliente. Os 4 C’s são: cliente, conveniência, comunicação e custo.

O grande desafio hoje dos profissionais é agregar todos os prin-cipais conceitos de marketing para o digital e planejar ações em meio a tantas tecnologias (LOUBET, ALVES, GALVAO, 2009).

MARKETING DIGITAL

A internet surgiu com a expansão de alguns conceitos básicos de re-des de computadores: compartilhamento de recursos e alta confiabilidade

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econômica, explica Sueli Amaral (2004, p. 33). Já Castells (2001, p384) en-sina que as redes foram se desenvolvendo, a partir do que as pessoas foram re-alizando dentro delas, incluindo-se então ações e realizações de marketing.

Segundo Chleba (2000), a grande força do marketing na internet, ou digital, está na interatividade, na qual trata a exigência constante dos clientes e esta deve ser percebida como informação por meio dessa troca de dados que a internet disponibiliza.

Sueli Angélica (2004) defende a mesma posição ao considerar que marketing pode ser aplicado em todos os setores, pode-se por extensão entender como e -marketing o uso da internet e das tecnologias digitais relacionadas para a realização das atividades de marketing. Para efeito prático, trata-se do aproveitamento dos novos recursos de divulgação, promoção, publicidade e prestação de serviços facilitados e viabilizados pelo advento das tecnologias de comunicação de dados via internet.

Segundo Jamil (2001, p.244-245), a internet tornou-se um ele-mento de estratégia indispensável, pois se uma organização ou um profis-sional deseja se manter competitivo no mercado, precisa considerar o fato que a internet vai ser um de seus recursos.

O Marketing Digital é a aplicação dos conceitos de marketing no ambiente digital, principalmente na internet, maior rede de interconexão existente atualmente. É a partir dessa interligação da rede com o posicio-namento de marketing que é possível construir no ambiente digital uma marca forte online.

As ações de marketing digital podem ser classificadas entre ‘ativas’ e ‘receptivas’, sendo que a primeira trata dos projetos e atividades feitas no sentido de despertar a atenção dos usuários (consumidores) para uma co-municação específica enquanto que as receptivas tratam do ambiente di-gital para onde o usuário é direcionado (LOUBET, ALVES, GALVAO, 2009).

Os autores citam algumas ferramentas que podem ser utilizadas no marketing digital, como: websites institucionais; hotsites promocionais e/ou temporários; otimização para sites de buscas, anúncios, inclusive os contextualizados como o Google Adwords, e-mail marketing; blogs; vi-deologs; conteúdos colaborativos; fóruns, entre outros.

Entre as ferramentas que se destacam no conjunto das oferecidas e possíveis que estão às mãos dos gerentes de marketing para o ambiente digital estão as redes sociais.

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REDES SOCIAIS

O conceito de redes sociais pode ser explicado recorrendo à com-paração com uma rede de pescador, formada por diversos nós interco-nectados, sendo que nessa comparação os nós são as pessoas em relacio-namento.

Recuero (2009, p,24) define da seguinte forma:

Um conjunto de dois elementos: atores e suas conexões. Uma rede, assim, é uma metáfora para observar os padrões de conexão de um grupo social, a partir das conexões esta-belecidas entre diversos atores.

A definição de atores como nós de uma rede, na qual eles atuam de forma a moldar estruturas sociais através da interação e da constituição de laços sociais, como explica Recuero (2009, p.25), deve atentar para as diferenças que a Internet traz por suas características.

A primeira diferença vem na definição de quem são os atores na Internet. Recuero (p.26) defende que são trabalhadas no ciberespaço as representações dos atores sociais, suas construções identitárias e estes de-vem ser vistos como atores, como por exemplo weblogs, fotologs, perfis no twitter ou no Orkut.

As construções identitárias, onde são formadas personalidades on-line através dessas ferramentas, são uma necessidade da nossa sociedade atual, como indica Sibilia (2003, apud RECUERO, 2009). Assim como as pessoas, as empresas encontram a mesma necessidade, já que seu públi-co-alvo deslocou-se para esse ambiente e lá gera interações.

Ainda sobre essa presença online, sobre essa personalidade cons-truída digitalmente, quando se trata de empresas é preciso lembrar que, mesmo se a empresa não crie oficialmente seu site próprio, perfil em redes sociais ou atue na Internet, sua marca pode já estar lá. Seus consumidores provavelmente já comentam sobre ela e sua ausência pode ser uma falha grave, já que ela está impossibilitada de se comunicar com eles.

CONCLUSÃO

Apesar da resistência inicial da imprensa e das empresas em geral para as redes sociais, os resultados e a presença maciça das pessoas força-

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ram a uma mudança na visão sobre elas. De diversão para desocupados, elas ganharam o status de espaço democrático, de megafone do povo.

Na escolha das redes sociais para a utilização profissional é preciso entender os conceitos de marketing e sua aplicação no ambiente digital. É importante conhecer quais as características da empresa, do público e da rede, oferecer dentro desses três escopos uma linha mais harmoniosa.

Como em tudo na comunicação, é preciso profissionalizar, pesqui-sar, entender e muitos outros verbos relacionados ao trabalho minucioso de comunicar com qualidade. Infelizmente, assim como quase tudo em comunicação também, o trabalho de relacionamento através de redes so-ciais ainda é cheio de aventureiros e charlatões, que repetem mantras e fazem previsões baseados em senso comum.

Este trabalho foi um pequeno levantamento de muitas das infor-mações que devem estar na bagagem de conhecimento dos comunica-dores interessados em utilizar as mídias sociais de forma profissional e efetiva.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Sueli Angélica do. Marketing da informação na Internet: ações de promoção. Campo Grande: Ed. Uniderp, 2004, 330p.CASTELLS, Manuel. A Era da informação: economia, sociedade e cultura. A Sociedade em Rede . São Paulo: Paz e Terra, 1999. 617 p.CHLEBA, Márcio. Marketing Digital: novas tecnologias e novos modelos de negócios. São Paulo: Futura, 2000.CHURCHILL JÚNIOR, Gilbert A.; PETER, J. Paul; BARTALOTTI, Cecí-lia Camargo; MOREIRA, Cid Knippel (Trad.) Marketing: criando valor para os clientes. São Paulo: Saraiva, 2000. 626 p.COBRA, MARCOS. Marketing Básico. 4 ed. São Paulo, 2007.DRUCKER, Peter. Management: tasks, resposibilities, preactices. Nova York. Ed. Harper & Row, 1973. 864p,JAMIL, G. L. Aspectos do ambiente gerencial e seus impactos no uso dos siste-mas de inteligência competitiva para processos decisórios. Perspect. cienc. inf., v. 6, n. 2, p. 261-274, jul./dez. Belo Horizonte , 2001.KOTLER, Philip. Administração de marketing. 10 ed. São Paulo: Prentice Hall, 2000. 764 p.MARKETINGPOWER. América Marketing Association. Dicionário. Dispo-nível em: <http://www.marketingpower.com/mg-dictionary-view1862.php?> Acesso em 20 maio. 2011.RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Editora Sulina,

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2009. 191 p. (Coleção Cibercultura - ISBN: 978-85-205-0525-0). Disponível em: <http://www.redessociais.net/cubocc_redessociais.pdf>. Acesso em: 18 maio. 2011.REINO, Lucas Santiago Arraes. O Relacionamento do usuário com o web-jornal Campo Grande News. 2006. 110 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Ciência da Informação, Departamento de Ciunb, Unb, Campo Grande, 2006.SHETH, Jagdish N; MITTAL, banwari; NEWMAN, bruce i. Comportamento do cliente: indo além do comportamento do consumidor. São Paulo: Atlas, 2001.

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Luciana da Silva Souza Reino

A AUTORA

Publicitária (UCDB), especialista em Imagem e Som (UFMS), mestranda em Estudos de Linguagens (UFMS). Atualmente é professora substituta no curso de jornalismo da UFMA, em Imperatriz, nas disciplinas Assessoria de Comunicação e Teorias da Comunicação. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em estudos linguísticos, redação publicitária, criação e revisão de textos para perfis comerciais em redes sociais (marketing digital) e planejamento, tanto de comunicação quanto de campanha publicitária. Além de docente em disciplinas do curso de publicidade e propaganda: redação e expressão na comunicação, redação publicitária e redação para meios digitais.

Viva o Lado Coca-Cola da Vida: análise de um slogan publicitário

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INTRODUÇÃO

A propaganda pode ser vista sob dois aspectos: o primeiro deles é ser um dos diversos recursos utilizados pelo marketing, este último enten-dido como um complexo processo que abrange enorme gama de estraté-gias administrativas, logísticas e comunicacionais para alavancar o reco-nhecimento de ideias, marcas e o lucro de empresas. Em segundo lugar, a publicidade é entendida como uma atividade independente, geradora de imenso conteúdo comunicacional, composto por mensagens ricas em conteúdo criativo, quase artístico; instrumento de divulgação de marcas, produtos e ideias por meio de um discurso que, ao longo do tempo, tor-nou-se único e gerador de regras próprias.

Para Sandmann (1997, p,13), “a linguagem da propaganda en-frenta o maior dos desafios: prender, como primeira tarefa, a atenção do destinatário.” Para esse autor, a propaganda deve valer-se de meios estilís-ticos, que façam o público prestar atenção no texto.

Um dos principais componentes da mensagem publicitária é o slo-gan. Ele acompanha o produto ou empresa durante sua vida, podendo sofrer alterações ao longo do tempo, submetido a mudanças mercadológi-cas percebidas no mercado; dessa forma, o conceito de marca, por exem-plo, inicialmente apresentado em um slogan que destaca características específicas do produto, pode deixar de atender a uma demanda que deseje uma significação que vá além da marca; neste caso, a significação deve transcender o produto/serviço/empresa e procurar elementos fundamen-tais no público-alvo.

Mas os recursos estilísticos sozinhos não contribuem para a com-posição de um slogan, que, além de atrativo e de fácil assimilação, deve transmitir em poucas palavras todo um conceito de marca. É importante buscar entender como se opera a construção do sentido neste texto tão curto, mas de grande valor significativo para as marcas.

Este trabalho propõe-se a buscar entender como se opera o senti-do nos slogans publicitários, elegendo como corpus um slogan da marca de refrigerantes Coca-Cola. A justificativa para a escolha desta marca é sua presença marcante nos veículos de comunicação e a comprovação da eficácia de seus esforços em comunicação, por ser uma das marcas mais lembradas do Brasil.

Desde 1991, o Instituto Datafolha e o Jornal Folha de São Pau-lo realizam anualmente a pesquisa Top of Mind, que visa a identificar as

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marcas mais lembradas em todo o Brasil, em diversos segmentos (Data-Folha, 2009, não paginado). Os dados colhidos desde então servem para mensurar a força que as grandes marcas têm junto aos consumidores, para medir os resultados das ações de comunicação delas e, consequentemente, os dados servem como importante instrumento para o desenvolvimento de novas ações de marketing e propaganda. Em 1993, foi criada a catego-ria Top do Top, que busca saber qual marca é a mais lembrada no ano pelo consumidor brasileiro, independentemente de categoria.

A marca Coca-Cola figura na lista das marcas mais lembradas des-de a criação da categoria e apenas em 1999 ela não compôs a lista (Welling, 2010, não paginado). A marca apresenta uma trajetória de sucesso mer-cadológico acompanhada de campanhas eficientes e emocionalmente inesquecíveis para o grande público, junto a quem sua lembrança pode ser avaliada graças ao grande investimento que realizam em campanhas publicitárias, à veiculação sempre constante nos principais veículos de comunicação de massa e à criação de linhas criativas eficientes para suas campanhas publicitárias.

Em sua história, a marca Coca-Cola apresentou diferentes slogans. Para esta análise destacamos o slogan que foi veiculado entre 2006 e 2009: Viva o lado Coca-Cola da vida ( Jipemania, 2009, não paginado).

Para fundamentar a análise das diversas questões relacionadas a esse problema, elegemos a teoria semiótica discursiva, desenvolvida por A. J. Greimas em parceria com diversos colaboradores a partir da década de 1960. A semiótica aborda a problemática da comunicação relacionando-a ao contexto da enunciação, necessariamente pressuposto pelo enunciado; além disso, tem como preocupação básica descrever e explicar “o que o texto diz e como faz para dizer o que diz” por meio da construção de sua própria estrutura e da relação entre suas unidades.

SEMIÓTICA DISCURSIVA E SEU PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO

A semiótica discursiva tem por objeto o texto e, por meio da análi-se de diversas questões, determina-lhe a significação, partindo do pressu-posto de que o texto é um “todo de significação” que oferece as condições necessárias para sua leitura. Segundo Barros (2005, pg. 12), um texto de-fine-se de duas formas que se complementam: pela organização ou estru-turação que faz dele um “todo de sentido” e como objeto da comunicação que se estabelece entre um destinador e um destinatário. Assim, o estudo

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do texto com vistas à construção de seus sentidos só pode ser visto como o exame tanto dos mecanismos internos quanto dos fatores contextuais ou sócio-históricos de fabricação do sentido.

A semiótica examina os procedimentos da organização textual e, ao mesmo tempo, os mecanismos enunciativos de produção e de recepção do texto; tem como preocupação básica descrever e explicar “o que o tex-to diz e como faz para dizer o que diz” (Barros, 2005, p.11) por meio da construção de sua própria estrutura e da relação entre suas unidades.

Greimas & Courtés (2008) consideram que a teoria semiótica deve apresentar-se como uma teoria da significação. Sua primeira preocu-pação é explicitar, sob a forma de construção conceitual, as condições de apreensão e da produção do sentido. Dessa forma, a semiótica discursiva terá que reunir todos os conceitos que, mesmo sendo eles próprios indefi-níveis, são necessários para estabelecer a definição da estrutura elementar da significação.

A geração semiótica de um discurso será representada sob forma de um percurso gerativo que comporta bom número de níveis e de componentes, distinções que nada mais são do que algo provisório, operacional, mas que permitem situar, uns em relação aos outros, os diferentes campos de exercício da atividade semiótica. (Greimas & Courtés, 2008, p. 456)

Para a construção do sentido no texto, a semiótica concebe o plano do conteúdo sob a forma de um percurso gerativo. A noção de percur-so gerativo do sentido é fundamental para a semiótica, podendo ser vista como fundamento básico no auxílio da atividade de interpretar textos. Este percurso é uma sucessão de patamares, que mostra como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo. Barros (2005) afirma que a noção de percurso gerativo do sen-tido é fundamental para a teoria semiótica.

O percurso gerativo é um modelo que simula a produção e interpretação do significado, do conteúdo; constitui um simulacro metodológico que permite a leitura de um texto com mais eficácia. O conteúdo deve ser unido a um plano de expressão para manifestar-se; quando isso ocorre, surge um texto. O discurso é uma unidade do plano de conteúdo, é o nível do percurso gerativo de sentido no qual

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formas narrativas abstratas são revestidas de elementos concretos. São estabelecidas três etapas no percurso, que podem ser descritas

resumidamente:- a primeira etapa do percurso, a mais simples e abstrata, recebe o

nome de nível fundamental ou das estruturas fundamentais e nela surge a significação como uma oposição semântica mínima;

- no segundo patamar, denominado nível narrativo ou das estrutu-ras narrativas, organiza-se a narrativa, do ponto de vista de um sujeito;

- o terceiro nível é o do discurso ou das estruturas discursivas em que a narrativa é assumida pelo sujeito da enunciação.

Para este artigo, será desenvolvida breve análise, sob a apresenta-ção do percurso gerativo do sentido, do slogan “Viva o lado Coca-Cola da vida”, apresentando-lhe as principais características em cada um dos três patamares, com o objetivo de chegar a uma interpretação mínima de como se opera o sentido nesse slogan publicitário.

ANÁLISE SEMIÓTICA

O nível fundamental abriga as categorias semânticas que estão na base da construção de um texto. Uma categoria semântica fundamenta-se numa oposição. Em “Viva o lado Coca-Cola da vida”, a categoria de nível fundamental que podemos perceber é /usufruto/ versus /desperdício/. O slogan se apresenta como a definição de algo; poderíamos supor que seria do que é o produto Coca-Cola. Para que dois termos opostos possam ser apreendidos conjuntamente, é preciso que tenham algo em comum e sobre este traço comum se estabelece a diferença. Contrapor usufruto/desperdício é perceber a existência de algo a ser consumido, aproveitado e, partindo dessa observação, podemos extrair também a oposição /vida/ versus /morte/ e /felicidade/ versus /infelicidade/. Viver o lado bom da vida em oposição ao lado mau, à morte, ao não viver, ao não usufruir.

Os termos opostos de uma categoria semântica mantêm entre si uma relação de contrariedade. São contrários os termos que estão em rela-ção de pressuposição recíproca. Vida faz sentido ao pressupor a morte, a felicidade, a infelicidade, o usufruto, o desperdício. Ao aplicar uma opera-ção de negação a cada um dos contrários, obtêm-se dois contraditórios:

- /não-usufruto/ é contraditório a /usufruto/ e /não-desperdício/ é contraditório a /desperdício/;

- /não-vida/ é contraditório a /vida/ e /não-morte/ é contraditó-

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rio a /morte/;- /não-felicidade/ é contraditório a /felicidade/ e /não-infelicida-

de/ é contraditório a /infelicidade/;Cada um dos contraditórios implicará o termo contrário daquele

de que é contraditório, para distingui-los dos outros dois contrários são chamados de subcontrários, então:

-não-usufruto implica desperdício; não-desperdício implica usu-fruto;

- não-vida implica morte; não-morte implica vida. - não-felicidade implica infelicidade; não-infelicidade implica fe-

licidade.Cada elemento da categoria semântica de base de um texto recebe

a qualificação semântica /euforia/ versus /disforia/. O termo relacionado à /euforia/ é considerado de valor positivo; já o relacionado à /disforia/ é visto como um valor negativo.

No slogan da Coca-Cola, /usufruto/, /vida/ e /felicidade/ são eu-fóricos e /desperdício/, /morte/ e /infelicidade/ são disfóricos. Euforia e disforia são valores inscritos no texto, não são determinados pelo leitor. O slogan, especialmente, como parte do discurso persuasivo publicitá-rio carrega valores da marca, valores que devem ser compreendidos pelo público. Em “Viva o lado Coca-Cola da Vida”, percebe-se, claramente, o lado eufórico dos termos até aqui percebidos, porque é para se viver um lado apenas, o lado Coca-Cola da vida, ser feliz e aproveitá-lo.

Fiorin (2009) enfatiza então que a semântica e a sintaxe do nível fundamental representam a instância inicial do percurso gerativo, que procura explicar os níveis mais abstratos da produção, do funcionamento e da interpretação do discurso.

No segundo patamar do percurso, o nível narrativo, o ponto cen-tral é a narratividade, que se define como uma transformação situada entre dois estados sucessivos e diferentes. Isso significa que ocorre uma narrativa mínima, quando se tem um estado inicial, uma transformação e um estado final. Como transformação de conteúdo, a narratividade é um componente da teoria do discurso.

O slogan caracteriza-se então como uma narrativa mínima. Diante da diversidade das formas narrativas, Greimas e Coutés (2008, p. 327) esclarecem, quanto à possibilidade de definir a narrativa simples: a rigor, esta se reduz a uma frase tal como “Adão comeu uma maçã”, analisável como a passagem de um estado anterior (que precede a absorção) a um es-

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tado ulterior (que se segue à absorção), operado com a ajuda de um fazer (ou de um processo). Nessa perspectiva, a narrativa simples se aproxima do conceito de programa narrativo.

Na sintaxe narrativa, há dois tipos de enunciados elementares:- enunciados de estado: que estabelecem uma relação de junção

(disjunção ou conjunção) entre sujeito e objeto.- enunciados de fazer: que mostram as transformações que corres-

pondem à passagem de um enunciado de estado a outro. Havendo dois tipos de enunciados de estado, há também duas

espécies de narrativas mínimas: a de privação e a de liquidação de uma privação. Na primeira ocorre um estado inicial conjunto e um estado final disjunto; na segunda, o contrário: um estado inicial disjunto e um final conjunto.

Ao convidar o público, por meio do slogan, para que “viva o lado coca-cola da vida”, o enunciado efetiva a marca, realizando um enuncia-do de estado, ao procurar estabelecer uma relação de liquidação da pri-vação entre o sujeito (pressuposto no enunciado: você (o público) deve viver...) e o objeto, o lado Coca-Cola da vida, a felicidade. O sujeito está em disjunção com o objeto, com a vida; pressupõe-se que ele não vive, não conhece este lado, então ele é convidado, por meio do lado Coca-Cola deste objeto, a entrar em conjunção com ele.

Até aqui analisamos o slogan sob o primeiro nível do percurso e também do ponto de vista dos tipos de enunciado da sintaxe narrativa. Fiorin (2008) ressalta que os textos são uma série de enunciados de estado e de fazer, passando de narrativas mínimas a complexas; o que estrutura esta série, tornando a narrativa complexa, é uma estrutura canônica que compreende quatro fases: a manipulação, a competência, a performance e a sanção.

Na manipulação, um sujeito age sobre o outro para levá-lo a um querer ou dever fazer alguma coisa. Na fase de competência, o sujeito que vai realizar a transformação central da narrativa é dotado de um sa-ber ou poder fazer. A performance é a fase em que se dá a transformação (mudança de um estado a outro) central da narrativa. Na sanção, ocorre a constatação de que a performance se realizou e, consequentemente, o re-conhecimento do sujeito que operou a transformação. É na fase da sanção que ocorrem as descobertas e as revelações, são atribuídas as recompensas e os castigos.

As fases não se encadeiam numa sucessão temporal explícita ape-

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nas, mas também por relações de pressuposição lógica. Quando se reco-nhece que uma transformação se realizou, a sua realização está pressupos-ta na constatação. Mas as fases da sequência canônica na narrativa não precisam estar necessariamente arranjadas conforme sua descrição; algu-mas fases podem ficar ocultas e são recuperadas a partir de pressuposição; além disso, algumas narrativas não se realizam completamente e, ainda, podem relatar, preferencialmente, uma das fases. As narrativas podem conter também mais de uma sequência canônica.

Neste aspecto, o slogan pode ser analisado por meio de algumas pressuposições. Sozinho, ele se comporta como um texto complexo, por-que possui significado fora do contexto da campanha/peça publicitária; dentro dela, faz parte de uma outra narrativa complexa. O interesse desta análise é buscar sua significação como elemento independente da campa-nha/peça publicitária.

Anteriormente, foi dito que o slogan pode ser visto como uma narrativa mínima, que se aproxima do programa narrativo. Neste caso, nossa análise pressupõe algumas fases no slogan “Viva o lado Coca-Cola da vida”. Antes, observamos claramente a fase de manipulação; o sujei-to Coca-Cola age sobre o público, pretendendo levá-lo a querer viver o lado Coca-Cola da vida. Nesse caso, podemos colocar dois conceitos de Coca-Cola: ela como sujeito e ela como objeto (a felicidade, o usufruto, materializado no “lado Coca-Cola da vida”).

A fase de competência é pressuposta, porque se pressupõe que o sujeito, o público, é dotado do poder de consumo, de viver e de usufruir. As fases de performance e sanção poderiam ser constatadas numa esfe-ra além do texto, pressupondo o programa narrativo maior que o slogan estaria inserido, no caso a peça/campanha publicitária, ao apresentar ele-mentos que demonstram as fases de performance e sanção.

No nível discursivo, as formas abstratas do nível narrativo são re-vestidas de termos concretos. É neste nível que se produzem variações de conteúdos narrativos invariantes. O percurso gerativo é composto de ní-veis de invariância crescente, porque um patamar pode ser concretizado pelo patamar imediatamente superior de diferentes maneiras, isto é, o pa-tamar superior é uma variável em relação ao imediatamente inferior, que é uma invariante (FIORIN, 2009).

Barros (2005) esclarece que o nível discursivo é o patamar mais su-perficial do percurso, embora seja o mais próximo da manifestação textu-al; as estruturas discursivas são mais específicas e mais complexas seman-

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ticamente que as estruturas narrativas e as fundamentais; e as estruturas narrativas convertem-se em estruturas discursivas quando assumidas pelo sujeito da enunciação.

A enunciação define-se como a instância de um eu-aqui-agora. O eu é instaurado no ato de dizer: eu é quem diz eu. A pessoa a quem o eu se dirige é estabelecido como tu. O eu e o tu são os actantes da enunciação, os participan-tes da ação enunciativa. Ambos constituem o sujeito da enunciação, porque o primeiro produz o enunciado e o segundo, funcionando como uma espécie de filtro, é leva-do em consideração pelo eu na construção do enunciado. (FIORIN, 2009, pg.56)

A análise discursiva opera sobre os mesmos elementos que a análise narrativa, retomando aspectos que tenham sido postos de lado, como as projeções da enunciação no enunciado, os recursos de persuasão utilizados pelo enunciador para manipular o enunciatário ou a cobertura figurativa dos conteúdos narrativos abstratos. Fiorin (2009) coloca, então, que existem dois níveis de concretização das estruturas narrativas: a tematização e a figurativização. Se a concre-tização parar no primeiro nível, teremos textos temáticos; se vier até o segundo, teremos textos figurativos. Os primeiros são compostos predominantemente de temas, isto é, de termos abstratos.

Nesta breve análise, salienta-se que a variante do slogan “Viva o lado Coca-Cola da vida” é o “viver o lado bom de algo”. O slogan anteriormente utilizado pela marca era “Viva o lado bom da vida”. Os termos concretos são “o bom” e “Coca-Cola” que são utilizados na invariante: viver algum aspecto da vida; o tema subjacente a este texto é “viver a vida”. O slogan opera com um verbo no imperativo (viva), o qual supõe uma perspectiva futura para o sujeito efetivar essa vivência.

Se a enunciação é definida a partir do eu-aqui-agora, ela instau-ra o discurso-enunciado, projetando para fora de si os autores do dis-curso e suas coordenadas espaço-temporais. Em “Viva o lado Coca-Cola da vida”, o verbo “viver” no modo imperativo implica a presença do destinatário (tu), conduzindo-o a fazer parte da mensagem que veicula e inserindo-o, como ator, do qual, portanto, também constrói uma imagem, dessa aventura semiótica proposta pelo slogan.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa breve análise realizada com base na semiótica discursiva e em seu percurso gerativo de sentido é apenas um esboço de um estudo maior e mais complexo que pode ser realizado por meio daquela teoria, em favor da compreensão do funcionamento e significação do texto publicitário.

Nessa análise, especificamente, o slogan publicitário, elemento do discurso persuasivo realizado pela publicidade, demonstra a utilidade da semiótica discursiva na compreensão destes textos, mas traz também o início de um trabalho que deve avançar em direção aos meandros mais profundos desta teoria, que não foram detalhados neste estudo.

Ainda assim, a análise demonstra que a intenção persuasiva do tex-to se faz numa trama de significados que vai além de aspectos comerciais do produto Coca-Cola; por meio de uma narrativa complexa, o slogan da marca procura levar o público à compreensão de que viver sua marca leva à felicidade, ao lado bom da vida.

REFERÊNCIAS

BARROS, D. P.. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 2005.FIORIN, J. L. Elementos de Análise do Discurso. 14. ed. São Paulo: Contexto, 2009.GREIMAS, A. J. ; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contex-to, 2008.HOFF, T; GABRIELLI, L. Redação Publicitária. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.SANDMANN, Antônio. A Linguagem da Propaganda. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1997.DATAFOLHA. Disponível em: <http://datafolha.folha.uol.com.br/produ-tos/top2009/introducao.php> Acesso em: 2 de abr. 2011.Jipemania. Disponível em: <http://jipemania.com/coke/slogans.htm> Acesso em: 2 de abr. 2011.WELLING, J. Top of Mind revela marcas mais lembradas pelos consumidores. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/top-of-mind-revela-marcas-mais-lembradas-pelos-consumidores>. Acesso em: 2 de abr. 2011.

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Marco Antônio Gehlen

O AUTOR

É mestre em Agronegócios (2009) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS); pós-graduado em “Comunicação Empresarial” (2005) e graduado em “Comunicação Social - Jornalismo” (2002). Possui experiência como repórter de economia e agronegócio em jornalismo impresso e online, além de ter atuado em assessorias de imprensa e de comunicação em organizações voltadas para o agronegócio. É autor da série Agroalimento, o Anuário da Produção Agrícola e Pecuária de Mato Grosso do Sul. Atual como professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão, campus de Imperatriz (MA). E-mails: [email protected] ou [email protected] .

Gestão da informação em arranjos produtivos agroindustriais1

1 Artigo desenvolvido a partir de dissertação de Mestrado em Agronegócio da UFMS

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INTRODUÇÃO

Este artigo relaciona o modelo de atividade econômica desenvolvi-da em Arranjos Produtivos Locais (APLs) e os fluxos de informações exis-tentes em aglomerados produtivos. Os Arranjos Produtivos Locais são analisados como sistemas localizados de agentes econômicos, políticos e sociais ligados a um mesmo setor ou atividade econômica, que possuem vínculos produtivos e institucionais entre si, de modo a proporcionar aos atores envolvidos um conjunto de benefícios relacionados com a aglome-ração das empresas formais e informais (IPEA, 2006).

A Informação é tratada como um capital precioso para as ativi-dades econômicas no sistema capitalista pós-industrial, equiparando-se aos recursos de produção, materiais e financeiros, o que a torna base para a geração do conhecimento e ação social, conforme apregoam as teorias da Economia da Informação e da Sociedade da Informação, contempladas neste estudo. Com concepções semelhantes, as duas teorias tratam desta nova forma de organização de pessoas, empresas e governos, onde a infor-mação e o conhecimento tornaram-se o principal ativo.

Dada à relevância da informação para as organizações no atual contexto, a Gestão da Informação é aqui abordada como um processo que consiste nas atividades de busca, identificação, classificação, processamen-to, armazenamento e disseminação de informações - independentemente do formato ou meio em que se encontra, seja em documentos físicos ou digitais, e sem necessariamente de envolver todas as etapas citadas. A Ges-tão da Informação será concebida, então, sob a ótica de que a sociedade da informação tem sua principal fonte de geração de riqueza baseadas na criação, distribuição e manipulação das informações, ou seja, no uso das informações como estratégias para as organizações.

Assim, os Arranjos Produtivos Locais e a Informação são anali-sados numa lógica de complementaridade e sob o prisma de que as ativi-dades produtivas na sociedade pós-industrial passaram a depender da ges-tão da dinâmica dos fluxos de informação e da intensificação no uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) para que informações relevantes sejam disponibilizadas, em momento adequado, aos que delas necessitam para a tomada de decisões.

Em síntese, os Arranjos Produtivos Locais são considerados pela literatura como ambientes propícios a interações e à troca de informação, conhecimentos e aprendizados, por meios diversos, tais como a mobilida-

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de local de trabalhadores; as redes formais e informais; e a existência de uma base social e cultural comum. No entanto, a difusão e o compartilha-mento de informações e conhecimentos requerem que os agentes estejam conectados, que haja canais ou mecanismos de comunicação propiciado-res de diversos fluxos de informação e de conhecimento, o que em geral não se observa nas aglomerações produtivas ainda incipientes.

Deste modo, a dissertação que originou esse artigo buscou levantar a realidade informacional de um Arranjo Produtivo Local no intuito de compreender as características e ferramentas que podem vir a propiciar a configuração de um sistema de troca de informação múltiplo, favorecendo a interação e a cooperação local, bem como a difusão e o intercâmbio de diferentes tipos de informações, conhecimentos e inovações, com ganhos para todo o aglomerado de produção. Já o presente artigo busca contri-buir, predominantemente, com pistas metodológicas para investigações futuras sobre a gestão de informações em Arranjos Produtivos Locais.

CONTEXTUALIZAÇÃO

As transformações tecnológicas ocorridas nas últimas décadas, com maior ênfase no período que sucedeu o surgimento e popularização do uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) - como computadores pessoais, internet, telefonia móvel, entre outras – promo-veram modificações significativas nas relações sócio-econômicas do setor produtivo, com reflexos diretos nas formas de organização da produção.

O termo Sociedade da Informação, que surgiu no fim do século XX por meio de uma dissociação da expressão Globalização, passou a de-nominar este processo decorrente da explosão informacional, caracteriza-da, sobretudo, pela aceleração dos processos de produção e disseminação da informação e do conhecimento na sociedade atual, que hoje se caracte-riza pelo elevado número de atividades produtivas dependentes da gestão de fluxos de informação, aliado ao uso intenso das novas Tecnologias de Informação e Comunicação.

Atualmente, existe o consenso de que na sociedade pós-industrial, cuja economia assume tendências globais, a informação passou a ser con-siderada um capital precioso equiparando-se aos recursos de produção, materiais e financeiros. Tal situação se solidificou a partir de pesquisas que denominaram a Economia da Informação como um campo de estu-dos interdisciplinar - entre a economia, a ciência da informação e a comu-

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nicação - que trata da informação como mercadoria e bem de produção necessários às atividades econômicas no sistema capitalista pós-industrial. Desta forma, a informação, como base para a geração de conhecimento e ação social, e sua relevância econômica e política têm sido investigadas em várias áreas do conhecimento.

No caso dos Arranjos Produtivos Locais, vistos como formas alter-nativas de organização da produção em ambiente local, as particularidades de proximidade e de aglomeração dos agentes produtivos de determinada atividade econômica, aliada às características de participação de atores e/ou organizações, em geral de pequeno e médio portes, tendem a possibi-litar que a informação receba um tratamento adequado e seja mais bem distribuída entre os atores do APL, com ganhos significativos ao processo decisório, uma vez que as decisões tendem a ser mais acertadas a partir da democratização da informação. Verifica-se, no entanto, que estudos visan-do diagnosticar e alavancar um APL defrontam-se, freqüentemente, com a falta de informações e/ou a existência de informações nem sempre con-fiáveis sobre os Arranjos Produtivos Locais. A natureza altamente diversi-ficada das atividades e das informações necessárias à caracterização de um APL apresenta-se como aspecto crítico à gestão desses aglomerados.

Os Arranjos Produtivos Locais desenvolvidos no meio rural, por sua vez, com suas especificidades e diante da pluralidade de atores/orga-nizações das atividades agroindustriais brasileiras que participam destes aglomerados produtivos, também surgiram, nas últimas décadas, como formas alternativas de organização da produção em ambiente local. No entanto, a complexidade originária das peculiaridades de um sistema pro-dutivo agroindustrial impõe dificuldades a um adequado diagnóstico dos Arranjos Produtivos Locais com base agropecuária.

Notadamente, os APLs desenvolvidos no meio urbano contam, de maneira geral, com a participação de agentes e/ou empresas mais or-ganizados do ponto de vista tecnológico, informacional e da produção, o que os difere dos APLs desenvolvidos no meio rural, uma vez que estes últimos são caracterizados pela presença dominante de empreendimentos e de relações informais, por meio das quais ocorrem também os fluxos de informações e as transações comerciais. Assim, estas peculiaridades dos sistemas desenvolvidos com base agropecuária contribuem para que os fluxos de informação - necessários para o processo produtivo, para as transações e para a tomada de decisões dos atores do APL - ocorram tam-bém de modo informal e, em muitos casos, de maneira incipiente, o que

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restringe a adequada disseminação e, conseqüentemente, utilização das informações ao longo do sistema.

O fato de um APL ter abrangência, normalmente, que ultrapas-sa os limites geopolíticos de um determinado município, podendo abran-ger, portanto, diversos municípios e estados, é outro fator que corrobora para a necessidade de informações agregadas em níveis diferenciados dos existentes nos limites municipais ou estaduais.

Nas últimas décadas, a aproximação entre informação e capital - que se evidenciou de maneira mais clara na década de 1990 com o alinha-mento da informação à economia e ao capital – levou a informação a ser utilizada como mercadoria e bem de produção necessários às atividades econômicas das organizações. Tal aproximação propiciou uma mercanti-lização das informações, com consequente assimetria informacional entre os diferentes atores/organizações de um determinado sistema produtivo, uma vez que a informação tornou-se um bem estratégico para a tomada de decisões das organizações, resultando em um oligopólio da informa-ção - caracterizado pela geração e utilização privada de informações, em detrimento de um processo de socialização da informação e do conheci-mento.

Na prática, a integração da produção de grandes grupos indus-triais passou a se viabilizar por fluxos de informação conduzidos por redes globais, deixando agentes e/ou empresas locais, em muitos casos, à mar-gem deste processo informacional. Os agentes de um Arranjo Produtivo Local e as pequenas e médias empresas, por sua vez, enfrentam desvan-tagens concorrenciais com grandes grupos industriais, no que tange ao acesso a informações estratégicas para a gestão de seus negócios.

Assim, compreender como ocorrem os fluxos informacionais em APLs agroindustriais, suas peculiaridades, pontos fortes e fracos, apresen-ta-se como relevante à consolidação de um processo de gestão da infor-mação mais apropriado aos objetivos de desenvolvimento local, coletivo e permanente no sistema produtivo.

Observou-se na pesquisa sobre Arranjos Produtivos Locais que os aglomerados de produção em base agropecuária, em geral, dispõem das tradicionais etapas de produção/comercialização da produção, formando um encadeamento de interdependências, em maior ou menor grau de de-senvolvimento, que vai desde o fornecimento de insumos, por determina-dos agentes econômicos, até a transformação e distribuição dos produtos ao consumidor final, processo este que é realizado pelas indústrias pro-

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cessadoras, restaurantes e supermercados até chegar ao consumidor final. Apesar dessa dinâmica existente em APLs, a dificuldade no acesso dos atores a informações especializadas sobre a produção, sobre novas tecno-logias e técnicas, e até mesmo sobre o mercado para o segmento, impõe limites à gestão competitiva de um APL.

Deste modo, entender como os atores de um APL buscam, trocam e utilizam os diferentes tipos de informações existentes interna e externamente ao sistema pode contribuir para a construção futura de fluxos de informação mais eficientes e capazes de nortear de maneira mais adequada às estratégias produtivas e o desenvolvimento sócio-econômico dos APLs, por meio de maior socialização das informações e com a con-seqüente redução da assimetria informacional existente entre os distintos elos da atividade.

ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS (APLS)

Diversas nomenclaturas têm sido utilizadas, nas últimas décadas, para definir novas formas de organização da produção que surgiram como estratégias a partir de aglomerados e/ou sistemas de empresas e/ou agen-tes - não importando neste momento qual seja o termo utilizado (APL, sistema de produção local, distrito industrial, meio inovador ou cluster) - com a finalidade de promover desenvolvimento regional e local.

Lastres e Cassiolato (2004) descrevem os elementos que caracteri-zam os Arranjos e Sistemas Produtivos Locais. São eles:

a) Dimensão territorial - constitui recorte espe-cífico de análise e de ação política (proximidade e concentração geográfica como fonte de dinamismo local);b) Diversidade de atividades e atores econômicos, políticos e sociais - empresas públicas e privadas, ins-titutos de pesquisa, ensino, desenvolvimento, uni-versidades, organizações públicas, entre outras; c) Conhecimento tácito - aqueles que não estão codificados, mas estão implícitos e incorporados em indivíduos, organizações e regiões, com forte espe-cificidade local (ex. identidades culturais, sociais e empresariais);

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d) Inovação e aprendizado interativos - fonte fun-damental para a transmissão de conhecimento e am-pliação da capacidade produtiva;e) Governança - diferentes modos de coordena-ção entre os agentes e atividades, que envolvem da produção à distribuição de bens e serviços, assim como o processo de geração, uso e disseminação de conhecimento e de inovação;f ) Grau de enraizamento - articulação e envolvi-mento dos diferentes agentes com as capacitações e os recursos humanos, naturais, técnico-científicos, empresariais e financeiros, assim como com outras organizações;

É importante destacar que a investigação sobre Arranjos Produti-vos Locais no Brasil se estende em diversas tipologias e variantes, adota-das de acordo com as características dos estudos propostos, como pode ser visto, por exemplo, nos trabalhos do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), entidade para a qual o conceito de Arranjos Produtivos Locais é mais abrangente:

O Arranjo Produtivo Local se constitui um tipo particular de cluster formado por pequenas e médias empresas, agru-padas em torno de uma profissão ou de um negócio, onde se enfatiza o papel desempenhado pelos relacionamentos - formais e informais - entre empresas e demais instituições envolvidas. As firmas compartilham uma cultura comum e interagem, como um grupo, com o ambiente sócio-cultural local. Essas interações, de natureza cooperativa ou competi-tiva, estendem-se além do relacionamento comercial, e ten-dem a gerar, afora os ganhos de escala, economias externas, associadas à socialização do conhecimento e à redução dos custos de transação. Note-se que, nesses sistemas, as unida-des produtivas podem ter atividades similares e/ou comple-mentares, em que predomina a divisão do trabalho entre os seus diferentes participantes - empresas produtoras de bens e serviços, centros de pesquisa, centros de capacitação e treinamento e unidades de pesquisa e desenvolvimento, públicas e privadas (SEBRAE, 2004, p.230).

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Para o BNDES (2004, p. 38), um arranjo potencial é caracteriza-do como uma pequena e incipiente aglomeração setorial de pequenas e médias empresas que, além de terem um tamanho relativo pouco signi-ficativo, não possuem uma relação cooperativa institucionalizada entre si ou com entidades públicas capaz de fornecer serviços complementares ou atrair investimentos que gerem ganhos coletivos.

Já para o Ipea (2006), um Arranjo Produtivo Local pode ser defi-nido como “sistema localizado de agentes econômicos, políticos e sociais ligados a um mesmo setor ou atividade econômica, que possuem víncu-los produtivos e institucionais entre si, de modo a proporcionar aos pro-dutores um conjunto de benefícios relacionados com a aglomeração das empresas”.

Porém, a premissa inicial do estudo é a percepção de que não se deve considerar somente fatores locais que são herdados ou preexistentes em uma região, como a sua disponibilidade de matéria-prima, clima e de fertilidade do solo, facilidade de acesso a grandes centros consumidores e a infra-estrutura, mão-de-obra abundante, entre outros. Nas palavras de Campeão (2004), a existência dessas vantagens deve ser vista como con-dição necessária para a competitividade. No entanto, há também fatores intangíveis que determinam o processo de desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais. Trata-se, por exemplo, entre outros elementos, das tro-cas de informações entre os agentes envolvidos no sistema que, de modo formal ou informal, influenciam no estoque de conhecimento e habili-dades produtivas do aglomerado, refletindo na capacidade endógena de ação dos agentes para a ampliação da competitividade de todo o arranjo.

Para sinalizar as relações e elucidar os agentes envolvidos em um APL de base agropecuária, Campeão (2004) apresenta um modelo espe-cialmente orientado ao desenvolvimento de arranjos que estejam estrutu-rados com base em dois segmentos principais do Sistema Agroindustrial: o segmento da produção de matérias-primas e o segmento de transforma-ção agroindustrial, conforme a figura:

INFORMAÇÃO E OS ARRANJOS PRODUTOS LOCAIS

Independentemente da denominação adotada, as chamadas aglo-merações produtivas, científicas, tecnológicas e/ou inovativas – tais como distritos industriais, clusters, meios inovadores, arranjos produtivos lo-cais, entre outros (Cassiolato e Lastres, 1999) – são consideradas ambien-

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Figura 1 – Abrangência do Sistema Local de ProduçãoFonte: CAMPEÃO, 2004.

tes propícios a interações, à troca de conhecimentos e ao aprendizado, por meios diversos, tais como a mobilidade local de trabalhadores; redes formais e informais; existência de uma base social e cultural comum que dá o sentido de identidade. Nas palavras de Albagli e Maciel (2004), a localização ou proximidade espacial facilita maior interação e comunica-ção, mas não é, por si só, um fator determinante para tal – são necessárias também condições institucionais e socioculturais que as favoreçam.

Albagli e Maciel (2004) destacam que as características sociais e políticas locais constituem então aspecto central para a ampliação da capacidade inovadora. A difusão e o compartilhamento de informações e conhecimentos requerem que os atores estejam conectados, que haja canais ou mecanismos de comunicação que propiciem os vários fluxos de conhecimento e o aprendizado interativo. Os autores supõem ainda em ambientes de aglomerações, a existência de um contexto social de comu-nicação e a existência de códigos compartilhados e reconhecidos pelos sujeitos da comunicação. Conforme assinalado por Sfez (1996), o saber sobre o qual a comunicação das informações vai incidir já existe e serve para interpretá-la. Mas este saber é, naturalmente, formado por mensa-

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gens anteriores, geradas por uma aprendizagem social e vindas de uma herança cultural, irrigada pelas experiências pessoais no meio local.

Neste contexto, para Albagli e Maciel (2004), ganha importância compreender e promover as condições que propiciem a configuração de um sistema de troca de informação múltiplo, favorecendo a interação e a cooperação local, bem como a difusão e o intercâmbio de diferentes tipos de informações, conhecimentos e inovações. “Assim, projetam-se as noções de territorialidade e de capital social” (ALBAGLI; MACIEL, 2004).

Campos (apud MOLINA, 2008) resgata que a ideia de arranjos produtivos esta ligada a uma proximidade geográfica existente entre as empresas, envolvendo geralmente as pequenas e médias empresas que precisam da coletividade para melhorar sua competitividade frente ao mercado, mas que, no caso do Brasil, ainda vai demandar tempo para se consolidar.

No entanto, Albagli e Maciel (2004) reforçam que as novas TICs possibilitam grande geração e disseminação de informação, por meio de meios comunicacionais como a mídia televisiva, a impressa e a digital. “Assim, a informação passa a ter valor de capital, se transformada em conhecimento e aplicada aos processos produtivos” (ALBAGLI e MA-CIEL, 2004). Diante disso, as organizações precisam estimular seus cola-boradores a fazer o uso otimizado das informações geradas, tanto interna quanto externamente ao seu ambiente. O aprendizado e o compartilha-mento se tornaram uma necessidade constante, para que a construção do conhecimento ocorra de forma adequada e propicie a organização, o de-senvolvimento de sua competitividade frente ao mercado produtivo.

Albagli e Maciel (2004) defendem ainda, como atividades que au-xiliam no processo de construção do conhecimento, a utilização das TICs para gestão da informação; bem como para a gestão do conhecimento. Es-sas tecnologias possibilitariam a coleta, o registro, o tratamento adequado da informação e sua disseminação, assim como se constituem em meios que potencializam o compartilhamento do conhecimento e a geração de novos conhecimentos, que são a base de toda organização e possibilitam o alcance de seus objetivos (ALBAGLI e MACIEL, 2004, p. 56).

Diante disso, a aproximação das teorias da informação com as teorias dos APLs tem seu sentido ampliado sob a perspectiva de que a informação possa ser incorporada no arranjo produtivo e utilizada para um real processo de construção de conhecimento, como destacado por Albagli e Maciel (2004).

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GESTÃO DA INFORMAÇÃO

Gerenciar informação interna e externa é vital, especialmente no que se refere à geração do conhecimento. Isso dá uma visão am-pla da organização, importante para o planejamento estratégico e vantagem competitiva (LAMBERT, 2007). O processo de gestão da informação nas organizações deve passar por sucessivas e freqüentes melhorias, visando à qualidade dos produtos e serviços. A gestão do conhecimento, na definição de Wah (2000) é uma ferramenta geren-cial para administrar o conhecimento e a informação e agregar-lhe valor ao filtrá-la, sintetizá-la e resumi-la, permitindo aos utilizado-res – trabalhadores do conhecimento/tomadores de decisão – con-seguir a informação necessária para passar à ação.

Atualmente, de acordo com Lambert (2007), as organizações vêm utilizando a gestão do conhecimento como forma de facilitar o fluxo de informação dentro da organização, mas muitas ainda não possuem habilidades para coletar e organizar suas informações. A área de gestão do conhecimento está crescendo, tentando ganhar autonomia e desenvoltura para desempenhar bem seu papel, como estratégia empresarial para explorar os recursos informacionais exis-tentes na empresa (LAMBERT, 2007).

Neste contexto, Lambert (2007) salienta que a gestão do co-nhecimento (KM, do inglês Knowledge Management) se transfor-ma em um valioso recurso estratégico para as organizações. A cria-ção e a implantação de processos que gerem, armazenem, gerenciem e disseminem o conhecimento representam o mais novo desafio a ser enfrentado pelas organizações.

Marchiori (2002) destaca que o ponto de partida para a área de gestão da informação se inicia com a demanda de informação e com o processo de atendimento a essa demanda, que envolvem o estudo da informação e suas características, fluxos e necessidades. Já o processo de agregação de valor às informações, segundo o autor, inclui habilidades como análise, condensação, interpretação, repre-sentação e estratégias de busca e apresentação da informação dispo-nibilizada, de acordo com os seus canais e suportes e também com os tipos de informações, tais como visuais, sonoras, numéricas ou textuais.

Após o estabelecimento de algum consenso sobre as infor-

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mações necessárias ao desenvolvimento da organização, seja ela qual for, deve haver, segundo Mcgee e Prusak (1994), um plano siste-mático para adquirir a informação de sua origem ou coletá-la, de modo eletrônico ou manual. A classificação e o armazenamento, bem como o tratamento e a apresentação da informação são tare-fas que ocorrem a partir da coleta e, freqüentemente, acontecem si-multaneamente. A classificação e o armazenamento pressupõem o modo como os usuários poderão acessar as informações necessárias e selecionar o melhor lugar para fazer seu armazenamento (McGEE; PRUSAK, 1994).

Segundo alguns autores (McGEE e PRUSAK, 1994; STAIR, 1998; DAVENPORT, 2002; MARCHIORI, 2002; REZENDE, 2002), as etapas relacionadas ao processo de gestão da informação, conforme ilustrado na Figura 2, a seguir, podem ser sintetizadas da seguinte maneira:

• etapa 1–Determinação da necessidade de in-formação: envolve compreender as fontes e os tipos de informações necessárias para um bom desempe-nho do negócio, bem como suas características, fluxos e necessidades;• etapa2–Obtenção:incluiasatividadesrelacio-nadas à coleta dos dados; • etapa3–Processamento:compreendeativida-des de classificação (define o melhor modo de acessar as informações necessárias) e de armazenamento (se-leciona o melhor lugar e os recursos para o arquiva-mento) das informações obtidas; • etapa4–Distribuiçãoeapresentação:envolveescolher, entre diferentes metodologias, qual pode ser mais adequada para se apresentar a informação, dis-ponibilizando-a aos usuários por diferentes formas e fontes e estilos;• etapa 5 – Utilização: após a apresentação dainformação, segue-se a etapa de utilização da mesma pelas pessoas da empresa, que as incorporarão às eta-pas de elaboração, execução e avaliação da estratégia empresarial, auxiliando, assim, o processo de gestão estratégica.

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Após a última etapa, em que a informação foi utilizada e auxiliou na for-mulação da estratégia, uma nova demanda torna necessária a busca de informa-ção, impulsionando o reinício do processo de gerenciamento da informação, já que esse processo, para ser estratégico, deve ser contínuo (MORAES; ESCRI-VÃO, 2006). Neste sentido, Chiavenato (2000) destaca que o conceito de in-formação requer diferenciações conceituais quanto aos dados, pois informação, para o autor, é um conjunto de dados com um significado, ou seja, que reduz a incerteza ou que aumenta o conhecimento a respeito de algo.

Assim, pode-se extrair que o processo de gestão da informação vai além da simples coleta e sistematização de dados, mas consiste, principalmente, na organização e análise aprofundada destes dados, agregando, aos mesmos, in-formações qualitativas, transformando-as em conhecimento capaz de orientar as estratégias de organizações, de empresas e de atores, tornando-os mais com-petitivos, por intermédio do entendimento e da execução constante das etapas definidas na Figura 3, que segue:

Figura 2 – Processo de Gerenciamento da InformaçãoFonte: MORAES e ESCRIVÃO, 2006, p. 126.

Figura 3 – Etapas para o uso estratégico de informações Fonte: Adaptado de CHIAVENATO, 2000.

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Acreditando que a organização baseada na informação é o mode-lo de organização do futuro - fundamentada no conhecimento e forma-da por especialistas -, conforme adiantado por Drucker (1993), Cohen (2002) alertou as organizações e seus gerentes sobre a necessidade do uso adequado das informações para que as organizações efetivamente consi-gam vantagens competitivas.

Em seus estudos, Cohen (2002) questionou como as empresas estão usando a informação para competir no mercado, diante das atuais regras da economia - caracterizada pela inserção da sociedade em uma economia baseada na informação – e, assim, o autor acabou consolidado o que denominou como referencial para uso da informação nas estraté-gias organizacionais, conforme Figura 4, que segue:

ROTEIRO INICIAL PARA ESTUDOS DE INFORMAÇÔES EM APLS

A partir do roteiro de entrevista utilizado como uns dos instru-mentos para coleta de dados da pesquisa de mestrado originária deste ar-tigo buscou-se captar a realidade dos agentes e organizações ligados aos elos de um APL agropecuário, sendo que os segmentos identificados e contemplados na presente pesquisa foram: Insumos; Produção; Indús-

Figura 4 – Referencial do uso da informação nas estratégias das organi-zações Fonte: COHEN, 2002, p. 34.

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tria; Distribuição; Consumo; e Ambiente Organizacional. Já as variáveis observadas no estudo e contempladas no roteiro das

entrevistas realizadas com os diversos agentes do arranjo pesquisado tra-taram sobre:

• FunçõesexercidaspelasorganizaçõesquecompõemoAmbiente Organizacional do APL;• Conhecimentodosagentessobreosignificadodoter-mo APL e sua aplicação prática;• Relaçõescomoutroseloseformalidadedastransações;• Acessoaestudosepesquisascientíficasrelativasàativi-dade exercida;• Interesseporestudos/pesquisasedequaisáreasdaativi-dade ;• Fatoresrelevantesaodesenvolvimentodaatividadenaótica dos agentes - Profissionalização; Legalização; Coope-ração e Participação no APL para a atividade;• Informaçõesrelevantesparaaatividade,sendoquecombase na teoria levantada e de acordo com as características do presente estudo, optou-se por considerar somente as se-guintes as tipologias de informações: Econômicas (sobre preços de compra e vendas de produtos e insumos); De Mercado (sobre o que os consumidores querem ou prefe-rem consumir); Técnicas (sobre como produzir e inovações aplicadas à produção); Sociais (sobre o desenvolvimento social da sua região, como escolaridade e renda); De Gestão (sobre processos de gestão mais apropriados); Climatológi-cas (sobre condições de clima de sua região); Da Concor-rência (sobre capacidade produtiva, qualidade e estratégias dos concorrentes); Institucionais (sobre a legislação, nor-mas, licenças e programas de financiamento); e Cadastrais Empresariais (sobre RAIS e IR, etc.);• Informaçõesatualmentedisponíveisparausodosagen-tes do APL;• Trocaspredominantesdeinformaçõesrealizadasentreos elos e a frequência; • Meiosutilizadosparatrocasdeinformaçõeseformali-dade dos fluxos;

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• TICs disponíveis e as efetivamente utilizadas pelosagentes da atividade;• Possui/usacomputador(inclusãodigital)naatividadee qual a frequência; • Gerae/oudistribuiinformaçõessobre/paraaatividade;• Afinidadedoelodosprodutorescomoutrosagenteseorganizações do APL;

APONTAMENTOS

Como resultados parciais foi possível demonstrar quais os tipos de informações são consideradas, pelos elos de um APL agropecuário, como relevantes para o desenvolvimento da atividade e em outro momento pode-se verificar quais informações estavam disponíveis aos elos. Ao con-frontar as informações avaliadas como “relevantes“ com as informações que se encontravam “disponíveis” para utilização na atividade no APL, chegou-se ao cenário das informações “relevantes e ainda indisponíveis” no arranjo na ótica dos elos envolvidos no aglomerado produtivo:

Quando aos fluxos de informação, o estudo revelou que em um APL agropecuário existe a predominância de troca de informações por meio de conversas informais, sendo esse o principal meio de transmissão de informações para o desenvolvimento da atividade. Notadamente, as trocas de informações informais surgidas espontaneamente ao longo da

Quadro 1 – Informações relevantes, mas indisponíveis no APL na ótica dos diferentes elos

Fonte: GEHLEN, 2009.

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cadeia produtiva, principalmente nas relações de produtores rurais com os demais elos do arranjo, dão pistas da relevância do capital social exis-tente em APLs agropecuários para o desenvolvimento da atividade, uma vez que, diante da escassez de mecanismos formais e/ou mais adequados para troca de informação, estes fluxos informais entre os agentes suprem parte da necessidade de trocas de informações, o que tem garantido a con-tinuidade da atividade.

Vale destacar, no entanto, que ao confrontar as informações gera-das e/ou distribuídas pelos elos dos segmentos de insumos, das indústrias e do ambiente organizacional com as demandas de informação dos pro-dutores e de outros atores dos elos de um APL agropecuário, verifica-se a existência de atores fontes de grande parte das informações necessárias para a atividade, sem que estas informações efetivamente consigam che-gar, em momento adequado, aos que dela precisam para a tomada de de-cisão.

Assim, embora os mecanismos informais de troca de informações desenvolvidos espontaneamente entre os agentes e elos da cadeia sejam hoje os principais meios de circulação das informações no APL, é impe-rioso que sejam desenvolvidos modelos mais eficazes de difusão das infor-mações entre os elos, o que refletiria em ganhos para tomadas de decisões mais acertadas em toda a cadeia produtiva.

O presente trabalho pôde detectar que APLs agropecuários apre-sentam predominantemente fluxos de informações ainda incipientes, não aproveitando uma das principais características citadas como vantagens das aglomerações produtivas que é a facilitação do acesso a informações especializadas e a existência de um quadro de maior democratização das informações e do conhecimento entre os diversos agentes e/ou elos do sistema.

Ao contrário, o estudo verificou que, no que se refere à realidade do APL agropecuário, não é cabível a premissa de que os Arranjos Produ-tivos Locais são formas alternativas de organização da produção em am-biente local, onde as particularidades de proximidade e de aglomeração dos agentes possibilitam que a informação receba um tratamento adequa-do e seja mais bem distribuída entre os atores do APL, o que promoveria ganhos ao processo decisório e ao acesso às informações. Em teoria, os arranjos são analisados como ambientes propícios para a interação local e para circulação globalizada de informação e conhecimento, mas a campo a realidade vivenciada, principalmente, pelos produtores dos APLs em

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fase embrionária, comprova baixa circulação de informações e de conhe-cimento.

Empiricamente, a pesquisa confirma uma subutilização das infor-mações existentes em alguns dos elos de APLs agropecuários e a existência predominante de fluxos de informações informais que não proporcionam garantias da eficiência das trocas de informações realizadas entre os dife-rentes elos e/ou agentes. As conversas informais são apontadas como o principal meio para troca de informações entre os elos, de modo que não existe um mecanismo ou canal de comunicação, seja em documento digi-tal ou físico (impresso), capaz de garantir que determinadas informações estejam disponíveis ou cheguem a quem delas precisam para a tomada das decisões.

Vale salientar, no entanto, que o capital social existente em APL desenvolvidos em base agropecuária é o que garante parcela representa-tiva das trocas de informações entre os agentes do arranjo, não podendo, portanto, ser menosprezada a informalidade existente entre os agentes e elos, uma vez que esta tem dado garantias à continuidade das atividades. Notadamente e quase que exclusivamente, a informalidade e as trocas de informações informais aparecem como a única forma de muitos peque-nos produtores interagirem entre si e com os demais elos da cadeia pro-dutiva.

Por outro lado, o estudo identificou que os agentes do ambiente organizacional possuem maior acesso aos diversos tipos de informações considerados como relevantes para o desenvolvimento das atividades, principalmente, no que diz respeito às demandas informacionais dos pro-dutores. Vale lembrar que esta relação – das instituições de apoio com os produtores - é prejudicada, entre outros fatores, pela distância geográfica existente entre os pequenos produtores e as localidades urbanas onde as instituições e organizações de apoio encontram-se instaladas. Aliada às restrições geográficas, também aparecem como fatores limitadores do processo de trocas de informações o baixo grau de escolaridade dos pro-dutores e as deficiências tecnológicas das propriedades rurais.

Apesar das deficiências identificadas, há consenso, entre os diver-sos atores do ambiente organizacional de APLs agropecuários de que a informação deve passar a receber um tratamento adequado e ser mais bem distribuída entre os agentes do arranjo, o que promoveria ganhos significativos aos processos de decisão no que diz respeito à atividade, a partir da democratização da informação no arranjo, ou seja, por meio de

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um processo de socialização da informação e do conhecimento existentes entre as organizações, que hoje não são disseminados de forma adequada aos demais elos do aglomerado produtivo.

Deste modo, o presente estudo sugere como adequado o desen-volvimento e a operacionalização de ações que concretizem uma melhor coordenação informacional do sistema produtivo e aumentem sua capa-cidade sistêmica de reagir às mudanças cada vez mais rápidas do cenário competitivo, a partir de maior socialização das informações. O desafio a ser assumido pelas organizações de apoio, no entanto, é encontrar meca-nismos, públicos e privados, que auxiliem na operacionalização da coor-denação das informações e do conhecimento no aglomerado agroindus-trial como um todo.

Na prática, as organizações de apoio presentes dos arranjos vêm utilizando a gestão do conhecimento como forma de facilitar o fluxo de informação dentro da organização, mas muitas destas organizações ain-da não possuem habilidades para coletar e organizar suas informações. Assim, a criação e a implantação de processos que gerem, armazenem, gerenciem e disseminem o conhecimento interna e externamente na or-ganização representam um dos mais novos desafios a serem impostos às organizações e aos agentes consultivos do segmento.

Em suma, um sistema de informação gerencial, elaborado conjun-tamente pelas organizações de apoio, poderia otimizar o fluxo das infor-mações relevantes no âmbito de um APL agropecuário, primeiramente no que diz respeito aos atores do ambiente organizacional, desencadean-do um processo de conhecimento do aglomerado que possibilitaria maio-res intervenção na realidade dos arranjos, até mesmo no que diz respeito à elaboração de políticas públicas.

Na prática, ainda que de forma seminal, verifica-se também que a implementação de qualquer sistema de informação gerencial no âmbito do elo das organizações de apoio depende anteriormente de um esforço organizacional para a difusão das Tecnologias de Informação e Comuni-cação apropriadas à realidade do APL.

O presente estudo observa, então, que a proximidade na relação entre os elos da produção, insumos, indústrias e distribuição teoricamen-te facilita maior interação e comunicação, mas não é, por si só, um fator determinante para tais relações, sendo necessárias também condições or-ganizacionais e institucionais que as favoreçam. Assim, a difusão e o com-partilhamento de informações e conhecimentos requerem que os atores

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estejam conectados por meio de canais ou mecanismos de comunicação que propiciem vários fluxos de conhecimento e de aprendizado interativo entre os diversos elos do APL.

Deste modo, o estudo buscou compreender e revelar também as condições que propiciam a configuração de um sistema de troca de in-formação múltiplo, que possa favorecer a interação e a cooperação local, bem como a difusão e o intercâmbio de diferentes tipos de informações, conhecimentos e inovações.

Assim, partindo dos três fatores que limitam um adequado fluxo de informações no APL, uma das alternativas para a construção de fluxos de informações mais apropriados ao arranjo no atual contexto de desen-volvimento dos seus agentes, poderia contemplar a constituição de bole-tins informativos impressos, o que, como sugestão da presente pesquisa, eliminaria inicialmente a barreira da ausência de tecnologias de comuni-cação computacionais nas propriedades. Neste sentido, as entidades do ambiente organizacional novamente aparecem como agentes capazes de dar início a um processo de gestão da informação que contemple as eta-pas de determinação da necessidade informacional; obtenção dos dados; processamento e armazenamento das informações obtidas; e distribuição das informações - etapas estas que antecedem a utilização das informações pelos demais agentes do APL a partir, por exemplo, dos boletins informa-tivos, objetivando, em um segundo momento a construção de um sistema de informações para o APL em estudo.

Em um segundo momento, diante da maior disponibilidade de tecnologias de informações e comunicação entre os agentes do ambiente organizacional do APL, o desenvolvimento de um sistema de informa-ção gerencial - que pudesse fornecer informações adequadas, na forma de relatórios e demonstrativos pré-estipulados, para os gestores das organi-zações ligadas à piscicultura - poderia ser um mecanismo facilitador da estruturação inicial de um processo mais amplo de gestão da informação em APLs desenvolvidos com base agropecuária.

REFERÊNCIAS

BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL. Arranjos Produtivos Locais e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: BNDES, 2004, 78 p. Disponível em: < http://www.bndes.gov.br/conhecimen-to/seminario/apl.pdf>. Acesso em: 14 out. 2008.

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CAMPEÃO, P. Sistemas Locais de Produção: um modelo de desenvolvi-mento. Tese (Doutorado em Engenharia da Produção). São Carlos: UFSCAR, 2004.GEHLEN, Marco Antônio. A dinâmica dos fluxos de informação no arranjo produtivo local da piscicultura da região de Dourados/MS. Campo Grande: Departamento de Economia e Administração, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2009, 149 p. Dissertação de Mestrado.INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA/ IPEA. 2006. Identificação, Mapeamento e Caracterização Estrutural de Arranjos Produti-vos Locais no Brasil - Relatório Consolidado. SUZIGAN W.LASTRES, H. M. M; CASSIOLATO, J. E. Arranjos e Sistemas Produtivos Locais na Indústria Brasileira. 2004. Disponível em: <http://www.ie.ufrj.br/revista/pdfs/arranjos_e_sistemas_produtivos_locais_na_industria_brasileira.pdf>. Acesso em: 4 outubro 2007.MOLINA, L. G. Portais corporativos: tecnologia de informação e comuni-cação aplicadas à gestão da informação e do conhecimento em empresas de Tecnologia de Informação. 2008. 211f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulis-ta/campus de Marília . Marília, 2008.SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRE-SAS. Metodologia de desenvolvimento de arranjos produtivos locais. Projeto PROMOS/SEBRAE/BID, 2. ver. Brasília: SEBRAE, 2004, 287 p.

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Marcos Fábio Belo Matos

O AUTOR

Graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela UFMA, Li-cenciado em Língua Portuguesa pelo IFMA, especialista em Lín-gua Portuguesa pela FAMA, Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ, Doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade UNESP/Araraquara. Professor do Curso de Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, do CCSST/Imperatriz e líder do G.Mídia (Grupo de Estudos de Mídia Jor-nalística). E-mail: [email protected]

Modernidade, Imprensa e Discurso: de como a imprensa escrita efetivou

o discurso modernizador

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INTRODUÇÃO

Este artigo tem a intenção de demonstrar, a partir dos pressupostos da Análise do Discurso de orientação francesa, que tem como teóricos de base Michel Pêcheux, Michel Foucault e Jean-Jacques Courtine, de que maneira a modernidade se efetiva discursivamente no mundo, alcançan-do, de forma consecutiva, o Brasil e o Maranhão, notadamente a capital, São Luís.

Num movimento concêntrico, a modernidade se estabelece e se consolida como sistema econômico, de pensamento, de criação literária e de organização da vida e da apreensão do mundo pelos cidadãos no final da Idade Média e vai se ‘pulverizar’, da Europa para a periferia do mundo ocidental, a partir de uma série de estratégias, entre as quais está a criação e disseminação de um discurso modernizador, que vai se instaurar nas so-ciedades que almejam alcançar o status de sociedades modernas em vários segmentos: nas falas políticas, eclesiásticas, literárias e, claro, na imprensa escrita, representada pelos jornais e revistas ilustradas.

É este discurso modernizador que analisamos aqui. Procuramos descortinar algumas das suas características e demonstrar como ele vai se estabelecer em São Luís do Maranhão, na época vivendo o momento modernizador, com fábricas, trilhos de bonde, energia elétrica, telefone, telégrafo, cinematógrafos e muitos outros símbolos desse novo tempo.

O PERCURSO DA MODERNIDADE

Sabemos que a instituição da modernidade no mundo se deu a partir do final da Idade Média, o que está, inclusive, sacralizado pela his-toriografia clássica, quando esta faz a divisão dos períodos históricos em Idade Antiga/Antiguidade (do surgimento da escrita à queda do Império Romano do Ocidente, no século V); Idade Média (do século V ao século XV); Idade Moderna (do século XV à Revolução Francesa) e Idade Con-temporânea (da Revolução Francesa aos dias atuais). De fato, pelo cote-jamento das referências de alguns autores (GIDDENS, 1991; THOMP-SON, 2008; IANNI, 2000; CARVALHO, 2008), é possível verificar o processo de desenvolvimento de uma série de fatores que, conjugados, foram configurando uma nova feição do mundo a partir do século XVI. Giddens (1991), numa tentativa de traçar uma formatação das alterações que o mundo moderno apresenta em relação ao mundo pré-moderno,

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cita os seguintes fatores: em primeiro lugar, a modernidade configura um ritmo de mudanças muito rápido em relação à era anterior, tanto no que diz respeito às inovações tecnológicas quanto a outras áreas; em segundo lugar, as mudanças que foram ocorrendo tinham uma amplitude mui-to maior, em alguns casos até global; em terceiro lugar, a especificidade de muitas das instituições modernas configura uma distinção radical: o modelo político do estado-nação, a dependência das fontes inanimadas de energia para o desenvolvimento socioeconômico, a transformação de produtos e do trabalho assalariado em mercadoria, a formatação da cida-de moderna são algumas dessas configurações que deram à modernidade uma natureza diferenciada da ordem tradicional.

No Brasil, os primeiros sinais do que se pode caracterizar como uma modernidade local surgiram no século XIX, em sua segunda metade. Sevcenko (1998, p. 14-15) identifica alguns dos fatores responsáveis pelo seu surgimento: a fundação, em 1870, do Partido Republicado, pela cha-mada “Geração de 70”, um grupo de jovens intelectuais, artistas, políticos, militares, imbuídos de ideias positivistas, abolicionistas, que visava a subs-tituir a monarquia por um novo regime; a expansão do café como base de apoio econômica para um novo modelo estrutural do país; a criação de um mercado de ações com base na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro; a abolição da escravatura; o aumento do mercado interno de consumo, com a entrada na economia do trabalho assalariado dos ex-escravos e dos imi-grantes; a promoção da industrialização. Reunidos, esses e outros fatores foram os responsáveis pela nossa ‘entrada triunfal’ na modernidade.

A nossa modernidade tem características próprias e distintas do que ocorreu na Europa. Diferente dos países europeus, no final do sécu-lo XVIII ainda vivíamos num estado colonial, de industrialização quase inexistente e economia extrativista; comparada à das cidades europeias, nossa urbanização foi mais singela, nossa multidão menos tumultuada; nosso cenário moderno foi menos intenso que o do velho mundo.

Eis os traços da nossa modernidade. Tivemos a introdução no país de um ideário moderno – na literatura, o Romantismo, o Simbolismo, o Naturalismo e o começo do Modernismo; na política, o ideário da Repú-blica; nas ciências humanas, o positivismo, dentre outros. Tivemos um surto industrial, inicialmente concentrado no Rio de Janeiro e depois espalhado por outros estados, principalmente em função dos capitais estrangeiros que o Encilhamento fez jorrarem no país e como justifica-ção de tais empréstimos. Tivemos um processo de reformulação urbana,

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cujo principal modelo foi a reforma que o então prefeito Pereira Passos empreendeu, entre 1902 e 1904, na cidade do Rio de Janeiro, a capital da recém-instalada república (esta, em si mesma, a representação de um regime político mais moderno, baseado em eleições pelo voto), inspira-da diretamente na Paris de Haussmann. Tivemos a instituição de uma série de discursos de natureza racionalista-tecnicista, como o dos médi-cos, engenheiros, cientistas, advogados, imbuídos da construção de uma nova identidade para o país. Tivemos a introdução de novos elementos no ambiente público das cidades, grandes e pequenas: a iluminação elé-trica, o transporte ferroviário, o serviço de bondes de tração elétrica, o uso da água encanada e do gás de cozinha. Tivemos o desenvolvimento da imprensa, com o aumento das tiragens dos jornais, o uso da ilustração e, logo após, da fotografia, o surgimento das revistas ilustradas, a incor-poração do anúncio publicitário em jornais e revistas, a reestruturação do texto jornalístico e o surgimento de uma nova estrutura organizacional, que transformou os órgãos de imprensa em empresas, profissionalizando os seus colaboradores. Tivemos a entrada no país de novas e diferentes formas de entretenimento: o folhetim e a fotografia, na primeira metade do século XIX, o kinetoscópio, os panoramas, o cinematógrafo, o fonó-grafo, os cafés-concerto, no final do século. Tivemos a incorporação de novos meios de locomoção, além do bonde já citado: a bicicleta e, no iní-cio do século XX, o automóvel. Tivemos, enfim, a incorporação de uma nova mentalidade no País, precisamente representada por este trecho de crônica de João do Rio sobre o novo modo de vida do habitante do Rio de Janeiro:

Vede o espectador teatral. Logo que o último ato chega ao meio, ei-lo nervoso, danado para sair. Para quê? Para tomar chocolate depressa. E por que depressa? Para tomar o bond onde o vemos febril ao primeiro estorvo. Por quê? Porque tem pressa de ir dormir, para acordar cedo, aca-bar depressa de dormir e continuar com pressa as breves funções da vida breve. (RIO, Cinematógrafo,1909 apud SUSSEKIND, 1987, p. 103).

MODERNIDADE E DISCURSO: O DISCURSO MODERNIZADOR

A modernidade, no mundo e no Brasil, ao se estabelecer como ‘es-pírito da época’, encetou um discurso modernizador, vinculado a uma

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Formação Discursiva da modernidade. Este discurso foi responsável pela política de consolidação do ethos moderno nas sociedades que eram, en-tão, alcançadas por esse novo momento histórico. O discurso moderniza-dor foi a representação do que Foucault denomina “vontade de verdade”. Em “A Ordem do discurso” (1996, p.16), ele assinala, comparando dois momentos históricos, que

Há, sem dúvida, uma vontade de verdade no século XIX que não coincide nem pelas formas que põe em jogo, nem pelos domínios de objeto aos quais se dirige, nem pelas técnicas sobre as quais se apóia, com a vontade de saber que caracteriza a cultura clássica.

Esta vontade de verdade é um dos sistemas coercitivos que “con-cernem, sem dúvida, à parte do discurso que põe em jogo o poder e o de-sejo.” (FOUCAULT, 1996, p.16). O poder, no caso, diz respeito à força política que punha em curso o ‘trem da modernizade’ – governos, classes de capitalistas, instituições religiosas, meios de comunicação, as ações pú-blicas reformadoras de todos os níveis, classes sociais, entidades políticas, personalidades culturais, dentre outras – e este desejo pode ser represen-tado por todas as vozes que levantavam odes à modernidade, por meio dos mais diversos canais e nos mais distintos gêneros de discurso – dos púlpitos aos salões reais, das tribunas às folhas dos jornais, dos livros aos discursos nas inaugurações das fábricas.

No seu processo de ‘pulverização’, a modernidade vai se instalando pelo mundo de maneira centrífuga, a partir do polo difusor – a Europa, sobretudo Inglaterra e França. A primeira legou, ainda no final do século XVIII, a força do industrialismo e o símbolo maquínico da Revolução Industrial, que se potencializou e universalizou na segunda metade do século XIX, quando entrou em cena o que Sevcenko (1998) denominou de “Segunda Revolução Industrial”, ou “Revolução Técnico-Científica”, já baseada na eletricidade e nos derivados do petróleo, cujo paradigma para o mundo ocidental foi a cidade de Manchester. A segunda difundiu, principalmente, a concepção do modus vivendi da modernidade na tra-jetória cotidiana das sociedades: urbanidades, valores, consumo de bens e serviços, arte, cultura, sistemas de pensamento, modos de percepção e formação do habitus da sociabilidade fin-de-siècle – tanto que Walter Benjamin qualificou Paris como a ‘capital do século XIX’, dando essa ex-

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pressão a um dos seus textos.Entendemos que, neste sentido, a justificativa para essa tematiza-

ção da modernidade possa ser explicada pela concepção, originária do materialismo histórico, de que a infraestrutura, o modo de produção, determina a superestrutura. Marx e Engels asseveravam, no clássico “A Ideologia Alemã”:

A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidos, ao mesmo tempo e em média, as idéias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. (apud IANNI, 2000, p. 299)

Dessa forma, o desenvolvimento do capital industrial engen-drou também a modernidade como o ‘espírito da época’: a mudan-ça estrutural pressupunha uma mudança da mentalidade para a efe-tivação da realidade social, aonde o capitalismo chegasse – forjando discursos que se debatiam entre a positividade e a negatividade, com patente predileção pelos primeiros.

Tal estratégia pode ser reconhecida em vários campos da vida social: nos discursos políticos, quer orais, quer escritos – projetos, re-latórios, artigos publicados na imprensa; nas muitas obras literárias que tematizavam a modernidade e seus maravilhamentos ou seus te-mores (O Fausto, de Goethe, os ensaios e poemas de Baudelaire, al-gumas obras de Kafka, conforme IANNI, 2000; BERMAN, 1987); nos debates e escritos científicos pautados nos sistemas de pensamen-to nascidos na modernidade ou que a apoiavam ou negavam – Sílvio Romero, um dos mais importantes críticos literários do final do sé-culo XIX no Brasil, referindo-se à entrada desses sistemas no país, cunhou a expressão “cinematógrafo em ismos”, para designar tanto a velocidade quanto a profusão com que eles eram incorporados por aqui (MARTINS, 2006).

Neste artigo, vamos nos restringir a mostrar como ocorreu tal ‘discursivização’ no universo da imprensa escrita, mais especificamen-te do jornal.

Tomando-se um conceito da análise do discurso, podemos di-zer que no arquivo da modernidade habitavam enunciados distintos e componentes de uma mesma formação discursiva, constituindo um

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‘campo associado’1, que disputavam o poder da construção da verdade sobre a modernidade, e que cada um desses enunciados se revestia de uma certa aura – a aura da divinização ou a aura da demoniza-ção, ou ainda uma terceira via, a que lhe imputava os dois polos, como Baudelaire. Berman (1987, p. 163), por exemplo, divide os intelectuais que vi-veram a modernidade em dois grupos: os que ele chamou de ‘modernólatras’, para quem “...todas as dissonâncias sociais e pessoais da vida moderna po-dem ser resolvidas por meios tecnológicos e admi-nistrativos” - Marinetti, Maiakovski, Le Corbusier, Buckminster Fuller, McLuhan, Herman Kahn, e os adeptos do ‘desespero cultural’, para quem “toda a vida moderna parece oca, estéril, rasa, ‘unidimen-sional’, vazia de possibilidades humanas” - T.H. Hulme, Ezra Pound, Eliot, Ortega, Ellul, Foucault, Arendt, Marcuse. No meio dos dois grupos, Ber-man posiciona Baudelaire, afirmando que ele foi, ao mesmo tempo, adepto das duas categorias – ao mesmo tempo entusiasta e crítico da modernida-de.

O jornal, na condição de “lugar enunciati-vo” (NAVARRO-BARBOSA, 2004), é um locus privilegiado para, simultaneamente, verificarmos a efetivação da prática discursiva dos enunciados en-globados na modernidade e a sua circulação. Neste sentido, convém perceber que os jornais considera-dos da ‘grande imprensa’ – em geral, afinados com as políticas governamentais e com o capitalismo (no caso da época, o capitalismo comercial e in-dustrial) – acabam por fazer as vezes de ‘caixas de ressonância’ de um discurso modernizador, quase sempre sem tecer a devida crítica ou problematizar as especificidades estruturais e conjunturais dessa modernidade, por conta das relações, geralmente de dependência total, com o modo de produção vigente ou o Estado, que é quem, em última instân-

1 Conforme Foucault o definiu na Arqueologia (1987, p. 112-3): “Ele é constituído, de início, pela série das outras formula-ções, no interior das quais o enunciado se inscreve e forma um elemento (...). É constituído, também, pelo conjunto das formulações a que o enunciado se refere (implicitamente ou não), seja para repeti-las, seja para modificá-las ou adaptá-las, seja para se opor a elas, seja para falar de cada uma de-las; não há enunciado que, de uma forma ou de outra, não reatualize outros enun-ciados (...). É constituído, ainda, pelo conjunto das formulações cuja possibili-dade ulterior é propiciada pelo enunciado e que po-dem vir depois dele como sua conseqüência, sua seqüência natural, ou sua réplica (...). É constituído, finalmente, pelo conjunto das formulações cujo status é compartilhado pelo enun-ciado em questão, entre as quais toma lugar sem con-sideração de ordem linear, com as quais se apagará, ou com as quais, ao contrário, será valorizado, conserva-do, sacralizado e oferecido como objeto possível a um discurso futuro (...).”

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cia, representa-lhe os interesses. Um exemplo dessa postura é dado por Sodré (1999, p. 278), que demonstra a relação quase simbiôntica entre imprensa e capitalismo comercial brasileiro, quando diz que “...à base do desenvolvimento desse capital comercial é que cresceu a vida urbana brasileira; à base desse capital comercial é que as empresas jornalísticas viveram a sua fase inicial.”

Um exemplo da função do jornal como sujeito efetivador de um discurso de positividade para com a modernidade pode ser dado pela aná-lise de textos de jornais cariocas da virada do século XIX para o XX. O primeiro exemplo é a frase, título de uma crônica que virou símbolo-sín-tese das reformas urbanas na cidade, empreendidas por Pereira Passos, na esteira das reformas de Paris do Barão Haussmann: “O Rio Civiliza-se!”. Ela foi cunhada por Figueiredo Pimentel, considerado o maior cronista social da cidade, que escrevia na Gazeta de Notícias, jornal de proprieda-de de Ferreira de Araújo e com fama de ser “o melhor jornal brasileiro da época” (MARTINS, 2006, p. 48), e passou a ser o slogan da representa-ção do momento modernizador por que a cidade – e também o país – passava. É quase um enunciado metonímico, na medida em que traz, em si, o discurso de muitos outros jornais e jornalistas que tinham a mesma postura positiva de recepção às transformações que assaltavam a capital da recém-criada república. Esta postura de manutenção de um discurso receptivo à modernidade nos jornais está também presente em João do Rio, outro jornalista da Gazeta de Notícias, que, em inúmeras crônicas, reportagens e em alguns livros, fez a apologia do progresso: incorporan-do elementos da ‘cultura moderna’ em seus textos, como por exemplo, os títulos “Vida Vertiginosa”, “Cinematógrafo” e “A Alma Encantadora das Ruas” que deu a três livros seus; criando uma expressão para representar a ‘ontologia’ moderna (Homus Cinematograficus); pautando os assun-tos modernos, recorrentemente, em seus textos. Abordando a postura de João do Rio, Sussekind (1987, p.47) escreve que

Sua relação com o novo horizonte técnico é basicamente de encantamento, impresso nas crônicas; de mimesis que se deseja literal, mas de apenas alguns de seus traços – daí a tentativa de pensar a crônica como fita de cinema ou de delinear personagens-quase-figurinos.

A crônica, no jornalismo do final do século XIX, tem uma im-

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portância muito grande na ‘geografia’ dos jornais, talvez pelo fato de que, por essa época, verifica-se a passagem da imprensa artesanal, fortemente vinculada ao publicismo e aos textos opinativos, para uma imprensa de cunho industrial e empresarial, na qual vai ter maior relevância o texto noticioso; talvez ainda pelo fato de que é na crônica que se posicionam muitos dos escritores reconhecidos da época (Machado de Assis, Olavo Bilac, Arthur Azevedo, Lima Barreto), que fizeram do jornal seu local de trabalho, profissionalmente, mas não operavam a notícia em si, filiando-se ao terreno da crônica, que era uma forma de notícia estetizada (comen-tário dos assuntos atuais enfeixados numa faceta mais literária).

Coincidindo com o aparecimento do locus moderno no Brasil surge um novo objeto cultural, que, talvez mais do que os jornais, vai direcionar suas práticas discursivas para a apologia desse momento mo-dernizador que o país vivia: as revistas ilustradas. Elas representavam, na imprensa, maior proximidade deste momento de inovações, nos aspec-tos físico e simbólico da sociedade, como o fato de serem mais ilustradas que os jornais, de terem introduzido antes destes a fotografia e a cor, de estarem mais abertas à publicidade, e de, efetivamente, tematizarem os ‘assuntos modernos’:

Do telégrafo internacional – ponte invisível, que magi-camente nos ligava ao ‘mundo civilizado europeu’ – aos caminhos de ferro, tudo se mobilizava para o desfrute in-tenso das maravilhas do novo século, por meio do veículo imprensa. Naquele momento, em particular, pelas revis-tas, gênero privilegiado em relação ao jornal, pela melhor resolução gráfica dos então ultramodernos recursos visu-ais recém-apropriados como a zincografia e a fotografia. Para os jornais, reservava-se a linotipia, o clichê a cores e, em breve, a rotogravura. (MARTINS apud FERREIRA 2006, p. 39)

De acordo com Martins (apud FERREIRA, 2006, p. 115), as revistas ilustradas tinham como características enunciativas: “muita gra-vura, intensa propaganda e a venda da imagem do progresso”. Inclusive nos títulos das publicações, como as cariocas “A Avenida”, publicada em 1903, “Kosmos”, em 1907, a paradigmática “Fon-Fon”, de 1907, que já trazia no título a onomatopeia que simbolizava o barulho do automóvel, e a paulista “A Vida Moderna”, de 1907. Um exemplo: em Belo Horizon-

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te, a Revista “Vita” forjava-se, para uma classe média que habitava uma cidade em processo de modernização, como uma espécie de ‘tábua dos mandamentos’ do processo civilizador:

Por meio da revista e suas respectivas fotografias, com-preendidas como representações culturais, acreditamos que podemos acompanhar a gênese da cidade moderna e também os mecanismos pelos quais os sujeitos sociais procuraram dar visibilidade a si próprios, e se afirmarem enquanto membros de uma determinada realidade social, política e cultural transformada no século XX pelos de-safios da modernidade industrial. (ARRUDA, 2001, p. 129)

Mais um exemplo de como as revistas tematizavam a adequação do cidadão urbano a este processo civilizador que então se disseminava pela república nos dá Sevcenko (1998, p. 26):

As revistas mundanas e os colunistas sociais da grande imprensa incitavam a população afluente para o desfile de modas na grande passarela da Avenida, os rapazes no ri-gor smart dos trajes ingleses, as damas exibindo as últimas extravagâncias dos tecidos, cortes e chapéus franceses.

Outra constatação de como a imprensa fez ecoar o discurso modernizador está na forma como os jornais produziram os enun-ciados relativos aos artefatos da modernidade que então invadiam as grandes cidades, sobretudo as capitais: telégrafos, telefones, fonógra-fos, cinematógrafos, automóveis, iluminação elétrica, trens, dentre muitos outros. O que podemos perceber é que a grande imprensa, na maioria das vezes, efetiva enunciados eivados de elementos linguís-ticos que intentam uma individualização desses artefatos: uma forte adjetivação, a presença da superlativização, o descritivismo, a presen-ça de expressões de exaltação (tão, tanto, tamanho etc) ou de subs-tantivos que trazem a ideia de divinização. Isso pode ter se dado pelas seguintes razões: uma relação intrínseca entre o discurso da informa-ção e o da publicidade, influenciado pela aura de maravilhamento de que tais mecanismos eram revestidos; a própria sensação de espanto e admiração diante das características desses mecanismos, pelo que

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eles tinham a oferecer de singularidade maquínica – nesses dois ca-sos, o que se percebia na formação dos enunciados era a profusão de adjetivos, superlativos e de expressões de exaltação; o fato de haver um desconhecimento, por parte da imprensa, de muitos dos artefatos, que, na maioria dos casos, representavam mesmo uma novidade – o que, neste caso, impõe a descrição como categoria de estruturação dos textos. Como exemplificação que sintetiza tais estratégias discursivas, Avellar (1996, p. 182-3), relacionando o impacto que representaram as primeiras apresentações dos cinematógrafos pelo mundo, escreve:

logo depois da primeira sessão de cinema, os jornais de Paris descrevem os filmes de Lumière como ‘a própria vida’ (...) ‘Impossível saber se estamos diante de uma alucinação, se somos espectadores ou se fazemos parte destas cenas de impressionante realismo’. Os jornais do México destacam: ‘el sentimiento de la realidad que se apodera del espectador y lo domina por entero’ (...) Os do Rio de Janeiro (...) apresentam ‘os mais subli-mes espetáculos da natureza reproduzidos em forma fiel, com toda a perfeição e nitidez’. (...) Os de Londres comentam a sensação de que a vida está fielmente re-produzida (...) Os de Nova Iorque falam dos ‘passagei-ros descendo, reencontrando seus amigos, os detalhes mostrados de uma maneira perfeita’.

A depender dos engendramentos efetivados, o enunciado pode ser mais ou menos exaltado. Noticiando a passagem do Cine-matógrafo Falante de Edouard Hervet pelo RJ, em 1907, escreve a Gazeta de Notícias: “A combinação do cinematógrafo com o fonó-grafo é então estupenda. O espectador tem a sensação completa de que está a ver e ouvir uma figura que fala.” (ARAÚJO, 1985, p.205). Segundo os historiadores da fase inicial do cinema, era prática co-mum dos exibidores de cinematógrafos agradar os jornalistas com entradas grátis, avant-premiéres e, em alguns casos, até pagamentos para divulgação dos espetáculos, o que pode dar margem a discursos tão apologéticos quanto esse, em que se misturam informação e pro-paganda. Ou a força de novidade do cinematógrafo gerava mesmo esse tipo de apreensão, transferida para a estrutura dos textos? Qua-se impossível saber...

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O DISCURSO MODENIZADOR EM SÃO LUÍS

Em São Luís, o discurso modernizador também se fez apresentar, com características que não negavam a prática da imprensa do período. Regra geral, os jornais tematizaram a modernidade de maneira positiva e, em determinados momentos, efetivaram enunciados que a problema-tizaram. Se pudermos assim dizer: há também aqui as práticas discur-sivas associadas aos que Berman (1987) chamou de ‘modernólatras’ e os adeptos do ‘desespero cultural’, com patente privilégio do discurso dos primeiros. No geral, a chamada ‘grande imprensa’ no Maranhão empreen-deu discursos favoráveis aos muitos aspectos da modernidade que então ia se implantando.

Na sua tese de doutorado, “A implantação da indústria no sistema agro-exportador maranhense (1875-1895)”, José de Ribamar Caldeira (apud CORREIA, 2006) apelida de “fabrilistas” os partidários da im-plantação das fábricas no Maranhão, no período aludido. Os fabrilistas são um exemplo de sujeitos que implantam um discurso modernizador de natureza efusiva. E, entre alguns sujeitos fabrilistas, estão os jornais da grande imprensa. Como deixa ver a nota da Pacotilha, de 23.08.1891, a respeito do lançamento da pedra fundamental da Companhia de Tecidos Rio-Anil:

Uma era de prosperidade para a Pátria Maranhense que de há certo tempo para cá vai despertando do marasmo, da indiferença em que permaneceu longos anos, da atro-fia, com o organismo depauperado pelos vícios da escra-vidão. As fábricas surgem de toda a parte e com elas o despertar de uma vida nova, cheia de atividades, urgida pelo pro-gresso, prometendo-nos um futuro bonançoso que com-pense a esterilidade do passado. O dia de amanhã [do lançamento da pedra] ficará para sempre nos anais do nosso Estado. (apud ITAPARY, 1995, p. 27)

Um discurso forte, quase um texto barroco pela presença das ima-gens e da construção em paradoxos, estabelecida pelo contraste entre os dois campos semânticos: o do passado, representado pela escravidão, as-sociada ao marasmo, à indiferença, ao organismo depauperado, à atrofia e

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à esterilidade, em contraposição ao do futuro, representado pelas fábricas e sua certeza de prosperidade, de vida nova, de atividades, de progresso. Este é um enunciado paradigmático de uma prática discursiva identifica-da com o discurso fabrilista, que anunciava cada inauguração de fábrica “em castelos pirotécnicos de reinadio efeito [...], numa acariciante epopéia hinária”, conforme registrou em 1905 Astolfo Marques, no seu livro “A Nova Aurora” (apud MARTINS, 2006, p. 62). Também é possível per-ceber, como assevera Foucault (1987), que o enunciado está numa rede, entremeado com outros que se relacionam ao passado e ao futuro. Aqui também há, pelo acionamento da memória discursiva, a rememoração do passado para desqualificá-lo, enquanto se aponta a deificação de um futu-ro que trará a certeza de uma perenidade, encerrada na locução adverbial de tempo: “o dia de amanhã ficará para sempre...”.

O jornalismo da grande imprensa não era o único sujeito enun-ciador deste discurso modernizador que São Luís então recebia e que a enredava. Ele estava pulverizado na política e na administração pública, com os discursos higienista, urbanista, a publicação de códigos de postu-ra; na religião, com as representações que o protestantismo construía, como uma nova forma de culto, mais afeita ao progresso, ao moderno, ao trabalho, à possibilidade de ascensão individual, à construção de uma nova sociedade; nas mudanças na educação, com a abertura de espaços para as mulheres na escola e com a ampliação do ensino que visava a uma formação para o trabalho; na própria geografia da cidade, em que as cha-minés, como obeliscos, ostentavam a imagem do progresso; no cotidiano, com a imagem do trabalho como veio de prosperidade (ao contrário do trabalho escravo, até bem pouco tempo bastante presente no cotidiano da cidade). Mas a imprensa era um locus privilegiado desse discurso, pelo fato de ser um sujeito que traz em si duas características marcantes: a pos-sibilidade de grande e rápida publicização dos seus discursos e a aura de credibilidade que a reveste:

O discurso que se proclama imparcial e comprometido com a apuração rigorosa dos fatos manifesta o desejo de ser aceito pela comunidade de leitores como discurso de verdade. Como esse desejo é uma imposição da ordem discursiva midiática, e tendo em vista que o real não se deixa apreender diretamente, o verossímil no jornalismo encontra-se em relação direta com o efeito de real cons-truído discursivamente. É essa verossimilhança que irá ga-

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rantir credibilidade ao jornal e, conseqüentemente, criar a imagem do enunciador midiático como aquele que sus-tenta um discurso verdadeiro. (NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 72)

Cabe a ressalva de que os jornais também abriam espaços para um contradiscurso modernizador, representado por críticas a determinadas ações, como demonstra Correia (2006, p. 59):

Deste modo, a crer nos muitos artigos publicados em diferentes jornais, a São Luís da virada do século XIX enfrentava não poucos problemas, pois o que capta o olhar lançado sobre a cidade a partir de uma perspectiva higienista é o desrespeito geral pelas questões referentes à higiene que deve existir no espaço urbano, isso quando essas questões, pelo menos, existem, pois aquilo que mais se destaca no chão da cidade são habitações construídas de madeira imprópria para a vida; ruas e praças que se transformam em monturos; praias tomadas por focos de infecção e viveiros de germes; enfim, torrentes de miasma que infectam sua atmosfera.

A crônica que segue, publicada em 16.11.1907, na seção “Regis-tro” e assinada por um tal ‘João da Ega’, um claro pseudônimo, é um bom exemplo de como este dircurso de contraposição à apologia da moderni-dade pode ser encontrado no rol dos enunciados da grande imprensa:

(...) A nossa pequena capital vive sempre numa perene quietude rotineira, conservadora, acarinhando velhas tra-dições, como quem guarda e contempla objetos luzentes d’oiro antigo, trabalhados segundo os preceitos de uma arte que já não existe, porque deixaram-na morrer.Quem reparar nas fotografias ou gravuras de nossas ruas e praças, há de notar a quazi ausência de transeuntes, a falta do movimento caracteristico dos lugares em que a – vida intensa – não é simplesmente uma frase.(...) Só o fato de dormirem trinta ou quarenta mil habitantes assim aban-donados [sem policiamento], é digno de nota.(...)Nos grandes centros, onde a atividade humana se multipli-ca, onde os melhoramentos têm entrada e as vibrações da luta pela vida se desdobram em ondas de uma excepcional

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amplitude, o indivíduo não pode ter a noção exata dessa paz que é mãi da meditação, no conceito do grande lírico. Mal vai desaparecendo o sol, a mais feerica illuminação surje em todas as esquinas, de modo que se não apercebe a gente da prezença da lua.Aqui por felicidade nossa, o gaz é ruim.(...) E, como nada neste mundo é inteiramente nocivo e dis-pensavel, a falta de luz nas ruas é singularmente vantajosa às letras pátrias, porque, nesta terra de poetas, o luar ------- [ilegível] o cerebro com variada inspiração.

João da Ega usa da ironia para criticar a pachorra de uma cidade que, poucos anos antes, foi intitulada Manchester do Norte e que vive, na virada do século, sem os mais básicos elementos da modernidade – iluminação elétrica, movimento das ruas, falta de segurança. Usando do sarcasmo que o gênero crônica permite, ainda aventa o passado beletris-ta da cidade, quando era Athenas, para enaltecer o fazer poético que a luz da lua – a única que ilumina as ruas – proporciona.

A apreensão distinta da modernidade em São Luís vai levar a uma dualidade de práticas discursivas que estruturam representações imagéticas sobre essa fase na capital do Maranhão: para uns (a bem di-zer, a maioria) ela será uma realidade factível e concreta (fábricas, auto-móveis, operárias nos teares); para outros, apenas um simulacro, uma pirotecnia.

Cabe ainda ressaltar que este discurso modernizador, que alcan-çou a capital do Maranhão, um dos círculos concêntricos periféricos aonde ele chegou, e se espalhou por diversos gêneros de texto (dos es-critos jornalísticos aos pronunciamentos nas inaugurações das fábricas, por exemplo) está fortemente vinculado à ideologia do período, ao ‘es-pírito da época’. Como ensina Pêcheux, uma formação discursiva está inserida em uma formação ideológica que lhe possibilita o dizer e, mais que isso, que atribui os sentidos que as palavras vão ganhando:

O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe ‘em si mesmo’ (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideoló-gicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzi-das, isto é, reproduzidas. (PÊCHEUX, 1995, p. 160)

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Em todo o mundo, a modernidade ganhou, salvo algumas exce-ções, uma aura divinizada, de quase redenção para um século que se inicia-va. Como exemplo, vejamos este trecho de um discurso de Dias Carneiro, advogado, poeta, latifundiário, representante maranhense na Câmara dos Deputados do Império, a respeito da implantação das fábricas em Caxias, cidade mais industrializada do interior do Maranhão, não por acaso tam-bém codinominada Manchester Maranhense.

Os tempos que correm exigem, do brasileiro em geral, e dos maranhenses em particular, a concentração de todas as forças ativas da inteligência em assuntos práticos.Estamos na época dos trabalhos positivos, lançando com providência louvável os alicerces que devem servir ao edi-fício que esta província há de necessariamente levantar a sua futura grandeza. (apud PESSOA, 2009, p. 42)

O tecnicismo, o positivismo, as transformações urbanas, o reor-denamento de muitos aspectos da vida favorecido pelas tecnologias da eletricidade, principalmente, e a expansão do capitalismo em escala mun-dial proporcionavam a ideia de um novo mundo que se abria, marcado de fato por uma alteração cronológica bem significativa: a virada do século. Saudando o novo século, escreveu a Pacotilha em 1º. de janeiro de 1901: “Ao seculo do industrialismo, da liberdade, da glorificação do trabalho e das grandes descobertas sucede hoje o seculo XX (...)”. Todos esses fa-tores foram importantes para fazer operar uma formação discursiva da modernidade cujos enunciados eram, na sua maioria, apologéticos e que, em maior ou menor grau, tinha características bastante específicas em to-dos os lugares em que o progresso chegou: uma natureza descritiva para se referir aos equipamentos e artefatos técnicos; uma forte adjetivação na referência aos benefícios trazidos pelas inovações, uma positividade na apreensão do momento vivido, como fez Dias Carneiro.

CONCLUSÕES:

Por meio da Análise do Discurso, é possível compreender os dis-tintos engendramentos que foram efetivados para a implantação e conso-lidação da modernidade, como ideia e como sistema (de valores, de com-portamento, de expressão estética, de apreensão da vida) e qual o papel da imprensa da época como sujeito ativo deste movimento, cuja função era

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a de servir, quase sempre, como ‘caixa de ressonância’ dos benefícios que este momento nascente traria ao contexto em que se impusesse, além de construir para os cidadãos que se queriam modernos todo um cabedal de comportamentos integrados ao espírito da época que chegava. Assim, a modernidade, além de ser maquínica, fabril, urbana, era também discur-siva.

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JORNAIS PESQUISADOS

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Marcus Túlio Borowiski Lavarda

O AUTOR

Atua na área de imagem e iconografia, especialmente em fotografia documental, fotojornalismo e fotografia publicitária. Interessa-se, também, por cinema e audiovisual, design gráfico e artes visuais. Ministra as seguintes disciplinas, atualmente: Teoria da imagem, Cinevídeojornalismo, Fotojornalismo e História da Arte. Possui graduação em Publicidade e Propaganda, especialização em Ima-gem e Som e Mestrado em História, tendo a imagem como ponto central para suas reflexões.E-mail: [email protected]

Visões e versões da barbárie: o discurso fotográfico da Guerra do Paraguai

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INTRODUÇÃO

Neste artigo a preocupação consiste em examinar as fotografias sobre a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, tendo como objetivo uma breve reflexão sobre uma parcela da represen-tação fotográfica do conflito. Para tanto, a propos-ta será de identificar o significado de cada fotogra-fia, seus pontos em comum, suas contradições e os temas de que os fotógrafos nos acampamentos aliados lançaram mão para representar a guerra. A metodologia empregada para interpretação das imagens é a iconologia1, proposta por Erwin Pa-nofsky, que se preocupa em buscar os significados implícitos na imagem e não se debruçando apenas sobre o aspecto formal da fotografia.

Em primeiro lugar, cabe ressaltar que as fo-tografias se materializaram entre os carte-de-visite2 que os estúdios ofereciam para as centenas de sol-dados que iam para a guerra com finalidade de lem-brança e recordação daqueles que muitas vezes não voltavam. Em segundo lugar, têm-se as imagens panorâmicas sobre as paisagens dos acampamen-tos militares aliados, sendo que o espaço registrado pelos fotógrafos privilegiou a ação armada. Algu-mas fotos representam a tecnologia empregada na guerra, como é o caso das fotos da frente de bata-lhas mostrando a ação bélica que se desenvolvia no campo e o poderio aliado com seus canhões enfilei-rados para conter e atacar as ações inimigas

Outra representação comum nas fotogra-fias são os assuntos religiosos, padres, igrejas e pro-cissões que aparecem nas imagens para destacar a devoção das tropas e pedir proteção aos céus. Pou-co destaque para o papel feminino na guerra, salvo algumas exceções, como foi o caso da brasileira que se incorporou às tropas imperiais disfarçando-se de homem3.

1 Panofsky, Erwin. Signifi-cado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2009.

2 Retrato no tamanho de 6x9cm inventado por Dis-deri, na França, em torno de 1850. Este tipo de re-trato foi um sucesso devido aos baixos valores cobrados pelos estúdios na época, o que tornava a fotografia mais acessível à pequena burguesia.

3 Sobre o fenômeno Jovita Alves Feitosa ver a pesquisa de Pedro Paulo Soares. A Guerra da Imagem: Icono-grafia da Guerra do Para-guai na Imprensa Ilustrada Fluminense. (Dissertação). UFRJ/IFCS/Programa de Pós-Graduação em Histó-ria Social, 2003. No quarto capítulo o autor se debruça sobre a mulher que se in-corporou ao exército para lutar no Paraguai e a propa-ganda imperial que forjou ampla rede de informações para incentivar os homens ao alistamento.

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Crianças também aparecem nas imagens, geralmente de forma fa-mélica, com as barrigas inchadas e braços e pernas finos realçando a fome que rondava pelo lado guarani. Pouca atenção foi dada pelos fotógrafos para as perdas humanas no conflito: a menor parte das fotos são aquelas que apresentam o saldo dos combates em que corpos dilacerados estão cobrindo boa parte da paisagem desoladora, imagens que são o objeto de interesse deste artigo.

Vale destacar que as fotos aqui utilizadas são reproduções das imagens publicadas nos livros de Ricardo Salles e do argentino Miguel Angel Cuarterolo. As imagens não sofreram nenhuma distorção sobre objetos, personagens e cenários que adulterasse o conteúdo original das fotografias.

A fotografia de meados do século XIX havia consolidado, no pen-samento positivista daquele período, a crença de que “o caráter de prova irrefutável do que realmente aconteceu, [...] transformou-a num duplo da realidade, num espelho, cuja magia estava em perenizar a imagem que refletia” (MAUAD, 1996, p. 74). No mesmo sentido, Jorge Pedro Sousa (2004, p. 33) enfatiza que a fotografia se favorecia dos atributos de prova, testemunho e verdade “que à época lhe estavam profundamente associa-dos e que a credibilizavam como o ‘espelho’ do real”.

As guerras logo foram motivos de interesse para fotógrafos e em meados do século XIX foi um momento em que os conflitos bélicos fo-ram acontecimentos marcantes entre os países industrializados. Logo, os fotógrafos apontaram suas lentes para os diversos conflitos ocorridos no período ao redor do globo. A guerra como tema privilegiado se explica nas palavras de Sontag (2004, p. 29) “embora um evento tenha passado a significar, exatamente, algo digno de se fotografar, ainda é a ideologia [...] que determina o que constitui um evento”. As guerras são disputas tam-bém no campo ideológico e o tipo de evento que mobiliza a sociedade, pois dela depende o governo para enviar material humano para as frentes de batalhas.

A guerra também é um evento de interesse da sociedade, interesse que antes da fotografia era representado através das pinturas que geral-mente os governos solicitavam aos seus artistas para a representação das glórias e conquistas nacionais. Simultaneamente ao interesse da socieda-de em “ver” a guerra de forma mais próxima possível e em “tempo real”, a imprensa se adequava à nova circunstância e assim surgiam os jornais ilustrados que concediam boa parte de seu espaço para a divulgação das

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imagens do front. Os jornais, inclusive, tinham como grande atrativo as imagens enviadas diretamente das batalhas ou os relatos verbais que eram transformados em ilustração para tornar a guerra mais real e próxima do grande público.

Durante a Guerra do Paraguai, nos anos de 1864-70, a tecnolo-gia já proporcionava condições de captação das cenas cotidianas, sendo que os fotógrafos lentamente saíram dos estúdios para registrar a vida em sociedade nas ruas e praças, sempre com o interesse de capturar os fenômenos das cidades e da vida moderna, conforme salienta Jorge Pedro Sousa (2004, p. 29):

“As exigências do público, dos profissionais e dos consu-midores levam [...] a avanços tecnológicos, que permiti-rão ganhos para o conteúdo das fotografias”. É desta for-ma que a evolução da temática fotográfica do século XIX é acompanhada por conquistas técnicas. Entre elas, avulta a diminuição dos tempos de exposição, ligada à melho-ria da qualidade das lentes e à adoção de novos processos, como o do colódio úmido (cerca de 1851).

Para Cuarterolo (2000, p. 07), a Guerra contra o Paraguai se des-

taca dentre os grandes eventos bélicos que foram registrados pelas lentes fotográficas do século XIX, juntamente com a Guerra da Crimeia (1854-56) e a Guerra da Secessão norte-americana (1861-65). Algumas dificul-dades restringiam a atuação dos fotógrafos no palco das batalhas. O que caracteriza o tipo e a cobertura dada nestes conflitos é a limitação técnica do aparato fotográfico, sendo que a câmera ainda era um objeto grande e os tempos de exposição eram relativamente lentos para congelar a ação no momento em que ela se desenvolvia. Portanto, fica evidente que as imagens das batalhas dificilmente mostram o desenrolar de um comba-te, ainda que existam algumas tentativas bem sucedidas de fotografias de instantâneo.

Algumas imagens revelam o saldo dos combates, que nada mais são que os corpos dilacerados. Outro problema era carregar o imenso material de laboratório para revelar as chapas fotográficas, sendo que o processo do colódio úmido – o melhor até então para obter uma boa definição da imagem, com chapas de vidro que deveriam ser emulsionadas pouco an-tes de carregar a câmera e, imediatamente, fotografar e revelar o suporte fotossensível – era o mais avançado em termos tecnológicos. De acordo

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com Cuarterolo (2000, p. 12),

Los corresponsales de guerra del siglo XIX fotografiaban sobre placas de vidrio emulsionadas con colodión húme-do, un proceso fotográfico que proporcionaba negativos de buena nitidez a partir de los cuales se podía obtener un número ilimitado de copias en papel albuminado. [...] El proceso produjo una revolución en el desarrollo de la fotografía y un gran impulso en el registro documental, porque permitía acortar los tiempos de exposición en la cámara.

A fotografia se desenvolveu de forma comercial durante a campa-nha no Paraguai sendo que não houve censura por parte dos governos beligerantes e, assim, os fotógrafos gozaram de certa liberdade na repro-dução fotográfica dos eventos. Isso se explica pelo fato de que a fotografia era um procedimento dispendioso e para poucos.

A Companhia Bate y Cia de Montevidéu foi o principal estúdio que enviou fotógrafos ao palco das batalhas, mesmo não sendo uma ini-ciativa do governo uruguaio. Já o Império, durante a tomada e caída de Humaitá, mandou um fotógrafo para registrar as ruínas da fortaleza, o que certamente já era um prenúncio do fim. De acordo com as asserções de André Toral (2001, p. 85),

Os fotógrafos seguiram os exércitos aliados entre 1864 e 1870 no Brasil, Argentina e interior do Paraguai. [...] fotógrafos que estiveram no “teatro de operações” mili-tares atuaram em Uruguaiana, Corrientes e Rosário, na fase inicial da guerra; depois, no extremo sul do território paraguaio, Tuiuti, Paso da Pátria e Tuiu-Cuê, acampando junto aos exércitos aliados; estiveram em Humaitá sitiada e ocupada e, finalmente, em Assunção, na última fase.

Convém notar, a partir das imagens, que o fotógrafo não se preocupou em registrar os retratos de oficiais em poses de heróis, como na pintura histórica, mas, sobretudo, a vida no acampamento aliado e as paisagens bélicas que eram formadas pelo exército. Percebe-se, em termos de composição, que os registros de Bate eram um avanço para o perío-do porque tentavam retratar cenas de ação e movimento, bem diferente das cenas da época que geralmente eram produzidas em estúdio com os

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retratados em poses estáticas. Além disso, instantâneos de morte eram uma novidade para os homens do século XIX e fotografar no calor dos combates exigia não somente domínio da laboriosa técnica, mas também coragem do fotógrafo.

Aqui está a representação da morte (Fig. 1). O registro vale como um instantâneo, no momento que o Coronel Leon de Palleja jaz sem vida numa maca improvisada para carregá-lo na batalha de Boqueirão. De acordo com Toral (2001, p. 91), “soldados negros do batalhão uruguaio Florida apresentam armas ao respeitado oficial”. Nas palavras do capitão Francisco Seeber, citado por Cuarterolo (2000, p. 56),

En medio de un fuego incesante de tres mil enemigos que causaba un estrago tremendo, el batallón Florida que co-mandaba Palleja presentó armas cuando retiraban el ca-dáver de su jefe. Fue uma ceremonia tocante pero poco militar porque los soldados suspendian el fuego.

Repara-se que a bandeira da jovem república do Uruguai enrolada nas pernas do coronel sugere um patriotismo pelas causas nacionais e que o coronel foi um exemplo de coragem e bravura, dedicando sua vida em prol das causas do conflito. De acordo com Susan Sontag (2003, p. 50),

Fig. 1. Bate & Cia W. Muerte del Coronel Palleja, Albumina, 1866, 11x18cm, BNU.

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“Seja como for, a foto conserva seu encanto de época e sua autenticidade como celebração de um ideal, hoje extinto, de firmeza e de sangue-frio nacionais”.

É bem o que representa a fotografia da morte do Cel. Palleja para a sociedade daquele período, ainda mais com a bandeira uruguaia envolvi-da em torno de suas pernas. Interessante notar que, ao fundo da fotogra-fia não é visível o espaço geográfico, que certamente daria uma noção ao leitor para a situação em que a tomada da cena fora registrada. Fotografia simetricamente composta, em que os elementos constituintes da imagem estão equilibrados e o assunto principal encontra-se no centro da ima-gem.

Ainda no centro da foto está um soldado com a mão esquerda no peito, o que caracteriza um pesar pelo falecimento do coronel (supõe-se que o coronel fosse respeitado pelos seus comandados). Destaque tam-bém para o número de participantes da cena: o falecimento poderia ter sido um acontecimento raro para o exército uruguaio, tendo em vista que até fizeram pose para a obtenção da fotografia. Caso a foto tivesse apenas os dois soldados que carregam o coronel daria outra interpretação para a imagem, o vazio de elementos humanos poderia ser interpretado como sem relevância, como se o fato fosse natural ante a uma batalha que teve pesadas baixas aliadas. Vale destacar que o estúdio Bate y Cia estava sedia-do em Montevidéu e, em vista disso, seus fotógrafos estavam vinculados às tropas orientais, o que favorece na escolha do fotógrafo em captar a cena num momento de periculosidade, no calor da batalha e no momento da morte do coronel uruguaio. Pela aparente tranquilidade dos retratados é de se supor que a fotografia teria sido captada num ponto seguro do ter-reno belicoso e soma-se a isso o ardiloso processo da obtenção da imagem fotográfica.

Para Moreiro Gonzáles (2003, p. 42), as linhas de percurso visual tendem a sugerir – em linguagem visual atual e em que pesem as conside-rações sobre o movimento dos componentes da imagem – um avanço da direita para a esquerda e, como a leitura ocidental é da esquerda para a di-reita, tem-se a impressão de volta, de retorno. No mesmo sentido quando a imagem é da esquerda para a direita o leitor tem a sugestão de estar num avanço, numa progressão e, ao contrário, quando o sentido da fotografia está da direita para a esquerda – o que é o caso da foto em discussão – a sugestão é de retrocesso e atraso. Embora esta concepção pareça subjetiva em demasia, é significativa para a leitura e interpretação das imagens em

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geral. De acordo com Ivan Lima (1988, p. 63), sobre a leitura visual da fotografia a linha “reta mais simples é a linha horizontal. Ela corresponde, na concepção humana, à linha ou à superfície do homem em repouso ou morto. A linha horizontal é, portanto, uma linha fria, calma e tranqüila”. Bem como está composto na fig. 1 em que o coronel está formando uma linha no sentido horizontal, no lado inferior do retângulo visual. Nova-mente com Ivan Lima (1988, p. 63): “a sucessão de várias linhas hori-zontais necessita, de uma forma geral, de correspondentes verticais para o equilíbrio da imagem”.

Os correspondentes na fig. 1 são os soldados, sendo que vários de-les formam retas verticais dando equilíbrio para a cena representada. Co-labora ainda na leitura visual o retângulo no formato horizontal, que gera no leitor a sensação de calmaria e repouso, bem de acordo com a morte do coronel, mas não quer dizer que a situação seja esta, pois os personagens devem estar em meio ao fogo cruzado. Novamente com Lima (1988, p. 65), a linha vertical sugere a sensação de tensão e calor e acaba por excluir a sensação de profundidade da fotografia, “o olhar penetra livremente no espaço fotográfico e se choca diante de uma barreira”. Para exemplificar melhor o exposto acima, eis, na composição da fig. 2, a sensação visual da fotografia da morte do coronel.

O coronel foi o principal cronista da primeira fase da guerra e ele mesmo se ressentia da falta de um fotógrafo para cobrir as glórias nacio-nais. Além do mais, é uma morte única no sentido de que o falecido era um coronel dentre tantos outros soldados que foram mortos.

Fig. 2. Sensação visual na composição fotográfica com as linhas.

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Já em outra passagem, o pintor brasileiro Victor Meirelles em 1866 “se quejaba por la falta de sentido histórico del gobierno imperial, que no tiene um fotógrafo contratado para documentar la Guerra contra Paraguay y las glorias naciona-les” (CUARTEROLO apud TURAZZI, 2000, p. 118). Ora, se D. Pedro II foi um grande entusiasta da fotografia chegando mesmo a ser fotógrafo e o primeiro brasileiro a ser fotografado, com a chega-da do daguerreótipo4 no Brasil, além de admirador das ciências e das artes e que deixou um dos maio-res acervos fotográficos do país, guardados na Bi-blioteca Nacional, faz sentido os questionamentos descritos. Uma hipótese seria a de que não havia interesse do Império na divulgação daqueles fatos através da fotografia, pois a opinião pública oscila-va a favor ou contrária à guerra.

É aceitável que o Imperador sabia muito bem do poder da fotografia na representação dos acontecimentos ou, pelo menos, como representa-ção verossímil de que a guerra custava para a socie-dade brasileira e, portanto, mostrar a guerra pela fotografia para uma sociedade que tinha nesse tipo de imagem a crença de verdade absoluta e inques-tionável era o mesmo que dar um tiro no próprio pé. É uma possibilidade que não tivesse fotógrafo porque não interessava ao Império a representação fotográfica do conflito, ainda mais pela fotografia com seu poder de realismo e caráter de verdade que se acreditava naqueles tempos.

Cabe ressaltar que a imagem pode sofrer diferentes abordagens dependendo daqueles que podem fazer uso dela. Sontag (2003, p. 52) atenta para o fato de que

captar uma morte no momento em que ocorre e embalsamá-la para sempre é algo que só as

4 A invenção da fotografia fora feita em 1839 pelo francês Louis Jacques Mande Daguerre. Colo-cou seu nome na novidade em que chapas de metal era o suporte, como são os filmes hoje. O daguer-reótipo era aquisição para poucos devido a seus altos custos e ainda não tinha a capacidade de reprodutibi-lidade, ou seja, eram chapas únicas que não podiam ser reproduzidas ao infinito. Pedro Vasquez (2002, p. 08) ressalta que a chegada da fotografia ao Brasil foi em 1840, pelo ábade fran-cês Louis Compte, e logo o jovem imperador brasileiro se interessou pelo advento. Assim define Vasquez a daguerreotipia: “a imagem era formada sobre uma fina camada de prata polida, aplicada sobre uma placa de cobre e sensibilizada em vapor de iodo. Era apresen-tado em luxuosos estojos decorados [...] em passe-partout de metal dourado em torno da imagem e a outra face interna dotada de elegante forro de veludo [...]” (2002, p. 55-6).

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câmeras podem fazer, e fotos tiradas em campanha no momento (ou imediatamente antes) da morte estão entre as fotos de guerra mais festejadas e mais frequentemente reproduzidas.

Na fig. 3, a fotografia mais dramática da guerra, em que após o final de uma batalha juntam-se os mortos para que sejam sepultados ou incinerados. Amontoar os mortos serviria para posterior sepultamento nas valas e trincheiras construídas para a luta e não seria uma espécie de manipulação ou interferência do fotógrafo para registrar a cena da carni-ficina. Nas asserções de Doratioto (2002, p. 221), tem-se a descrição da batalha de Tuiuti, a maior travada na América do Sul:

O terreno ficou coalhado de cadáveres paraguaios, em distância superior a três quilômetros, e em tal quantidade que nem todos puderam ser sepultados. Eram tantos mortos que, após 48 horas enterrando-os, os soldados brasileiros, exaustos, estavam longe de terminar a tarefa. Para evitar doenças decorrentes da putrefação, os cadáveres inimigos foram empilhados, em montes de cinquenta a cem corpos, e incinerados, já de noite.

Os montes de cadáveres formavam pirâmides e enquanto eram queimados os corpos ainda se moviam:

uns abriam desmesuradamente a boca com expressão terrível de ódio ou raiva; outros ameaçavam o céu com o punho cerrado e braço teso; aquele dobrava-se formando arco com a união dos pés à cabeça, outro invertia a figura quebrando-se sobre as costas. (PI-MENTEL apud DORATIOTO, 2002, p. 221).

O impacto é realçado pelo motivo de que não há outro ele-mento na cena que os corpos. Na foto fica explícito que os montes de cadáveres sugerem quantidade elevada na mortandade do confli-to. Nesse caso, o monte não formou uma pirâmide, pois os corpos estão dispostos na imagem em terreno plano, o que certamente fosse uma pirâmide de corpos aumentaria a dramaticidade da fotografia.

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Com a fotografia o registro ganhava em fidedignidade e drama-ticidade numa espécie de humanização do conflito, além de mostrar o resultado dos combates. Uma observação interessante é a legenda que se-gue logo abaixo da foto: “octavo montón de cadáveres paraguayos” leva a crer que as mortes são do lado inimigo, ainda é possível supor que a morte também chegava aos combatentes Aliados. Por mais vitorioso que o embate militar tenha se dado e a desproporção de forças, é possível que entre esse monte de cadáveres tenha os de brasileiros, argentinos e uru-guaios, mas não é isso que se apresenta na imagem, ou melhor, na legenda. Também pela legenda sabe-se que é o “oitavo” monte e isso revela duas problemáticas: a primeira se refere à tão discutida baixa nos confrontos e que causa muita divergência sobre os diferentes pesquisadores, o que caracteriza parcialidade na citação dos dados referentes às perdas huma-nas. A segunda se refere à fragilidade do discurso da fotografia: ao mesmo tempo em que mostra a cena da carnificina do confronto, carregado de detalhes – vê-se o rosto e os membros humanos dilacerados, ensanguenta-dos e cobertos com panos que revelam uma espécie de ocultamento, para não mostrar os rostos dos combatentes mortos – a imagem é fragmentária e faz parte de uma escolha do fotógrafo. No momento da seleção da cena fotografada se subtraem tantas outras possíveis e, portanto, é uma repre-

Fig. 3. Bate & Cia W. Octavo montón de cadáveres paraguayos (fragmen-to), Albumina, 1866, 11x18cm, MM.

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sentação que faz parte da intenção do produtor da imagem.Além disso, a legenda pode transformar totalmente a interpretação que

se tem da imagem. Se na legenda contivesse, no lugar do termo “paraguayos”, “aliados”, mudaria a leitura da foto e, consequentemente, a sua significação para o público leitor. Outra característica que aumenta a carga dramática do evento é por estar o quadro da fotografia tomado pelos mortos, explicando melhor, toda a cena da fotografia está preenchida pelo monte de cadáveres excluindo, assim, outros elementos que poderiam amenizar o drama das mortes. O fotógrafo op-tou por enfatizar as mortes no conflito, não deixando espaço para um duplo sentido da imagem. De acordo com Miguel Angel Cuarterolo (2000, p. 23),

Del análisis de estas crônicas periodísticas, que marcan el na-cimiento de la fotografia bélica en Sudamérica, surge com claridade el motivo que impulsó a la companhia Bate a docu-mentar el sitio de Paysandú y, meses después, la Guerra del Pa-raguay. Bate había visto la Guerra Civil em los Estados Unidos y quedo impresionado por el realismo de las fotografias que eran empleadas por los grabadores de prensa para ilustrar los relatos de los corresponsales de guerra.

É de se supor que, de acordo com a asserção acima, Bate tinha contato com as fotografias da Guerra de Secessão norte-americana, travada entre 1861-65 e que serviram de referência para as crônicas fotográficas da Guerra do Para-guai. É possível comparar, de acordo com a imagem (Fig. 4), para exemplificar ao que foi referido sobre a semelhança entre as imagens, retratadas em guerras com contextos diferentes e quase que simultâneos, embora exista diferença de composição: a dos corpos paraguaios amontoados e a da guerra americana em profundidade, com os corpos distanciados uns dos outros.

Fig. 4. Timothy O’Sullivan, Harvest of Death (4th July, 1863)

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O impacto da fotografia de Bate é maior em relação à foto de Ti-mothy O´Sullivan, sobretudo pela proximidade entre a cena e o fotógra-fo. Além disso, na foto de Bate estão os cadáveres amontoados, uns em cima dos outros dando a entender uma mensagem de quantidade, como tentativa de demonstrar a carnificina provocada por uma guerra que foi, até onde se sabe, impopular. Através da fotografia de O’Sullivan, tem-se a legenda como “colheita da morte” provocando um sentido de planta-ção, agricultura pelo campo coberto de corpos sem vida. O impacto desta fotografia está ainda na profundidade da cena, explicando melhor, com os corpos em primeiro plano – que tomam grande parte do espaço da tela fotográfica - seguem-se outros corpos em menores proporções, mas, também, fornecendo a ideia de dimensão do resultado de uma batalha. As reações a uma fotografia com esta composição dependem da apropriação que se faz da imagem: pode tanto incitar o ódio do lado que foi derrotado quanto mostrar, para os mesmos, a força e o poderio de destruição de que o vencedor é capaz. Novamente nos remetemos para a asserção do capitão Francisco Seeber sobre a fotografia dos cadáveres paraguaios:

nueve dias se ha combatido desde el 10 al 18 de julio, sa-crificando 4.000 mil hombres el ejército aliado y los pa-raguayos 3.000. [...] Se há peleado con encarnizamiento particular en estos tres dias, pisando los cadáveres todavia insepultos del 24 de mayo, las zanjas y todo el camino recorrido han quedado cubierto de muertos (CUARTE-ROLO, 2000, p. 58).

Tem-se a preocupação de comparar, também, a questão dos relatos verbais ante as narrativas visuais. Por mais que o público tenha os números das perdas humanas no conflito, a imagem fotográfica atinge com maior impacto o leitor ao mostrar, de forma direta, de uma maneira que explora e acentua o sentido visual do acontecimento. Antes da foto, a sociedade oitocentista apenas tinha a visualidade de uma guerra através de quadros e pinturas que, de maneira geral, exploravam o caráter épico das batalhas e os generais em poses de heróis, artistas financiados ou que eram enco-mendas feitas pelos governos para glorificar suas ações. Neste e noutros exemplos, a fotografia a partir das guerras da Crimeia e da de Secessão americana inovou na forma de representação dos conflitos travados no mundo dos séculos XIX e XX, ou melhor, as guerras não foram mais as

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mesmas para o público em geral.De qualquer forma, a utilização da fotografia mudou a maneira de

representação da guerra. Uma das razões é que a foto, no senso comum oi-tocentista, carregava consigo atributos de prova e verdade. As fotografias divulgadas, contudo, não corroboram essa crença inocente. Desde aquele momento, aquilo que era fotografado e divulgado passava por critérios de seleção. A morte é um produto da guerra e não é de interesse por parte de governos que seja publicada e divulgada nas mais diversas mídias. De acordo com o pesquisador português Jorge Pedro Sousa (2004, p. 39),

Como a cobertura fotográfica da Guerra Civil que assolou os Estados Unidos foi a “estória” dos exércitos da União, já que a Confederação não possuía jornais ilustrados bem estruturados, evidencia-se que a imagem da guerra é, fre-quentemente, a imagem que dela dá o vencedor ou, pelo menos, que, em todo caso, a imagem final da guerra é con-formada pela imprensa mais forte.

A visão que se tenta difundir e fixar, através das imagens do con-flito entre a Tríplice Aliança e o Paraguai, é a ideia dos vencedores, o que reflete também na memória que se tenta fixar no tempo sobre o aconteci-mento. Então, é exatamente nos usos que se faz das imagens que se anun-cia a intenção daquela “verdade” que se impõe, seja na imprensa, passan-do pelos álbuns comemorativos ou que pretendem documentar a guerra, chegando até mesmo aos livros didáticos. Para Toral (2001, p. 76):

A guerra, no acervo mítico e histórico do Brasil e Argenti-na, é um registro “frio”. Para o paraguaio, a guerra explica seu país de hoje. A recorrência ao potencial explicativo da guerra, transformada em parte do mito de origem da nacionalidade, tornou-se referência contemporânea. As reações da guerra determinam, ainda hoje, a relação dos nacionais com a iconografia produzida há mais de um sé-culo.

As semelhanças entre as fotografias não são gratuitas e colaboram para representar a morte para um público cada vez mais ávido por ima-gens e, ao mesmo tempo, acreditando fielmente nos documentos fotográ-ficos, pois a fotografia não poderia mentir!

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Prossegue-se agora com outra comparação, entre uma fotografia (fig. 5) e uma litografia (fig. 6). Não é a mesma fotografia da (fig. 3) em-bora trate do mesmo assunto com uma composição que pode indicar que seja a mesma imagem. A legenda também é quase a mesma. A litografia foi produzida por um militar argentino chamado José Ignacio Garmendia que atuou como artista e que mais se baseou em fotografias para compor seus desenhos para representar a guerra. Garmendia acreditava que ao lançar mão das fotografias para reproduzir seus desenhos acompanhava mais o espírito de sua época, ao invés de utilizar seus desenhos produzidos nos campos de batalha.

Voltando às imagens e novamente fazendo um exercício visual para comparar o que se produziu a partir das fotos tiradas nos campos de batalhas, tem-se a litografia para a difusão das fotos nos mais diversos meios de impressão como jornais e livros ilustrados nas décadas de 60 e 70 do século XIX. A introdução de pequenos detalhes na litografia (Fig. 6) demonstra um juízo de valor sobre os cadáveres paraguaios. No can-to superior direito fazem parte do enquadramento da litografia urubus sobrevoando os cadáveres insepultos. São estas diferenças e detalhes que fornecem indícios da visão que se tem do autor sobre o inimigo.

A foto é um recorte espacial e um corte temporal da realidade e, sendo assim, não pode ser entendida como a realidade pura e ingênua, mas sim escolha de quem produz e publica determinadas imagens foto-gráficas. A inclusão do céu na litografia minimiza a tensão que existe na fotografia e o impacto causado pela foto é maior, sobretudo no que diz respeito à iluminação contrastada que é característica na fotografia e ame-nizada na litografia, por isso o impacto maior da fotografia em compara-ção com a imagem litográfica.

Fig 5. Bate & Cia W. Cadáveres paraguayos, Albumina, 1866, 11x18cm, BNU.

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Novamente, é preciso basear-se na linguagem fotográfica para en-tender o significado implícito nas imagens. O ponto de vista chamado de mergulho altera e modifica o entendimento para as imagens. Entende-se por mergulho o ponto de vista ou o eixo de tomada da foto em que a câ-mera está acima do objeto representado, o que reforça a sugestão de que os corpos estão caídos e em situação de inferioridade ante o espectador. Conforme destaca Moreiro Gonzáles (2003, p. 41), “os planos picados colocam o leitor em uma situação de domínio e prepotência” e em situa-ção invertida, no ponto de vista em que se coloca a câmera de baixo para cima a tendência seja que o espectador fique “numa situação desvantajosa em relação ao tema e exaltam o representado que, por sua vez, adquire potência, força e grandiosidade [...]”. O que denota na fig. 5 é a posição de inferioridade dos corpos mutilados e essa sugestão é reforçada, também, pela posição de superioridade do ponto de vista do fotógrafo em relação aos objetos representados. Então o que se conclui da linguagem fotográ-fica neste ponto particular é que a posição da câmera de cima para baixo e vice-versa pode alterar significativamente a mensagem da fotografia e contribuir para exaltar o sujeito retratado ou achatá-lo, conforme seja a opção do fotógrafo.

Ainda que sejam o relato visual mais impressionante e realista da campanha aliada no Paraguai, as fotos de Bate registraram, em linhas ge-rais, o acampamento aliado geralmente em situações corriqueiras das bar-racas onde ficavam as tropas e suas peculiaridades. Um fogão dentro de uma tenda, um bosque que servia tocos para as fogueiras das tropas e ao mesmo tempo poderia esconder o inimigo, a artilharia brasileira do Cel

Fig. 6. José Ignácio Garmendia. Cadáveres paraguayos de la batalla de Tuyutí. Acuarela. Álbum de la Guerra del Paraguay.

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Mallet etc. Consideram-se as asserções de Ana Maria Mauad (1996, p. 82) com relação à ideia de espaço para a análise histórica da foto:

a análise histórica da mensagem fotográfica tem na no-ção de espaço sua chave de leitura, posto que a própria fotografia é um recorte espacial que contém outros espa-ços que a determinam e estruturam, como, por exemplo, o espaço geográfico, o espaço dos objetos (interiores, ex-teriores e pessoais), o espaço da figuração e o espaço das vivências, comportamentos e representações sociais.

O documento fotográfico jamais é inocente. Cabe ressaltar que as imagens fotográficas têm a pretensão de ver o que o público não tem aces-so diretamente. Além da fotografia informar sobre determinado aconte-cimento, ela também forma uma visualidade para o evento em discussão. Todo um trajeto é percorrido até uma fotografia chegar ao seu público e sempre com uma intenção, pois a produção e distribuição de uma deter-minada fotografia jamais é gratuita. No entanto, a fotografia tem a carac-terística de que um olho substitui a visão humana para uma visão da câme-ra, e assim, passa a ideia para o leitor de que a cena aconteceu unicamente daquele ponto de vista, excluindo a ação de um operador para forjar tal cena, empregando seu modo de ver um fato. Conforme destaca Arlindo Machado (1988, p. 105):

É por isso que o ato de fotografar exige mais que a simples posse de uma câmera: exige o pacto com o detentor do espaço, exige a retaguarda da agência noticiosa ou da em-presa jornalística monopolizadora da informação, exige a credencial do ocupante e beneficiário da cena. O espaço que o fotógrafo ocupa em zonas de litígio e o lugar em que ele finca sua câmera são sempre suspeitos: suspeitos porque a presença do fotógrafo em geral só se pode dar à custa de uma cumplicidade com o ocupante e sem a qual o ato de fotografar simplesmente não seria possível.

Com a fotografia a guerra ficou desprovida da aura de epopeia e heroísmo, sobretudo nas imagens que retratavam as perdas humanas. No entanto, as imagens mais terríveis da Guerra registradas pelos fotógrafos da Bate y Cia de Montevidéu foram um fracasso comercial, pelo menos

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na capital uruguaia - fato que confirma certa rejeição do público local quanto às razões que levaram os quatro países a se mutilarem violenta-mente.

A maior parte dos fotógrafos era estrangeira e tinha um olhar dife-renciado da cultura local. Sendo assim, estes estrangeiros registraram uma guerra de acordo com sua ideologia, crenças pessoais, sociais e econômi-cas, pois faziam parte de uma classe privilegiada que detinha o controle das técnicas de produção e disseminação das fotografias. Consolidaram, destarte, uma visualidade que se perpetuou sobre a Guerra contra o Pa-raguai. Verdades ou representações visuais que impõem novos estudos e pesquisas, especialmente porque é preciso relativizar a arraigada tese de que as imagens fotográficas são a representação fiel dos fatos.

REFERÊNCIAS

CUARTEROLO, Miguel Angel. Soldados de la memória: imágenes e hombres de la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Editorial Planeta, 2000.DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.ECO, Umberto. Como se faz uma tese. Trad. Gilson C. C. de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2005.LIMA, Ivan. A fotografia é a sua linguagem. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1988.MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: fotografia e História Interfaces. Revista Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1. n 2, 1996, p. 73-98.MOREIRO GONZÁLEZ, José Antonio. O conteúdo da imagem. Curitiba: Editora da UFPR, 2003.PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2009.SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: memórias e imagens. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2003.SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003._____. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.SOUSA, Jorge Pedro de. Uma história crítica do fotojornalismo ocidental. Chapecó: Grifos, 2004.TORAL, André. Imagens em desordem: a iconografia da Guerra do Paraguai. São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP, 2001.

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Maria da Penha Rocha

A AUTORA

Jornalista, professora e pesquisadora de jornalismo, telejornalis-mo e jornalismo científico. Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006) e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) (1998). Professora adjunta da Univer-sidade Federal do Maranhão, onde integra o corpo docente do Departamento de Jornalismo do curso de Comunicação Social. É autora de capítulos de livros e artigos em periódicos especializa-dos da área de Comunicação. Em seu currículo Lattes os termos mais freqüentes na contextualização da produção científica são: telejornalismo, jornalismo, comunicação, ensino, pesquisa, mídia e tecnologias.

Jornal do Brasil: os anos dourados da imprensa brasileira

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O crítico literário americano Benjamin Moser, que esteve recen-temente no Brasil para fazer palestras sobre a respeitada biografia que es-creveu sobre Clarice Lispector, cita inúmeras vezes o Jornal do Brasil nas páginas do livro, já que a autora foi cronista semanal durante muitos anos do jornal que a apresentou à classe média, enquanto a sofisticada revista Senhor, onde ela também escrevia, era lida pelos literatos, afirma Moser em sua obra. Não podemos esquecer que no século passado somente dois escritores podiam viver de direitos autorais no Brasil: Jorge Amado e Fer-nando Sabino. Todos os outros tinham que fazer jornalismo e traduções ao mesmo tempo em que publicavam seus livros. Carlos Drummond de Andrade, Hélio Pelegrino e Ferreira Gullar e outros renomados escritores também foram cronistas do JB. Mas, o desrespeito dos direitos autorais permanece.

Recorro a Clarice que faz parte das minhas leituras desde a adoles-cência - fato que incomodava um pouco as freiras do tradicional colégio em que estudava - para me justificar do atraso desse texto sobre a notícia de que o JB não estaria mais nas ruas, nas bancas, nas casas dos assinan-tes tradicionais durante décadas, enfim, não seria mais impresso. Mas, ao mesmo tempo, não tive pressa para escrever, afinal a Universidade Públi-ca não deve ter essa função. Esse não é o papel dela. Mas, infelizmente temos visto a formação em massa dos estudantes e professores com qua-lidade comprometida. Tenho a honra de pensar e defender a verdadeira carreira pública universitária ao lado de intelectuais como Leandro Kon-der, Carlos Nelson Coutinho e Marilena Chauí. Felizmente fui aluna e serei eternamente “cria” dessas pessoas.

Clarice dizia que escrever dói demais. E como dói. Mil perdões aos internautas, ou usuários como define Arlindo Machado, pesquisador da USP e da PUC/SP, mas tive que elaborar essa perda. Ainda estou em pleno processo de acreditar que é verdade. Quando li a notícia em um site, chorei e liguei para vários amigos que tiveram o privilégio como eu de passar pelo jornal que mudou o perfil do imprensa brasileira, com a introdução do lead e programação visual, por exemplo, com participação de Alberto Dines e Jânio de Freitas, entre outros mestres do jornalismo brasileiro.

Sabíamos da morte anunciada do JB, mas tínhamos esperanças. A crise familiar e financeira do grupo Nascimento Brito que teve como matriarca a Condessa Pereira, começou com a venda da antológica Rádio Jornal do Brasil AM no início da década de 90 e aí já começava o luto de

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todos nós. Os profissionais que tiveram o privilégio de trabalhar numa redação com Sonia Virginia Moreira (professora hoje da UERJ), Villas Boas Correa, Heloísa Fischer, Sonia Carneiro, João Máximo (hoje no O Globo ), João Saldanha, Marion Monteiro, Nicolau Maranini (atualmen-te Professor da UERJ), Carlos Vieira , Ali Kamel, atual diretor de Central Globo de Jornalismo e foca como eu na época. Não posso esquecer do J. Carlos - um conhecedor de Jazz como poucos no país. Os corresponden-tes Reali Júnior, que nos deixou há pouco tempo, de Paris e Araújo Netto, da Itália eram de uma simplicidade que só os sábios possuem.

Uma vez estava com meu marido, o renomado fotógrafo Pedro Henrique, em Paris e resolvi ligar para o Reali só para dizer um alô. Fo-mos convidados para um jantar na casa dele com a família. Atitude de gente fina, elegante e sincera como escreve o músico Lulu Santos em uma de suas canções.

A Rádio JB tinha um noticiário refinado e pautava os jornais do país. Comprometida com a informação, com muito jazz, bossa nova e MPB! Um luxo. A maioria dos profissionais do jornal também trabalha-va na rádio, respeitada nacionalmente. A emissora e o jornal eram um casamento que dava certíssimo, não havia a nefasta competição e muito menos um dos sete pecados capitais, a inveja, o mal secreto de Zuenir Ventura.

A primeira vez que pisei na redação do Jornal do Brasil foi na se-gunda metade da década de 80. Muito foca, mas com uma imensa ousadia e vontade de aprender: estava sempre atenta a tudo, inclusive depois que saíamos da Av. Brasil onde ficava a sede e íamos para o tradicional Restau-rante Lamas, no Flamengo. Ali os frequentadores eram escritores, jorna-listas, professores, psicanalistas, enfim, boêmios do tempo da delicadeza, como diria o Maestro Tom.

Às vezes na madrugada aparecia a turma do rock; Cazuza, Lobão, Frejat, Marina, Bebel Gilberto, a turma do rock. Éramos uma “bobagem” diante dos eruditos, mas sabíamos respeitá-los. Depois íamos para o Bai-xo Leblon curtir o amanhecer. Tenho a impressão de que esses intelectuais não nos levavam muito a sério e com toda a razão. Mas eles eram super bem humorados e achavam graça da nossa irreverência e transgressão. Afi-nal, não éramos burros, arrogantes, nem desinformados; éramos, apenas, muito jovens.

No JB se respirava a efervescência cultural, política e econômica, depois dos duros anos de chumbo. O escritor, jornalista e professor da

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UFRJ, Zuenir Ventura, conhecido entre nós como o Mestre “ZU” edi-tava o Caderno B. E, durante um bom tempo, fui repórter dessa aérea e como aprendi com ele.

Nas edições do FreJazz, que aconteciam todos os anos no Hotel Nacional, na Barra da Tijuca, entrevistei Nina Simone, Ray Charles, Stanley Jordan, Stevie Wonder e vários outros. As minhas pernas ficavam bambas ao lembrar das recomendações do editor: respeite sua profissão, olha a elegância e altivez, hein! As minhas mãos tremiam demais, mas as matérias “ rendiam”. Eram publicadas no jornal e iam ao ar na Rádio.

As matérias dolorosas também aconteciam, e não eram poucas no JB. Afinal, o imprevisto está sempre por um triz. Um dia passando pela Avenida Presidente Antonio Carlos, no Centro do Rio, em pleno verão carioca, vi chamas de fogo e fumaça em um enorme prédio. Pedi ao moto-rista do jornal que parasse o carro e saí alucinada para ver de perto o que acontecia. Era a primeira repórter a chegar ao local e avisei aos editores imediatamente. Foram dezoito horas de cobertura do histórico incêndio do Edifício Andorinhas, em 1986. A equipe do JB e da rádio era compos-ta por cerca de trinta repórteres, além dos chefes, que também foram para o local. Ali vimos a cara da morte e deparamo-nos com o verdadeiro desa-fio do repórter; tínhamos que ser profissionais firmes diante de tamanha dor e desespero. O envolvimento emocional era vetado pela linha edito-rial, afinal era esse o comportamento de repórter respeitado da época. As marcas psicológicas estão presentes até hoje.

O jornalista e escritor Mauricio Dias, atualmente Editor Especial da Revista Carta Capital - uma das publicações com mais credibilidade no país - foi responsável, também, por um período importante do JB, nos anos 90. Competente e também historiador, jamais admitiu os famosos ‘’jabás” circularem na redação e o jornal tinha matérias pertinentes, sérias, bem apuradas e com o domínio da língua pátria. Mauricio sempre apos-tou no JB, por isso, era um prazer ler as entrevistas, matérias e reportagens feitas pela equipe dele. Nessa época eu morava e trabalhava na imprensa de São Paulo, mas a minha assinatura do JB era sagrada, assim como de outros “cariocas de alma e coração” que viviam em Sampa naquele perío-do. Foram 11 anos na capital paulistana, mas a primeira leitura diária era o Jornal do Brasil. Como diz o João Gilberto, nós somos da cidade que escolhemos e não que nascemos.

O JB tinha charme, elegância, polêmicas divertidas, entrevistas sé-rias, denúncias, moda e refletia de alguma maneira o humor refinado da

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cidade que foi capital do país. Tinha as musas do verão - cada uma mais linda do que a outra - os lançamentos que aconteciam no Posto Nove, em Ipanema, a Praia do Pepê, as festas da aristocracia e dos políticos, enfim, um jornal completamente único na história da imprensa brasileira. A es-critora e ex-modelo Danuza Leão, que viveu durante anos os bastidores políticos e da moda nacional e internacional - afinal ela foi casada com o poderoso Samuel Wainer, dono da Última Hora e amigo íntimo do Presi-dente Getúlio Vargas, além de irmã da princesa da Bossa Nova, Nara Leão - assinou por cerca dez anos uma coluna no JB. Absolutamente imperdí-vel ler a Danuza, atualmente cronista da Folha de S.P.

O Jornal do Brasil era moderno, contemporâneo e com projeto visual bacana e bem feito! Os fotógrafos faziam a festa com os contrastes da cidade maravilhosa desde o pôr do sol da Lagoa Rodrigo de Freitas - única lagoa urbana do mundo - até a violência do poder paralelo que já se manifestava, porém não tão escancarada como hoje.

Felizmente o mundo era menos doente e competitivo na década de oitenta. Um dia estava no estacionamento do jornal, por volta das onze da noite, quando o Franklin Martins, na época Editor de Internacional do JB, virou-se para mim e disse: “ moça, vamos a um jantar que acho que será importante para sua vida profissional. É na casa do Brizola, o Darcy Ribeiro vai estar lá também!” Meu Deus, quanta generosidade do Franklin, que estivera no cargo de ministro de comunicação do Presiden-te Lula outrora com todo o mérito; cargo hoje ocupado pela Ministra He-lena Chagas. Aceitei na hora, claro, e o segui até Copacabana! Aí descobri que era vizinha de Leonel Brizola.

Quanta erudição naquele jantar, misturado à descontração, sem arrogância, e muitas gargalhadas. Como eu não tinha a ousadia de abrir a boca, fiquei famosa pela cor de morena jambo e pelas covinhas, que ainda permanecem, felizmente.

Outro marco dos serviços prestados pelo JB à imprensa brasileira foi nas eleições de 1982 - a primeira depois da regime militar. Os candi-datos ao governo do Rio eram Leonel Brizola, do PDT e Moreira Franco, do PDS. A apuração foi muito tumultuada, relatam os coleguinhas que estavam na época nas redações, assim como nos livros. Paulo Henrique Amorim e Maria Helena Passos publicaram uma obra sobre o assunto: “A História da Notícia”. Todos nós temos o compromisso de ler e repassar para os estudantes de jornalismo.

Era tudo muito confuso. O JB dava em suas manchetes a vantagem

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do Brizola e O Globo garantia que o vencedor seria Moreira Franco. Na verdade, segundo Amorim, a TV Globo atrelou a sua cobertura ao jornal e aí deu zebra. Mais uma vez a Rádio JB se destacou e optou por compu-tar os votos somente para governador - claro que essa determinação agi-lizou todo o processo. O fato é que Brizola chamou os correspondentes internacionais (a maioria morando no Rio ) e disse que havia fraude nas eleições. Foi um “bafafá”. Como se não bastasse isso, o então diretor de jornalismo da TV Globo, Armando Nogueira - um brilhante homem de texto e de televisão - foi para São Paulo. Aí houve uma conversa ao vivo entre Brizola e Armando bem engraçada. O fato é que mais uma vez o Sistema JB, que tinha como matriarca a Condessa Pereira, cumpriu o seu papel com a democracia.

Em 2006 o jornal já tinha sido vendido para o empresário Nelson Tanure - que nós jornalistas não conhecíamos - e funcionava num belo casarão que havia sido um convento, no bairro do Rio Comprido, zona norte do Rio, ao lado do morro do Turano, onde a chapa é quente, como canta o Chico, o Buarque. Ouvíamos tiroteio o dia inteiro, mas não deixá-vamos de trabalhar. Louca e apaixonada pelo jornalismo, ainda mais pelo JB, não resisti ao convite do amigo Ziraldo, feito pelo telefone, por volta das dez da noite, para minha casa no Leme. O Ziraldo tinha assumido o Caderno B para pagar uma dívida da impressão do Pasquim - na nova edição - que foi feita na Gráfica do senhor Tanure.

No outro dia estava lá e fiz matérias que foram bacanas como a No-vela do Mensalão, Zizi Possi - Para Inglês Ver e Ouvir, Maria Carmen Bar-bosa parceira do Falabella e tantas outras. Mas a do coração que encerrou a minha passagem pelo Jornal do Brasil foi com o Paulo Autran. Fui à casa dele em São Paulo, na tradicional Cerqueira César e conversamos cerca de duas horas. Um grande brasileiro, um ator de tirar o fôlego, um homem honrado e justo. Certamente hoje ficaria pasmo com a morte do JB!

Outro dia entrei no site e dei graças a Deus por várias pessoas não estarem mais aqui, para não lerem os erros absurdos do JB, foi a primeira e última vez, não perderei meu tempo, é melhor dedicar-me aos clássicos.

Vida que segue, como diria João Saldanha!

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Patrícia Teixeira

A AUTORA

Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Fa-culdade Estácio do Pará. Atualmente é Professora do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão - Campus Imperatriz. Trabalhou 8 anos na Rádio Cul-tura FM de Belém do Pará. Tem experiência na área de comuni-cação, com ênfase em assessoria, rádio e tv, além de experiência com desenvolvimento de projetos comunicacionais e culturais, diagramação, design gráfico, produção de cinema e eventos. Atua principalmente nos seguintes temas: rádio, cultura, cinema e meio ambiente.

Feira do Som, identidade e memória nas ondas do rádio1

1 Artigo elaborado a partir da monografia “Feira do Som: 36 anos de memória” apresentada em junho de 2009 à Faculdade Estácio do Pará para obtenção de grau de Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo.

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INTRODUÇÃO

Informação, entretenimento, proximida-de e intimidade. Mais do que uma simples caixa acústica, que provoca emoção por meio de ondas sonoras, o rádio se transformou em um integrante assíduo do cotidiano brasileiro. Seja em casa, no trabalho, no carro, só o rádio consegue ser o BG2 musical-informativo que trilha variadas situações em nosso dia a dia.

Segundo Ortriwano (1985) e Balsebre (2005), o rádio fala, e como é necessário apenas ouvir, ele, com a característica da sensorialidade, produz e aguça sentidos, através de uma realida-de referencial, sem necessariamente precisar que o ouvinte fique preso em frente ao aparelho. Essa realidade referencial acontece quando o rádio es-timula o ouvinte, através de apresentações sonoras, a buscar seu repertório de sensações e situações, no qual ele associa o que foi apresentado a fatos que já vivenciou, direta ou indiretamente.

Gomes (2004) explica o que leva o veículo a ter sucesso. Características como a portabilidade, o fácil acesso econômico e de alcance fazem do rádio o veículo mais acessível à população. Independen-te de sua frequência, que pode ser AM (Amplitu-de Modulada) e FM (Frequência Modulada), sua programação é diversificada, com características próprias, que vão desde a música até o jornalismo. Segundo César (2009, p.213-215), na AM pode-mos observar uma variedade de programas, com foco jornalístico, esportivo e de utilidade pública, na FM as músicas têm maior destaque.

Para Jung (2004), o rádio é o meio de comunicação de massa que tem maior cobertu-ra, alcançando 96% do território nacional. Tudo isso se dá através da característica da mobilidade, na qual o rádio tem caráter de informar sem que

2 Background, do inglês, fundo. No rádio geral-mente é a música que serve como pano de fundo para a locução.

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o receptor esteja totalmente presente. Por usar só um dos sentidos para captar as informações, o receptor não precisa deixar de fazer outras coisas. Diferentemente da TV, que, por solicitar a audição e a visão, obriga o telespectador a estar em frente ao aparelho, se ele não quiser perder o total sen-tido das informações passadas. O jornal impresso precisa da mesma presença, pois utiliza o tato e a visão, fazendo o leitor refém da atenção integral ao que está lendo. Apesar de ser familiar ao dia a dia das pessoas, atingindo um grupo muito maior, em relação a qualquer outro meio, o rádio ainda é des-conhecido do ponto de vista histórico.

No que diz respeito a pesquisas interna-cionais, Menezes (2007) afirma que os primeiros estudos na área radiofônica aconteceram na Ale-manha, a partir da utilização do meio por parte de movimentos sociais, sindicais e partidos políticos. Essas só foram feitas para saber se o meio estava correspondendo às expectativas de determinados grupos, e não com o objetivo de saber se os ouvin-tes estavam satisfeitos com o conteúdo em si, ou qual a importância desse meio para a população.

A História do Rádio no Pará se confunde com a História do Rádio na Amazônia. A Rádio Clube do Pará é considerada a primeira rádio inau-gurada no estado e na Amazônia. Fundada em 22 de abril de 1928 por Edgar Proença3 e Eriberto Pil, a emissora é a quarta mais antiga do Brasil.

Segundo Santelli (2008, p.34), com a che-gada do rádio na Amazônia, um novo personagem adentrou os lares das pessoas, transformando o cotidiano dos povos da região. Essa transformação revolucionou o modo de vida do povo amazônico.

Antes do rádio, o contato entre o homem do interior e o mundo urbano era feito pelo barco que

3 Pai de Edgar Augusto Proença

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abastecia de mercadorias os seringais e as pequenas povo-ações. O regatão quebrava o isolamento e levava também as cartas dos parentes que viviam em outras localidades, às margens dos rios.

Enquanto os jornais impressos cresciam no perímetro urbano, as rádios avançam em proporção nas localidades distantes, tendo um papel muito importante na integração de capital e interior, que nesta época era abastecido de informação por via fluvial:

As ondas do rádio chegavam até os vilarejos mais distantes, na beira do rio, nos garimpos, nos seringais, nas fazendas, nas roças, dentro das canoas, dos barcos, dos navios, dos caminhões tipo pau-de-arara, etc. (FERREIRA, 2005, p.1).

A partir de 1942, a Rádio Clube passa a ser ouvida em vários pontos da região, por adquirir um transmissor OT (Ondas Tropicais). Mas três anos de-pois, em 07 de junho de 1945, a emissora ultrapassa os limites do estado e passa a transmitir programas especiais para o estado do Amapá.

A rádio Clube do Pará foi propriedade da família Proença até meados de 1990, quando foi vendida para um grupo de empresários que tornou a vendê-la, dessa vez para o governador da época, Jader Barbalho.

Em 07 de setembro de 1954, outra rádio AM era inaugurada em Belém. Quatro anos depois de trazer a Televisão para o Brasil, Assis Chateaubriand im-planta a Rádio Marajoara em Belém e conta com a direção de Frederico Barata, superintendente na época do jornal “A Província do Pará”.

Cobrindo a área policial e de problemas urbanos da cidade de Belém, o programa Patrulha da Cidade estava entre os de maior sucesso da época. Com a crise sofrida pelos Diários Associados (pertencente a Chateaubriand e que in-cluía emissoras de rádio, tv e jornais), a emissora é vendida para o empresário Carlos Santos, sendo controlada por ele até hoje.

O presente estudo busca resgatar a história da Feira do Som através da memória de seu idealizador e apresentador, Edgar Augusto. Segundo Kessel4 (2003), o conceito de memória vem sofrendo modificações no decorrer do tempo, adequações essas justificadas pelas constantes transformações sociais. Sendo assim, é possível afirmar que a memória, a partir da elaboração de varia-dos estímulos, é sempre a construção do presente, em cima de conhecimento/vivência do passado.

Para Gomes (2004, p. 5), a memória é resultante da percepção de mundo, sendo uma das táticas cognitivas para o armazenamento e recupe-

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ração das informações no momento de precisão.

Do ponto de vista sociocogniti-vo, é na memória onde se pro-cessam as associações de idéias, os questionamentos sobre o des-conhecido, a busca do sentido das vivências no mundo para se obter respostas. Reunindo tudo isso, chegaremos à concepção de cultura, argumento pelo qual se infere que cultura e memória também não podem estar disso-ciadas. (GOMES, 2004, p.5 )

O programa Feira do Som é um caso único na história do rádio paraense. Apresentado pela mesma pessoa há 39 anos, o programa mantém seu estilo original, mas procurando com o tempo inovar, agregando novos quadros em sua estrutura. Uma das principais características do programa é o fato de se utilizar de uma linguagem peculiar, com a utilização de bordões5 e de uma locução orginal-mente AM, em um formato FM.

Frases como “meus amigos da cultura, fala Edgar Augusto”, “última, ultimíssima, the last” são maneiras de legitimar essa audiência, por meio de identificação. Essa identificação faz parte da cultu-ra do indivíduo, que procura o que mais se asseme-lhe a suas convicções.

Hoje, com o bombardeio de informações, sabemos que o “consumidor” de informação só absorverá o que “quer” saber, o que seus padrões – sejam sociais, econômicos, culturais – influen-ciam a buscar. Segundo Miranda6 (2000), um dos principais indicadores do desenvolvimento da sociedade da informação é a penetrabilidade das tecnologias de informação na vida diária das pessoas e no funcionamento e transformação da

4 Zilda Kessel é educadora e formadora do Museu da Pessoa é especializada em Museologia, com mestrado em Ciência da Informação.

5 Segundo o dicionário Aurélio é a palavra ou frase que se repete a cada passo na conversa ou na escrita.

6 Coordenador do Grupo de Trabalho sobre Conte-údo e Identidade Cultura, Programa Sociedade da Informação – SocInfo/MCT.

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sociedade como um todo.Segundo Gomes (2004), o ser humano busca constantemen-

te sua própria identidade. Dessa forma, entende-se que ao escolher determinada ação, como o tipo de roupa que se quer usar, a cor pre-ferida, o tipo de comida e, por que não, os meios midiáticos que se quer absorver informação, todas essas escolhas fazem com que o ser humano se encontre, ao buscar o que mais lhe agrada, ou o que mais lhe convém. Ao determinar que programa é o seu preferido, ou a partir do momento que ele escolher os meios pelos quais quer receber informação, ele não só está procurando a si mesmo dentro dessas escolhas, como está legitimando como “seu” o programa que optou por ouvir, assistir.

A identidade é um objeto de busca e está situada numa relação com o outro. Hoje somos possuídos pelos ob-jetos, Está ocorrendo uma verdadeira mudança que localiza-se na posse pelo outro. Tudo repousa no efê-mero e o que caracteriza o indivíduo é que ele existe a partir do olhar do outro. Mas ao mesmo tempo, esta mudança está nos remetendo ao humano para que possamos desvendar aquilo que realmente é e aquilo que existe.(RADDATZ, 2006, p.2)

Kroth (2006, p.3) afirma que o “discurso constitui-se num lugar onde se podem reproduzir os significados sociais, se tornando um espaço onde há possibilidade de compreender as interações entre a produção e recepção”. A forma como a Feira do Som mantém essa relação, produção-locutor-ouvinte, explica o fato de o programa ser um dos que apresentam maior audiência na Rádio Cultura FM.

O rádio é o veículo interativo por excelência. Por car-ta, pessoalmente ou por telefone, os ouvintes acorrem às emissoras opinando, reivindicando ou informan-do. Com o advento da telefonia celular e do fax, al-gumas rádios abriram espaços bem-definidos em suas programações. (FERRARETO, 2001, p. 196)

É comum nos engarrafamentos do meio dia, ouvirmos: “Amigos da cultura, aqui fala Edgar Augusto”. Apesar de algumas

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características de AM, isso não impede que o programa tenha boa parte da audição do público jovem, com um espaço específico para a produção fonográfica atual, intitulado “Cantinho de agora”. O pro-grama alia fatores de AM, como sua linguagem, e de FM com sua estrutura tipicamente musical.

TÁ NA HORA DA FEIRA, DA FEIRA DO SOM!

No dia 01 de março de 1972 entrava no ar pela primeira vez o programa “Feira do Som”, com o objetivo de movimentar o cenário musical paraense, divulgando a agenda de shows locais, lançamentos de artistas da terra e, principalmente, informando ao ouvinte o que estava acontecendo no cenário fonográfico nacional e internacional. A “Feira do Som”, criado por Edyr e Edgar Augusto Proença, foi o primeiro programa a pautar a cena cultural da época.

O programa Feira do Som foi baseado em um programa que já existia. O programa chamado Pocket Show era veiculado todos os dias, das 12h às 12h30, apresentado pelo universitário e publicitário Rosenildo Franco. O “Pocket Show” era ouvido todos os dias por Edgar Augusto Proença no horário de almoço.

Rosenildo Franco era aficionado pelos jornais do Rio de Ja-neiro e São Paulo. Todos os dias pela parte da manhã se dirigia ao aeroporto para adquirir os jornais, que não chegavam às bancas de revista da cidade de Belém. Com isso, sempre tinha novidades, sepa-rava as notícias de arte e lançamento de discos. Além de buscar infor-mação, o apresentador mantinha contato com gravadoras e lojas de disco, sempre conseguindo materiais exclusivos para o programa.

Eu queria fazer comentários dos discos, pois ele não fazia, ele só fazia lançar. Queria dizer o que era, co-mentar, dar mais detalhes, dizer que músicos acom-panhavam. Queria aproveitar minhas saídas notur-nas, que eram muitas. Conhecia muito os músicos da noite, para dar a importância que os programas de rádio não davam aqui em Belém. Não se falava nada dos músicos da noite, porque eles não tinham musicas gravadas [...] Foi esta a minha intenção, foi quando o Edyr disse: - Precisamos de um nome que traduza isso, por que não ‘Feira do Som’?. Porque em uma fei-

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ra você encontra todo o tipo de produto, e do som, você já sabe que todo o tipo de música você pode encontrar na feira7.

Neste período Edgar trabalhava na Rádio Clube. Sugeriu então para a chefia de progra-mação da emissora o programa e o formato que queria. O projeto foi aceito pela emissora, que solicitou um piloto. Aprovado, o programa Feira do Som entrava no ar sob a apresentação de Edgar Augusto e Edyr Proença. Edgar estreou o progra-ma com 17 anos de idade.

O ano de estreia do programa foi marcado por um momento de modificações no processo fonográfico brasileiro. Artistas estavam começan-do a produzir independentemente de gravadoras, com capital próprio. Segundo Marchi (2008), as gravadoras eram consideradas empresas “estran-geiras”, que pareciam intervir no processo de produção da música brasileira.

Como tática, as gravadoras buscam am-pliar laços com cidades fora do eixo sul-sudeste, experimentando um processo de divulgação muito forte em Belém. Edgar estabeleceu liga-ção com cinco gravadoras, que disponibilizavam suplementos completos. Todos os artistas lança-dos por essas gravadoras chegavam às mãos do jornalista, com release e todas as informações necessárias para fazer o programa. Na época, a divulgação dos lançamentos se fazia de manei-ra diferente da que é feita hoje. Os artistas não iam à cidade fazer shows de lançamento de seus álbuns, eles viajavam de capital em capital per-correndo os sistemas de rádio, só para participar de programas e divulgar os discos.

7 PROENÇA, Edgar Au-gusto. Entrevista concedida a Patrícia da Silva Teixeira. Belém, 2009.

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Eu tinha acesso a esses artistas, eles gostavam do programa, e o boca a boca funcionou muito, como funciona até hoje. Eles re-comendavam. Tinham artistas que vinham aqui sem gravadora e já vinham me procurar, pois sa-biam que aqui tinha um progra-ma de rádio forte e que colocava aquele trabalho dele com deta-lhes, como outras não faziam, nem tinham o conhecimento que eu tinha.8

Edgar buscou se aperfeiçoar, ler sobre os

assuntos que poderiam ser relacionados com o programa. O jornalista frequentou todos os cursos da época sobre cultura popular, fez parcerias com donos de lojas de discos, em troca de citação das lojas no programa.

Em 1977, a Feira do Som se reafirma como programa informativo cultural com conteúdo exclusivo. Graças à ida do Projeto Pixinguinha a Belém, o programa passou a receber entrevistados de fora da cidade quase todos os dias. Nesse perí-odo, Edgar já mantinha contato e amizade com a maioria dos artistas que participaram do projeto. E ainda contava com o fato de a Rádio Clube fi-car próxima ao Hotel Grão Pará, onde se hospeda-vam os músicos. Outro fator que contribuiu para que Edgar tivesse sempre contato com artistas foi seu ingresso como colunista em jornal. Na época, muito novo, já era colunista do jornal O Liberal, jornal expressivo na cidade. Sua coluna, intitulada “Do Compacto ao LP”, já fomentava de informa-ções musicais a cultura local. De acordo com Edgar Augusto, “pela coluna, pelo programa de rádio, só não tinha o de TV nessa época, mas eu já era mui-to cortejado pelas gravadoras, e a Feira do Som em

8 PROENÇA, Edgar Au-gusto. Entrevista concedida a Patrícia da Silva Teixeira. Belém, 2009.

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consequência foi ganhando um recheio sempre grande, forte”. O programa que se lançou na Rádio Clube do Pará, em 1982,

muda de emissora, tendo como novo endereço a antiga rádio Cidade Mo-rena – hoje Jovem Pan. O programa que hoje vai ao ar das 12h às 14h - de segunda a sexta - até 1982 foi ao ar com uma hora de duração.

Em meados de 1982, a Rádio Clube do Pará, sendo uma emissora AM, estava começando a sofrer pressão de uma programação mais po-pular. E a Feira era muito cultural, estava em uma dificuldade de venda para o público da Rádio Clube, que começou a mudar. Segundo Edgar Augusto, “começou a ser muito povão”.

A Feira do Som começou a adquirir características pelo que ela abordava, e não pela linguagem, mais próxima da programação de emisso-ra AM. Foi quando surgiu a Rádio Cidade Morena, fundada pelos irmãos Proença, cuja proposta inicial era exatamente a de um lado cultural de vanguarda. Segundo Edgar Augusto, quando a Cidade Morena trocou de nome e decidiu investir em um público mais jovem, esse público mais jovem queria a música, a citação da música e não queria muito papo, e meus irmãos começaram a ver que a feira estava com dificuldades lá. Meus irmãos chegaram comigo e disseram que não estava bom, e que a feira ia ter que parar. Eu fiquei muito frustrado, era a emissora da família, e não ter espaço...

Nesse período, o jornalista tentou levar a Feira para a Rádio Cul-tura Onda Tropical, mas esbarrou na dificuldade de ir todos os dias ao município de Marituba para fazer um programa que não era transmitido para a capital, e, segundo ele, não era interessante talvez para o público do interior o tipo de abordagem que o programa queria dar.

A Feira do Som teve que ficar sem ir ao ar por dois anos. Edgar ficou trabalhando na Rádio Cultura Ondas Tropicais (OT), mas com um programa intitulado Raridades da MPB, que vai ao ar até hoje, só que agora pela Rádio Cultura FM.

Quando a Rádio Cultura FM foi inaugurada em 1986, Edgar fez a proposta ao então presidente Francisco César de voltar com a Feira do Som, que aceitou imediatamente, mas em caráter de experiência, indo ao ar todos os sábados pela parte da tarde. O programa só durou três sábados neste horário. Na quarta semana, Edgar já estava apresentando o progra-ma diariamente das 12h às 13h.

No início, a Feira do Som contava com três quadros dentro do programa exibido na Rádio Clube. Apesar de não terem nomes específi-

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cos, os quadros apresentavam os compactos e os LPs(discos), e o terceiro, ainda que flutuante, era dedicado às entrevistas. Os compactos eram os filhos dos LPs, as gravadoras lançavam os singles (compactos) para testar a receptividade do mercado, para depois lançar o LP. Segundo Edgar Pro-ença, “os singles desenhavam o que poderia ser o conteúdo dos LPs”.

No programa, esses quadros eram bem divididos. Os Compactos eram apresentados por Edyr Proença e os LPs por Edgar Augusto. Apesar de um interagir no quadro do outro, cada um desenvolvia sua tarefa espe-cífica. Hoje, três quadros fazem parte do programa: “Cantinho do Bea-tles”, “no tempo dos Titios” e “no tempo de Agora” – mais novo quadro, onde Edgar sempre toca como destaque algo de cantores e bandas atuais. Além dos Abraços da Feira e ainda a pergunta do Emérito perguntador Mor Juramentado do programa, Grisalho Couto.

O quadro “cantinho dos Beatles” começou na Rádio Clube, den-tro de um programa de meia hora de duração chamado Sábado Gente Jovem. Depois que o Programa terminou, Edgar puxou o Cantinho para dentro da Feira. “Eu não queria fazer um programa dos Beatles sozinho, ele tinha que fazer parte de um programa”

No início, segundo Edgar, o quadro “no tempo dos titios” não existia em sua cabeça. Porque no princípio da Feira Edgar não era “titio”, era bem jovem e acostumado com as tendências de sua época. Quan-do foi ficando mais velho e começou a notar que gravava fitas cassete para ouvir no carro, com as músicas do tempo em que era mais jovem, começou a observar também que muitos amigos solicitavam cópias des-sas fitas. Edgar estreia esse quadro e passa a tocar músicas antigas de seu acervo.

Em 2006, Edgar criou o “no tempo de agora”. A criação do quadro se deu a partir da percepção de Edgar, ao observar que muitos dos seus amigos levavam os filhos no carro no horário do programa, e os obri-gavam a ouvir a Feira. Era uma forma de atingir os filhos, colocando o quadro, que conta com a participação de uma de suas filhas que auxilia na seleção das músicas.

Os abraços entraram na Feira já na rádio Cultura. Edgar achava meio em desuso o abraço no rádio, pensando que daria uma conotação exageradamente AM. Mas quando o jornalista passou a ser abordado por secretários de estado, médicos, engenheiros, juízes, choferes de ônibus, motoristas de táxi, vigias de prédios, lixeiros solicitando que mandassem abraços para eles, seu posicionamento em relação aos abraços mudou.

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Eu digo, num programa educa-tivo do qual eu não abro mão, da característica educativa que ele tem, com ouvintes de todos os naipes. Eu vou ratificar isso mandando abraço pras pessoas. Não citando a classe social de-las, mas quem ouve vai saber que está sendo citado. O lixeiro seu Raimundo José da Silva vai saber que eu estou homenageando ele, do lado de um secretário de esta-do, que ele conhece do jornal, da televisão e do rádio.9

A “pergunta do Grisalho Couto” entrou no programa quando Edgar começou a fazer perguntas, com o objetivo de premiar os ouvin-tes que respondessem corretamente. Ele fazia as perguntas, como faz até hoje na grande maioria das vezes. Quando não sabe a resposta, procura sempre alguém, pede colaborações. No fim das contas, Grisalho Couto é toda a equipe da Rá-dio Cultura. Porque todos ajudam, todos suge-rem. Mas houve um tempo que o Couto, Sérgio de Campos, colaborava com a Feira levando li-vros, datilografando as perguntas e apresentan-do respostas com todos os detalhes. Ele era pes-quisador, trabalhava em biblioteca, trabalhava em arquivo, depois passou a trabalhar na biblio-teca da Cultura. Edgar fazia as perguntas ao pú-blico, mas não citava o nome de Couto. Um dia alguém apareceu e sugeriu uma pergunta e Ed-gar deu os créditos no programa. Os colegas do Couto procuraram Edgar e disseram que Cou-to havia ficado magoado, por sempre colaborar com o programa e não ter o nome dele citado em nenhum momento, enquanto outra pessoa que colaborou obteve o nome citado.

9 PROENÇA, Edgar Au-gusto. Entrevista concedida a Patrícia da Silva Teixeira. Belém, 2009.

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Aí me toquei com aquilo. Então cheguei: - Couto, você vai ser meu perguntador emérito jura-mentado do programa. Topas? Topo. Olha as perguntas serão tuas, hein, vou te colocar no pro-grama. Ele achou o máximo. E comecei a mencionar, até quan-do ele entrava de férias.

Couto se aposentou da Funtelpa10, hoje mora em Mosqueiro, ouve o programa na ilha, que faz parte da região metropolitana de Belém. Tem uma rádio comunitária na qual Couto participa que retransmite o programa. “E o nome dele é citado, e eu criei o personagem. Todo mundo faz a pergunta, mas é creditada ao Couto. É uma ho-menagem pra ele, e as pessoas gostam de figuras” explica Edgar.

Nestes 37 anos de Feira do Som, Edgar Au-gusto ficou conhecido por seus bordões. Segundo o jornalista, todos os bordões não foram pensados com o objetivo de serem criados, surgiram natural-mente, e da percepção de coluna de jornais. Para Edgar é uma identificação difícil de explicar:

É uma questão psicológica, não sou eu que vou te explicar que fenômeno é esse. Mas as pesso-as esperam aquilo. Se algum dia eu abrir a feira e não citar meus bordões, quem está ouvindo fica frustrado. Porque faz parte des-sas pessoas, ligarem o rádio elas querem ouvir o que elas querem ouvir.11

Certo dia, Edgar fez uma pergunta, e quem respondesse corretamente ganharia como prêmio

10 Fundação de Telecomu-nicações do Pará, rede de emissoras públicas, que abrange: Rádio Cultura FM, Rádio Cultura Ondas Tropicais, TV Cultura e Portal Cultura.

11 PROENÇA, Edgar Au-gusto. Entrevista concedida a Patrícia da Silva Teixeira. Belém, 2009.

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um disco valioso. Então, para criar expectativa, usou as palavras, última, ultimíssima. Mas para ele faltava uma terceira palavra para intensificar ainda mais o valor do prêmio. Foi então que disse aci-dentalmente “the last”. A frase foi repetida no dia seguinte, e continua no programa até hoje. “Se tornou característica, é repetida na noite. Nos sho-ws, quando o artista diz que vai cantar a última, o pessoal diz: última, ultimíssima, the last, eu acho o máximo”.12

O início de cada transmissão do programa Feira do Som é marcado por frases que, além de pontuarem cada dia da semana, têm o objetivo de promover identificação com o leitor.

A segunda-feira é marcada pela frase: “Dia internacional da água gelada, dia da modorra, dia em que a feira luta para afastar os ais e uis, com lan-çamentos, sorteios e novidades”. A terça-feira é o “dia que as pessoas se dizem recuperadas do fim de semana, prontas para outra”. A quarta é o “Dia que já começa a bater o gostoso arzinho de final de se-mana”. A quinta-feira é “a antessala do fim de sema-na, dia em que a gente já toma a primeira”. Sexta é o “Dia internacional da cervejinha gelada, da Cuba Libre, da Caipiroska”.

Todos os bordões presentes na Feira surgi-ram de percepções do jornalista, de fatos, ações e vivências quotidianas, que possibilitaram uma inte-ratividade e identificação por parte do ouvinte.

Por ser veiculado em uma emissora educati-va, Edgar procura fazer um programa obedecendo aos conceitos de tal instituição. Para isso, segundo ele, há uma preocupação com as informações que são passadas e com o sentido dessas informações. Segundo Edgar, o educativo promove discussões e propõe opções, “a educação está em se colocar os fatos para as pessoas analisarem, interagirem com esses fatos, e viverem segundo suas convicções”.

12 PROENÇA, Edgar Au-gusto. Entrevista concedida a Patrícia da Silva Teixeira. Belém, 2009.

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Para Edgar Augusto, educar não é impor ou estabelecer verdades. “Não é dizer siga essa cartilha porque eu segui. Você mostra os lados da coisa, e procura mostrar com o número maior que puder de informações. É o que eu procuro fazer”.

A Feira do Som é veiculada em um meio comunicacional públi-co – Rádio Cultura – que é compromissado com programas educativo-culturais. Dessa forma, é possível observar uma preocupação com as in-formações passadas. Essas informações são analisadas, a fim de transmitir educativamente opções para a escolha de conceitos sobre certo e errado.

CONCLUSÃO

Com a pesquisa conclui-se que a Feira do Som foi é muito impor-tante para a história da indústria fonográfica no Pará, bem como para a história do rádio no estado. Com o objetivo de ser um espaço para fomen-tar a música local, desempenhou um papel de pioneirismo na produção e veiculação de informações sobre o setor cultural na cidade.

Durante o estudo, pôde-se observar que a Feira do Som vai in-fluenciar duas classes específicas - artistas e ouvintes. Os artistas começam a ver no programa um aliado na projeção da cultura regional, encontrando no rádio um veículo de trampolim para a disseminação das artes – o que se mantém até hoje. Lançar produtos culturais na Feira do Som tornou-se objetivo de todos os artistas que visualizam sucesso em Belém.

Os contatos efetivados por Edgar Augusto fizeram com que a in-dústria fonográfica nacional encontrasse no programa um parceiro, bene-ficiando os ouvintes, que conseguem, mesmo estando longe do circuito cultural sul-sudeste, ter acesso aos discos recém-lançados e à gama de ar-tistas nacionais.

Pôde-se observar que o ouvinte não estabelece uma relação de pas-sividade com o programa, como mero receptor; ele interage, encontrando na Feira do Som um companheiro, no qual é possível promover identi-ficação - através de como é veiculada a informação, da participação por meio de promoção e da forma como é estruturada a linguagem emprega-da no programa.

O programa contribuiu não só com o fortalecimento do cenário cultural de uma cidade, mas com a construção da identidade de gerações. Gerações que ligam o rádio todos os dias para ouvir a voz que diz: - Meus amigos da cultura, fala Edgar Augusto...

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REFERÊNCIAS

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Roseane Arcanjo Pinheiro

A AUTORA

Formada em Jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas, Mestre em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo. Atual coordenadora do Curso de Jornalismo da UFMA-Campus Imperatriz. Integra os Grupos de Pesquisa Estudos de Mídia Jornalística-Gmídia e Identidade e Cultura na Contemporaneidade. Faz parte da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinas da Comunicação-Intercom e da Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo-SBpjor.

Nas linhas de O Conciliador do Maranhão: jornalismo e política no

primeiro jornal do Maranhão1

1 Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado “Gênese da Imprensa no Maranhão nos Séculos XIX e XX”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da Universidade Metodista de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. José Marques de Melo.

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UM JORNAL NA EBULIÇÃO DA INDEPENDÊNCIA

Entre a Revolução do Porto, em 1821, em Portugal, e a Indepen-dência brasileira, em 1882, período de embates sobre o destino do Mara-nhão e do Brasil, nasceu o jornal O Conciliador do Maranhão, sobre o qual pesquisadores como Lopes (1959), Achilles (1976), Jorge (1987), Rizzini (1988) e Serra (2001) discorrem sobre sua fundação, sua feição oficial, seu conteúdo, seus abusos contra os inimigos políticos do gover-nador Bernardo da Silveira e a breve circulação, de abril de 1821 (ainda manuscrito, na versão impressa desde novembro daquele ano) a julho de 1823. A pecha de jornal oficial sobre O Conciliador do Maranhão, cujo título foi abreviado para O Conciliador, a partir do nº 77, pesou e isso pode ter contribuído para a ausência de trabalhos mais fecundos que transpusessem o rótulo de jornal de interesses portugueses ou folha do governo da província.

Jornal O Conciliador, No 02, abril de 1821 (Foto: Chico Otoni)

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Ao ser julgado pelo seu posicionamento político e não analisado pelos parâmetros jornalísticos, deixou-se de se responder à seguinte per-gunta: O Conciliador do Maranhão praticou o jornalismo, pautando os acontecimentos de sua época, ou foi um impresso divulgador de ofícios, decretos e infâmias contra os adversários? Contribuiremos para clarear essa questão na última parte deste capítulo, que tratará da análise de con-teúdo de vinte e três edições do referido jornal.

Conforme Serra (2001, p.23), o impresso pioneiro foi “oficial e noticioso” e “ocupou-se de assuntos próprios a seu destino”. O jornal, com formato de folha de papel almaço comum, trazia notícias do exterior e anúncios de caráter oficial. Ao comentar sobre seu conteúdo editorial, Serra (2001, p. 47) contextualiza-o com a fundação do partido conspí-cuo, contrário às causas portuguesas. Esse acontecimento tem sua origem na proclamação da Constituição Portuguesa de 1820 e as ideias liberali-zantes que inspiraram a Revolução do Porto: “Esse partido era acrimo-niosamente atacado no Maranhão, no periódico governista O Concilia-dor, que publicava correspondências pessoais, cheias de alusões aos vultos mais salientes da oposição” (SERRA, 2001, p. 47).

Sobre os funcionários de O Conciliador, Achilles (1976, p. 92), ao abordar a imprensa e independência brasileira, ressalta Costa Soares e o padre Ferreira Tezinho, “rixentos e inimigos da causa nacional”, bem como o fato inédito de o jornal pioneiro ter circulado regularmente entre abril de 1821 e julho de 1823, ora manuscrito e em seguida impresso, fato singular na história da imprensa brasileira.

O primeiro crime de imprensa, conhecido no Jornalismo mara-nhense, recaiu sobre padre Tezinho, por abuso de liberdade de imprensa, cujo autor do processo, Caetano José da Cunha, acusava o jornalista de atacar sua reputação através do impresso. O acusado foi indiciado no arti-go 16, referente ao ataque a particulares pelas folhas noticiosas ( JORGE, 987, p. 34), no entanto, o réu foi absolvido pelos jurados. Esse processo pode evidenciar que os redatores de O Conciliador não tinham proteção da administração governamental para encobrir seus atos, o que sinaliza a ausência de um forte controle sobre a elaboração do jornal. Os vínculos com o governo da Província não impediam que seus jornalistas fossem questionados, processados ou tampouco acobertados por leis sancionadas pelo governo, autor das mesmas e fundador do próprio jornal.

Sobre a circulação do jornal, Lopes (1959, p. 27) discorda de Joa-quim Serra ao afirmar que a tiragem manuscrita não chegava a centenas

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de pessoas em razão de o periódico ser escrito a bico de pena, situação que mudará com a chegada da primeira tipografia ao território maranhense. O pesquisador observa que foram ao todo 210 edições, sendo que os nú-meros manuscritos que haviam circulado entre abril e novembro de 1821 foram substituídos por outros impressos na Tipografia Maranhense. So-bre esse item, Jorge (1987, p. 28) acredita que a tiragem seria em média de 300 jornais por edição, para um jornal bissemanal, um número mais mo-desto, porém adequado a condições históricas da época quanto à quanti-dade de leitores e assinantes.

Um episódio, na história do jornal, é frisado por Lopes (1959, p.29): a representação dos 65 cidadãos contra o governador Bernardo da Silveira, que estaria pagando com dinheiro dos cofres públicos o redator Antônio Marques da Costa Soares, acusado de elogiar excessivamente o chefe do Poder Executivo e caluniar os adversários dele através da folha oficial. No entanto, citando César Marques, o autor afirma que nunca se soube o grau de veracidade dessas informações, afiançadas por pessoas ilustres da cidade. Com o conteúdo editorial sob suspeita, Lopes (1959, p.29) arremata: “A leitura de alguns números do órgão fundado pelo Ma-rechal Bernardo da Silveira dissipou do nosso espírito dúvidas quanto à facciosidade dessa folha”.

À exceção da obra Os primeiros passos da imprensa no Maranhão ( JORGE, 1987), que faz uma pesquisa qualitativa sobre a história dos primeiros periódicos com circulação, entre 1821 e 1841, em São Luís, as demais referências fazem menção à fundação do primeiro periódico sem alcançar de forma concreta o papel que exerceu na história da imprensa maranhense.

O autor informa que o periódico trazia notícias nacionais, notícias estrangeiras, transcrição de decretos, correspondências, avisos, entre ou-tras matérias. As fontes de notícias do impresso seriam jornais franceses, alemães, ingleses e austríacos. Os avisos remetiam à compra e venda de produtos, procura de escravos, apelos de credores, embora o autor não se aprofunde nessas questões ( JORGE, 1987, p. 28). Sobre o conteúdo ideológico nos diz:

O vocabulário usado nas matérias de colorido doutrinário abusava de palavras e expressões como: erudição, libera-lidade, patriotismo, protesto, coação, honra, liberdade, reputação, lei, rebeldia, constituição, monarquia, despo-tismo, maquiavelismo, infame, sórdido, trapaças, sistema,

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nação, discurso, embusteiro (...) A utilização de palavras e expressões consideradas grosseiras era comum: furibun-do, sandeo, súcio, degenerados bonifácios, tupinambás corcundas, corcundas caninos... (...) De estilo retórico, com uso exagerado de palavras de puro nacionalismo ( JORGE, 1987, p.30-31).

As críticas às notícias e aos funcionários do jornal O Conciliador do Maranhão surgiram em um momento político com clara divisão de forças, por isso ora um grupo atacava-o, no caso os partidários da inde-pendência, ora era elogiado pela agremiação política do governador Ber-nardo da Silveira, defensora do pacto colonial, por isso devem ser anali-sadas debaixo de reflexões sobre uma cena histórica prestes a entrar em ebulição. Rizzini (1988, p. 424) afirma que o calor dos acontecimentos políticos norteou a linha editorial do periódico:

Irrompida em fevereiro de 22, com a substituição de Silveira por uma Junta Provisória encabeçada pelo ultra-retrógrado bispo Frei Joaquim de N. S. de Nazaré, a in-sanável divergência entre reinóis e nativos, atirou-se O Conciliador contra os últimos, braviamente aplaudido pelos primeiros, cuja influência era na província tão pode-rosa quanto, no Pará, a dos seus patrícios. E no Maranhão nem havia lugar para um Patroni ou um cônego Baptis-ta Campos. Ficaram indefesos os brasileiros aos botes da gazeta dos ‘marinheiros’ ou ‘puças’. O título, Conciliador (...) não foi correspondido pelo contexto daquele escrito incendiário.

JORNALISMO POLÍTICO EM O CONCILIADOR DO MARANHÃO

O fato de ser um jornal vinculado ao Governo da Província fez o jornal O Conciliador abordar principalmente em suas matérias o tema política, cate-goria encontrada em 67% das matérias jornalísticas, como mostram os quadros abaixo. São textos situados ao longo do jornal, não havendo preferência de edi-tados na página inicial, já que 75% dos textos não estavam na capa. Outro fator que pode ter colaborado para pautar foram os desdobramentos da Revolução do Porto, que trouxe a liberdade de imprensa, levou a mudança do monarca português à Lisboa, ocasionando o juramento à Constituição e os embates vi-sando ao destino do Reino Português.

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O segundo tema mais encontrado nas páginas do impresso são no-tícias relacionadas ao cotidiano de São Luís e outras cidades, tais como Al-cântara, Caxias, Itapecuru-Mirim, Guimarães, Pastos Bons, entre outras, bem como as localizadas em outras províncias, como Pará, Pernambuco e Bahia. São registros da chegada de nomes ilustres das decisões das casas legislativas municipais, dos despachos de juiz em suas comarcas e outros temas relacionados à administração pública. Abaixo uma mensagem, da edição 71, 26 de março de 1821, sobre a chegada no Porto de um navio com o governador da província do Pará:

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Ante-hontem fundeou neste Porto a Curveta de Guerra Princeza Real, que sahio de Pernambuco e se dirige ao Pará, conduzindo s seu bordo o Illustríssimo, e Excelen-tíssimo Governador das Armadas daquela Província.Sua Excelllencia foi hontem cumprimentado a bordo por parte da Excellentíssima Junta Provisória, e do Excellen-tissimo Governador das Armas desta Província.

As notícias do interior da província constavam nas edições, como esta de Caxias, a respeito de comunicação às Cortes, da edição 83, de 27 de abril de 1822. Como a mensagem anterior, implicitamente reforça o poder instalado e os grupos que os representam:

A Câmara da villa de Aldeias Altas, da Província da Ma-ranhão, dirige as suas felicitações às Cortes, e o firme protesto de adesão à causa da Nação; o mesmo fez o ex-governador do ceará, Francisco Alberto Rubim. Vários moradores da Villa do Mearim, da Província do Mara-nhão, dirigem a sua felicitação às Cortes, e pedem a con-servação do seu governador Bernardo da Silveira Pinto.

A cobertura política, ampliada com a publicação das atas das reuniões do Soberano Congresso, fez com que saíssem até as críticas ao governador. Na mesma edição, referente a uma das sessões, destacou elo-gios ao governador provincial, e no texto seguinte, seguiu a informação da existência de uma representação contra o dirigente em Lisboa (edição 62, 13 de fevereiro de 1822). Seria um lapso do redator ou não havia um controle sobre o conteúdo do jornal? Segue trecho da notícia:

À Comissão da Constituição foi remettida huma repre-sentação de vários Cidadãos da Cidade de São Luiz do Maranhão, queixando-se do Governador daquella Pro-víncia, e das mais authoridades della, a mesma commisao se mandou outra representação de outros Cidadãos, da mesma província, sobre vários objetos. A commissao de Ultramar passou huma representação do Coronel do 1º Regimento de Milícias de São Luís do Maranhão...

No tocante ao jornalismo político feito por O Conciliador, os

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eventos e acontecimentos conectados ao governo foram divulgados ao lado da cobertura das Cortes, desde o nº 38 (21 de novembro de 1821), que informou a população sobre o andamento dos trabalhos da casa e o processo decisório, marcado por embates e discordância. Vejamos notícia da sessão 299º, de 11 de fevereiro de 1822, publicada dois meses depois na edição nº 83:

(...) O sr. Rodrigo Ferreira, relator da Commissão dos Poderes, lêo o parecer da Comissão pela qual se legalisa-rao os diplomas dos srs. Deputados pela Província de São Paulo.O sr. Presidente declarou continuar a discussão sobre a indicação do Sr. B. Carneiro, para que no Ultramar hou-vesse huma authoridade, ou atribuição annexa a alguma das Authoridades, alli estabelecidas que tivesse a mesma alçada que El Rei tinha para poder suspender os magis-trados.(...) o Sr. Freire se oppoz fortemente a estas idéias, com o fundamento de que não podia delegar a o poder Real, por ser privado d’ El Rei, assim como era de declarar guerra, e fazer a paz (...) O Sr. Trigoso largamente falou em abono desta mesma opinião mostrando as irregularidades que produzirão huma tal adopção, ponderando muitas outras razões ...

Parece-nos que tal abertura à divulgação de eventos políticos, não somente restrita ao poder local ou atos burocráticos no Maranhão, mostrou a intenção dos redatores de levar mais informações aos assinan-tes e leitores, divulgando concomitantemente o funcionamento da estru-tura política que comandava o destino da nação.

DA NOTÍCIA À OPINIÃO

A maior parte do material jornalístico não tinha a assinatura do autor, com exceção dos artigos, de autoria de militares ou magistrados. Apenas 30,4%, como apontam os quadros a seguir, levaram o nome dos colaboradores e redatores. Como jornal ligado ao governo da Província do Maranhão, O Conciliador tinha como principais fontes de suas maté-rias – opinativas ou informativas – as autoridades do governo, sendo ou-

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tras vozes mais citadas os militares e os parlamentares, fato que confirma o volume de matérias ligadas à vida política do território e da Metrópole.

A população ou segmentos dela se manifestavam em suas pági-nas na seção de cartas ou correspondências, na qual faziam solicitações, cumprimentavam os jornalistas, defendiam sua honra contra inimigos ou detratores. Em outras seções, como a de política, não tinham vez nem

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outros grupos como religiosos e comerciantes. Essa característica sinaliza a valorização de personagens do poder central e neste aspecto pesa a questão do jornal pioneiro ser umbilicalmente ligado ao governo e à Coroa Portuguesa.

A natureza do trabalho jornalístico de O Conciliador vem na análise dos gêneros jornalísticos mais adotados. Aponta-se na pesquisa que o jornalismo praticado tinha a predominância do padrão informa-tivo, presente em 56,3% das 112 matérias estudadas, contra 43,7% de textos essencialmente opinativos. Foram comuns as notas, notícias e reportagens. No quesito opinativo, as cartas, artigos e comentários es-tiveram entre os mais frequentes. Ressaltamos que não havia o uso de ilustrações ou desenhos, que vão ser incorporados pela imprensa apenas no final do século XIX.

A partir dos pressupostos teóricos do Jornalismo que a investi-gação tem como referenciais, podemos afirmar que o impresso pratica o jornalismo informativo-opinativo, em que se mesclam a opção política do jornal – visível em textos oficiais e de colaboradores – e as informa-ções sobre acontecimentos cotidianos, representados a partir da pers-pectiva do veículo impresso. O jornal não pode ser visto então como partidário, não estava agregado a agremiações nem tampouco se via como tal, não se intitulava um jornal governista. Suas ligações se faziam com um governo, que abrigou liberais e conservadores, conflito sobre o qual irá se posiciona e informar seus leitores sobre os derradeiros fatos, consumados com a independência brasileira.

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UM JORNAL DA CIDADE E DA PROVÍNCIA

As notícias referentes a São Luís disputavam espaço com as de Portugal, esse embate ficou claro no decorrer da investigação en-tre as matérias com suas procedências identificadas. Sobre a capital foram encontradas 17 matérias, correspondo a 15% do total. Sobre a Metrópole existem 18 textos, ou seja, 16% do total. Essa caracte-rística evidencia a busca pelo jornal de uma identidade local, com noticiário voltado para informações relativas ao meio no qual está inserido, perfil que será característico dos jornais vindouros, que constroem vínculos com as comunidades e evitam espelhar uma re-alidade distante dos seus leitores. Uma dessas notícias, de 3 de maio de 1821, edição nº 6, diz respeito à existência de um teatro em São Luís e abaixo transcrevemos parte dela:

O Theatro desta Cidade he hum dos mais notáveis estabelecimentos, que provao a sua progressiva civili-zasao: a construcção do grande edifício, e transporte, da primitiva Companhia de Artistas, devesse a libera-lidade dos comerciantes, agricultores e outras muitas pessoas principaes do Paiz, que voluntariamente con-correrão para o principio e conservação deste espe-táculo tão agradável como proveitoso (...) Huma das mais efficases providencias do Exmo Bernardo da Sil-veira Pinto, quando chegou a esta Província, foi a de restaurar, e apoiallo, procurando-lhe assignatura nu-merosa, e prestando-se sempre a tudo quanto podia conservallo de hum modo digno da espectação (sic) de huma Cidade tão culta, como opulenta.

Essa informação casa-se com a do item Vinculação Geográ-fica, que traz o Maranhão também em primeiro lugar – o território como um todo, com 25%, e São Luís em segundo lugar, com 18,7% das referências, contra 12,5%, de Portugal e do Brasil. Há um equilí-brio quanto às notícias sobre a Metrópole e o Brasil e discreta cober-tura sobre fatos ocorridos no interior da Província, a ele reportados somente 5,3% das matérias. Vejamos os resultados:

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Ao contrário do que se possa imaginar, a independência do Brasil não foi um tema corriqueiro nas páginas de O Conciliador. Como mos-tra o índice 84% das matérias não se referirem ao assunto, que pôde ser observado ao longo de vários meses da existência do periódico. A cober-tura sobre esse fato ocorreu quando a Província e o Brasil achavam-se no redemoinho das agitações políticas, sendo o quadro de 14,3% das notícias desfavoráveis concentrados nos últimos meses de 1822 e início de 1823, quando a Província do Maranhão aderiu à causa após envio de tropas e pressão do novo regime. Foi um jornal oficial que chegou a noticiar a ade-são à emancipação brasileira, o que pode parecer um contrassenso para um veículo oficial, mas que seguiu um preceito jornalístico: não brigou com esse acontecimento.

DO PRIMEIRO EDITORIAL À ÚLTIMA REPORTAGEM

Um jornal nascido na primeira tipografia oficial maranhense, mas o derradeiro impresso de uma província que foi anexada ao território bra-sileiro após 1822. O Conciliador, pelo contrário, não se via enquanto um porta-voz do governo local. Em sua identidade visual, não há referências explícitas ao poder governamental ou ao jugo português. Não constam endereços para contato ou informações semelhantes, apresenta apenas o nome “Tipografia Nacional Maranhense”, ou então, simplesmente “Ma-ranhão na Tipografia Nacional”, ao final de sua última página.

O fato de ser único a circular, embora surgiram outros posterior-mente, o fez não assumir o vínculo com o governo – não precisava pontu-ar sua presença – ou pretendia cumprir outro papel? O seu primeiro edi-torial, de 15 de abril de 1821, da edição nº 01, indica algumas reflexões:

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Eis o fim a que se dirige o trabalho dos Historiadores, porem como estes, ainda mesmo sendo contemporâneos dos fatos, não podem presenciallos em todo o território da Nação, cuja Historia escrevem carece de documentos mais verídicos do que os de huma tradição, quase sempre suspeita; e eis hum dos fins úteis dos jornaes. Outro ainda mais essencial he o de servirem de mediadores entre os Governos e os Povos, máxime nas extraordinárias crises, que sempre originarão as alterações no Systema Político de hum Estado. Por hum jornal conhecem os Povos os passos, que os Governos seguem para regêllos, e estes se instruem sobre os sentimentos com que aquelles olhão as suas deliberações. Que evidente e inegável utilidade para hum Paiz onde são admissíveis as idéias liberais.

As autorreferências, além do primeiro editorial, não foram co-

muns. Seus redatores dedicaram-se então a divulgar notícias e providen-ciar a cobertura dos fatos relacionados à província, sem contudo voltar a questionar com frequência sobre o papel do jornal na sociedade ludovi-cense. Outras indicações voltaram a aparecer em suplementos, que não tinham frequência correta. Na edição de 23 de janeiro de 1822, em um artigo, o autor afirma que o jornal é visto como o “primeiro relator dos factos históricos acontecidos nesta Província nos dias de sua união à Cau-sa Nacional”.

O diálogo com os leitores era costumeiro e se fazia por meio da divulgação da listas de assinantes, da impressão dos primeiros manuscri-tos e da venda desses exemplares; notas sobre outros jornais, como A Pal-matória, também editado pela tipografia oficial, a partir de 17 de março de 1822; a legislação sobre a liberdade de imprensa; informe da entrega nas residências, lembretes a respeito do fim das assinaturas, bem como as dificuldades em imprimir por completo as edições iniciais. Outro meio comum para obter retorno dos leitores era a seção de Cartas ou Corres-pondência, como a que vem a seguir, edição 107, de 20 de julho de 1822, assinada por “Hum Anonymo”:

Srs. Redactores do Conciliador,Rogo a vossas mercês o obsequio de admittirem

n’huma pagina do seu saudável periódico, com a maior

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brevidade, as perguntas que tenho a honra de enviar a Vv Mm feitas pelo despótico Juiz Ordinário da Villa de Santa Maria do Icatu, Antonio Francisco de Aguiar Lapamberg, ao Bacharel Zadico, a fim de que o respeitável público ve-nha no conhecimento das opressões, que soffrem estes Povos por taes juizes. Deos guarde a Vv. Mm por muitos annos como deseja seu attento venerando e criado. Mara-nhão, 13 de julho de 1822.

Falaciosas ou não, as cartas são indícios desse contato com o pú-blico e nesse processo os leitores faziam pedidos ao jornal, como este a seguir, de 28 de agosto de 1822, nº118:

Pela primeira vez tomo a liberdade de encomodar a V... exigindo o obsequio de pelo seu periódico fazer públi-co que fugira desta Villa, há cinco para seus mezes hum escravo crioulo, baixo, grosso, e bem figurado, de idade pouco mais de vinte e cincos anos (...) Rogo por isso pu-blicar esta fuga s fim de que sendo prezo, ser entregue (...) favor este pelo qual serei sumamente grato...

Sobre a imprensa brasileira, O Conciliador, em função da sua

opção política, em alguns momentos entrou em rota de colisão com o pri-meiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense, de Hipólito da Costa. Na edição de 28 de dezembro de 1821, fez críticas à cobertura do impresso sobre a Regeneração Portuguesa:

vimos que a boa fé do seu Redactor, o ilustre decano dos nossos jornalistas em Londres, esteve a ponto de ser sur-preza poh um correspondente do Maranhão, que parece ter querido sugerir-lhe noções pouco exatas da Gloriosa Regeneração Política desta Província.

Mais de um ano depois, em dezembro de 1822, com a indepen-dência brasileira a passos largos, os redatores de O Conciliador divergem de Hipólito da Costa duramente. O jornal assume prontamente a defesa da causa portuguesa:

Entre os muitos absurdos que conthem o Correio Brazi-liense de outubro próximo, está o seguinte apontoado de

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absurdos, que copiamos, para que os nossos eleitores se divirtão. Para se pôr em marca a Constituição pela parte que pertence aos Povos, não achamos que seja necessário nem grandes mysterios, nem extraordinários conheci-mentos; basta que o Governo deixe de olhar o bom senso do povo, e não lhe embarasse a faculdade de raciocinar, como fazia o governo passado

Em um texto de um colaborador, em 14 de novembro de 1822, cujo artigo aborda um despacho da Câmara da Villa de Parnahiba, há uma crítica mais contundente sobre o fim do pacto colonial: “Vivas à Indepen-dência do Brasil, e à sua União com Portugal, he hum absurdo político, e huma contradição manifesta!...”.

Meses depois o jornal sairia de circulação, sendo substituído por uma gazeta do novo governo, a Gazeta Extraordinária do Governo Pro-visório, que circulou entre 1823 e 1824. Não houve tempo hábil para repensar as atribuições do jornal frente a todas as mudanças que se avizi-nhavam. Com 27 meses de existência, de abril de 1821 a julho de 1823, deixou de circular, não havendo mais registros do periódico. No nº 210, de 16 de julho do mesmo ano, permaneceram três matérias sobre os últi-mos momentos do periódico com a notícia da adesão à independência:

Constando ao Governo desta Província que as Tropas dissidentes do Itapecuru desciao com o projecto de pas-sar a esta Ilha; e que o partido pela independente havia augmentado nesta cidade, pela demora das Tropas espe-radas de Portugal, mudança do systema político daquel-le Reyno, e falta de carne motivada pela occupação dos portos onde se embarcava o gado; pareceo que se deveria adoptar a bem da salvação publica desta Província o meio de huma suspenção d’ armas com as Tropas dissidentes (...) Effetuando-se o Conselho julgou-se que pelos expos-tos princípios devia ser prestada adherencia à causa da independência do Brasil, ficando porem provisoriamen-te conservada a Constituição, que athe agora tem regido esta Província. A falta de tempo para se resolverem outros objetos fez addiar o Conselho, para amanhã...

O jornal O Conciliador transformou-se no primeiro documento da história da imprensa maranhense e do seu jornalismo, além de tornar-se referência sobre as mudanças políticas ocorridas no território e no Brasil.

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Cumpriu com seu papel, inaugurou o jornalismo informativo-opinativo em São Luís ao mapear os registros diários mais relevantes e ao defender uma bandeira política, sina dos jornais da sua época histórica e dos que viriam depois, com a mesma postura, porém em outros tempos e sob ou-tros referenciais. O jornal entrou para a história, como antecipou em seu primeiro editorial.

CONCLUSÕES

A imprensa ter bandeiras não é um fato novo. O jornal O Conci-liador do Maranhão, nascido no rastro da liberdade de prelo, do liberalis-mo e às portas da emancipação do Brasil, tinha sua causa, o domínio por-tuguês. O rótulo de jornal oficial cabe-lhe, pois foi mantido pelo erário público e defensor das ideias do grupo dominante, mas nem por isso seu desempenho na história da imprensa do Maranhão pode ser desprezado. Pelo contrário, mostrou que a natureza do jornalismo abre-lhe a possibi-lidade de abraçar causas. Em suas páginas, emerge a opinião ao lado da informação, que se entremeiam nas leituras do jornal sobre o cotidiano da cidade.

Os referenciais teórico-metodológicos – estranhos à comunicação ou mesmo as leituras enviesadas acerca da atividade jornalística – dimi-nuíram o papel de precursor de O Conciliador, descartado pela sua opção política, de não ter lutado pela independência brasileira, mas de ter apoia-do as ideias da Coroa Portuguesa. O fato de possuir opinião e trazer esse aspecto à tona em suas páginas sinalizou sua natureza jornalística, na qual se mesclaram os gêneros informativo e opinativo. Informação e opinião caminham juntas desde as primeiras gazetas, ora lado a lado sem delimi-tações, ora compartimentadas a partir do século XX, com o surgimento de editorias, cadernos e seções, um dos sintomas da industrialização dos jornais.

Partindo dessa premissa, podemos afirmar que O Conciliador contribuiu para a sociedade de sua época ao noticiar os principais acon-tecimentos e emitir sua opinião ou de outrem sobre eles, ao propiciar ex-pressivo espaço para as ideias debatidas nas Cortes, ao publicar cartas de assinantes e leitores, ao fornecer serviços sobre preços de gêneros e horá-rios de embarcações à população, ao dispor de anúncios (administrativos e avulsos) sobre o comércio e atos burocráticos.

O estranhamento causado pelo fato de o jornal defender um ide-

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ário nos parece um indicador do desconhecimento acerca da atividade jornalística, ou seja, a sociedade não está compreendendo o fenômeno jornalístico em sua totalidade e vê a adesão das folhas a propostas políticas como um ponto negativo. Um jornal de uma facção política – nos limites de um veículo institucional – colabora para o debate público ao transpor para as ruas as suas ideias, não é um corpo fechado e anômalo. Com a evolução da imprensa, os jornais modernos se propuseram a ir mais longe: possuem sua opinião e instigaram os outros segmentos a fazê-lo em suas páginas.

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Thaísa Bueno

A AUTORA

Jornalista, com mestrado em Lingüística e Semiótica pela UFMS, é professora assistente do curso de Jornalismo da UFMA – Imperatriz. Integra os grupos de pesquisa em Ciberjornalismo, na UFMS; e GMídia, na UFMA. Em Imperatriz coordena um estudo voltado para o mapeamento e uso das redes sociais e ferramentas de interação nos veículos da imprensa regional.

Semiótica como ferramenta de estudo do jornalismo contemporâneo

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A imprensa hoje é alvo de muitas críticas, algumas mais, outras menos generalistas. Com falhas ou não, os meios de comunicação ain-da são, muitas vezes, a única opção de acesso a certas informações que a grande massa da população tem ao seu alcance. Com tamanha responsa-bilidade, o jornalismo precisa aprimorar suas ferramentas de transmissão e estabelecer discussões sobre a qualidade de seu trabalho. Do ponto de vista tecnológico isso tem sido feito. Um bom exemplo são os sites de no-tícia, que deram às informações um alcance em proporções inimagináveis em outros suportes, como o impresso por exemplo. Também não se pode dizer que a imprensa não tenha recebido atenção justa dos pesquisadores de diversas áreas.

E o dilema começa justamente neste segundo segmento: o estudo dos produtos midiáticos, principalmente na escolha de uma linha teórica que seja eficaz e bem aceita, particularmente, nas escolas de Comunica-ção. Não bastasse que, em geral, os cursos de Jornalismo tenham um enfo-que maior nas questões práticas da profissão, ainda há muito preconceito em relação a algumas linhas teóricas existentes em outros campos do co-nhecimento.

Bastante difundida nos estudos linguísticos, a Semiótica Francesa, por exemplo, tem se mostrado eficaz nos estudos da imprensa. A Semi-ótica é uma teoria que atende a todos os tipos de textos, verbais ou não verbais. Se pensarmos numa linguagem multimídia, por exemplo – uma linguagem recente, particularmente se comparada com a consolidação do que chamamos hoje de Semiótica Greimasiana – ela pode ser perfeita-mente aplicada, ainda que a teoria não tenha sido pensada para um tipo de linguagem como esta.

Infelizmente, há ainda muitos pesquisadores, particularmente na área de Comunicação, que desconhecem a evolução que a teoria sofreu nas últimas décadas e ainda a vinculam aos conceitos estruturalistas de sua formulação.

Em um quadro sobre ‘as escolas teóricas da comunicação’, Ciro Marcondes Filho, por exemplo, em sua obra O es-pelho e a máscara (2002), coloca Greimas em “Semiolo-gia clássica”, cuja ‘filiação filosófica e epistemológica é o estruturalismo’, e o aponta como estudioso do ‘signo e dos sinais’. Hjelmslev, grande inspirador de Greimas, aparece na escola de ‘semiologia contemporânea’ (HERNAN-DES, 2005, p.17).

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Equívocos como esses podem afastar estudos semióticos de objetos midiáticos, já que a difusão confusa de seus conceitos nas Escolas de Co-municação gera desinteresse na escolha do aparato teórico-metodológico, que assim se mostraria insuficiente para sanar certas dúvidas, quando não ineficaz. Além disso, tipos de confusão assim configuram uma grande per-da para o aprimoramento das pesquisas do Jornalismo, já que este não dispõe de uma ferramenta aplicada e sistematizada como a Semiótica em seu arcabouço teórico.

Há bem pouco tempo, teóricos dessa área têm buscado desenvol-ver a Teoria do Jornalismo, tentando desvincular, ou destacar, as particu-laridades do meio, das Teorias da Comunicação, que, apesar dos subsídios mais alicerçados, não se mostraram capazes de resolver todas as questões ligadas à produção de sentido dos produtos jornalísticos, muito mais atre-ladas à intenção de desvendar os modos de produção. Em Teoria do jorna-lismo – identidades brasileiras (2006), José Marques de Melo propõe uma reflexão sobre o fazer jornalístico, mas a sistematização de uma Teoria do Jornalismo, que inclusive busque a criação de uma cadeira nas universida-des, ao lado da Teoria da Comunicação - pré-requisito em qualquer escola da área no País – não apresenta uma ferramenta didático-pedagógica de análise diferente do que já foi feito até hoje, sempre em comunhão com outras áreas do conhecimento.

Um dos métodos mais aceitos ainda hoje para exame neste campo do conhecimento é o chamado estudo em Comunicação Comparada, que funciona como uma dissecação e análise crítico-comparativa entre mídias distintas. A Comunicação Comparada é uma ferramenta importante para os estudos jornalísticos, mas não seria suficientemente eficaz para um es-tudo focado na produção de sentido e não na descrição das diferenças. Não se trata de uma crítica gratuita aos trabalhos comparados, que muito contribuem para os avanços nos estudos sobre o papel dos meios de co-municação de massa, mas de mostrar que uma outra ferramenta, muitas vezes ignorada, pode ser tão ou mais eficiente para desvendar os sentidos que um jornal deixa evidenciar.

Some-se a isso o fato de que a crescente mutação dos fenômenos de comunicação, com o aparecimento de novos suportes e outras linguagens, concede à Semiótica um status diferenciado, justamente por sua capacida-de de abrigar diferentes tipos de objetos e torná-la adaptável. Além disso, a Semiótica Francesa é adequada para os estudos midiáticos porque não entende a comunicação como uma mera transferência de saberes, mas de-

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fende a ideia de intencionalidade do sujeito. Na Semiótica, a recepção da mensagem não se resume a um saber,

a uma simples codificação de dados, mas a uma ação que tem o intuito de levar a outra. Na Teoria da Informação, por exemplo, desde os primeiros estudos, e mesmo depois com a revisão dos conceitos feita por Roman Jakobson, pensava-se a comunicação como um modelo linear e meca-nicista, a ideia de um emissor – uma mensagem – e um receptor. Para a Semiótica Francesa, a comunicação é um sistema interacional. Nessa mudança, pressupõem-se tanto a codificação quanto a decodificação de conhecimentos. E, nesse entendimento do ato de comunicar, a Semiótica dá um passo adiante, porque oferece uma forma crítica de ver a produção dos meios de comunicação de massa. Não que veja a relação com o leitor como se este fosse uma marionete, uma caixa vazia, mas que toda a forma de comunicar, seja individual ou com grande alcance, é sempre uma ten-tativa de convencimento.

Enfim, neste artigo pretende-se resgatar um pouco das mudanças que a semiótica francesa fez ao longo do tempo e mostrar como ela pode ser bem aplicada nos estudo do Jornalismo contemporâneo, particular-mente no estudo do jornalismo na web, um modelo que tem pouco mais de uma década e que sofre mudanças constantes. O objetivo é, de uma maneira modesta, mostrar como a Semiótica Francesa pode contribuir para o estudo da mídia e, por meio de exemplos voltados para o jornalis-mo da internet, mostrar como é possível mudar a perspectiva dos estudos midiáticos semiotizando alguns conceitos do jornalismo.

MAIS DE MEIO SÉCULO...

Se partirmos da publicação, em 1966, do livro Semântica estru-tural, de A. J. Greimas, como o nascimento oficial da teoria, a Semiótica completaria, hoje, 45 anos. Obviamente o embrião desta epistemologia é bem anterior e remete aos estudos de Ferdinand de Saussure, Louis Hjel-mslev, Vladimir Propp, Roman Jakobson e Claude Lévi-Strauss. Uma das grandes influências de Greimas foi, sem dúvida, Saussure, que na busca da cientificidade dos estudos da língua permitiu, mais tarde, a postulação dos fundamentos da teoria greimasiana. É claro que desde os postulados de Saussure muita coisa mudou e foi questionada, mas é no entendimento de seu projeto linguístico que é possível compreender melhor a ferramen-ta atual e ampliar sua aplicação.

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Saussure, a quem são atribuídos os alicerces da Linguística Moder-na, tinha como objeto de estudo a língua e por suas dicotomias propiciou o aparecimento do que hoje chamamos de Estruturalismo, que por muito tempo foi a base da Semiologia – conceito anterior ao de Semiótica. As propostas de Saussure podem ser resumidas em quatro dicotomias, ou seja, pares de conceitos que garantem definição a partir da relação com o outro – relações são também o alicerce sobre o qual se apoiam os concei-tos-chave da teoria de Greimas.

E o que seria esse conceito de relações tão importante na busca do sentido? Saussure usou a metáfora do jogo de xadrez para explicitar seu argumento. Conforme ele, num tabuleiro de xadrez a substituição da peça representada pelo Cavalo não agrega valor pelo material de que é feito, mas pela posição que ocupa em relação às demais peças, seja o Rei, o Bispo, a Torre etc. Se substituo umas peças de madeira por outras de marfim, a troca é indiferente para o sistema, mas se diminuo ou aumento o número de peças, essa troca afeta profundamente a ‘gramática’ do jogo (SAUSSURE, 1972, p. 43).

O exemplo, como bem lembra Hernandes (2004), já bastante des-gastado entre os estudiosos do discurso, é retomado aqui porque, ainda que extremamente esclarecedor nos exames de objetos midiáticos, é prati-camente desconhecido entre os estudantes de Comunicação. No entanto, sua metáfora aparece neste artigo como a base do estudo de uma mídia na rede. Não se pode pensar seus elementos, ou como Saussure chamava “termos-objetos”, isolados. O sentido da mídia online, o que ela diz e o ethos que cria de si mesma está no conjunto das relações entre os termos que a completam.

As relações de Saussure tratavam das dicotomias Língua x Fala – uma social e outra individual -, Sincronia x Diacronia, Significante x Sig-nificado e Paradigma x Sintagma. Ainda que o primeiro postulado tenha permitido, depois, outras formulações como a divisão Esquema/Uso, de Hjelmslev, e Código/Mensagem, de Jakobson, para o estudo do Jornalis-mo online as três últimas duplas saussurianas evidenciam uma influência maior nos estudos semióticos.

A dicotomia Sincronia x Diacronia, por exemplo, garantiu ao pesquisador a possibilidade de um recorte do objeto de pesquisa que lhe afiança cientificidade, porque o isola. Pensemos no jornalismo da web, por exemplo. A Internet é um suporte recente. O primeiro jornal bra-sileiro a arriscar-se efetivamente no mundo cibernético foi o Jornal do

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Brasil, em 1995. Em estado embrionário, a mídia da Rede Mundial ainda divide opiniões de pesquisadores quanto à definição de uma linguagem própria, uma vez que não explorou todas as ferramentas disponíveis no hipertexto; fora isso, faz parte da própria característica do suporte a agi-lidade e a mobilidade. Um estudo diacrônico, neste caso, correria o risco de se perder. No sincronismo é possível estudar, mesmo uma mídia que prima por uma apuração meteórica, e garantir um resultado com o rigor da ciência porque não vai se ater às transformações através dos tempos, mas ao mesmo tempo.

A segunda dicotomia, Significante x Significado, é provavelmente a mais importante contribuição de Saussure à Semiótica atual, pois é a partir dela que se tem a definição de Signo, que depois será revista por Hjelmslev, e empregada nos conceito de Greimas como um conjunto que agrega um Plano de Conteúdo e um Plano de Expressão. De maneira modesta, pode-se dizer que signos são formas que permitem assimilar o mundo e apreender a realidade.

A partir desse entendimento, Saussure criou os termos SIGNI-FICANTE (face material) e SIGNIFICADO (conceito). Conforme o autor, a relação entre os dois termos é arbitrária e alcançada por meio das convenções culturais e históricas. Ao postular hoje que a linguagem não deve ser entendida apenas como um signo verbal, é necessário ampliar o conceito de significante para o “veículo do significado”. Essa dilatação é necessária para analisar um jornal na Internet, que embora faça uso do verbal, dispõe de uma linguagem própria, que lhe concede e muda o senti-do. São os chamados textos sincréticos, que em Semiótica vão representar suportes que unem várias linguagens. Para a análise de um texto assim, resumir o significante a uma imagem acústica não basta. No jornal onli-ne temos a Semiótica Sincrética porque, de uma maneira bem resumida, podemos dizer que este recurso midiático usa linguagens variadas para montar seu conteúdo, como linguagem infográfica, fotográfica, tipográ-fica, multimídia etc.

A última dicotomia vai tratar das diferenças entre Paradigma e Sintagma. Na relação sintagmática há uma ordenação linear dos signifi-cantes, o que resulta num entendimento geral e global do seu significa-do; já na relação paradigmática, a combinação é dividia em partes, com um entendimento isolado e independente. No caso do jornalismo, pen-semos na análise global da página como uma relação sintagmática; já a relação paradigmática seria a análise e classificação particular de cada um

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dos componentes. Ou seja, no eixo sintagmático da página do jornal está uma sequência de fotos + texto + infográficos etc. Já os tipos de fotos, os gêneros dos textos e os modelos de infográficos estariam no eixo paradig-mático.

HJELMSLEV E OUTROS

Depois de Saussure, Hjelmslev certamente foi o teórico que mais contribuiu para o desenvolvimento da Semiótica Geral. Muito criticado nos dias de hoje por sua postura extremamente formalista, que desconsi-derava as questões sociais e históricas na produção do sentido nos textos, o linguista dinamarquês permitiu, com suas formulações, a base dos estu-dos semióticos modernos.

Foi em 1943, com seus Prolegômenos a uma Teoria da Linguagem, que ele expôs os princípios básicos de sua doutrina. De tudo que teorizou, alguns pontos foram cruciais para os postulados posteriores de Greimas como, por exemplo, o ponto de vista imanentista de análise, ou seja, a busca de estruturas imutáveis e repetitivas. Até aquele momento, teóricos humanistas negavam as generalizações nos estudos dos fenômenos hu-manos, tidos por eles como singulares e, portanto, impossíveis de serem interpretados, apenas descritos. A partir dessa representação, Hjelmslev propõe o conceito de Sistema, ou seja, qualquer sucessão de estados é um sistema e, portanto, pode ser analisado e descrito por meio de suas rela-ções imutáveis, num universo limitado de repetições. Não que ignorasse as mutações, mas o que ele buscava eram as invariantes. Greimas partiu deste princípio quando formulou o Nível Narrativo de seu simulacro metodológico, o Percurso Gerativo de Sentido. “Greimas estabelece uma generalização arbitrária, mas adequada: uma narrativa é uma transforma-ção” (FIORIN, 2005, p. 05).

Esta noção é pertinente ainda hoje. No estudo de uma mídia regio-nal, por exemplo, a investigação dos elementos imanentes pode ampliar as proposições para estudos de objetos semelhantes em âmbito global. As repetições encontradas na avaliação de uma cobertura on line em um site de Mato Grosso do Sul podem ser as mesmas, em outros casos, em uma outra cobertura em um veículo nacional, quiçá mundial. A generalização, quando não ignora também as particularidades, permite um entendimen-to aprofundado do sentido que tal texto agrega.

Sabe-se que para construir o sentido de um texto, a Semiótica per-

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corre um caminho composto por “camadas”, o chamado Percurso Gerati-vo de Sentido, simulacro metodológico que orienta a análise e parte das estruturas mais elementares (nível Fundamental), para as mais concretas (níveis Narrativo e Discursivo). Nas três etapas o sentido do texto no Pla-no de Conteúdo vai sendo revelado. Atualmente a Semiótica passou a se preocupar também com as significações além do Percurso, ou seja, com o Plano de Expressão, composto, por exemplo, pelo suporte que agrega determinados textos. No caso do jornalismo online, com a significação enunciada pela página que abriga o jornal na Internet. Essa discussão, ainda que recente, já tinha alguns preceitos formulados por Hjelmslev, quando de sua postulação sobre o Conteúdo, Forma e Substância da Ex-pressão.

Outra contribuição importante dos preceitos deste estudioso tra-ta do método classificado de Empírico e Dedutivo. Quando pergunta “é o objeto que determina e afeta a teoria ou é a teoria que afeta e deter-mina o objeto?” (HJELMSLEV, 1975, p.15) faz uma crítica às teorias deterministas e propõe um caminho analítico em que os fundamentos do estudo se tornem adaptáveis a objetos diversos. Esse é o conceito em que se encontra um dos sustentáculos da Semiótica greimasiana, que se deixa construir a cada novo texto, ou seja, como o próprio dinamarquês explica em seus prolegômenos, é, sem dúvida, o objeto que determina a teoria. Some-se a isso o conceito de que a teoria da linguagem tem de ser preditiva: “A predição diz respeito ao sistema (ou língua), a partir do qual se estruturam todos os textos, sejam eles realizados ou teoricamente possíveis, de uma língua, de todas as línguas que existem, que existiram ou que existirão” (HJELMSLEV, 1975, p.19-20). Basta pensar que, ini-cialmente voltada para a análise de narrativas, a Semiótica francesa hoje, por meio do seu entendimento de texto, possibilita a observação crítica de qualquer tipo de objeto, inclusive de imagens.

Se se fosse descrever minuciosamente cada conceito de Hjelmslev adotado pela Semiótica, poder-se-ia estender esse estudo por muitas ou-tras páginas. Para resumir sua importância, resta dizer que, com a amplia-ção do conceito de Significado para Plano de Conteúdo e Significante para Plano de Expressão, alargou-se o leque de objetos a serem estudados e se permitiu, hoje, com eficiência, a análise de um texto sincrético. Ele também criou outras formulações, a de Forma (conceitos possíveis para identificar-se de que maneira específica se trata uma unidade de sentido) e Substância (número amplo de conceitos dados à Forma – são as possibi-

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lidades de Forma). Conceitos estes que a Semiótica adaptou ao estudar a Forma do Conteúdo, como o texto diz o que diz; e o conjunto de relações que permitem a produção do sentido. E como ele defendia: se, ao estu-dar-se a forma, tem-se presente também a substância, ou seja, o sentido já formado, a Semiótica estuda também o que o texto diz.

Outros pensadores estruturalistas também ajudaram a construir a teoria. Não caberia neste artigo citar todos. Para finalizar, vale lembrar que, se a Semiótica ainda hoje utiliza o método estruturalista, que tem como sustentáculo as oposições de Saussure, principalmente nas duas pri-meiras etapas do seu Percurso (níveis Fundamental e Narrativo), hoje traz diferenças marcantes. Enquanto Saussure privilegiava a língua como es-trutura, a Semiótica é uma teoria dos modos de significar e, ainda que não trabalhe com o autor de “carne e osso”, já que entende que a realidade em si é inapreensível, mostra-se uma teoria muito mais dinâmica, agregando a apreensão dos simulacros de realidade por meio do contexto semiótico – diálogo que um texto faz com outros textos.

Ou seja, se seus estudos anteriores, típicos do estruturalismo da década de 60 do século passado, evidenciavam uma preocupação centra-da nas relações mútuas e internas do objeto de análise, hoje não nega sua base, mas vai além. A teoria postula saber sobre o processo de significação, inclusive agregando conceitos exteriores. Por tudo isso, a Semiótica se mostra eficaz na análise de textos jornalísticos e publicitários. O precon-ceito de quem desconhece as mudanças da teoria é que está ultrapassado.

REFERÊNCIAS

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