Comunicação e Prática de Consumo - Em Pespctiva o Funk Ostentação

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  ""#$%& '("& ) '("& ) (*% "+,-% ) $%&,./$%. 0123 421 5 22 65 7898:;7 0123<=  Comunicação e Práticas de Consumo: Em Perspectiva, o Funk Ostentação 1  Andréa Antonacci 2  Mestre pela ESPM Rosilene Moraes Alves Marcelino 3  Docente da ESPM/SP Resumo Movidos pelo episódio veiculado em julho de 2013, pelo programa  A Liga, da Rede Bandeirantes,  pretende mos colocar em perspec tiva o  Funk Ostentação . Para isso, em decorrência de nossa pesquisa documental, delimitamos nossa análise nos protagonistas desta vertente apresentados durante o programa: os MCs Guimê, Bio G3 e Lon.  Nossa proposta é tec er uma análise dos disc ursos desses funkeiro s. Para guiar nossa reflexão, articulamos autores como Barros, Vigotsky, Bakhtin, Orlandi, Martín-Barbero, Lopes, Bourdieu, Sassatelli, Alonso. Palavras-chave:  Comunicação e práticas de consumo, educação, identidade, funk ostentação.  Nossas inquietações para a constituição deste artigo partem de um episódio do programa  A  Liga, da Rede Bandeirantes, exibido em 17 de julho de 2013 4 . No início de sua quarta temporada, o  programa trouxe o Funk Ostentação à discussão; temática que, naquele momento, ganhava repercussão principalmente pela morte de um de seus representantes, o MC Daleste, durante um show. Embora o crime tenha sido o mote da abertura do programa, os apresentadores – Thaíde, Cazé, Rita Batista, China e Mariana Weickert – enveredaram-se para aspectos mobilizados nas letras das canções como o sucesso, o luxo, o poder e o dinheiro. “Letras que falam sem pudor de se 1  Trabalho apresent ado no Grupo de Trabalho 07 - Comunicaçã o, Educação e Consumo, do 3º Encont ro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 10 e 11 de outubro de 2013. 2  Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM/SP (2012). Jornalista (UNESP, 1993). E-mail: [email protected] . 3  Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM/SP (2011). Pós-graduada em Comunicação com o Mercado (ESPM, 2006) e em Ciências do Consumo Aplicadas (ESPM, 2008). Jornalista (FISP, 2004). Leciona na ESPM, no curso de graduação em Comunicação Social. E-mail : [email protected] . 4  Disponível em http://www.youtube.com/ watch?v=BJ4bg_4vuAU . Acesso em 9 de agosto de 2013.

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Comunicação e Prática de Consumo - Em Pespctiva o Funk Ostentação

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  • PPGCOM ESPM ESPM SO PAULO COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013).

    Comunicao e Prticas de Consumo: Em Perspectiva, o Funk Ostentao1

    Andra Antonacci2

    Mestre pela ESPM

    Rosilene Moraes Alves Marcelino3

    Docente da ESPM/SP

    Resumo Movidos pelo episdio veiculado em julho de 2013, pelo programa A Liga, da Rede Bandeirantes, pretendemos colocar em perspectiva o Funk Ostentao. Para isso, em decorrncia de nossa pesquisa documental, delimitamos nossa anlise nos protagonistas desta vertente apresentados durante o programa: os MCs Guim, Bio G3 e Lon. Nossa proposta tecer uma anlise dos discursos desses funkeiros. Para guiar nossa reflexo, articulamos autores como Barros, Vigotsky, Bakhtin, Orlandi, Martn-Barbero, Lopes, Bourdieu, Sassatelli, Alonso.

    Palavras-chave: Comunicao e prticas de consumo, educao, identidade, funk ostentao.

    Nossas inquietaes para a constituio deste artigo partem de um episdio do programa A

    Liga, da Rede Bandeirantes, exibido em 17 de julho de 20134. No incio de sua quarta temporada, o

    programa trouxe o Funk Ostentao discusso; temtica que, naquele momento, ganhava

    repercusso principalmente pela morte de um de seus representantes, o MC Daleste, durante um

    show. Embora o crime tenha sido o mote da abertura do programa, os apresentadores Thade,

    Caz, Rita Batista, China e Mariana Weickert enveredaram-se para aspectos mobilizados nas

    letras das canes como o sucesso, o luxo, o poder e o dinheiro. Letras que falam sem pudor de se

    1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 07 - Comunicao, Educao e Consumo, do 3 Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 10 e 11 de outubro de 2013. 2 Mestre em Comunicao e Prticas de Consumo pela ESPM/SP (2012). Jornalista (UNESP, 1993). E-mail: [email protected]. 3 Mestre em Comunicao e Prticas de Consumo pela ESPM/SP (2011). Ps-graduada em Comunicao com o Mercado (ESPM, 2006) e em Cincias do Consumo Aplicadas (ESPM, 2008). Jornalista (FISP, 2004). Leciona na ESPM, no curso de graduao em Comunicao Social. E-mail: [email protected]. 4 Disponvel em http://www.youtube.com/watch?v=BJ4bg_4vuAU. Acesso em 9 de agosto de 2013.

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    ter um carro, quilos de ouro e muita grana para gastar, diz Caz. Para muitos, melhor do que ter

    ostentar, complementa Mariana. O episdio tambm traz depoimentos de alguns dos expoentes

    desta vertente do funk: Guim, Bio G3 e Lon.

    Guim, funkeiro de 20 anos nascido na periferia de Osasco (SP), comeou a cantgar aos 16

    e, atualmente, o seu cach oscila entre R$25.000,00 e R$30.000,00 por show. Seus quatro anos de

    carreira encontram-se cristalizados orgulha-se em dizer e mostrar, como evidencia A Liga suas

    duas casas, dois apartamentos, dois carros, uma moto e seus largos cordes de ouro. O MC Bio G3

    paulistano da Cidade Tirandentes, zona Leste de So Paulo, iniciou sua carreira no rap e enveredou

    para o funk ostentao. Como um dos pioneiros deste novo gnero musical, hoje, alm de compor e

    protagonizar shows, produz e empresaria mais de trinta MCs. O MC Lon, menor de idade, repudia

    composies que trazem palavres. Prefere, afirma, estimular o consumo e o bem ao cantar. Para

    este jovem, os bens devem ser adquiridos de maneira lcita para que possam ser ostentados: vai (...)

    jogar bola, estudar, fazer uma faculdade pra ter um emprego bom no futuro, pra ele poder ostentar.

    Neste artigo, centraremo-nos nas vozes dos apresentadores e destes trs jovens paulistanos

    presentes no programa A Liga. Mas, tambm, julgamos oportuna uma contextualizao acerca deste

    gnero musical. O funk ostentao, podemos afirmar, um fenmeno paulistano caracterizado pela

    incorporao de hits de exaltao riqueza e curtio. Esta vertente do ritmo a primeira criada

    fora do Rio de Janeiro deixa de lado o funk romntico, o consciente, o pornogrfico e o proibido.

    procura do ponto de ruptura dentro do movimento, a Revista poca afirma-nos que at 2011:

    o funk paulista praticamente se limitava aos funkeiros da Baixada Santista. A principal inspirao eram os cariocas MC Frank e Menor do Chapa, astros do proibido, gnero que faz apologia das armas e do crime. Em junho de 2011, o MC paulistano Boy do Charme lanou no YouTube a cano Mgane, referncia marca de um carro. Imagina eu de Mgane (...) invadindo os bailes/No vai ter pra ningum, diz a letra. Os 3 milhes de acessos no YouTube chamaram a ateno de outros funkeiros de So Paulo, e a ostentao converteu-se em regra (POCA, 2012).

    O funk ostentao, revela-nos a Revista poca, tambm se evidencia pela opo de seus

    artistas de no lanarem CDs. Esses funkeiros tornam-se conhecidos, principalmente, atravs do

    lanamento de clipes, via YouTube, com significativo apelo ao luxo. Os shows alcanam outros

    estados, mas, no Rio de Janeiro, at o momento, as fronteiras apresentam-se impermeveis.

    Como Renato Ortiz (1998)5 coloca, devemos levar em considerao o ritmo histrico:

    rupturas dificilmente podem ser datadas: h implicao de elementos anteriores que do

    configurao particular ordem sociocultural vigente. Por este motivo, ainda que aqui trazido de

    5 ORTIZ, Renato. Cultura e Modernidade. So Paulo: Brasiliense, 1998.

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    maneira breve, a contribuio do relato do jornalista Silvio Essinger, no tpico a seguir, nos

    salutar.

    Funk Lei: a Cultura por Decreto

    Pelo olhar de Essinger (2005)6, em sua obra Batido: uma histria do funk, notamos um

    movimento atrelado msica negra norte-americana, que, entre os anos 1960 e 1970, embalava os

    bailes do subrbio carioca. Entre as personalidades daquele incipiente gnero musical brasileiro

    destacava-se o DJ Malboro, autor do primeiro funk carioca, o Mel da mulher feia7, lanado ao

    final dos anos 1980. A questo da violncia tambm est inserida na constituio dessa vertente.

    Evidncias deste aspecto so os chamados bailes de lado A e lado B, de briga, de corredor e

    do bicho que chegaram s manchetes. violncia do funk ocorreu ainda uma espcie de

    demonizao do gnero quando passou a ser associado aos arrastes ocorridos, em 1992, em

    Ipanema. Essinger fala-nos de um contraponto: a evangelizao de atores desta cena musical, como

    donos de equipes, DJs e funkeiros. Em 1994, jovens de classes mdias e altas passam a frequentar

    as comunidades quando os bailes pacficos despontam e consolidam-se no Chapu Mangueira (no

    Leme), Dona Marta (em Botafogo), Cantagalo (entre Copacabana e Ipanema), Tabajara (em

    Copacabana), Rocinha (entre a Gvea e o Leblon), Prazeres (entre Santa Teresa e o Cosme Velho),

    Cerro Cor (no Cosme Velho) e Nova Cintra (entre Laranjeiras e Santa Teresa). Entrecruzaram-se

    morro e asfalto. O movimento tambm fez despontar o funk melody evidenciado pelo de sucesso

    artistas como Latino, Claudinho e Buchecha. Mas os anos 1990 foram marcados, sobretudo, por

    uma presena negativa do gnero na mdia: violncia, ligao (suposta ou no) com o trfico,

    interdio de bailes e priso de donos de equipe. Contudo, nos anos 2000, este cenrio transforma-

    se novamente: atores globais, jogadores de futebol e boa parte da juventude dourada da Zona Sul

    para danar a msica dos MCs de comunidades8.

    Em setembro de 2009, o projeto de lei 1671/2009, de Marcelo Freixo e Wagner Montes,

    tornou-se, na gesto do governador Srgio Cabral, na Lei n 5543, na qual o funk definido como

    movimento cultural e musical de carter popular 9. Neste ponto nos questionamos: esta Lei

    compreende um respeito ao movimento ou estamos diante de uma oportunidade poltica?

    6 ESSINGER, Silvio. Batido: uma histria do funk. Rio de Janeiro e So Paulo: Record, 2005. Apud PALOMBINI, Carlos. 7 Videoclipe disponvel em: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=biCMZk9oc6U#at=25. Acesso: agosto de 2013. 8 PALOMBINI, Carlos. Em pauta. V. 17. N. 29. Julho a Dezembro de 2006, p. 139-142. 9 Disponvel em http://gov-rj.jusbrasil.com.br/legislacao/819271/lei-5543-09. Acesso: ago. 2013.

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    Sem a pretenso de encerrar este debate em nosso artigo, reforamos ainda que

    brevemente algumas etapas constituintes do funk brasileiro. Deste modo, podemos compreender

    as condies em que se constitui esta vertente sobre a qual discorremos, o Funk Ostentao.

    Educao pela comunicao memrias e culturas presentes no Funk Ostentao

    Entrevendo as relaes entre comunicao, educao e consumo, os principais

    questionamentos que colocamos so: quais so as narrativas presentes neste universo do Funk

    Ostentao? De que maneira elas esto relacionadas com a memria, a cultura e, portanto, com o

    processo cognitivo de crianas e jovens? Nossa proposta, assim, analisar os discursos miditicos

    no caso, os presentes no programa A liga e tambm a narrativa de jovens que fazem parte do

    universo musical do Funk Ostentao.

    Com tal escolha, nosso olhar est fora dos muros da escola. Mas, ao mesmo tempo, insere-se

    no universo educativo. Afinal, todo processo cognitivo carregado da cultura na qual ele est

    inserido. Vale ressaltar que todo aprendizado ocorre a partir de um recorte da realidade,

    proporcionado pela relao de quem aprende com outras pessoas, pela interao com o contexto

    scio-histrico-cultural e com instrumentos e signos disponibilizados na sociedade. Os instrumentos

    englobam ferramentas (uma bssola para se guiar, uma vara para pescar, uma enxada para trabalhar

    a terra, lpis e caderno para escrever, entre outros), e os signos podem ser entendidos como algo que

    representa o mundo.

    A linguagem (escrita, visual, sonora, gestual etc.) um dos principais exemplos de signos.

    Os instrumentos e os signos estabelecem uma relao mediadora com a realidade, na medida em

    que so construes humanas para representar o real. Em diversos textos (VYGOTSKY; LURIA, 1996, 2007; VYGOTSKY, 1994, 1995 [1931]), dois tipos de mediadores foram postos em pauta: os instrumentos condutores e potencializadores da influncia humana sobre os objetos e os signos meios auxiliares para a realizao de operaes mentais, proporcionando ao sujeito uma regulao da prpria conduta e de condutas alheias (VYGOTSKY, 1996 [1927]) (BARROS, 2012, p. 135).10 11 12

    10 BARROS, Joo Paulo Pereira. Constituio de sentidos e subjetividades: aproximaes entre Vygotsky e Bakhtin. ECOS Estudos contemporneos da subjetividade , vol. 1, n. 2, Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2012. 11 O artigo de Joo Paulo Pereira Barros faz referncia aos seguintes textos: Vigostki, Lev; LURIA, Alexander. Estudos sobre a histria do comportament: o macaco, o primitivo e a criana. Porto Alegre: Artmed, 1996. ________. El instrumento y el signo em el desarrollo del nino. Madri. Fundacin Infancia e Aprendizage, 2007. VYGOTSKY, Lev. Formao Social da Mente. So Paulo: Martins Fontes, 1994. ________. Obras Escogidas, Tomo III [1931]. Madri: Visor, 1995. ________. O significado histrico da crise da psicologia [1927]. Teoria e Mtodo em Psicologia. So Paulo:

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    Nosso interesse especial em Vigotski se d essencialmente pela relao da linguagem com a

    cognio e, num sentido mais amplo, com a historicidade. O aprendizado humano carregado de

    construes histricas e aqui enxergamos um paralelo tambm com Mikhail Bakhtin. Lembramos

    o papel ideolgico da linguagem, tratado por Bakthin: O centro organizador de toda enunciao, de

    toda expresso, no interior, mas exterior: est situado no meio social que envolve o

    indivduo(1999, p. 121).13 Assim como em Vygotsky, no pensamento de Bakhtin tambm ganharam relevo o carter social dos signos e a sua relevante condio de matria-prima da conscincia. Em sua formulao a esse respeito, Bakhtin (2002, p.35) afirmou que a conscincia seria um produto do signo, logo, da interao social, sendo, portanto, um fato scio-ideolgico. (BARROS, 2012, p. 137).14 15

    A similaridade terica apresenta-se ainda no pensamento de que cada indivduo possui um

    estatuto social da memria (PCHEUX, 1990, p. 285-94)16, espcie de conjunto de costumes

    sociais guardado na memria e no sistematizado. Esse estatuto social carrega consigo informaes

    comuns ao coletivo, que permitem a interpretao ou a produo de um discurso de acordo com os

    signos utilizados pela sociedade. Tais caractersticas guardadas na memria so, da mesma forma,

    buscadas para construir um discurso. Cada formulao discursiva carrega outras j vistas, de

    alguma forma presentes no novo discurso. Como bem colocou Orlandi, o interdiscurso todo o

    conjunto de formulaes feitas e j esquecidas que determinam o que dizemos (ORLANDI, 2010,

    p. 33).17 nesse interdiscurso que todos os indivduos apoiam-se a fim de encontrar as referncias

    para o dizer.

    Voltando a Vigotski e ao papel de mediador do signo no processo cognitivo, encontramos o

    espao da historicidade na formao do entendimento, bem como na construo de significados

    para o que se aprende. Vigotski sugere: o pensamento no somente mediado externamente pelos

    Martins Fontes, 1996. 12 Para Bakhtin, o signo tem sempre uma representao material. Logo, signo e ferramenta no se separam. 13 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do mtodo sociolgico na cinciada linguagem. 13. ed. So Paulo: Hucitec, 1999. 14 BARROS, Joo Paulo Pereira. Constituio de sentidos e subjetividades: aproximaes entre Vygotsky e Bakhtin. ECOS Estudos contemporneos da subjetividade , vol. 1, n. 2, Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2012. 15 O artigo de Joo Paulo Pereira Barros faz referncia : BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: Op. cit. [1999]. 16 O conceito de estatuto social da memria abordado em: PCHEUX, Michel. Lecture et mmoire: projet de recherche. In: ________. Linquietude du discour s. Textos apresentados e escolhidos por Denise Maldidier. Paris: Cendres, 1990. 17 ORLANDI, Eni Puccinelli. Anlise de discurso : princpios e procedimentos. 9. ed. Campinas: Pontes, 2010.

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    signos. Ele mediado internamente pelos significados18 (1987, p. 282).19 A reside a dimenso

    histrica, social e cultural do processo cognitivo. Lembramos que para o autor h uma relao entre

    o que interno e subjetivo e o que externo (social), e que a mediao entre essas duas instncias

    realizada pelo signo. Portanto, todo processo cognitivo baseia-se numa mediao que carrega em si

    o contexto sociocultural. Vale ressaltar que necessrio entender por sociocultural o papel das

    relaes sociais como catalisadoras de pensamentos, ideias, modos de agir.

    Eis aqui um elemento que nos d o gancho para trazermos Jess Martn-Barbero ao centro

    de nossas reflexes a questo identitria. Em seu constante aprimoramento para um modelo

    terico metodolgico para os estudos de comunicao, este autor mantm seu olhar de cartgrafo na

    busca por algo que no se prope definitivo, mas que reflita a realidade da sociedade e da cultura na

    contemporaneidade. Em Ofcio de cartgrafo, instiga: Mas quem disse que a cartografia s pode

    representar fronteiras e no construir imagens das relaes e dos entrelaamentos, dos caminhos em

    fuga e dos labirintos? (2004, p. 12).20 nesse movimento de investigador em busca pelos

    caminhos constantemente reconfigurados que nasce uma nova verso de seu mapa.

    Dessa vez, a ateno est voltada para a transformao do tempo e do espao, o intenso

    fluxo de imagem e de informao e as migraes populacionais. As mudanas ocorridas na cultura

    da atualidade principalmente as transformaes tecnolgicas e globais deram lugar a novos

    eixos (tempo, espao, migraes populacionais e fluxos) e as mediaes relevantes so Tecnicidade,

    Ritualidade, Cognitividade e Identidade.21 A ttulo de delimitao para este artigo, concentramos

    nossa anlise em Identidade (eixos tempo e migraes culturais) e Cognitividade (eixos migraes

    culturais e espaos).

    Em relao Identidade, inferimos que a circulao de informao, fortalecida pelos meios

    digitais, e a facilidade e rapidez com que se cruza o mundo e se toma conhecimento de culturas

    distintas fornecem um paralelo com as migraes populacionais citadas por Martn-Barbero

    (2009).22 A associao com a ideia de mobilidade e de uma viagem real e simblica, como bem

    18 Traduo nossa. No original: Thought is not only mediated externally by signs. It is mediated internally by meanings. 19 VIGOTSKY, Lev. Thinking and Speech: the Collected Works of L. S. Vigotski (V I. Problems of General Psychology). Nova York: Plenum, 1987. 20 MARTN-BARBERO, Jess. Ofcio de cartgrafo: travessias latino-americanas da comunicao na cultura. So Paulo: Loyola, 2004, p. 12. 21 _______________________. As formas mestias da mdia. Pesquisa Fapesp Online, So Paulo, n. 163, 2009a. Disponvel em: . Acesso em: jan. 2013; e Uma aventura epistemolgica. Entrevista concedida Maria Immacolata Vassallo de Lopes. Matrizes , v. 2, n. 2, p. 143-62, 2009b. 22 Idem.

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    coloca Lopes (2010, p. 9) 23, parece-nos a chave da interpretao para a construo identitria e o

    papel das mdias nesse processo.

    No caso do Funk da Ostentao, o consumo o eixo central, lugar de espao e

    pertencimento. A prpria formao identitria ocorre por este elemento. Ele o passaporte para a

    Ostentao. Se o universo de origem de seus integrantes a periferia, ostentar o discurso para

    afirmar o poder aquisitivo. No h meio termo. Os carros so carssimos, os cordes de ouro podem

    valer R$ 30.000. um discurso que insiste em afirmar: a distino se d pela exibio de elementos

    que confirmam o alto poder aquisitivo. Estes elementos os bens encontrados nos hits do funk

    ostentao alam este status depois de revestirem-se, como nos fala Bourdieu (2011)24, de uma

    camada interior do sentido do significado: afinal, o espectador desprovido de cdigo especfico

    sente-se submerso, afogado, diante do que lhe parece ser um caos de sons e de ritmos, de cores e

    linhas, sem tom nem som (p.10).

    Os discursos presentes no Funk Ostentao

    No incio do programa A Liga, os apresentadores perfilados revezam a leitura do texto de

    abertura. Mariana Weickert d o gancho: Sucesso, luxo, poder e dinheiro e Caz emenda: No

    faz muito tempo isso era exclusividade de poucos, mas hoje a histria outra. O discurso implcito

    revela possibilidade de ascenso para muitos, em especial para a emergente classe C brasileira. Vale

    ressaltar que a lgica de distribuio adotada pelos produtores utiliza a internet como multiplicador,

    revertendo em cerca de 20 milhes de visualizaes no YouTube para os clipes de astros do Funk

    Ostentao25. Ainda no Vgula, do UOL, KondZilla um dos artistas do movimento d sua

    explicao: O lance da tecnologia que hoje, sem sombra de dvidas, est muito mais acessvel para todo mundo, tanto para galera que tem uma condio financeira melhor, quanto para galera da comunidade. Tem o celular, que toca uma msica, que funciona como uma mdia, a parada da internet. Todo mundo hoje tem computador em casa. Ento, quer dizer, a tecnologia veio barateando este mercado, meio que democratizou este mercado, todo mundo comeou a ter acesso. A galera comeou a gravar as msicas em casa, fazer home estdio, comprar uma cmera que filma em HD, por um preo muito mais acessvel.Ento, foi um conjunto de

    23 LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Ficc_ o televisiva e identidade cultural da nac_ o. Alceu , Rio de Janeiro, v. 10, n. 20, jan.-jun. 2010. Disponvel em: . Acesso em: ago. 2013. 24 BOURDIEU, Pierre. A distino: a crtica social do julgamento. Porto Alegre, RS: Zouk, 2011. 25 VRGULA UOL, Reis do funk ostentao, MC Guim e KondZilla creditam sucesso internet. Disponvel em: . 28 de fev. de 2013. Acesso em: ago. 2013.

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    coisas. Junto com essa molecada nova, esta garotada a que consome muito a internet. Ento, a internet foi o principal combustvel (VRGULA UOL, 2013).26

    Para complementar, MC Guim explica:

    E esse sucesso que a msica faz no YouTube, ela comea a ser muito tocada. A galera comea a tirar muito o som do YouTube, baixa pelo 4Shared, pega aquele udio ali da internet a coloca em pendrive e sai no carro. Ela comea a ser muito isso, muito a rua mesmo (IDEM). 27

    No entanto, a democratizao e o acesso propiciados pela tecnologia ainda resvalam em uma

    lgica de mercado. Sucesso e riqueza so para poucos. Da mesma forma que so reduzidas as

    oportunidades de fama e dinheiro para jogadores de futebol, modelos, atores/atrizes, dentre outras

    profisses vislumbradas por jovens. Outro discurso implcito na frase dita por Caz em A Liga: No

    Brasil, jovens de classes sociais baixas (inclusive a classe C em ascenso) s conquistam sucesso,

    riqueza e fama se escolherem carreiras miditicas ou ento, relacionadas ao emergente mercado da

    internet.

    O discurso da trajetria dos sonhos continua com outro artista MC Lon. Da Baixada

    Santista, antes do virar dolo funk cortava cabelo e recebia uma renda assim super baixa... uns R$

    100 por dia. Agora eu ganho acho que uns R$ 30 mil por semana quando eu ganho pouco,

    entendeu? Mas a narrativa do programa destaca o esforo desses jovens. Empresrio de alguns

    desses artistas, MC Bio conta que um deles fez nove shows na noite anterior, cada um com meia

    hora de durao. Um pouco depois, o programa d destaque ao cansao de MC Lon: Quarto show

    da noite, quase cinco horas da manh e todo mundo esperando o MC Lon... Ele t passando mal,

    narra Rita, uma das apresentadoras, que continua: Nesse momento MC Lon ele t ali meio que

    passando mal o pessoal da produo dele t ali, o ritmo frentico a gente sabe disso ele tem uma

    mdia por noite de quatro a cinco shows e hoje ele teve essa indisposio.

    O papel do consumo como condicionante para um lugar de destaque na sociedade surge em

    diversos momentos no programa. Um deles se d no seguinte dilogo entre Rita e MC Lon. Ela

    pergunta se tudo o que ele canta ele tem. Na resposta, Loan diz: Eu no comecei na ostentao, eu

    comecei cantando funk, o funk de periferia, o funk verdadeiro, pra mim poder com esse funk a

    ganhar um dinheiro e poder cair para o ritmo da ostentao na verdade. Temos condio de ter e

    temos, entendeu?

    26 Idem. 27 Op. Cit.

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    O ato de consumir permite que se compartilhe essa experincia e que sejam criadas

    identidades. Se vivemos numa sociedade que garante amplo espao ao consumo, seja ele de bens

    tangveis ou intangveis, temos o consumo como parte integrante de nossa cultura. Roberta

    Sassatelli nos d uma colocao interessante sobre essa questo.

    Nossa sociedade se caracteriza por um extraordinrio desenvolvimento da cultura material. Se por cultura entendemos o conjunto de prticas significativas mediante as quais os atores sociais se orientam no mundo, por cultura material se pretende dar a entender o conjunto de objetos, sejam eles artefatos ou no, dotados de sentido por tais prticas e que contribuem, por sua vez, para dar sentido s prprias prticas. Este um conceito que vai alm da distino entre material/simblico e enfatiza que os objetos fazem parte de um sistema aberto de significados, o que requer que sejam ajustados pelas atividades dos indivduos28 (2012, p. 17).29

    A preponderncia das prticas de consumo no processo de reproduo social tambm

    elemento de reflexo para Alonso (2006, p. 104-105).30 Ele refuta tanto as anlises que colocam o

    consumidor como alienado e dominado quanto aquelas que garantem a ele soberania total. Para esse

    autor, perguntar sobre as formas de consumo de um objeto perguntar pelas vivncias temporais e

    espaciais de tal consumo. Perguntar pela estratgia faz-lo, assim, pelo processo de estruturao e

    pela maneira que um ator vive sua posio na estrutura social.

    Consideraes finais

    Neste artigo partimos de um produto cultural da mdia o programa A Liga e de sua

    discusso sobre o Funk Ostentao, vertente paulistana do gnero, que traz em seus hits o luxo. Ao

    problematizamos as relaes entre comunicao, educao e consumo a partir desse recorte de

    nossa realidade, nos deparamos com os jovens funkeiros paulistanos e como, por meio da msica,

    catalisam e (re)significam os processos sociais nos quais esto(amos) imersos. Em cada refro

    apreendemos cdigos e significados caractersticos de nosso tempo. Assistimos possibilidade de

    construo, desconstruo e reconstruo de identidades a partir do consumo. Os bens, as letras de

    funk nos comprovam, encontram-se dotados e atravessados de significados, partilhados.

    28 SASSATELLI, Roberta. Consumo, cultura y sociedade . Buenos Aires: Amorrortu, 2012. 29 Traduo nossa. No original: Nuestra sociedad se caracteriza por un extraordinario desarrollo de la cultura material. Si por cultura se entiende el conjunto de prcticas significativas mediante las cuales los actores sociais se orientan en el mundo, por cultura material se pretende dar a entender el conjunto de objetos, sean artefactos o no, dotados de sentido por tales prcticas y que contribuyen, a su vez, a dar sentido a las prpias prcticas. Se trata de un concepto que supera la distincin material/simblico y hace hincapi en que los objetos forman parte de un sistema de significados abiertos, el cual requiere que sea puesto a punto por la actividad de los sujetos. 30 ALONSO, Luis Enrique. La era del consumo . Madri: Siglo XXI, 2006.

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    No estamos diante de um fenmeno deduzido da hegemonia. Ao contrrio. O contexto

    sociocultural apresentado por esses jovens mostram-nos a sua capacidade de resistncia, adaptao

    e modificao diante da cultura hegemnica. No fossem suas canes, recorrentemente

    atravessadas por crticas apressadas e moralistas, saberamos da realidade desses jovens?

    Saberamos a sua perspectiva diante do cotidiano que os atravessa? Saberamos como resistem, no

    acreditam? Saberamos os seus sonhos?

    Prosseguimos com outro aspecto identificado que no podemos deixar de lado. O avano

    tecnolgico e as plataformas que da depreendem-se, como o YouTube utilizada exausto pelos

    funkeiros paulistanos (e outros), tem papel significativo na instaurao de uma metstase desse

    movimento, dando a ele, por assim dizer, corpo transclassista e nacional. A residem, em certa

    medida, desdobramentos do acesso ao consumo de mdias pelas massas. O fenmeno, insistimos,

    complexo. Temos o consumo produtivo e a produo consumidora. A dialtica apresenta-se como

    inerente ao processo e as demarcaes de papis, tnues.

    A narrativa de jovens que fazem parte do universo musical do Funk Ostentao descortina-

    nos uma gama, de tantas outras representaes de grupo existentes, que, como Gramsci nos diz

    matem entre si, relaes dinmicas e horizontais. Estamos diante de um infindvel nmero de

    discursos. Cada qual, competindo pelo direito de significar. Disputam entre si pela cristalizao de

    valores, como nos diz Baccega (2011)31, nos sujeitos.

    Nossa reflexo ratifica que comunicao, prticas de consumo, mdia, identidade, cidadania

    e relaes sociais encontram-se entrelaados e dinmicos na contemporaneidade. Como nos diz

    Caz, um dos apresentadores do programa A Liga, voc consome, voc algum, voc um

    cidado.

    Referncias ALONSO, Luis Enrique. La era del consumo. Madri: Siglo XXI, 2006. BACCEGA, Maria A. Comunicao/educao e a construo de nova varivel histrica. In: CITELLI, Adlson O. COSTA, Maria C. C. (Orgs.) Educomunicao: construindo uma nova rea de conhecimento. So Paulo: Paulinas, 2011. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do mtodo sociolgico na cinciada linguagem. 13. ed. So Paulo: Hucitec, 1999. BARROS, Joo Paulo Pereira. Constituio de sentidos e subjetividades: aproximaes entre Vygotsky e Bakhtin. BOURDIEU, Pierre. A distino: a crtica social do julgamento. Porto Alegre, RS: Zouk, 2011. Disponvel em http://gov-rj.jusbrasil.com.br/legislacao/819271/lei-5543-09. Acesso: ago. 2013. 31 BACCEGA, Maria A. Comunicao/educao e a construo de nova varivel histrica. In: CITELLI, Adlson O. COSTA, Maria C. C. (Orgs.) Educomunicao: construindo uma nova rea de conhecimento. So Paulo: Paulinas, 2011.

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