Compêndio de análise institucional e outras correntes

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10 Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática Gregorio F. Baremblitt 5ª.ed. SUMÁRIO 5 INTRODUÇÃO.............. 11 CAPÍTULO I: O movimento institucionalista, a auto-análise e a autogestão..............13 CAPÍTULO II: Sociedades e instituições..............25 CAPÍTULO III: As histórias..............37 CAPÍTULO IV: O desejo e outros conceitos no institucionalismo..............53 CAPÍTULO V: As tendências mais conhecidas do institucionalismo..............71 CAPÍTULO VI: Roteiro para uma intervenção institucional padrão..............90 CAPÍTULO VII: O institucionalismo na atualidade..............108 GLOSSÁRIO..............133 APÊNDICE..............174 POST-SCRIPTUM..............195 BIBLIOGRAFIA BÁSICA..............205 BIBLIOGRAFIA DE CONSULTA..............207

Transcript of Compêndio de análise institucional e outras correntes

10

Compêndio de análise institucional e outras

correntes: teoria e prática

Gregorio F. Baremblitt

5ª.ed.

SUMÁRIO 5

INTRODUÇÃO.............. 11

CAPÍTULO I: O movimento institucionalista, a auto-análise e a

autogestão..............13

CAPÍTULO II: Sociedades e instituições..............25

CAPÍTULO III: As histórias..............37

CAPÍTULO IV: O desejo e outros conceitos no institucionalismo..............53

CAPÍTULO V: As tendências mais conhecidas do institucionalismo..............71

CAPÍTULO VI: Roteiro para uma intervenção institucional padrão..............90

CAPÍTULO VII: O institucionalismo na atualidade..............108

GLOSSÁRIO..............133

APÊNDICE..............174

POST-SCRIPTUM..............195

BIBLIOGRAFIA BÁSICA..............205

BIBLIOGRAFIA DE CONSULTA..............207

11

INTRODUÇÃO

Este livro corresponde à versão escrita de um curso proferido em

Belo Horizonte no decorrer de 1990, organizado pelo Movimento

Instituinte de Minas Gerais. Curso que, por sua vez, foi requerido

para atender ao crescente interesse pelo Movimento

Institucionalista ou Instituinte no Brasil e facilitar o acesso aos textos

dos fundadores das diferentes correntes. Os seis primeiros

capítulos correspondem às seis aulas que compuseram o curso,

enquanto o último foi escrito como artigo independente, ainda

inédito.

O Movimento Institucionalista é um conjunto heterogêneo,

heterológico e polimorfo de orientações, entre as quais é possível

se encontrar pelo menos uma característica comum: sua aspiração

a deflagrar, apoiar e aperfeiçoar os processos auto-ana líticos e

autogestivos dos coletivos sociais.

Essa vocação libertária, o estatuto epistemológico e jurídico

absolutamente singular e a infinita variedade de tendências que

compõem o Movimento tornam extremamente difíceis a tarefa de

ensiná-lo. Se se deseja ser coerente com os valores do Movimento,

sua Pedagogia exige uma originalidade da qual já existem muitas

tentativas, mas que, ao mesmo tempo, ainda está para ser

produzida.

Este curso, proferido com uma metodologia tradicional, tem

apenas o propósito de aproximar os leitores das finalidades e

recursos mais conhecidos e do panorama atual do Institucionalismo.

Mais informativo que formativo, foi inspira do pelo desejo de

estender e facilitar um saber e um fazer com plexo e arriscado,

mas, no meu entender, importantíssimo para o povo brasileiro.

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Apesar da superficialidade e rapidez com que os densos

temas são apresentados, acredito que este livro seja estimulante,

discretamente esclarecedor e ainda minimamente instrumental para

os futuros institucionalistas. Para quem decidir continuar, ou,

sejamos realistas, começar verdadeiramente sua formação nesta

fascinante proposta, a bibliografia final, integrada predo

minantemente por textos em português e castelhano encontráveis

no Brasil, proverá boa parte da diretriz indispensável para tal fim.

Entre as escolas não-incluídas neste volume devido à sua

proposta introdutória, devo destacar as correntes latino-americanas

de Pichón-Riéver, Bleger, Ulloa, Malfe, Bauleo, Kaminsky,

Pavlovsky, De Brasi, Matrajt, Scherzer e tantos outros aos quais me

proponho a destinar, em algum momento, um livro especial.

13

Capítulo I

O MOVIMENTO INSTITUINTE, A AUTOANÁLISE E A

AUTOGESTÃO.

No início devemos esclarecer que esse livro não terá o nível que alguns

esperariam, pois se procura apresentar uma exposição de nível médio, para

ser entendida pelo maior número possível de pessoas.

Vamos tratar do chamado Movimento Institucionalista ou Instituinte que,

como o nome aproximativamente indica, é um conjunto de escolas, um leque

de tendências. Não existe nenhuma escola ou tendência que possa dizer que

encarna plenamente o ideário do Movimento Instituinte. Contudo, pode-se

encontrar em diversas dessas escolas algumas características em comum. E é

a essas características em comum que eu gostaria de referir-me agora, da

maneira mais simples e mais didática possível. Em capítulos sucessivos,

teremos ocasião de complicar as coisas... Agora, a intenção é,

predominantemente, simplificá-las.

Entre as características presentes em todas as tendências do

Movimento Instituinte, há algumas que são relativamente fáceis de colocar. Eu

diria que existe o que se chama de "ideais máximos" do Movimento. Podemos

chamar a isto também de propósitos mais importantes, os objetivos mais

ambiciosos dessas escolas. Os mesmos podem ser enunciados através de

duas palavras aparentemente simples, mas que são como veremos depois,

muito complexas.

As diferentes escolas do Movimento Instituinte se propõem a propiciar,

apoiar e deflagrar nas comunidades, nos coletivos e conjuntos de pessoas

processos de autoanálise e de autogestão. O que significam essas palavras?

Depois, compreenderemos com mais detalhes que os processos de

interação humana, os processos de funcionamento social, têm sido sempre

muito complexos. Mas em nossa civilização chamada industrial, capitalista ou

tecnológica, a complexidade da vida social atingiu seu máximo expoente em

toda a história da humanidade. Se compararmos, por exemplo, uma

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organização social dita "primitiva", ou uma organização imperial, despótica, ou

uma medieval com a nossa sociedade moderna, o grau de complexidade, de

diversidade que as sociedades modernas atingem é infinitamente superior ao

daquelas civilizações, apesar delas não serem nada simples. Acontece, então,

que nossa época, nossa civilização, além de se caracterizar por uma grande

diversidade, uma grande complicação interna, caracteriza-se também por, de

fato, ter produzido uma soma de saberes que propiciou nesses últimos

duzentos anos, uma "evolução" maior do que a humanidade havia conseguido

em dois mil anos; ou seja, houve um processo de produção de conhecimento e

de aplicação do mesmo muito intenso.

Esse saber, como ninguém ignora, resultou em aplicações tecnológicas

que aceleraram o chamado "progresso" em igual proporção. E o progresso

trouxe uma grande complexidade. Além desses conhecimentos produzidos

pelas ciências da natureza, ciências formais, aplicações tecnológicas, existem

disciplinas que versam sobre a organização social em si mesma. Ou seja,

nossa civilização tem produzido um saber acerca de seu próprio funcionamento

como objeto de estudo e tem gerado profissionais, intelectuais, experts que são

os conhecedores dessa estrutura e do processo dessa sociedade em si. Esses

conhecedores têm-se colocado, em geral, a serviço das entidades e das forças

que são dominantes em nossa sociedade. Por exemplo, a serviço daquela

instituição que representa o máximo da concentração de poder, o extremo de

concentração de controle e de hegemonia sobre a sociedade, que é o Estado.

Além disso, por outro lado, já dentro da sociedade civil, esses experts têm-se

colocado a serviço das grandes entidades proprietárias da riqueza, do poder,

do saber e do prestígio, que são as organizações corporativas, as empresas

nacionais e multinacionais etc. Essa situação, em que os "sábios", os

conhecedores da estrutura e do processo da vida social estão

predominantemente a serviço do Estado e das empresas, tem tido como

consequência que os povos – em sentido amplo, a sociedade civil – têm-se

visto despossuídos de um saber que tinham acumulado através de muitos anos

acerca de sua própria vida, de seu próprio funcionamento. Esse saber, criado e

acumulado pelas comunidades sociais durante tantos anos de experiência vital,

a partir do surgimento do saber científico e tecnológico, fica relegado, colocado

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em segundo plano, como se fosse rudimentar e inadequado. Tanto é assim que

temos técnicos que costumam chamá-lo de ideologia, num sentido vago, geral,

visando a qualificá-lo como um falso conhecimento, pobre, infundado ou, no

melhor dos casos, insuficiente. Então, as comunidades de cidadãos têm visto

esse saber subordinado ao saber dos experts. Junto com seu saber, elas têm

perdido o controle sobre suas próprias condições de vida, ficando alheias à

espacidade de gerenciar sua própria existência. Elas dependem, então, quase

incondicionalmente, dos organismos do Estado, empresariais, do saber e de

serviços dos experts. E a quais experts refiro-me? Aos dos ramos produtivos,

primários, secundários e terciários, aos especialistas de produção de bens

materiais, ou seja, comida, vestuário, moradia, transporte: aqueles bens

materiais indispensáveis à sobrevivência. Toda a produção desses bens está

dirigida, gerenciada por "especialistas". Mas noutro plano, refiro-me aos

problemas de saúde, de educação, aos assuntos familiares, aos psicológicos e

subjetivos, em geral; às questões relativas ao lazer, às que atingem a

comunicação de massa, aos assuntos próprios da religião. Cada um desses

campos, cada um dos serviços que se prestam nessas áreas, os bens que se

produzem e administram nesses territórios, ou seja, sua quantidade, sua

qualidade, sua necessidade, sua conveniência, tudo é decidido pelos experts, é

arbitrado por quem se supõe que saiba e conheça sobre o assunto. O mesmo

acontece no plano de administração da justiça, nos tribunais, com os

advogados, despachantes, registros civis, leis: tudo isso feito por experts e

administrado por eles. E o que falar do exercício da força, no sentido literal,

porque todas essas outras entidades também usam da força, senão da força

física, da força da persuasão, da força da sedução, mas o uso da força física

está reservado a organizações como a polícia, as forças armadas, que também

têm seus especialistas, oficiais, delegados, guardas etc. É claro que os experts

conhecem e decidem prevalentemente segundo os interesses das classes,

níveis hierárquicos e grupos dominantes aos quais pertencem parcialmente.

Mas não se deve sempre supor uma intenção deliberada dos técnicos nesse

sentido. Acontece, como veremos que seu saber em si mesmo já está

produzido por instrumentos e gera resultados que privilegiam os interesses e

desejos citados.

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Então, o que acontece?

Há um conceito básico que vamos ver depois, na Análise Institucional e

em outras escolas do Institucionalismo, que se chama demanda. É possível

afirmar que as comunidades ou coletividades têm necessidades básicas

indiscutíveis e universais. Essas necessidades são colocadas diariamente

através de demandas espontâneas, através da exigência de produtos e de

serviços correspondentes. Essa ideia é uma das tantas que vai ser questionada

pelo Institucionalismo, porque ele vai tentar mostrar que em todas as épocas

da história, mas particularmente na nossa, não existem necessidades básicas

"naturais"; não existem demandas "espontâneas", pois em todas e em cada

uma dessas organizações que acabamos de descrever, a noção das

necessidades é produzida, assim como a demanda é modulada; isto é, aquilo

que os povos pensam que todos os membros de uma população e todos os

povos do mundo precisam como "mínimo" não existe. Esse "mínimo" é gerado

em cada sociedade e é diferente para cada segmento da mesma. Mas ainda

dentro do condicionamento histórico, as comunidades que têm alguma noção

vivencial acerca de suas necessidades a perdem, de modo que já não sabem

mais do que precisam e não demandam o que "realmente" aspiram, mas

acham que necessitam daquilo que os experts dizem que elas necessitam e

acham que pedem o que querem e como querem, mas, na verdade, precisam,

querem e pedem o que lhes inculcam que devem necessitar desejar e solicitar.

É, então, muito evidente que nossos coletivos estão, atualmente, nas mãos de

um enorme exército de experts que acumulam o saber que lhes permite fazer

com o que as pessoas achem que precisam e solicitem aquilo que os experts

dizem que precisam e que os grupos e as classes dominantes lhes concedem.

Então, os coletivos têm perdido, tem alienado o saber acerca de sua própria

vida, a noção de suas reais necessidades, de seus desejos, de suas

demandas, de suas limitações e das causas que determinam essas

necessidades e essas limitações. Eles têm perdido um certo grau de

compreensão e o controle sobre que tipos de recursos e formas de

organização devem dispor para colocar e resolver seus problemas. Mal pode

organizar-se para resolver seus problemas se não conseguem saber, com

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precisão, quais são seus verdadeiros problemas e o que se requer para

resolvê-los.

Falei que poderíamos enunciar dois objetivos básicos do

Institucionalismo, um deles seria a autoanálise e o outro a autogestão. Agora já

podemos explicar um pouco melhor em que consistiria o primeiro deles. A

autoanálise consiste em que as comunidades mesmas, como protagonistas de

seus problemas, necessidades, interesses, desejos e demandas, possam

enunciar compreender, adquirir ou readquirir um pensamento e um vocabulário

próprio que lhes permita saber acerca de sua vida, ou seja: não se trata de que

alguém venha de fora ou de cima para dizer-lhes quem são o que podem o que

sabem o que devem pedir e o que podem ou não conseguir. Este processo de

autoanálise das comunidades é simultâneo ao processo de auto-organização,

em que a comunidade se articula, se institucionaliza se organiza para construir

os dispositivos necessários para produzir, ela mesma, ou para conseguir os

recursos de que precisa para a manutenção e o melhoramento de sua vida

sobre a terra. Na medida em que essa organização é consequência e, ao

mesmo tempo, um movimento paralelo com a compreensão dada pela

autoanálise, ela também não é feita de cima para baixo, nem de fora, mas

elaborada no próprio seio heterogêneo do coletivo interessado. Essa

autoanálise e essa autogestão não significam necessariamente que os

coletivos devam prescindir por completo dos experts porque, sem dúvida, com

sua disciplina e seus instrumentos, eles têm acumulada uma quantidade de

conhecimento importante e não inteiramente alienado, não necessariamente

distorcido, ou seja: produtivo. Mas os experts devem submeter seu saber, suas

glórias, seus métodos, suas técnicas, suas inserções sociais como

profissionais a uma profunda crítica que os faça separar, dentro dessas teorias,

métodos e técnicas, dentro dos organismos aos quais pertencem, o que é

produto de sua origem, de sua pertença ao bloco dominante das forças sociais

e o que pode ser útil a uma autoanálise, a uma autogestão, da qual os

segmentos dominados e explorados sejam protagonistas. Para poderem

efetuar essa autocrítica, os experts não podem fazê-lo no seio de suas torres

de marfim, não podem fazê-lo nas academias ou exclusivamente nos

laboratórios experimentais. Eles têm que entrar em contato direto com esses

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coletivos que estão se autoanalisando e autogestionando para incorporar-se a

essas comunidades desde um estatuto diferente daquele que tinham. Esse

estatuto deve resultar de uma crítica das posições, postos, hierarquias que eles

têm dentro dos aparelhos acadêmicos ou jurídico-políticos do Estado, ou ainda

das diretivas das grandes empresas nacionais e multinacionais. Eles têm de

reformular sua condição profissional, seu saber específico. E só conseguirão

reformulá-los numa gestão, num trabalho feito em conjunto com essas

comunidades e na mesma relação de horizontalidade com que qualquer

membro dessa comunidade o faz. Isso permitirá que, eventualmente, os

experts, quando a comunidade conseguir organizar-se, tenham algum lugar

dentro das organizações específicas que a comunidade se deu a si mesmo

para esses fins. Então seu saber, sua capacidade e sua potência produtiva

estarão plenamente integrados ao movimento de autoanálise e autogestão

dessa comunidade. Eles poderão assim reformular, aprendendo e ensinando

seu saber e sua eficiência nessa nova e inédita situação. À parte dessa

reinvenção de sua disciplina, os experts poderão aprender como eles serão

capazes de propiciar outros movimentos autogestões e autoanalíticos quando

forem chamados a participar.

Esta é uma explicação sucinta dos propósitos fundamentais do

Movimento Institucionalista que são sistematicamente compartilhados por todas

as tendências que o integram. Ao mesmo tempo em que são os objetivos

principais das propostas Instituintes, eles são também os próprios meios para

realizá-las. Por isso, é importante que esses dois objetivos e meios sejam não

apenas superficial, mas profundamente conhecidos pelos leitores.

É óbvio que autogestão e autoanálise são dois processos simultâneos e

articulados. Por quê? Porque autoanálise, para as comunidades, significa a

produção de um saber, do conhecimento acerca de seus problemas, de suas

condições de vida, suas necessidades, demandas etc., e também de seus

recursos. Mas até para que a autoanálise seja praticada pelas comunidades,

elas têm que construir um dispositivo no seio do qual essa produção seja

realizável. Elas têm que organizar-se em grupos de discussão, em

assembleias; elas têm que chamar experts aliados para colaborarem; elas têm

que se dar condições para produzir esse saber e para desmistificar o saber

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dominante. Ao mesmo tempo, tudo o que elas descobrirem neste processo de

autoconhecimento só terá uma finalidade: a de auto organizar-se para que

possam operar as forças destinadas a transformar suas condições de

existência, a resolver seus problemas. Mas não pode haver uma organização

sem um saber; não pode haver um saber sem uma organização. São dois

processos diferenciados, mas eles são concomitantes, simultâneos,

articulados.

Costuma-se crer que os processos autogestivos implicam uma falta

completa de denominações, hierarquias, quadros, especificidades etc. Na

realidade, é difícil pensar qualquer processo organizativo que não inclua uma

certa divisão do trabalho e que não implique uma certa hierarquia de decisão,

de deliberação. Esses são funcionamentos inerentes a qualquer processo

produtivo. Deverão, então, existir hierarquias, gerências. Mas a existência de

hierarquia não implica diferença de poder; não equivale a privilégio ou

arbitrariedade na capacidade de decidir. Implica apenas uma certa

especialização em algumas tarefas, porque estes dispositivos estão feitos de

tal maneira que as decisões de fundo são tomadas coletivamente. Em todo

caso, os quadros hierárquicos não são mais que expressão da vontade

consensual. São executores. Mas não são executores do mandato das elites

mediatizado por organismos burocráticos, por correias de transmissão. Na

autogestão os coletivos mesmos deliberam e decidem. Eles têm maneiras

diretas de comunicar as decisões. Existem hierarquias moduladas pela

potência, peculiaridades e capacidade de produzir; mas não há hierarquias de

poder, ou seja, a capacidade de impor a vontade de um sobre o outro.

Contudo, é evidente que o Institucionalismo, tanto quanto os processos

autoanalíticos, são produtores de conhecimentos, e que todo saber envolve,

necessariamente, um poder, e ambos não são homogeneamente distribuídos.

Mas este saber é um saber coletivo, produzido, distribuído e exercitado na vida

coletiva. Na topografia deste saber, existem alguns elementos essenciais que

são compartilhados por todo mundo. Então, quando esse saber compartilhado

é delegado a alguns que se especializam nessa questão, já não é um saber

produzido fora dos interesses e desejos do coletivo, já não é um saber que vai

cair de cima para baixo, de fora para dentro. É já uma delegação, porque foi

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produzido dentro, por alguns especialistas no assunto, em estreita colaboração

com os diretamente interessados nos benefícios que esse saber e suas

aplicações terão, uma vez realizados.

Isso garante que esses especialistas são verdadeiramente "especiais":

delega-se a eles um saber que é a expressão dos interesses e das

capacidades essenciais do coletivo. O coletivo conserva um saber básico

acerca de seu campo que lhe permite julgar quando o especialista está

exercitando o seu poder com sentido instituinte-organizante, e então a serviço

do coletivo, ou, pelo contrário, de ambições de segmentos individualistas etc.

Vou dar um típico exemplo da medicina, embora haja mil exemplos, muitos dos

quais não poderemos mencionar aqui porque são muito complexos e extensos

para expor. Quem conhece a situação da saúde no Brasil sabe perfeitamente

que nosso país não precisa prioritariamente de, digamos, tomógrafos

computadorizados, pelo menos a nível de sua problemática prevalente atual. O

que o Brasil precisa é de uma política de saúde que não começa nem acaba no

campo da medicina. Seus problemas, que têm efeitos médicos, têm suas

causas diretas nos problemas de habitação, alimentação, vestuário e

saneamento básico. Disso todos os experts sabem o que não impede que a

ênfase da política de saúde no Brasil esteja colocada na assistência e não na

prevenção, principalmente se por prevenção entende se algo que modifique

radicalmente as condições de vida da população. Entretanto, há muitos centros

paulistas e cariocas que se orgulham de ter os mais modernos aparelhos para

resolver ou diagnosticar uma problemática altamente específica, circunscrita,

que afeta 0,5% da população. Acontece que o povo, as organizações de base,

não podem questionar de maneira eficiente as políticas médicas do Brasil

porque a primeira coisa que lhes seria respondida é que não sabem. Mas o que

acontece quando o coletivo revitaliza seu saber, revaloriza o saber espontâneo

que ele tem acerca do que precisa? Os índios têm, as comunidades negras

têm, as comunidades das montanhas têm, as comunidades da planície têm,

todo mundo tem um saber espontâneo acerca de quais são os sofrimentos,

quais são as enfermidades e como devem ser tratadas, pelo menos,

basicamente. Assim, também eles sabem quais problemas devem ser

abordados – mesmo que não se exprimam em sofrimento, ou quando o

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sofrimento ainda não tenha se tornado doença, não devendo ser tratado como

tal. Desde logo este saber também desconhece muita coisa, mas isso não

pode afirmar-se a priori. Só que esse saber é permanentemente desqualificado

pelo saber acadêmico, que atua predominantemente a serviço de interesses

estatais, nacionais e multinacionais dominantes – um saber consubstancial

com esses interesses.

A primeira operação que as comunidades devem fazer é recuperar, revalorizar

o saber espontâneo que elas têm sobre seus problemas; a segunda operação

deve ser feita em conjunto com os experts, ajudando-os a criticar essa

orientação – essa medula dominante reacionária-que o saber médico (nesse

caso) e suas técnicas têm. Sobretudo em termos de hierarquização de

prioridades: o que vem primeiro e o que vem depois, o que é prioritário e o que

é secundário. Uma vez que o expert, integrado à comunidade, demonstra a

capacidade de contribuir, em pé de igualdade, para este trabalho de

reformulação, pode-se delegar a ele algumas áreas do saber com menos

perigo de que ele o transforme em poder, e não numa potência de colaboração

com o coletivo. Nesse caso, o coletivo já não está desqualificado – ele sabe

julgar o que se faz e o que se acha que se sabe. Isso não descarta que

possam acontecer novamente problemas de concentração de saber e de

poder, porque este processo de autoconhecimento e autogestão é interminável.

Provavelmente, haverá necessidade de muitas gerações autogestivas e

autoanalíticas para que o processo possa exercitar-se em sua plenitude. Se

bem que este caminhar está orientado por uma Utopia Ativa que não está

colocada num futuro longínquo, senão em cada ato do cotidiano. Como já

dissemos, existiram e existem numerosas tentativas auto-analíticas e

autogestivas que não apresentam o caráter purista que a gente pode imaginar

em sentido abstrato. Por exemplo, as comunidades eclesiásticas de base:

pode-se dizer que têm um espírito institucionalista complexamente integrado a

aspectos libertários do Cristianismo, embora limitados pelos processos

burocráticos da Igreja Católica. Isso abre um tema que eu teria gostado de

tratar neste primeiro capítulo, mas acho que vai complicar um pouco as coisas,

porque eu queria enfatizar os conceitos essenciais básicos. Mas, enfim, em

que consiste o tema aqui levantado? O Movimento Institucionalista reconhece

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uma gênese histórico-social e uma gênese conceitual. A primeira é a história

de todas as tentativas que houve na história da humanidade e as que hoje

existem e exercitam um Institucionalismo espontâneo. Um desses movimentos

é o das comunidades eclesiásticas de base no Brasil e em outros países. Mas

muitas iniciativas autogestivas já existiram, existem e vão existir, e não

precisam do Institucionalismo para se desenvolver. O Institucionalismo é

alguma coisa assim como o resultado do ensinamento dessas iniciativas

históricas sobre os próprios experts. Nós, os experts – médicos, engenheiros,

advogados, comunicólogos, psicólogos etc –, temos aprendido que isso existe

e que poderíamos colaborar para seu desenvolvimento a partir das

experiências históricas que já existiram neste sentido e das que estão existindo

e se desenvolvem perfeitamente ou dificilmente sem a nossa participação. Por

outro lado, a gênese conceitual refere-se ao campo das ideias, conceitos e

funções: todas aquelas teorias, conceitos, ideias, categorias que têm sido

produzidas pela humanidade no decorrer da história do conhecimento e podem

contribuir para dar base, para fundamentar a proposta institucionalista.

Agora, gostaria de referir-me à última questão, muito importante. Os

leitores compreenderão que esses processos auto analíticos e autogestivos se

dão em condições altamente desfavoráveis, severamente contraproducentes.

Por quê? Naturalmente porque os coletivos em questão não são donos do

saber, não são donos da riqueza, não são donos dos recursos que são

propriedade e servem ao poder dos organismos e entidades de classe alta e

grupos dominantes. Então, a consecução dos objetivos tem graves

impedimentos que vão desde a privação de recursos (que são propriedade a

serviço do poder dos organismos e entidades de classe dominante) até a morte

física repressiva. Esses processos autogestivos e auto analíticos são, para a

organização do sistema, um câncer, uma peste. Não há nada que seja mais

temido e mais odiado pelo sistema social, porque os movimentos Instituintes

têm esse intuito: que os coletivos presidam a definição de problemas, a

invenção de soluções, a colocação dos limites do que é possível, do que é

impossível e do que é virtual o que normalmente é feito pelas instituições,

organizações e saberes de grupos e outros segmentos dominantes. Por isso a

autogestão não é tarefa fácil: a prova está em que as iniciativas auto-analíticas

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e autogestivas não se caracterizam por seu sucesso. Elas têm aparecido

muitas vezes na história e muitas vezes têm sido destruídas ou sufocadas. E

as que hoje insistem em existir lutam duramente contra um conjunto de

imensas forças históricas que tentam destruí-las. E quando não conseguem

eliminá-las, tentam recuperá-las, incorporá-las. Isso faz com que os objetivos

últimos do Institucionalismo – a autoanálise e a autogestão – não sejam

atingidos nunca de forma definitiva. Eles são atingidos sempre na base da

tentativa, do ensaio, da procura. Em geral têm maiores ou menores graus de

fracasso. Mas isso não quer dizer que não sejam possíveis ou inventáveis.

Então, esta última afirmação que faço refere-se ao seguinte: as diferentes

escolas do Institucionalismo se distinguem entre si pelas teorias, pelos

métodos, pelas técnicas com que elas tentam introduzir estes objetivos últimos,

e pelo grau de realização com o qual se conformam. Quer dizer: há correntes,

escolas" maximalistas", que buscam a instalação plena da autogestão e da

autoanálise. Há outras que se satisfazem com a introdução relativa de alguns

mecanismos, de alguns espaços, de alguns temas de autoanálise e

autogestão. Ou seja, no Institucionalismo, como na política, existem correntes

reformistas e existem correntes ultra-revolucionárias. De qualquer maneira,

nada disso impede que as agrupemos em torno desses dois objetivos e

recursos. Eles as diferenciam claramente da enorme maioria das propostas

políticas, tanto das extremistas quanto das propostas social-democráticas.

Provavelmente a tendência política tradicional que mais se aproxima das

propostas institucionalistas, e com a qual o Institucionalismo está mais que em

dívida, seja a de certas orientações do anarquismo.

PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO I

1) Por que o Institucionalismo é um movimento e não uma ciência,

uma disciplina ou uma tecnologia?

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2) O que aconteceu com o saber e o saber-fazer que as

comunidades primitivas ou os povos e grupos leigos em geral

produziram e acumularam durante sua experiência de vida?

3) O que significa" divisão social e técnica do trabalho e do saber",

e por que se diz que as ciências, as disciplinas e seus experts estão

em geral a serviço das classes e grupos dominantes?

4) Existem "necessidades mínimas naturais" cuja satisfação é

demandada pelas populações, ou é a oferta de bens e serviços que

produz certas necessidades e desejos (e não outros) e modula as

demandas?

5) O que significa autoanálise e autogestão?

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Capítulo II

SOCIEDADES E INSTITUIÇÕES

O Institucionalismo, à sua maneira, tem uma concepção própria do que é

a Sociedade e do que é a História, a Sociedade como forma organizada de

associação humana e a História como o devir da Sociedade no tempo. O

Institucionalismo, sem considerar no momento as diferenças doutrinárias de

escola para escola, afirma que a sociedade é uma rede, um tecido de

instituições. E que são as instituições?

As instituições são lógicas, são árvores de composições lógicas que,

segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem

ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser

hábitos ou regularidades de comportamentos. Alguns autores sustentam que

leis, normas e costumes são objetificações de valores. As leis, em geral, estão

escritas; as normas e os códigos também. Mas uma instituição não necessita

de tal formalização por escrito: as sociedades ágrafas também têm códigos, só

que eles são transmitidos verbal ou praticamente, não figurando em nenhum

documento.

O que essas lógicas significam? Significam a regulação de uma

atividade humana, caracterizam uma atividade humana e se pronunciam

valorativamente com respeito a ela, esclarecendo o que deve ser o que está

prescrito, e o que não deve ser, isto é, o que está proscrito, assim corno o que

é indiferente. Essas lógicas, esses corpos discriminativos, são vários, e é

curioso que os institucionalistas têm dificuldades para chegar a um acordo

acerca de quais e quantos são.

Vamos examinar algumas ilustrações mais ou menos indiscutíveis. Um

exemplo de urna instituição: a instituição da' linguagem. Ela caberia nesta

definição que formatamos quando a pensamos em termos gramaticais. A

gramática não é nada mais que um conjunto de leis, de normas que regem a

combinatória de elementos fônicos, de unidades de significação na linguagem.

Com a combinação desses elementos, conforme indicado por essas leis, pode

construir-se um infinito número de mensagens, de tal modo que estas

mensagens são compreensíveis para qualquer falante ou ouvinte dessa língua.

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Então, corno se pode ver, no final das contas, urna gramática é urna instituição

que explicita as opções de acordo com as quais se vão produzir mensagens,

consideradas gramaticais ou agramaticais, os prescritos ou os proscritos. É

claro que, no caso da língua, não estarão estipulados também os prêmios e os

castigos para quem usa de forma correta ou incorreta a língua, que é o que

acontece em outros tipos de instituição. Mas o preço de seu desconhecimento

ou transgressão é óbvio: a incomunicabilidade dentro do universo humano,

pelo menos dentro desse universo humano em particular.

Outro exemplo são as instituições de regulamentação do parentesco, as que

definem os lugares tais corno: pai, mãe, filho, nora, genro etc. Elas são as que

prescrevem entre quais membros dessa classificação podem se dar uniões,

entre quais membros não podem se dar uniões e que tipo, que característica

de vínculo de descendência e aliança relaciona cada uma destas posições com

a outra. Isso também é um código que, formalizado ou não, regula a relação de

parentesco e tem prescrições – o que é indicado; e também proscrições – o

que é proibido; assim como o que é indiferente ou não abrangido por essa

lógica. Outra instituição pouco discutível entre os institucionalistas é a da

divisão do trabalho humano. O trabalho humano está dividido segundo os

momentos e as especificidades de cada tipo de produção e tarefa (divisão

técnica). Mas, por outro lado, essa divisão vem acompanhada de urna

hierarquia que institui diferenças de poder, prestígio e lucro – não

necessariamente justificadas pela importância produtiva daqueles que detêm

esses lugares (divisão social). Por exemplo: trabalho manual e intelectual, do

campo e da cidade, assalariados e autônomos, feminino e masculino etc.

Há também as instituições da educação, isto é, aquelas leis, normas e

pautas que prescrevem corno se deve socializar, instruir um aspirante a

membro de nossa comunidade para que ele possa integrar-se à mesma com

suas características efetivas.

Ternos também a instituição da religião, que é a que regula as relações

do homem com a divindade, divindade sobrenatural para uns ou imanente à

vida terrena para outros, mas com respeito à qual existe toda urna série de

comportamentos indicados e toda urna série de comportamentos contra-

indicados.

27

Ternos também as instituições de justiça, as instituições da

administração da força, e assim por diante. Em um plano formal, urna

sociedade não é mais que isso: um tecido de instituições que se interpenetram

e se articulam entre si para regular a produção e a reprodução da vida humana

sobre a terra e a relação entre os homens. Agora, entendidas assim, as

instituições são entidades abstratas, por mais que possam estar registra das

em escritos ou conservadas em tradições.

Para vigorar, para cumprir sua função de regulação da vida humana, as

instituições têm de realizar-se, têm de "materializar-se". E em que elas se

materializam? Em dispositivos concretos que são as organizações. As

organizações, então, são formas materiais muito variadas que compreendem

desde um grande complexo organizacional tal como um ministério Ministério

da Educação, Ministério da Justiça, Ministério da Fazenda etc. – até um

pequeno estabelecimento. Ou seja, as organizações são grandes ou pequenos

conjuntos de formas materiais que concretizam as opções que as instituições

distribuem e enunciam. Isto é, as instituições não teriam vida, não teriam

realidade social senão através das organizações. Mas as organizações não

teriam sentido, não teriam objetivo, não teriam direção se não estivessem

informadas como estão, pelas instituições.

Por sua vez, urna organização (que, como insisti, costuma ser um

complexo grande, vultoso) está composta de unidades menores. Estas são de

naturezas muito diversas e é difícil enunciá-las todas. Mas, pelo menos, há

algumas que são muito características, como, por exemplo, os

estabelecimentos. Estabelecimentos seriam as escolas, um convento, uma

fábrica, uma loja, um banco, um quartel. Há diversos tipos de

estabelecimentos, de características muito diferentes. Mas é um conjunto de

estabelecimentos o que integra uma organização.

Os estabelecimentos, em geral, incluem dispositivos técnicos cujos

exemplos mais básicos são a maquinaria, as instalações, arquivos, aparelhos.

Isso recebe o nome de equipamento. O equipamento pode ter uma realidade

material que coincide com o estabelecimento, ou seja, as máquinas de um

estabelecimento – ou pode ter uma realidade muito mais ampla, de maneira

que forme um grande sistema de máquinas, um grande equipamento. Isso é o

28

que acontece, suponhamos, com os equipamentos das organizações da

comunicação de massa, que, por sua vez, são organizações que realizam as

prescrições de uma grande instituição que é a instituição da Comunicação

Social.

Instituição – Organização – Estabelecimento – Equipamento. Tudo isso,

naturalmente, só adquire dinamismo através dos agentes. Nada disso se

mobiliza, nada disso pode operar senão através dos agentes. Os agentes são

"seres humanos", são os suportes e os protagonistas de toda essa

parafernália. E os agentes protagonizam práticas. Práticas que podem ser

verbais, não-verbais, discursivas ou não, práticas teóricas, práticas técnicas,

práticas cotidianas ou inespecíficas. Mas é nas ações que toda essa

parafernália acaba por operar transformações na realidade. Então, estas

unidades (instituição – organização – estabelecimento – equipamento – agente

– práticas) não podem ser confundidas. Mas, infelizmente, com frequência isso

ocorre. E não são confundidas apenas pelos leigos, mas também pelos

institucionalistas. Então, quando se estuda uma escola institucionalista, esta

escola pode chamar de instituição às organizações; de organização a um

estabelecimento. Isso não é nada recomendável porque a primeira coisa a se

fazer para se entender este complexo panorama é criar uma nomenclatura

mais ou menos universal e compartilhada. A que proponho aqui é a que grande

parte dos institucionalistas aceita.

Isso não é apenas o exercício de um desafio, mas algo importante. Se

começamos a dizer, por exemplo, que essa escola é uma instituição, o assunto

se complica, pois essa escola não é uma instituição, e sim um estabelecimento

que faz parte de urna grande organização – provavelmente do Ministério da

Educação, que, por sua vez, realiza uma grande instituição: a instituição da

Educação, que é uma lógica, uma série de prescrições ou leis.

Em uma instituição podem-se distinguir duas vertentes importantes. Uma

é a vertente do Instituinte, e outra a do instituído. Apesar de as origens das

instituições serem muito difíceis de determinar – ou seja, fazer a história de

uma instituição, particularmente a de seu começo, é urna tarefa às vezes

impossível como se costuma dizer, "perde-se no começo dos tempos".

Inclusive há muitas instituições, como a instituição da língua, das relações de

29

parentesco, da religião e da divisão do trabalho, das quais não se pode dizer

qual veio primeiro e qual veio depois. Mas podemos afirmar que para uma

sociedade humana existir é preciso haver no mínimo essas quatro instituições

humanas, ou seja, humanidade é sinônimo de coletivo regido por essas

instituições, e essas instituições são sinônimos de existência de um coletivo

humano. Então, é difícil saber como eram os coletivos antes que aparecessem

essas instituições. É o mesmo que perguntar como era o homem antes de ser

homem, pelo menos como o entendemos. Então, situar a origem dessas

instituições é muito difícil. Só se pode dizer que uma instituição supõe outra,

precisa da outra, e o seu conjunto é o que constitui uma civilização ou uma

sociedade humana. Agora, se frequentemente não se pode dizer como essas

grandes instituições começaram, sem dúvida se pode distinguir nelas uma

potência, um movimento de transformação constante que tende a modificar, a

operar mutações nas suas características. Em poucas ocasiões privilegiadas

pode-se assistir historicamente ao nascimento de uma grande instituição. Mas,

em geral, não é isso o que acontece. O que se pode presenciar são grandes

momentos históricos de revolução de uma instituição, de profundas

transformações de urna instituição. Então, a esses momentos de

transformação institucional, a essas forças que tendem a transformar as

instituições ou também a estas forças que tendem a fundá-las (quando ainda

não existem), a isso se chama o Instituinte, forças Instituintes. São as forças

produtivas de lógicas institucionais.

Este grande momento inicial do processo constante de produção, de

criação de instituições, tem um produto, geram um resultado, e este é o

instituído. O instituído é o efeito da atividade Instituinte. Se vocês prestarem

atenção a esses nomes, eles mesmos já estão dizendo alguma coisa com

relação à diferença entre o Instituinte e o instituído. O Instituinte aparece como

um processo, enquanto o instituído aparece como um resultado. O Instituinte

transmite uma característica dinâmica; o instituído transmite uma característica

estática, estabilizada. Então, é evidente que o instituído cumpre um papel

histórico importante, porque as leis criadas, as normas constituídas ou os

hábitos, os padrões, vigoram para regular as atividades sociais, essenciais à

vida da sociedade. Mas acontece que essa vida é um processo essencialmente

30

cambiante, mutante; então, para que os instituídos sejam funcionais na vida

social, eles têm de estar acompanhando a transformação da vida social mesma

para produzir cada vez mais novos instituídos que sejam apropriados aos

novos estados sociais. Tem-se que evitar uma leitura do tipo maniqueísta, que

pensa que o Instituinte é bom e o instituído é ruim, embora seja verdade que o

instituído apresente, por natureza, uma tendência à resistência, uma disposição

que se poderia chamar a persistir em seu ser, a não mudar, que quando se

exacerba, se exagera, se conhece politicamente pelo nome de

conservadorismo, reacionarismo. Pelo contrário, o Instituinte aparece como

atividade revolucionária, criativa, transformadora por excelência. Na realidade,

não é exatamente assim, porque o Instituinte careceria completamente de

sentido se não se plasmasse, se não se materializasse nos instituídos. Por

outro lado, os instituídos não seriam efetivos, não seriam funcionais, se não

estivessem permanentemente abertos à potência Instituinte.

Por sua vez, o mesmo acontece a nível organizacional. Existe o

organizante e o organizado. Há uma atividade permanentemente crítica e

transformadora, otimizadora das organizações – o organizante. E há o

organizado, que se pode ilustrar com o famoso organograma ou fluxograma,

que é necessário, mas que tem uma tendência "natural" a cristalizar-se (entre

aspas porque nada tem a ver com o natural), uma tendência histórica a

esclerosar-se e a adotar uma série de vícios, entre os quais o mais conhecido é

a burocracia, embora não seja o único. Então, é importante saber que a vida

social – entendida como o processo em permanente transformação que deve

tender ao aperfeiçoamento e visar a maior felicidade, maior realização, maior

saúde e maior criatividade de todos os membros – só é possível quando ela é

regulada por instituições e organizações e quando nessas instituições e

organizações a relação e a dialética existentes entre o Instituinte e o instituído,

entre o organizante e o organizado (processo de institucionalização-

organização) se mantêm permanentemente permeáveis, fluidas, elásticas.

Outra maneira de referir-se a isso é dizer que nas instituições, organizações,

estabelecimentos, agentes, práticas, pode-se distinguir uma função e um

funcionamento. Para poder entender essa terminologia, tem-se que

compreender que nas civilizações e nos conjuntos humanos, e na vida humana

31

tomada num sentido muito amplo, há a tendência a adquirir sempre

características históricas que comprometem este objetivo utópico ativo. Essas

características históricas, muito diferentes de uma sociedade para outra, de

uma fase histórica para outra, podem ser resumidas em três grandes situações

viciosas conhecidas por todo mundo: são os processos de exploração, de

dominação e de mistificação (desinformação ou engano). Essas são as

deformações do percurso da vida social e de seus objetivos mais nobres, de

suas finalidades mais altas, que cada sociedade coloca à sua maneira, e que

são chamadas de utopias sociais: como uma sociedade tenta, deseja, deve

chegar a ser. É claro que, à exceção de algumas sociedades em particular,

desde que existem sociedades, as utopias sociais incluem diferentes formas de

liberdade, diferentes formas de igualdade, diferentes formas de veracidade e

fraternidade, apesar de eu estar usando, para referir-me a isso, a utopia da

Revolução Francesa, chamada de revolução burguesa, que não é nem a única

nem a melhor das utopias, mas é a mais conhecida por nós. Então, cada

sociedade, em seus aspectos Instituinte e organizantes, sempre tem uma

utopia, uma orientação histórica de seus objetivos, que é desvirtuada ou

comprometida por uma deformação que se resume em: exploração de alguns

homens pelos outros (expropriação da potência e do resultado produtivo de uns

por parte de outros);

dominação, ou seja, imposição da vontade de uns sobre os outros e

desrespeito à vontade coletiva, compartilhada, de consenso; e mistificação, ou

seja, uma administração arbitrária ou deformada do que se considera saber e

verdade histórica, que é substituída por diversas formas de mentira, engano,

ilusão, sonegação de informação etc. Assim, se se compreende esta oposição

entre a utopia, o aperfeiçoamento da vida social e suas

deformações exploração, dominação, mistificação-, então se pode

compreender mais facilmente uma divisão que se estabelece entre função e

funcionamento. O dito não significa que as utopias sejam sempre inocentes e

acabem traídas, mas em geral elas são mesmo traídas.

As instituições, organizações, estabelecimentos, agentes e práticas

desempenham uma função. Esta função está sempre a serviço das formas

históricas de exploração, dominação e mistificação que se apresentam nesta

32

sociedade. Toda instituição, toda organização, todo estabelecimento apresenta

esta função a serviço dos exploradores, dos domina dores, dos mistificadores.

Só que esta função raramente se apresenta como ela é, justamente por causa

da questão da mistificação... A função apresenta-se deformada, disfarça da,

mostra-se como o objetivo natural, desejado e lógico das instituições e das

organizações. Isto é, não se manifesta claramente ao nível do instituído e do

organizado. Ou seja, os instituídos e os organizados apresentam,

predominantemente, frequentemente, funções a serviço da exploração, da

dominação, da mistificação. E as exprimem de tal maneira que as fazem

parecer "naturais", desejáveis e eternas, ao passo que o Instituinte e o

organizante são sempre inspirados pela utopia, estão sempre a serviço dos

objetivos que, provisoriamente, chamamos de Justiça, de Igualdade e

Fraternidade. Podem ser chamados de outra maneira. Essas forças, esses

processos, recebem o nome de funcionamento. Então, o funcionamento é

sempre Instituinte, é sempre transformador, é justiceiro e tende à utopia': A

função, ela é predominantemente reacionária, conservadora, a serviço da

exploração, da dominação e da mistificação, e se apresenta aos olhos não

atentos como eterna, natural, desejável e invariável.

Agora, pode-se definir outros termos que temos aqui presentes. O

instituído, o organizado, enquanto produtivo, enquanto expressão apropriada,

enquanto recurso operante o Instituinte, é claro que é necessário. Acontece

que, rapidamente, tendem a cair fora do seu sentido de funcionamento para

adotar a característica da função, coisa que se compreenderá melhor quando

se entender que a característica essencial do Instituinte, do organizante e dos

seus produtos operantes é serem propícios à produção, produção que é a

geração do novo, daquilo que almeja a utopia; funcionamento e produção são a

mesma coisa. Função é sinônimo de reprodução: é a tentativa de reiterar o

mesmo, de perpetuar o que já existe aquilo que não é operativo para propiciar

as transformações sociais. Então: Instituinte e instituído, organizante e

organizado, produção contra reprodução, funcionamento contra função.

Para concluir, exporemos definições que são um pouco áridas,

abstratas, mas necessárias para entender os passos seguintes que vamos dar:

digamos em que consiste, como entender, como analisar cada instituição, cada

33

organização, e como intervir para favorecer a ação do Instituinte e do

organizante. Não se pode fazer este trabalho sem ter claras estas definições.

Para concluir, os Instituintes-instituídos, organizantes- organizados que

constituem a malha, a rede social, não atuam separadamente, mas sim em

conjunto. E essa atividade em conjunto pode ser enunciada com uma fórmula

pedagógica: cada um deles atua no outro, pejo outro, para o outro, desde o

outro. Essa é uma tentativa de enunciar o entrelaçamento, a interpenetração

que existe entre todos os Instituintes e instituídos, entre todos os organizantes

e organizados. Esta interpenetração acontece ao nível da função e ao nível do

funcionamento; ao nível da produção e ao nível da reprodução; ao nível daquilo

que funcionará a favor da utopia e ao nível daquilo que está contra. Então,

essa interpenetração ao nível da função, do conservador, do reprodutivo,

chama-se atravessamento. Essa interpenetração ao nível do Instituinte, do

produtivo, do revolucionário, do criativo chama-se transversalidade. Para dar

apenas um exemplo, vou mostrar-lhes um caso de atravessamento de funções

a nível organizacional. Nós dizemos, por exemplo, que uma escola é um

estabelecimento das organizações do ensino, que por sua vez são uma

realização da instituição da educação. Acontece que uma escola não só

alfabetiza, não só instrui, não só educa dentro dos objetivos manifestos do

organizado e do instituído, mas também prepara força de trabalho (alienado),

ou seja, uma escola também é uma fábrica. Por outro lado, uma escola, de

acordo com a concepção de ensino que ela tenha, também consegue manter

os alunos presos durante seis a oito horas por dia, e além de ensiná-los a ler e

escrever, o que fundamentalmente lhes ensina é a obedecer, e o que

basicamente lhes transmite é um sistema de prêmios e punições,

especialmente de punições. Neste sentido é que uma escola é também um

cárcere. Mas, além disso, o que a escola ensina é uma série de valores do que

deve ser construído, do que deve ser destruído, ensina formas de exercício da

agressividade. Então, de alguma maneira, também se pode dizer que uma

escola é um quartel ou uma delegacia de polícia. Então, vocês vão vendo como

uma escola, ao nível do instituído, do organizado, ao nível da função, ao nível

da reprodução, está atravessada pelas outras organizações. Existe uma

estreita colaboração na tarefa de reproduzir o que está, tal como está, e dessa

maneira colaborar para a perpetuação da exploração, da dominação e da

34

mistificação. Mas uma escola também é um âmbito onde se tem a ocasião de

formar um agrupamento político-escolar, um clube estudantil; uma escola

também é um lugar onde se pode aprender a lutar pelos direitos; uma escola

também é um lugar onde se pode integrar um sistema de ajuda mútua entre os

alunos; uma escola também é um lugar onde se pode adquirir elementos para

poder materializar as correntes Instituintes, produtivas; numa escola também

se pode aprender a lutar contra a exploração, a dominação, a mistificação.

Então, uma escola tem um lado Instituinte, um lado organizante. Neste sentido,

a escola pode ser também, por exemplo, uma frente de luta revolucionária, de

luta sindical, um lugar de doutrinamento para a revolução, um lugar de

exercício da solidariedade. Neste sentido é que uma escola tem também um

funcionamento articulado, interpenetrado com muitas outras organizações,

instituições, com muitos outros Instituintes e organizantes da sociedade que

atuam nela, através dela, para ela, por ela, e ela por outras, e ainda entre os

diversos· quadros e segmentos desse mesmo estabelecimento. Essa

interpenetração chama-se transversalidade. A interpenetração ao nível da

função, da reprodução, como já vimos, chama-se atravessamento. A

interpenetração a nível instituinte, produtivo, chama-se transversalidade, e esta

se define também como uma dimensão da vida social e organizacional que não

se reduz à ordem hierárquica da verticalidade nem à ordem informal da

horizontalidade. Os efeitos da transversalidade caracterizam-se por criar

dispositivos que não respeitam os limites das unidades organizacionais

formalmente constituídas, gerando assim movimentos e montagens

alternativos, marginais e até clandestinos às estruturas oficiais e consagradas.

Com isso temos definida, até certo ponto, a concepção institucionalista da

sociedade. A sociedade é uma rede constituída pela interpenetração de forças

e entidades reprodutivas e antiprodutivas cujas funções estão a serviço da

exploração, dominação e mistificação (atravessamento), assim como também

está constituída pela interpenetração das forças e entidades que estão a

serviço da cooperação, da liberdade, da plena informação, ou seja, da

produção e da transformação afirmativa e ativa da realidade (transversalidade).

35

PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO II

1) O que são, para o Institucionalismo, as sociedades?

2) O que implica dizer que as instituições são lógicas e que podem

estar formalizadas em leis ou normas ou que se manifestam em

hábitos?

3) Quais seriam exemplos de instituições? Que são as

organizações, os estabelecimentos, equipamentos, agentes e

práticas?

4) O que é o instituinte e o instituído, o organizante e o organizado,

a função e o funcionamento, a produção, a reprodução e a

antiprodução?

5) O que é o atravessamento e a transversalidade?

6) De que está composta a rede social?

36

Capítulo III

AS HISTÓRIAS

O que é para o Institucionalismo o termo "história"? Nós temos, empiricamente,

alguma noção aproximada do que é história. Numa primeira instância, é

importante diferenciar História de Historiografia. A historiografia é o registro dos

fatos históricos que a gente encontra nos arquivos e, geralmente, é uma versão

que foi conservada e foi publicada porque coincide com os interesses do

Estado, das classes dominantes, do instituído e do organizado, que têm

recursos para resgatar e promover estes documentos. Naturalmente, registram

aquilo que lhes convém. Então, historiografia é esta versão que, em geral, se

apresenta como sendo objetiva, neutra, impessoal e que, a rigor, é apenas uma

versão tão interesseira, tão tendenciosa quanto qualquer outra, mas que

aparece como descritiva, como meramente narrativa. Agora, História,

propriamente, não é isso.

Historiar é um processo de conhecimento que pretende reconstruir os

acontecimentos nos tempos, mas que o faz assumindo que qualquer

reconstrução é feita desde uma perspectiva, que qualquer registro inclui os

desejos, os interesses, as tendências de quem faz História. Porque a versão

que se tem da História é sumamente importante, enquanto justifica as ações e

paixões que se protagonizam no presente e, geralmente, justifica e propicia um

projeto futuro para a vida social, ou seja, todos os movimentos sociais que se

deflagram, que se impulsionam para chegar a este porvir. Algumas coisas que

o Institucionalismo tem a dizer com respeito à História podem ser resumidas

em poucas palavras:

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Primeiro: o Institucionalismo afirma que a História não é, apenas, a

reconstrução do que já aconteceu e que já está de alguma maneira, morto,

obsoleto, definido – "o que foi, já foi"-, mas consiste em uma localização

daquilo que, de alguma forma, começou, teve início em um passado. Mas o

interesse da História institucionalista é o de reconstruir o passado enquanto ele

está vivo no presente, enquanto ele está atuante e pode determinar ou já está

determinando o futuro. Passado e futuro se constroem e reconstroem

incessantemente desde os valores que inspiram a um presente crítico e

revolucionário.

Segundo: o Institucionalismo afirma que não existe uma História, uma História

que seja como uma espécie de mangueira, de modo que totalize todo o devir

da vida social em um espaço e em um tempo só; mas diz que existem

"histórias" – multiplicidades econômicas, culturais, ideológicas, do desejo, da

afetividade, da vontade, histórias raciais, histórias das gerações. Cada uma

delas transcorre num tempo próprio que não se pode uniformizar, que não se

pode totalizar, globalizar em um tempo único; de modo que não se pode

estudar uma época como se essa época fosse um corte transversal, que se faz

num único fluxo da História, como se faria no fluxo de um rio. Trata-se de tentar

articular os diferentes tempos dos diferentes processos históricos em alguns

momentos, eras ou etapas, que são localizáveis como tais, cronológica ou

conceitualmente, no século XVI, no século XI, ou na Idade Antiga etc. Mas isso

não significa que este seja o único tempo em que se transcorreram todos os

processos. Quer dizer, os processos que constituem a História são processos

policronológicos, cada um em sua duração, e é preciso ver como cada um se

"adianta" ou se "atrasa" em relação aos outros. Outro aspecto importante da

38

leitura institucionalista do tempo é que não é o passado que engendra o

presente, mas o passado está composto de uma série de potencialidades que

o presente ativa, que o presente ilumina, que o presente deflagra. Não é o

passado que gera o presente, e sim o presente que explora que aproveita ou

atualiza as potencialidades do passado para construir um porvir. Por outro lado,

a História não é uma série de etapas fatais, ou mais ou menos determinadas,

cada uma das quais origina a seguinte, que começam do zero e vão acabar em

dez, cem ou qualquer número final. Não existe uma progressão

predeterminada das etapas históricas e, por conseguinte, não existe um

apogeu final dos tempos. O Institucionalismo não aceita a ideia de uma

escatologia histórica, isto é, um final que pode ser entendido como final feliz – e

que nesse caso confirme uma escatologia positiva, ou um final catastrófico ou

apocalíptico. Não existe finalidade da História. O que pode ocorrer no dia-a-dia

não está inteiramente predeterminado no passado e nem é certo que vá

acontecer no futuro. Segundo alguns institucionalistas, o tempo, sempre

policronológico, se produz, devém desde um presente em direção ao passado

e ao futuro.

Finalmente, outra afirmação importante que o Institucionalismo pode

aportar à teoria da História é que nós, com uma explicação claramente

mecânica, baseada em paradigmas de ordem que se desenvolveram do século

XVII em diante – que têm como modelo a mecânica celeste com suas

trajetórias, suas parábolas, suas órbitas, e como correlato à máquina do relógio

–, com este metamodelo mecanicista, tendemos a pensar a História em função

de suas leis, sendo que os enunciados legais supostamente dão conta dos

processos repetitivos que transcorrem na realidade. Somos levados a pensar

39

que a História se desenvolve segundo uma ordem de características mais ou

menos maquinais, que tende a repetir-se e que, em todo caso, quando não se

repete é porque tem conseguido produzir alguma diferença em relação a uma

provável repetição do idêntico ou do igual. Então, esta concepção da História

que faz da diferença uma variação análoga ou semelhante do igual, ou do

idêntico, não é compartilhada pelo Institucionalismo. O Institucionalismo diz que

o que, predominantemente, retoma na História, não é o igual, não é o idêntico,

não é o regular, não é aquilo que se pode captar por leis típicas da mecânica

física ou da mecânica celeste, do relógio ou do calendário, mas que o que se

repete na História é a diferença, é o acaso, é o inesperado, o acontecimento, o

imprevisível, o aleatório. E que são estes grandes ou pequenos momentos de

repetição do diferente (por exemplo: do Instituinte) que depois vão tentar ser

capturados pelo instituído, pelo organizado e repetidos como idênticos.

Bem, esta concepção da História que estou sintetizando ao máximo, com

contribuições de diferentes tendências institucionalistas, não é apenas um

exercício acadêmico, mas está estritamente relacionada com a concepção da

práxis, da atividade político-social desejante que o Institucionalismo tem, e com

a utopia ativa, quer dizer, o propósito, o objetivo, a finalidade e os recursos do

Institucionalismo. Porque se bem o Institucionalismo interessa-se em estudar

as leis do que tende a repetir-se, ele está mais implicado em assumir uma

práxis que propicie o advento do inesperado, do acontecimento, da inovação

absoluta. Então, trata-se de entender como a História é não apenas uma

atividade ilustrativa, uma investigação erudita, mas uma tentativa de reconstruir

os grandes momentos de imprevisto, os grandes momentos de acaso que

transformaram o curso da humanidade, para a partir desses ensinamentos,

40

produzir estratégias que permitam propiciá-los novamente. A História se estuda

para aprender como militar a favor da transformação, não de uma

transformação previsível, não de uma transformação pré-figurada, mas da

transformação em direção ao radicalmente novo e, portanto, absolutamente

desconhecido. Tentemos agora definir outros conceitos importantes.

O termo molar, outro termo que tínhamos de comentar e que se entende

em contraposição ao termo molecular, é uma contribuição feita por algumas

escolas institucionalistas e que vou tentar explicar brevemente.

Para os institucionalistas não existe uma separação radical entre vida

econômica, vida política, vida do desejo inconsciente, vida biológica e natural.

O que existe são imanências – isto é, a inerência, a posição intrínseca de cada

um destes campos em relação aos outros, que só se podem separar de uma

maneira artificial para a finalidade de seu estudo. A rigor funcionam sempre,

por assim dizer, um "dentro" do outro, incluindo-se no outro. Então, dentro

desta concepção da vida social como uma rede, em que os diversos processos

são imanentes um ao outro, pode se distinguir o molar, que, dito de uma

maneira simples, é aquilo que é grande, que é evidente, que tem formas

objetais ou formas discursivas, visíveis e enunciáveis. Por outra parte temos o

molecular, que é o que na física se costuma chamar micro, por oposição a

macro, isto é, o mundo atômico e subatômico, o mundo das partículas,

enquanto o mundo macro por excelência seria, por oposição, o universo, o

cosmos, que é composto de grandes corpos. Então, tomando esses

ensinamentos da microfísica, da microquímica, da microbiologia, da biologia

molecular, o Institucionalismo afirma que as grandes mudanças históricas, as

macromudanças, são sempre resultado de pequenas micromudanças, e que os

41

grandes poderes em vigor na sociedade são apenas forças resultantes de

pequenas potências que se chocam e conectam em espaços microscópicos de

uma sociedade. Como até mesmo a física, a biologia e a química descobriram

que as leis que regem os processos e as entidades macro não são capazes de

dar conta da dinâmica que acontece nas micro. O macro é o lugar da ordem, é

o lugar das entidades claras, dos limites precisos, é o lugar da estabilidade, da

regularidade, da conservação. O micro, dito tanto no sentido físico, químico,

biológico quanto no sentido social, político, econômico e desejante, é o lugar

das conexões anárquicas, insólitas, impensáveis. O macro é o lugar da

reprodução, e o micro é o lugar da produção; o macro é o lugar da conservação

do antigo ou da propiciação do novo previsível, e o micro é o lugar da eclosão

constante do novo; o macro é o lugar da regularidade e das leis, o micro é o

lugar do aleatório e do imprevisível. Esta diferenciação também é importante

porque, em geral, o Institucionalismo confia em analisar e propiciar as

mudanças locais, as transformações microscópicas, as conexões

circunstanciais, porque espera delas efeitos à distância que, ao generalizarem-

se, resultam nas grandes metamorfoses, do instituído e do organizado, o

detectável e consagrado. Dito com outras palavras, o Institucionalismo pensa

que as pequenas conexões locais são o lugar do Instituinte, e entendê-lo assim

está estritamente relacionado com as estratégias de intervenção nos âmbitos,

nos espaços de atuação que o Institucionalismo vai tentar propiciar. Eles são

os pequenos lugares intersticiais da vida natural-social-técnica e subjetiva, e

não os grandes blocos representativos dos territórios constituídos.

Finalmente, é importante definir o termo antiprodução. Se não me engano, já

tentamos reiteradamente definir e redefinir o termo produção. Produção é

42

aquilo que processa tudo que existe, natural, técnica, subjetiva e socialmente.

É a permanente geração, enquanto não se cristaliza; é o devir, é a

metamorfose, é o que, com uma terminologia ainda religiosa, chamaríamos de

criação. Mas no momento em que as forças produtivas entendidas de maneira

muito ampla, as forças instituintes -organizantes, são capturadas em grandes

organismos reprodutivos como o Estado ou o mercado capitalista, vigora a

antiprodução. Por exemplo, elas são voltadas contra si mesmas, de maneira

que a produção, as energias não orientadas, as matérias produtivas ainda não

formadas são retidas pelos mecanismos, pelos equipamentos, pelos

organismos e forças de toda ordem que propiciam a reprodução do mesmo, o

impedimento ou a destruição do novo, elas tornam-se antiprodutivas, elas se

destroem a si mesmas. É o que subjaz a grandes processos sociais como as

guerras; é o que subjaz a célebres atitudes sociais como a de destruir os

produtos porque o preço caiu no mercado; é o que subjaz à geração de

enormes contingentes sociais que estão destinados a morrer, e que morrem

não apenas por deficiência da provisão ou da organização, mas por atitudes

ativas do poder destinadas a destruí-los, como é o caso da marginalidade, da

mortalidade infantil, dos preconceitos sexuais e raciais, do alcoolismo, da

tóxico-dependência, dos genocídios coloniais, neocoloniais e planetários

contemporâneos etc. Essas são potências, são forças singulares, produtivas,

que a sociedade não está em condições de incorporar porque não pode

transformá-las em mercadoria, seres, bens, valores, serviços – não pode

assimilá-las à lógica do sistema. Então, ou as deixa morrer, ou as mata por

meio de mecanismos mais ou menos deliberados, mais ou menos

premeditados. Esse processo de autodestruição das forças produtivas naturais,

43

sociais, subjetivas e tecno-industriais que a sociedade faz chama-se

antiprodução. Um desses processos característicos é o problema ecológico,

que só agora se está" descobrindo", enquanto já era evidente desde meados

do século passado com o processo produtivo industrial' mercantil baseado na

geração de mercadorias, de bens de troca e não de bens de uso, que vem

destruindo o reservatório fundamental de matéria-prima e de vida que é a

natureza. Agora, isso se torna moda; mas foi sempre assim, e é uma das

expressões mais radicais da capacidade antiprodutiva do sistema dominante

no mundo.

Para qualquer tendência sociológica, científica-política ou econômica

clássica, já é completamente evidente que não se pode pensar os processos

característicos de cada área – não se pode conceber o que acontece em

economia, em política ou sociologia – com independência do psiquismo dos

homens, prescindindo do que antigamente se chamava as almas dos homens.

Ou seja, apesar de se poder acreditar que é o econômico que determina, em

última instância, as características da vida e da morte social, ou que se possa

supor que é o político o tal determinante, hoje se sabe, e ninguém pode negá-

la, que por mais determinados, por mais submetidos às leis econômicas e

políticas que estejam os homens, eles só entram nesses processos de

dominação, de exploração, de mistificação ou, pelo contrário, em processos

revolucionários, se estes, de algum modo, coincidem com suas crenças,

representações, convicções acerca da vida social. E também não entram se

suas expectativas, suas vontades, seus desejos não se encaminham nessa

direção. Isso é claríssimo. O Institucionalismo tende a não privilegiar a priori

nenhuma determinação mais que outra, isto é, são tão importantes as

vontades, os desejos e as representações com que os homens entram nos

processos históricos quanto as estruturas "materiais", econômicas, políticas ou

naturais que os determinam. Mas a isso temos de acrescentar que a partir da

contribuição psicanalítica, sabe-se que as vontades, os desejos mais potentes

que dirigem a conduta ou a vida dos homens, são inconscientes, isto é, não

44

fazem parte de seu saber, de seu querer deliberado. Em última instância, os

homens entram nos processos históricos e sociais determinados por forças

desejantes, por vontades que eles não controlam e não conhecem, mas que

têm a ver com o prazer, que têm a ver com o sofrimento e têm a ver com

vivências e mecanismos subjetivos ainda mais profundos. Hoje, por exemplo,

está cada vez mais evidente para os economistas que o "melhor" plano

econômico não funciona se não se consegue mobilizar as forças desejantes

dos integrantes de uma população, não só seus interesses, para provocar o

consenso dos agentes em torno deste plano; e ainda mais, que o "pior" dos

planos é capaz de funcionar quando se consegue essa mobilização. E não se

trata apenas de conseguir uma adesão consciente ou uma credibilidade

voluntária, mas de mobilizar forças inconscientes às quais se apela, ainda

passando por cima das crenças e convicções dos agentes sociais. Isso

também não é novidade. Já a partir de Reich, o grande psicanalista marxista,

nós nos interrogamos constantemente porque, em lugar de colocar-se o

problema de que ocasionalmente os operários estejam em greve ou que

circunstancialmente os soldados se rebelem contra seus superiores, não nos

perguntamos porque os operários não estão sempre em greve, porque os

soldados não se unem para executar definitivamente seus superiores. Por que

os povos atuam contra seus reais interesses e vontades? Então, não se trata

apenas de dizer que o fazem por medo, porque os acontecimentos históricos

demonstram que os povos quando se mobilizam, quando as forças

inconscientes se ativam, não têm medo de nada e têm como se fosse uma

plena consciência de sua potência. Eles correm perigos tremendos ou –

combatem lutas desiguais, mas eles operam as transformações sociais. Não se

trata também de dizer apenas que os povos são ignorantes, porque se é certo

que o sistema se ocupa de manter os povos ignorantes ou erradamente

informados, já se tem visto processos históricos em que os povos são capazes

de produzir um saber acerca de suas condições de existência que não precisa,

passar pelo saber transmitido pelos meios de divulgação, nem necessita

submeter-se ao saber acadêmico. Os povos checam seu próprio saber sobre

suas condições de vida na luta cotidiana pela transformação desses campos de

existência e levam à frente movimentos de imenso poderio, de incalculável

potência social, sem apelar para os saberes instituídos e estabelecidos. Então,

45

o importante a ser reconhecido é a existência dessas forças inconscientes que

o Institucionalismo denomina desejo, por ressonância ou por uma re-

elaboração do conceito de desejo inconsciente da Psicanálise. A diferença

consiste em que o desejo inconsciente em Psicanálise está sempre relacionado

com uma estrutura chamada Complexo de Édipo: é um desejo que atua

primeiro na vida familiar, nas relações ou nas fantasias incestuosas ou

parricidas do inconsciente infantil e que, depois, se translada para a vida social

com as mesmas características. O desejo segundo a Psicanálise é um impulso

que tende a reconstituir estados perdidos a se realizarem em fantasmas

imaginários, é uma tendência reprodutiva, é um anseio que tende a restaurar o

narcisismo, que supostamente, em algum momento, foi o estado em que o

proto-sujeito esteve integralmente. O desejo no Institucionalismo não tem

essas peculiaridades. O desejo do Institucionalismo é imanente à produção, é

(digamos provisoriamente) o aspecto subjetivo (mas não apenas psíquico) da

mesma força que no social é o Instituinte. É uma força que tende a criar o

novo, entendido como o imprevisível, é uma força de conexões insólitas, é uma

força de invenção e não é uma força restauradora de estados antigos. Mas é

inconsciente. Só que este inconsciente não se entende exclusivamente como

um inconsciente edipiano, familiarista, repetitivo, mas também como um

inconsciente pré-pessoal, pré-social e pré-cultural, objeto de um saber que

toma elementos de todos saberes existentes; trata-se de matérias não-

formadas e energias não-vetorizadas que são capazes de gerar transformação.

A força desse inconsciente não está submetida apenas por um recalque

psíquico, mas por um recalque complexo que é simultaneamente político,

libidinal, semiótico etc. Então, para o Institucionalismo não existe o que seria

um homem universal, não existe uma estrutura, uma essência-homem.

Também não existe uma estrutura, uma essência-sujeito, um sujeito psíquico

que seria o mesmo em todas as sociedades, em todos os momentos históricos,

em todas as classes sociais, em todas as raças etc. O que se passa é que

esse sujeito psíquico, mesmo que se aceite como sendo universal, teria

representações ou teria recursos que variariam segundo a sociedade, segundo

a classe social ou o grupo a que pertencesse. Para o Institucionalismo não

existe esse sujeito eterno e universal, apenas preenchido com conteúdos

históricos sociais variáveis. Para o Institucionalismo, o que existe são

46

processos de produção de subjetivação ou de subjetividade. Mais adiante

explicarei em que consistem essas duas denominações, mas essa produção é

absolutamente contingente, é absolutamente própria de cada lugar, de cada

momento, de cada conjuntura histórica etc. Ou seja, produzem-se sujeitos em

cada acontecimento-devir-sujeitos para esse acontecimento-devir, sujeitos

variavelmente protagonistas desse acontecimento, ou, se pode dizer, é o

acontecimento-devir que os produz. E podem existir analogias, podem existir

semelhanças entre esses sujeitos. O que importa não é a produção das

semelhanças ou de analogias entre os sujeitos, mas a produção de diferenças,

a singularidade de cada sujeito produzido em cada lugar, a cada momento.

Então, quando nessa produção predomina o instituído, a reprodução de um

sujeito do desejo assujeitado aos interesses dominantes, aos interesses

exploradores, aos interesses mistificantes, ele adota as características de um

sujeito mais ou menos universal e eterno. A isto se chama produção de

subjetividade assujeitada, subjetividade submetida. Quando o que predomina

neste processo é a geração do novo absoluto, de subjetivação absolutamente

original, absolutamente singular, absolutamente Instituinte, absolutamente

contingente, circunstancial e gerada pelos eventos revolucionários, a isto se

chama produção de subjetivação livre, não assujeitada, primigênia, produtiva,

revolucionária, em que o desejo se realiza em conexões locais, micro, e se

efetua gerando o novo, não se concretiza restituindo o antigo processa-se não

reproduzindo o instituído, o organizado, o estabelecido, mas se realiza gerando

o Instituinte e o organizante.

Por que esta discriminação é importante? Porque na leitura que o

Institucionalismo vai fazer de cada organização, de cada estabelecimento,

movimento ou proposta, ele vai privilegiar a intelecção de dispositivos que são

capazes de produzir subjetivações. E não vai privilegiar, a não ser para

denunciá-los, a leitura de aparelhos ou equipamentos que estão destinados a

produzir a reprodução de subjetividades submetidas. O mesmo vai acontecer

nas montagens técnicas, organizativas, políticas, com as formas de militância,

com a "maquinaria de guerra" que o Institucionalismo pretende propiciar em

suas intervenções, porque as mesmas têm de estar protagonizadas por novas

produções de subjetivação, circunstanciais, transitórias, capazes de encarar o

47

sentido desejante e revolucionário e depois autodissolver-se para deixar seu

lugar a outras. Evidentemente, todas essas definições necessitariam de

exemplos muito precisos que, pela natureza elementar deste livro, não

poderemos dar nesta exposição. Mas a discriminação que tem de ficar

claramente estabelecida é que o Institucionalismo, em geral, não .se propõe

"pegar" um sujeito reprodutivo que é sempre o mesmo, eterno e universal e

invariável em todo tempo e lugar, e trabalhá-lo para torná-lo produtivo. O

objetivo institucionalista é criar campos de leitura, de compreensão, de

intervenção para que cada processo produtivo desejante, revolucionário, seja

capaz de gerar os "homens" (ou sujeitos) de que precisa. Não ajeitá-los a partir

de uma suposição de que já estão feitos, mas aceitar a ideia de que os novos

homens se fazem a cada momento, em cada circunstância.

Essa exposição que se acaba de ler não segue ao pé da letra as teorias

sistemáticas da Psicanálise, o Marxismo ou as psicossociologias de cunho

fenomenológico, positivista, culturalista ou estrutural-funcionalista. Em muitas

passagens, pode ficar sincrética ou imprecisa demais. A intenção não é dar

uma série de definições acadêmicas fiéis a seus textos de origem. Este é o

caso, por exemplo, de quando falamos do inconsciente ou do desejo. O

contexto em que falei dessa questão ainda é um espaço teórico algo clássico,

que habitualmente se aborda com o nome de ideologia. É verdade que há uma

certa definição de ideologia que a considera como uma série de

representações erradas, de crenças, de convicções acerca do mundo, que está

animada pela ilusão, pela esperança e pelo medo. Costuma-se reconhecer que

existem ideologias dominantes que são as ideologias da classe dominante, ou

seja, que são ideologias conservadoras, reacionárias. Por outro lado, existem

ideologias revolucionárias, que são ideologias das classes, dos grupos que

procuram uma drástica transformação social. Em geral fala-se dessas

ideologias como sinônimo de consciência falsa ou distorcida. São crenças,

convicções ou expectativas e desejos conscientes. Ademais, afirma-se que a

ideologia dominante na sociedade é a ideologia dos grupos dominantes, é uma

ideologia que se impõe pela ignorância ou a distorção, apesar de ser contrária

aos interesses da maioria. Então, costuma-se dizer que a maneira de reverter

essa situação é instruir, é educar, é modificar essas representações, é criar

48

outro tipo de expectativa ou vontade, é conscientizar acerca dos limites da

potência que tem a classe dominante, conscientizar acerca do potencial de

prazer, de gozo, de eliminação do sofrimento que teria uma transformação

social protagonizada pela classe dominada. Mas é importante recordar que

desde um bom tempo atrás já existem pesquisas e produções teóricas que

mostram que não é apenas por medo ou esperança, por ignorância,

informações erradas ou manipuladas que as classes, os grupos e sujeitos

submetem- se aos interesses das classes dominantes. Eu citava o célebre

psicanalista Reich quando ele, estudando o movimento nazista da Alemanha,

afirmava que o povo alemão não estava desinformado; talvez estivesse

incorretamente informado, mas é difícil acreditar que o povo mais culto da

Europa fosse capaz de acreditar nas asneiras que estavam sendo ditas; e

também não tinha tanto medo, porque era um povo muito orgulhoso, muito

seguro de suas forças, com um proletariado muito politizado. E, sem dúvida,

este povo acabou aderindo maciçamente ao projeto nacional-socialista, um

projeto de dominação do mundo, racista, machista, que reunira em si todos os

autoritarismos, todos os paternalismos, toda a capacidade antiprodutiva de

uma sociedade moderna. Por quê? O que W. Reich diz é que foi devido não

apenas às circunstâncias históricas econômicas, políticas e ideológicas que

todo mundo conhece, mas também a determinantes, digamos, histórico-

eróticos, libidinais, que fizeram com que este líder fosse capaz de mobilizar

certos desejos inconscientes da massa e fazê-la participar de um projeto

onipotente e sádico, uma maneira de realizar inconscientemente esses

desejos, desejos inconscientes de domínio, de exercício da crueldade, desejos

inconscientes que, segundo Reich, eram maneiras de restituir a cada um deles

o estado utópico narcísico perdido. Reich já sabia que não é apenas com a

consciência que se consegue dominar os povos, fazê-los operar contra seus

potenciais e interesses, mas com outro tipo de mobilização. O Institucionalismo

vai recolher bastante de Reich, mas reformulando-o segundo sua própria

compreensão do desejo – que não é o desejo segundo a Psicanálise de Reich;

não é o desejo exclusivamente psíquico ou inconsciente (segundo o

inconsciente edipiano da Psicanálise), mas o desejo imanente a todas as

forças materiais possíveis de potência produtiva. Não é um desejo que, por

natureza, pretenda restituir alguma coisa perdida, mas é um desejo que, por

49

substância, é revolucionário. Este tipo de desejo inconsciente, que tem de ser

lido no campo da análise e mobilizado pelas intervenções, pelos dispositivos

instituintes, para que opere historicamente segundo sua verdadeira essência e

não seja encaminhado a animar máquinas reprodutivas e antiprodutivas.

O emprego que aqui fizemos de uma verdadeira proliferação de termos

é uma peculiaridade do caráter intertextual e descartável da terminologia

institucionalista. É possível que seja um tanto confuso, particularmente com

relação ao léxico sistemático da Psicanálise ou do Materialismo Histórico.

Eu me surpreenderia se estivesse claro. Afinal, tudo o que teria de ser

dito sobre Psicanálise, o Édipo, a concepção psicanalítica do desejo e o

Institucionalismo é muito mais amplo do que a gente pode dizer aqui. Se

alguém observa no meu relato restos da nomenclatura psicanalítica, isso pode

ser até uma espécie de interpretação ou intervenção institucionalista sobre meu

discurso, na medida em que, por mais que a gente se envergonhe, a gente

também é psicanalista. É evidente que chegamos ao Institucionalismo a partir

de identidades diferentes. Há institucionalistas psicanalistas. Cada um de nós

tem de lutar contra constrições, restrições teóricas e técnicas e "práxicas" que

a sua identidade prévia lhe impõe. Porque ser institucionalista implica uma

tremenda transformação do aparelho teórico, metodológico, técnico da atitude

profissional e da atitude específica do especialista. Então, nesta função que

estou cumprindo agora, não me surpreende que eu tenha as minhas

vacilações. Não sei se elas foram percebidas. Obviamente não são registradas

por mim, que sou interessado e, portanto suspeito. Tenho a impressão de que

não é tanto assim: "Apenas por egossintonia." Mas o que aparece na mudança

do caminho é o seguinte: o Institucionalismo é um saber intersticial, é um saber

nômade, é um saber errático; então, ele pega algum elemento de cada campo

do saber e do fazer e tenta agregá-lo a novos contextos para criar uma ideia

nova. Em compensação, o Institucionalismo não é uma ciência, não é uma

disciplina, não tem objeto específico, não tem aparelho teórico conceitual

restrito, não tem um objeto formal abstrato. Então, o que eu estava tentando

explicar com referência ao desejo e ao inconsciente é que este é uma ideia

repensada, porque o Institucionalismo não a toma emprestada, não a importa

(como se diz em epistemologia); o Institucionalismo "rouba" alguma coisa de

50

cada corpo teórico e se sente com direito de roubar, porque não respeita a

propriedade intelectual privada nem específica. Por exemplo: O roubo que o

Institucionalismo fez da Psicanálise e do conceito clássico de essência do

desejo inconsciente como força capaz de gerar uma série de efeitos, como o

valor do prazer e do desprazer no campo libidinal, no plano das "escolhas

objetais". Mas o Institucionalismo vai transformar este conceito. O desejo

inconsciente na Psicanálise é uma força que insiste em restituir

imaginariamente o narcisismo como estado inicial em que coincidem

investimento e identificação; então, como é que a Psicanálise atua? Ela o faz

tentando impedir que o desejo reatualize a unidade imaginária do ego do

sujeito com o objeto narcísico por meio da castração simbólica, orientando e

fluidificando o desejo através do sistema simbólico. O desejo se mobiliza para

restituir imaginariamente o narcisismo. A intervenção psicanalítica o obriga

(mais que lhe possibilita) a animar o sistema simbólico, a representar, a

significar, a sublimar. Por sua vez, o Institucionalismo não acredita que a

essência do desejo seja restitutiva, nem que deve ser capturado no sistema

simbólico, nem obrigado a nada. Ele pensa que o desejo é espontaneamente

produtivo, revolucionário, inventivo. Apenas se deve criar condições para que

ele possa animar dispositivos e máquinas revolucionárias capazes de realizá-la

em acontecimentos e devires. Para o inconsciente psicanalítico o desejo nunca

se realiza, é da característica do irrealizado, só pode imaginar-se e simbolizar-

se. Para o Institucionalismo, o desejo realiza-se sempre, apenas é preciso

produzir condições históricas em que ele possa realizar-se produtivamente.

Isso inclui engendrar modos de subjetivação que co-protagonizem este

processo.

Para alguns institucionalistas, se é que eles aceitariam essa

denominação genérica, o inconsciente e o desejo são a substância mesma da

realidade (como diria o filósofo Espinoza), da qual se diz que se repete como

diferença, ou seja, que é o Ser do Devir sempre infinitamente diferente.

Também se afirma que é a Vontade de Potência afirmativa e a ação das forças

positivas (como postularia Nietzsche) que gera o inter-jogo de forças e a

origem de tudo. Kant talvez diria que o desejo consiste em quantidades

intensivas, que são prévias às quantidades e qualidades de tudo que existe.

51

Bergson falaria das virtualidades – que não existem, mas são reais, e só

esperam sua atualização. Para certos institucionalistas, o inconsciente é

produzido em cada agenciamento, em cada dispositivo que se autogera para

originar um acontecimento e um sentido. Tais inconscientes não são causados

por sujeitos nem por objetos, pelo contrário, eles podem processar modos de

subjetivação e objetivação que são necessários para as novidades produtivas

que os geraram em sua montagem.

Não obstante, nos propomos voltar sobre o tema no capítulo seguinte.

Apenas observemos que, para certas correntes do Institucionalismo, o sujeito é

uma organização por meio da qual se realizam muitas instituições. Assim

entendido, o sujeito é produto de processos instituintes, organizantes,

criadores, assim como de outros repetitivos ou antiprodutivos. É por isso que

as diversas escolas institucionalistas tentam analisar e intervir sobre o sujeito-

organização em suas relações de atravessamento e de transversalidade com

outras organizações: subjetivas ou não (ou seja: no trabalho, na educação, na

saúde etc.), outras correntes institucionalistas não dizem que o sujeito é

apenas uma peça do processo de produção de subjetividade alienada ou de

subjetivação revolucionária. Esses processos são imanentes a muitos outros e

sua abrangência e produtos são muito mais amplos e complexos do que aquilo

que se entende por" sujeito".

52

PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO III

1. Que diferença existe entre História e Historiografia?

2) Existe uma História que totaliza todos os percursos dos

processos sociais-econômicos-subjetivos e naturais?

3) O que significa Molar e Molecular?

4) O que se entende por produção, reprodução e

antiprodução?

5) Qual é o papel da repetição e da diferença, do acaso e

das regularidades na História?

6) Qual é a diferença do modo de definir sujeito e desejo:

na Psicanálise e no Institucionalismo?

53

Capítulo IV

O DESEJO E OUTROS CONCEITOS NO INSTITUCIONALISMO

Eu dizia, em uma passagem do capítulo anterior, que não me estranharia que

muitos dos conceitos do Institucionalismo não fossem fáceis de entender,

assim como a essência mesma do Movimento.

O filósofo Gaston Bachelard escreveu um livro chamado "Psicanálise do

Espírito Científico". Na realidade, não se tratava propriamente de Psicanálise e,

por outro lado, se compreenderá que não se pode falar, em um sentido estrito,

de "espírito científico" – só Sé pode aceitá-lo como uma metáfora. O

mencionado texto tratava de caracterizar os principais hábitos do pensamento

corrente que, por estarem muito arraigados, produzem um efeito de convicção

na "mente" de quem pretende formar-se como cientista. Esses "vícios" do

senso comum operam como obstáculos que dificultam ou impedem o estudioso

de assumir as peculiaridades de funcionamento dos diversos métodos

científicos, cujas "verdades" freqüentemente contrariam as evidências da

opinião generalizada. Bachelard tentava um trabalho epistemológico que

operasse uma espécie de "cura" dessas crenças para conseguir, assim, a

predisposição dos "espíritos" para a adoção de uma atitude tipicamente

científica.

Não ignoro que, devido às deficiências da formação geral e universitária

da qual padecemos, muitos ainda não podem estar certos de haver adquirido o

mencionado" espírito", ou um outro melhor ainda, por isso torna-se

especialmente difícil exigir-lhes, neste momento, que comecem a aprender a

criticar-se enquanto "científicos", entendendo a singular proposta do

lnstitucionalismo. Cabe aqui lembrar que, a despeito do Institucionalismo nutrir-

se em grande parte das contibuições mais revolucionárias das ciências

contemporâneas, tem com elas uma relação contraditória, polimorfa e

complexa.

Um típico problema que se apresenta quando se trata de ensinar alguma

ciência em particular passa-se devido ao fato de que, semanticamente falando,

alguns termos teóricos que as ciências empregam são idênticos aos utilizados

54

na linguagem cotidiana. No entanto, sabemos que essas palavras, quando

importadas e processadas no seio de uma teoria científica, mudam

radicalmente de sentido, não conservando nenhuma das denotações e

conotações (como diz certa lingüística) que tinham nos discursos ou textos de

origem. Contudo, ainda durante um longo período de sua aprendizagem, os

jovens estudantes de uma ciência continuam confundindo essas diferentes

significações.

As diversas correntes institucionalistas, por sua parte, podem empregar

termos teóricos com acepções idênticas às utilizadas pela ciência de onde um

conceito foi tomado, ainda que invariavelmente o façam isolando esse conceito

do contexto sistemático no qual o mesmo foi enunciado e do qual recebe seu

valor de origem.

Em outros casos, o Institucionalismo procede adotando algum termo,

mas o faz acrescentando-lhe sentidos que se somam aos originais, sem

descartá-las. Finalmente, o Institucionalismo pode também transformar um

conceito em uma categoria, ou em uma noção, ou até em uma alusão vaga, se

considera que, em determinada conjuntura, torna-o revelador.

Para concluir, cabe recordar que o Institucionalismo é a expressão, algo

extremada, de um questionamento da hegemonia do pensamento científico

como tal e de suas diversas especificidades, defendendo a fertilidade de todos

os saberes, incluídos, por exemplo, os que existem em "estado prático" nas

atividades leigas, artísticas, religiosas etc.

Por isso, às vezes é duro, para quem se aproxima deste estudo, aceitar

e entender a polissemia que adquirem semantemas provenientes, digamos, da

Psicanálise (inconsciente, desejo etc.), ou outros originários de algumas

escolas do Materialismo Histórico (sobredeterminação e mais-valia, por

exemplo).

Agora, peço-lhes que se coloquem um pouco no lugar do docente. Estou

tentando dar um curso introdutório de um saber que não tem limites. Se os

profissionais, especialistas de alguma disciplina, queixam-se da incrível

aceleração na produção de conhecimentos de cada saber, que faz com que os

experts não consigam acompanhar essa produção – em alguns ramos muito

55

desenvolvidos, como a Física, chega-se a afirmar que o expert só tem dez

anos de vida útil, tendo se tornado descartável como os jogadores de futebol,

pois depois de uma década já não consegue acompanhar o ritmo de produção

teórica e tecnológica de sua disciplina e não chega a atualizar-se. Imaginem

vocês uma coisa como esta, que é um composto de todos os saberes de uma

época, inclusive os saberes não-científicos, os artísticos, os populares; então a

formação de um institucionalista realmente é interminável.

Estou tentando dar uma visão panorâmica geral, muito pouco

aprofundada e ambiciosa, de certos conceitos, de certas idéias básicas e de

algumas das principais correntes. Não nego que algumas ampliações sejam

essenciais, mas justamente porque o são, desenvolver esses temas, no caso

de eu estar capacitado para fazê-lo, levaria a outros tantos cursos. Este é um

pequeno esclarecimento e uma desculpa pelo tratamento que tentarei dar a

várias questões, que terá de ser breve, para que eu possa desenvolver este

capítulo coerentemente com o resto do texto.

Comecemos por lembrar que não existe uma escola institucionalista,

mas sim muitas, e existem diferenças teóricas, metodológicas, técnicas,

políticas entre elas. O que há como característica comum é o interesse pela

produção nas organizações e instituições, assim como por um funcionamento

autoanalítico e autogestivo das mesmas. É o mínimo denominador comum que

se consegue encontrar entre as várias tendências. Agora, entre as muitas

diferenças existentes de uma para a outra, está a definição dada a "desejo".

Boa parte delas reconhece a existência do psiquismo como um campo

relativamente autônomo da realidade. A maioria delas aceita, dentro desse

campo chamado psiquismo, a existência de um espaço, de um sistema e de

processos de caráter inconsciente que considera do campo das causas, da

área dos motores do funcionamento psíquico, sendo que o comportamento, a

conduta, as vivências, as representações e afetos são do campo dos efeitos

deste psiquismo. No entanto, a maioria deles atribui à Psicanálise o mérito de

ter descoberto esta instância determinante, que seria o inconsciente com seu

processo primário e a força que anima essa instância, que é o desejo. Boa

parte deles concorda com a definição de desejo que seria predominante à

colocada em muitos textos freudianos. Em que consiste esta definição de

56

desejo? Seria uma força insistente, persistente, que procura restaurar, reeditar,

em último termo, um certo estado do "desenvolvimento" do psiquismo que se

denomina narcisismo, em que o ego e o objeto são um, em que não existe a

separação sujeito-objeto – que a Psicanálise atribui ao Complexo de

Castração. Então, a partir da ruptura desse estado, surge uma força que seria

o desejo, que tenta reproduzi-lo. Quando a mesma é obrigada a passar por

outras instâncias, outros dispositivos, outras maquinarias do psiquismo,

particularmente por certa ordem de representações, ela acaba gerando todos

os produtos chamados "normais" da vida psíquica, que são rendimentos,

resultados dessa trajetória que o desejo faz em lugar da sua realização

meramente "alucinatória", ou seja, de sua tentativa de restauração desse

narcisismo inicial. Isso, como o leitor avaliará, inclui uma definição restitutiva do

desejo; o desejo tem uma natureza conservadora; ele parte de uma situação

narcisística e tende a voltar a ela; ele torna-se produtivo apenas quando nesse

caminho, nessa trajetória, é obrigado a elaborar, e a sublimar, devido à sua

subordinação à ordem simbólica, a lei ou a sua inscrição no processo

secundário (como se queira chamá-lo). Muitos institucionalistas compartilham

plenamente essa definição de . desejo e a aplicam à compreensão dos

aspectos psíquicos da vida organizacional, usando-a no entendimento do

funcionamento da subjetividade, assim definida nas organizações,

particularmente em seus aspectos inconscientes. Um exemplo característico de

um autor institucionalista que é absolutamente fiel a esta definição freudiana de

desejo, embora tente articulá-la com uma teoria materialista-histórica da

sociedade, da economia,da política e das organizações, é Gerard Mendel,

criador de uma corrente institucionalista chamada Sociopsicanálise, à qual

vamos nos referir mais adiante porque está contemplada em nosso programa.

Já uma definição menos fiel à freudiana é a de René Lourau, que recolhe a

definição de desejo de uma forma menos ortodoxa. Mas se a gente estuda a

obra freudiana com amplitude e detalhe, percebe setores da mesma em que

essa definição de desejo, que explicamos anteriormente, mostra-se

característica, por exemplo, do capítulo VII da "Interpretação dos Sonhos" e da

chamada primeira tópica. Entretanto, existe a possibilidade de outra definição

baseada nas passagens freudianas em que o Id é pensado como um "caldeirão

fervente" cheio de estímulos, no qual a pulsão de vida funciona segundo o

57

processo primário. Nesse caldeirão estão incluídos os impulsos libidinais e

desejantes dessa "usina" – que têm por objetivo não a restituição de estados

perdidos, mas propiciar, de forma anárquica, estados permanentemente novos;

associar, cada vez mais amplamente, unidades vitais; processar o movimento

como sendo a essência da pulsão de vida e do desejo que dela emana.

Justamente a partir dessa definição surgiu a plêiade de inúmeros autores que

impugna a existência de uma pulsão de morte no psiquismo, assim como a

exclusividade de um modo de ser do desejo em cujo extremo está a pulsão de

morte que tenta restaurar um estado imaginário perdido, e com ele a

imobilidade. Estamos vivendo uma situação cultural em que se está impondo a

hegemonia de uma das leituras do desejo que Freud fez (a estruturalista).

Estamos assistindo, mundialmente, a uma certa fragilidade das proposições do

marxismo ortodoxo, assim como a de uma série de autores que partiam desse

outro setor da obra freudiana para definir a pulsão e o desejo, como por

exemplo, os freudo- marxistas. Então, não é estranho que isto se apresente

como uma dificuldade para os interessados no assunto, porque este é um

problema muito atual e de muita disputa teórica. No entanto, outros setores do

Institucionalismo, particularmente Deleuze e Guattari – os criadores desta

orientação chamada Esquizoanálise, muito pouco conhecida e muito pouco

implantada tanto em nosso meio como rio mundo inteiro –, levam as

proposições freudo-marxistas dessa outra definição do desejo até extremos

pós-freudianos e pós-marxistas baseados já em outras contribuições de

disciplinas atuais, como a filosofia, a macrofísica, a microfísica, a biologia

molecular e certos campos das ciências formais, por exemplo a matemática de

Rieman. Os "descobrimentos" desses saberes têm dado origem ao que se

chama de uma mudança de paradigma, uma transformação do modelo

dominante no horizonte atual do conhecimento. Essa mudança, em um de seus

aspectos, consiste na promoção de certo poder criativo da desordem, na

reivindicação da neguentropia, ou tendência à autopoiese, na defesa da

produção, da vitalidade, inclusive na ma terialidade psíquica e seus

determinantes em última instância, que seriam a pulsão e o desejo. Então,

Deleuze e Guattari, também apoiados na literatura, na arte, e ainda no discurso

delirante, constroem uma definição de desejo como sendo não apenas a força

que anima o psiquismo, mas uma força essencialmente produtiva e criativa

58

buscadora de encontros que, além de tudo, é imanente a outras forças

animadoras do social, do histórico, do natural. O desejo não tem caráter

restitutivo – tem caráter essencialmente produtivo- revolucionário – e não é

uma força separada das que animam a vida social e natural. Por isso há uma

fórmula na Esquizoanálise, que afirma que a Esquizoanálise consiste em

introduzir o desejo na produção e a produção no desejo. Trata-se de aprender

a pensar um desejo essencialmente produtivo e uma produção, dita no sentido

amplo, que não pode ser senão desejante – à medida que funciona como o

processo primário inventado por Freud e considera as subjetivações

essencialmente envolvidas nesses processos produtivos, tanto quanto na

natureza e nas máquinas técnicas e semióticas.

Outra questão a ser abordada diz respeito à determinação em última

instância. Bom, Marx afirma que a vida social está estruturada como uma

espécie de edifício, em que há os alicerces e há as paredes superiores visíveis.

O que Marx insiste em afirmar é que a vida social está finalmente determinada

pela atividade econômica, isto é, por processos de produção de bens materiais

indispensáveis para a produção e a reprodução da vida humana sobre a terra.

Dessa maneira, a chamada infraestrutura determina a superestrutura, apesar

de que Marx nunca negou que a superestrutura retroaja sobre a infraestrutura.

Assim, as resultantes desse processo complexo não são causadas, de forma

alguma, exclusivamente pelo econômico, não podendo ser entendidas dessa

maneira. E também não seriam modificáveis exclusivamente a partir do

econômico. Um de seus seguidores, Louis Althusser, utilizando outro modelo

de formalização da estrutura social – modelo esse tomado da matemática dos

conjuntos – representa a vida social como uma composição de três

subconjuntos que estão parcialmente intersecionados, de maneira que algumas

áreas desses subconjuntos têm autonomia relativa e outras são superpostas ou

imanentes entre si. Mas o conjunto total, o sistema, que Althusser chama "todo

complexo articulado, diversificado e sobredeterminado", funciona

interpenetrado, de maneira tal que haverá um determinante em última

instância, que em todos os modos de produção é o econômico, uma instância

dominante e uma instância decisória ou decisiva. O determinante em última

instância é o que define o papel dos outros e da sua participação causal na

59

determinação dos efeitos econômico -sociais, mas não exclusivamente, e sim

mediatizado por aqueles. A instância chamada dominante é aquela

fundamental para a reprodução do modo de produção, para que o modo de

produção se reproduza "idêntico" a si mesmo. A instância decisória é a

fundamental no processo de transformação de um modo para sua passagem a

outro. Essa é a determinação complexa pela qual todas as instâncias

participam de todo e qualquer dos efeitos e resultados. Althusser a denominou

sobre determinação, um modelo da causalidade que tomou da segunda tópica

freudiana, em que ld, Ego e Superego funcionam dessa mesma maneira para

determinar qualquer efeito no psiquismo: atos, formações do inconsciente etc.

O Institucionalismo, em alguns de seus ramos, tem muito em comum com a

proposta althusseriana, à medida que adota essa idéia de sobredeterminação.

Outros setores do Institucionalismo têm sua própria teoria da causalidade

social. Por exemplo, no caso de Deleuze e Guattari, não é uma teoria da

sociedade formada por três subconjuntos que, por sua vez, formam o conjunto

total, mas uma sociedade reticular formada por uma grade aberta, uma malha

de funcionamentos interpenetrados que são simultaneamente psíquicos,

tecnológicos, econômicos, políticos, semióticos e naturais e estão ordenados

em três superfícies: de produção, de registro e de consumo. Existem outras

teorias da causalidade social próprias de outras tendências institucionalistas,

mas todas elas têm em comum a insistência em não separar as determinações

psíquicas inconscientes das econômicas, políticas, técnicas, naturais etc.

Quanto aos principais recursos teóricos do Institucionalismo, o primeiro a ser

abordado será o conceito de campo de análise. As diversas tendências do

Institucionalismo podem constituir o que se chama – em uma terminologia

discutível – um "recorte" da vida social que pode ser desde pequeno até

amplíssimo, desde um estabelecimento até, por exemplo, o que Deleuze e

Guattari chamam o "Capitalismo Planetário Integrado". Isso significa delimitar

um objeto ou um campo e aplicar-lhe o aparelho conceitual do Institucionalismo

para entendê-lo, para saber como funciona, como estão colocadas e

articuladas suas determinações, suas causas, como se geram seus efeitos etc.

Esse objeto pode estar constituído por materiais. muito heterogêneos – por

exemplo, as principais correntes do fluxo de capitais no mundo atual –, e isso

dará um estudo como aquele no qual participou recentemente Guattari, que se

60

chama "Contratempo". Campos de grande porte poderão produzir um livro

como o que escreveu Lourau, que se chama "O Estado e o Inconsciente", uma

tentativa de analisar as diversas configurações que o Estado adquire nos

diferentes modos de produção no curso da história, nas diferentes civilizações e

a forma como o Estado se implanta nos sujeitos a nível inconsciente. Esses

campos de análise são terrivelmente amplos. Mas podem ocorrer campos de

análise infinitamente menores, como uma análise do significado da festa no

Brasil ou uma análise dos efeitos da comunicação de massa em Caruaru, ou o

funcionamento dos programas de estudo no vestibular, ou da múltipla escolha

para o processo de seleção. Isso ainda não implica necessariamente uma

intervenção concreta sobre esse campo assim delimitado; implica um processo

de compreensão, de inteligência dos determinantes desse campo. Por isso

denomina-se campo de análise.

Outra coisa é o campo de intervenção, que é o "recorte", o espaço

delimitado para planejar estratégias, logísticas, táticas, técnicas para operar

sobre este âmbito e transformá-lo realmente, concretamente. É claro que o

campo de intervenção é, em geral, infinitamente menor que o campo de

análise, porque neste momento é demasiado utópico pensar o planejamento de

uma intervenção a nível nacional continental ou planetário, O máximo que se

consegue delimitar são campos de análise organizacionais. E óbvio, também,

que em qualquer corrente de Institucionalismo, a constituição de um campo de

análise pode estar articulada com um campo de intervenção. Só que um campo

de análise é pensável sem intervenção, mas um campo de intervenção é

impensável sem um campo de análise. Pode-se compreender e não intervir,

mas não se pode intervir sem alguma forma de compreensão. Em geral quando

os dois campos se constituem, eles estão articulados entre si: à medida que se

compreende, se intervém; e à medida que se intervém, se compreende.

O ponto seguinte é a análise da oferta e da demanda, que também

temos de tratar sinteticamente, particularmente dentro do enfoque da análise

institucional ortodoxa, cujos autores mais notórios são Lourau, Lapassade e o

pessoal que os rodeia dentro de sua Sociedade Francesa de Análise

Institucional. Eles insistem em explicar que um passo importante para começar

a compreender institucionalmente a dinâmica de uma organização é decifrar,

61

analisar, esmiuçar o pedido que esta organização faz de uma análise e de uma

intervenção. Para dizê-la provisoriamente: quais são os aspectos conscientes,

manifestos, deliberados, voluntários deste pedido, e quais são seus aspectos

inconscientes e/ou não-ditos. A isso chamam análise de demanda, que é um

dos primeiros passos para entender em que consiste a conflitiva, em que radica

a problemática desta organização solicitante. Mas acontece que, para fazê-lo, o

Institucionalismo enfatiza a necessidade de se ter presente a idéia de que a

demanda não é espontânea, a demanda não é o primeiro passo de um

processo: ela é produzida, de tal modo que existe um passo anterior à

demanda que é a oferta. A demanda não existe por si. Quando alguns

psicanalistas falam hoje em análise da demanda como a expressão do desejo,

eles não têm aparelho teórico para pensar que o processo não começa aí, que

essa demanda de análise foi produzida pela oferta prévia de análise, e está

marcada, modulada, determinada, desde o princípio, por esta oferta. De modo

que para compreender a demanda de análise institucional de uma organização

é necessário, antes, incluir a autoanálise, a compreensão de como a

organização analítica gerou esta demanda; ou que relação existe entre a

publicidade, a divulgação científica ou não-científica, a proposição direta ou

indireta dos serviços que a organização analítica faz e que não pode não ser

causante, geradora ou moduladora da demanda de serviços que lhe é

formulada.

Um institucionalista muito respeitável e, no meu modo de ver, injustamente

pouco conhecido, o paulista que se chama Guilhòn de Albuquerque, tem uma

fórmula que não explica todas as situações, mas que é muito ilustrativa, e que

gosto muito de usar com fins pedagógicos: ele diz que toda organização de

prestação de serviços transmite um recado de maneira mais ou menos

consciente ou inconsciente durante o processo de oferta de suas prestações,

que consiste aproximadamente em passar ao usuário uma mensagem que diz:

"Eu tenho o que te falta e, além disso, você não entende, não sabe em que

consiste." Essa mensagem subjaz, está "por trás" de toda oferta de prestação

de serviços e, provavelmente, também de bens materiais. Então, quando essa

oferta gera uma demanda, ela não pode estar modulada senão pela própria

oferta. Quem demanda, demanda alguma coisa que já lhe fizeram acreditar

que não tem e que o outro tem. Mas é tão complexa, tão sutil, tão técnica, que

62

ele não sabe o que é. Portanto, para poder dar o primeiro passo em toda

análise de intervenção institucional – que é analisar a demanda-, esta análise

deve ser articulado com a forma em que foi produzida, ou seja, com a oferta.

Isso exige por parte do coletivo analisante, o coletivo prestador de serviço, um

severo processo de autoanálise de como produzir a oferta de seus trabalhos.

Entre a organização analisante, interveniente, e a organização analisada,

intervinda, vai-se produzir uma interseção que gera uma nova organização, que

é o verdadeiro objeto de análise. Não existe aqui, então, uma posição clássica

de objetividade: não somos os experts que sabem e a organização-cliente não

é um objeto passivo e ignorante. Mas juntos é que vamos tentar entender como

é esta realidade nova que se deu na interseção de nosso encontro.

Outro termo fundamental dentro do Institucionalismo é analisador. A

Psicanálise já classicamente, concebeu o conceito de derivados do

inconsciente, formações do inconsciente, formações transicionais ou

transacionais – todos esses termos são sinônimos e designam aqueles

fenômenos, sejam eles pontuais ou mais amplos, como sonhos, atos falhos,

lapsus linguae, chistes, sintomas, delírios, que são elementos privilegiados

dentro do material que um paciente apresenta para ser analisado. Esses

produtos não são resultado linear de uma instância ou de um setor da

personalidade, não são efeitos exclusivamente conscientes, nem

exclusivamente pré-conscientes, nem exclusivamente inconscientes. Não são

dados claramente efetuados pelo superego, nem pelo ego ou o id. São

fenômenos resultantes de uma combinação, de uma mistura, da articulação de

uma transição ou de uma transação entre todas essas instâncias. Por isso é

que se chamam, segundo uma das denominações, efeitos transacionais ou

formações transacionais. Só que em Psicanálise estes efeitos têm por

característica, pelo menos fenomênica ou técnica, exprimir exclusivamente a

problemática de um sujeito, manifestá-la, denunciá-la. O analisador, em análise

institucional, é um efeito ou fenômeno formalmente parecido com esses efeitos

privilegiados do material da Psicanálise. Mas as diferenças são as seguintes:

Primeira: na materialidade fenomênica, na aparência desses

fenômenos, não se privilegiam, absolutamente, os efeitos verbais. Qualquer

materialidade pode ser suporte de um analisador, ou seja, um analisador não é

63

necessariamente um discurso, mas pode ser um monumento, a forma como

está elaborada a planta arquitetônica da organização, pode ser uma

característica dos modos de relação que não está formalizada nem anunciada

em parte alguma, ou seja, pode ser um costume e não uma norma, nem uma

lei; pode ser um arquivo, isto é, a maneira como está organizada a memória de

uma organização; pode ser uma distribuição do tempo ou do espaço na

organização. E é claro que podem ser também formas escritas ou faladas do

discurso organizacional. Por exemplo, os estatutos, os regulamentos, a carta

de princípios, o organograma, o fluxograma etc. E podem ser os relatos ou as

mensagens verbalmente proferidas pelos integrantes nas entrevistas, nos

questionários ou em qualquer forma de comunicação intersubjetiva. Os mitos,

os rituais, o uso do dinheiro, do lazer, da sexualidade, do domínio e o cuidado

de si, etc. Então, a materialidade expressiva de um analisador é totalmente

heterogênea. Não é que em Psicanálise não o seja, porque sabemos que em

Psicanálise os comportamentos, as atitudes corporais, a couraça

caracterológica também são considerados formações do inconsciente; só que a

Psicanálise tem uma persistente predisposição a privilegiar os efeitos verbais

como sendo os veículos predominantes das formações do inconsciente, e a.

subordinar os outros à compreensão verbal. Isso é claro. Um analisador não é

assim. E essa é a primeira diferença.

Segunda: um analisador não é apenas um fenômeno cuja função específica é

exprimir, manifestar, declarar, evidenciar, denunciar. Ele mesmo contém os

elementos para se auto entender, ou seja, para começar o processo de seu

próprio esclarecimento. Isto não é fácil de ser explicado. Uma formação do

inconsciente é um produto a ser analisado (com uma maior ou menor

intervenção do analista). Um analisador é um produto que pode se

autoanalisar. Existem grandes analisa dores e pequenos analisadores. Um

grande analisador é a Revolução Francesa, por exemplo, revolução burguesa,

como todo mundo sabe, produto de determinados encontros e fluxos de forças

da decadência da monarquia e da ascensão da burguesia média, de certo grau

de migração do trabalhador do campo para a cidade, acumulação de capital

mercantil e usurário etc. Mas esse analisador também produziu a inteligência

de seu próprio processo com os pensadores da Revolução Francesa e ele foi

capaz de autoconduzir-se dentro de certos limites à plenitude da realização de

64

seu destino histórico, que foi marcar o fim do feudalismo e o início ou as

preliminares do capitalismo incipiente e do socialismo real. Mas podem haver

pequenos analisadores, e esses podem ser um conflito dentro da organização,

um determinado acidente numa usina atômica (geograficamente pequeno, pelo

menos) etc. Só que esse analisador, colocado em condições propícias, tem a

possibilidade de não apenas manifestar-se, mas também de se compreender;

ele não precisa ser analisado de fora, ele predsa que se lhe aportem condições

para auto-analisar-se, sendo assumido por seus protagonistas. E dessa

maneira, não apenas é capaz de enunciar, como também de resolver a

situação da qual ele é emergente. Nesse sentido, existem os chamados

analisadores naturais – que é uma expressão inadequada, porque analisadores

naturais são os terremotos, e, realmente, a análise institucional nunca

conseguiu compreender, pelo menos nos seus aspectos geológicos, este tipo

de fenômeno, não está preparada para isso. "Natural" quer dizer espontâneo,

que também é uma má expressão, porque espontâneos todos são. Então, a

definição correta é dizer que são analisadores históricos, ou seja, que a própria

vida histórico-social-natural os produz por conta própria como resultado de

suas determinações. E existem analisadores artificiais ou construídos, que são

dispositivos que os analistas institucionais inventam, introduzem nas

organizações para propiciar o processo de explicitação dos conflitos e de

resolução dos mesmos. É importante enfatizar que os analistas institucionais

na prática técnica, ao nível de produção de analisa dores construídos, se valem

de todo e qualquer recurso, seja de tipo artístico, cenográfico, dramático,

procedimentos de tipo ativista, político, montagens de tipo propriamente

científico, experimental, lógico, sociológico, antropológico e manobras do tipo"

convivência prolongada", em que o analisador institucional passa a fazer parte

orgânica do conjunto que vai estudar, produzindo assim um artefato próximo à

vida cotidiana.

O passo seguinte será falar da análise da implicação.

Felizmente já antecipamos um pouco sobre ela através da análise da oferta. A

implicação se define como o processo que acontece na organização de

analistas institucionais, na equipe de análise institucional, a raiz de seu contato,

de sua interseção com a organização analisada, intervinda. Também é um

65

conceito que tem certa dívida com a chamada contra transferência da

Psicanálise. Só que a contra transferência em Psicanálise é a reação –

consciente ou inconsciente – que o material do paciente produz no analista; e

na análise institucional a implicação não é apenas um processo nem psíquico

nem inconsciente, mas um processo de materialidade múltipla, complexa e

sobredeterminada, um processo econômico, político, psíquico heterogêneo por

natureza, que deve ser analisado em todas as dimensões. E não é apenas

reativo, ou seja, não é a resposta da equipe interventora e analisadora ao

contato com seu objeto, pois é prévia a este contato; não começa no usuário: é

recíproco, é simultâneo e é parte indissolúvel do processo de análise da

organização, ou seja, é o contrário de uma análise "objetiva". É como está claro

nas ciências físicas, a análise da interação, da interpenetração destas duas

organizações, uma análise variável da relação entre o sujeito e o "objeto".

Poder-se-ia dizer que não deixa de ser parecida com uma dás definições que

Freud dá de contratransferência como transferência recíproca. Em

continuação, veremos rapidamente alguns termos, sendo que, de alguma

forma, os retomaremos na exposição correspondente aos itens que compõem

o roteiro de uma intervenção institucional típica, que denominamos standard.

Insistiremos uma vez mais em que estas definições, cuja finalidade é

basicamente transmitir noções introdutórias para os principiantes interessados

no movimento, seguramente não serão nem exaustivas nem precisas. As

mesmas estão armadas com sentidos diversos e heterogêneos tomados de

diferentes obras e autores, artificialmente extraídas dos contextos teóricos,

mais ou menos sistemáticos, em articulação com os quais adquirem seus

significados prevalecentes. Sempre será possível voltar sobre estas noções

nos textos da bibliografia que lhes são mais específicos para multiplicar e

precisar suas acepções.

No Institucionalismo denomina-se equipamentos a uma série de

organizações, estabelecimentos, aparatos, maquinarias e tecnologias muito

diversificados e inclusivos, de grande, médio ou pequeno porte, cuja finalidade

fundamental (mas não única) está a serviço da repressão, do registro ou do

controle social. Uma das maneiras possíveis de classificá-los é referindo-se ao

tipo e grau de violência que empregam para cumprir sua função, enfatizando,

66

além do mais, que sua condição é mais propriamente determinada por essa

função que por sua materialidade, estrutura, forma etc. Alguns exemplos

conspícuos de equipamentos são os que certa tradição marxista chamava de

"aparatos". Estes cumprem funções eliminatórias, segregacionistas ou

punitivas (como por exemplo, as Forças Armadas, a Polícia, a censura cultural

ou a Psiquiatria supressiva). Outros apontam para a doutrinação ou a

informação tendenciosa (certa orientação da Religião, da Educação, da

Comunicação de massas ou a Família).

Mas um equipamento pode ser também uma determinada organização

beneficente, ou certa modalidade de uso de um meio de transporte ou de um

eletrodoméstico, assim também como técnicas de cuidado e gerenciamento da

personalidade por parte das forças repressivas. O certo é que os equipamentos

são predominantemente funcionais ao poder (seja do Estado ou das entidades

civis e privadas hegemônicas) e a reprodução da ordem constituída entendida

como a soma do instituído-organizado.

De um dispositivo pode, de alguma maneira, dizer-se que é o contrário

de um equipamento. Trata-se de uma montagem (termo que frequentemente

se utiliza em cinematografia, teatro ou nas artes plásticas) de elementos

extraordinariamente heterogêneos que podem incluir "pedaços" sociais,

naturais, tecnológicos e até subjetivos. Um dispositivo caracteriza-se pelo seu

funcionamento, sempre simultâneo a sua formação e sempre a serviço da

produção, do desejo, da vida, do novo. Um dispositivo forma-se da mesma

maneira e ao mesmo tempo em que funciona, gerando acontecimentos

insólitos, revolucionários e transformadores. Embora seu tamanho e duração

sejam tão variáveis quanto as materialidades que o compõem, têm a

peculiaridade de nascer, operar e extinguir-se enquanto seu objetivo de

metamorfose e subversão histórica se realizam. Um dispositivo em geral não

respeita, para sua montagem e funcionamento, os territórios estabelecidos e os

meios consagrados; pelo contrário, os faz explodirem e os atravessa,

conectando singularidades cuja relação era insuspeitável e imprevisível. Gera,

assim, o que se denomina linhas de fuga do desejo, da produção e da

liberdade, acontecimentos inéditos e invenções nunca antes conhecidas.

Nesse sentido é óbvio que os dispositivos, também chamados agenciamentos,

67

têm a ver com a transversalidade (conceito que já antecipamos e que

definiremos mais adiante) e, num sentido restrito, com o instituinte-organizante.

Um grupo político sujeito (quer dizer, que se dá seus próprios meios e

leis inseparáveis de seus fins e que não pretende persistir mais além de seu

objetivo revolucionário), uma obra artística, um descobrimento científico, um

pensador original e libertário, um inovador dos costumes sexuais ou das

convicções éticas podem constituir-se num dispositivo, assim como podem sê-

lo certa arrumação de máquinas técnicas (como as rádios livres) ou de defesa

da natureza (como os movimentos ecológicos). Por último, digamos que um

dispositivo não é a obra de indivíduos ou sujeitos, ele os inclui, os constitui e os

"maquina" para concretizar suas realizações.

Em diferentes momentos da constituição de um campo de análise e/ou

intervenção, os institucionalistas efetuam vários tipos de diagnósticos – sempre

provisórios – da estrutura, dinâmica, processos, contradições principais e

secundárias, opositivas e antagônicas, conflitos, defesas, mecanismos,

magnitudes de produção, reprodução e antiprodução, analisa dores, potências,

poderes, territórios, linhas de fuga, equipamentos, dispositivos da área ou

organização intervinda. O diagnóstico é importante para justamente instituir,

organizar, planejar, antecipar, decidir os passos que comentaremos em

seguida, tais como contrato, estratégia, logística, táticas, técnicas: Isso sem

esquecer que boa parte do percurso é imprevisível.

Os institucionalistas, para efetuar análises – seguidas ou não de

intervenções, precisam fazer acordos, pactos, convênios (ou como se queira

chamá-los) com as organizações, estabelecimentos ou, simplesmente, com os

coletivos de usuários "clientes". A estes acordos costuma-se denominar

contrato. Eles versam sobre os compromissos mútuos em que se explicitam os

respectivos deveres e direitos das partes interessadas. Em muitos aspectos o

contrato institucionalista é semelhante a qualquer outro de prestação de

serviços. Trata principalmente de tempo (duração total, frequência dos

trabalhos), honorários ou outro tipo de retribuição, delimitação de objetivos e

autorização de acesso aos materiais de investigação, promessa de sigilo

quanto à informação obtida durante a investigação etc. Como veremos, é

importante estar atento ao fato de que nem sempre o contrato representa um

68

acordo com a totalidade do coletivo intervindo, mas com certos segmentos do

mesmo. Por outro lado, tem especial significação qual é a relação jurídica

(emprego, serviço profissional independente, solidariedade militante etc.) que

fundamenta o contrato. Mas o essencial a recordar é que o contrato no

Institucionalismo não é uma operação comercial externa ao processo que a

intervenção como serviço deflagra. Os diversos aspectos do contrato: tempo,

dinheiro, contratantes, objetivos, expectativas, são analisadores, emergentes

da problemática a ser pesquisada. Seu tratamento já é parte ativa da análise e

da intervenção.

Designa-se por logística o balanço que os institucionalistas fazem de

todas as forças, habilidades, elementos, recursos etc. de que se dispõe ao

começar uma intervenção; quer dizer, com que se pode contar a favor e contra

para poder levar o trabalho adiante com um mínimo de possibilidades de

realização.

A estratégia sistematiza os grandes objetivos a serem conseguidos (cuja

máxima expressão é a autoanálise e autogestão do coletivo intervindo), assim

como a progressão das manobras, dos espaços e territórios que se colocarão,

a previsão de vicissitudes, opções, alternativas, avanços, retrocessos etc.

As técnicas são pequenos segmentos nos quais se decompõe a

estratégia. Para dar um exemplo bélico, totalmente metafórico: a estratégia

decide se será uma guerra de ocupação, de fronteiras, punitiva ou de

extermínio parcial; se essa guerra se dará por terra, mar ou ar, quais serão os

aliados, simpatizantes, neutros e inimigos etc. As táticas referem-se a batalhas

circunscritas, à área onde se desenvolvem, à participação da infantaria,

cavalaria, o horário, os movimentos de tropas etc. As técnicas, prosseguindo

com a metáfora, aludem aos armamentos propriamente ditos: fuzis, morteiros,

granadas etc.

No Institucionalismo é fácil fazer a transposição do que seja a logística, a

estratégia e as técnicas do campo bélico ao campo da intervenção, sem tomá-

las ao pé da letra. É interessante enfatizar drasticamente que no

Institucionalismo, uma vez que se adquira uma base de entendimento do

panorama de uma organização e se concretizem os primeiros dispositivos para

um contrato e diagnóstico provisórios, enquanto já se têm, baseados nisso,

69

esboços de uma logística, estratégia geral e primeiras táticas, a eleição de

técnicas é consideravelmente livre. Quer dizer; será ditada pela inspiração e o

treinamento, assim como pelas predisposições pessoais da equipe operadora,

objetivo geral e imediato perseguido e momento e peculiaridades do coletivo

em pauta.

Procedimentos interpretativos, informativos, esclarecedores, de

sensibilização, de expressão, de discussão, agenciamentos artísticos,

desportivos, convivências, lúdicos, praticados em grupos e em assembleias

podem ser adotados segundo as circunstâncias.

70

PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO IV

1) Qual é o sentido dos termos sujeito, desejo e sobredeterminação em suas

teorias de origem e no lnstitucionalismo?

2) Que diferença existe entre os conceitos de campo de análise e campo de

intervenção?

3) O que significa dizer que a análise da oferta deve preceder a da demanda?

4) O que é análise da implicação?

5) O que são: analisador, equipamento, dispositivo, logística, estratégia, táticas

e técnicas?

71

Capítulo V

AS TENDÊNCIAS MAIS CONHECIDAS DO INSTITUCIONALISMO

Tentarei resumir três modalidades de Institucionalismo que não são as

únicas, nem necessariamente as mais importantes, mas são as que mais

notoriedade têm atingido. São também as mais difundidas, particularmente aqui

no Brasil. Terei de ser muito esquemático. Tentarei uma espécie discutível de

classificação, de graduação entre essas três tendências.

Em termos, digamos, políticos, eu diria que da primeira enunciada – a

Sociopsicanálise de Gérard Mendel – à útima – a Esquizoanálise de Deleuze e

Guattari –, existe uma graduação à medida que Mendel articula uma

concepção mais ou menos tradicional da Psicanálise com uma igualmente

ortodoxa do Materialismo Histórico. Produz, assim, uma forma de abordagem

das organizações e das instituições que, poderíamos dizer, é politicamente

moderada, se é que tal termo exprime alguma coisa. Já a Análise Institucional

de Lourau e Lapassade e a Esquizoanálise de Deleuze e Guattari, eu diria, são

propostas políticas mais subversivas, mais enérgicas, mais ativas, com certos

matizes diferenciais entre elas, que podemos tratar de caracterizar nesta

exposição. Então, contar com certo conhecimento de Psicanálise e do

Materialismo Histórico (entre outros saberes) é necessário para podermos

explicar isto de forma breve, introduzindo-os nesta teoria, metodologia e

técnica sociopsicanalíticas.

A Psicanálise é uma disciplina que foi exigida pela prática clínica. Ela se

ocupa da psicopatologia com uma expectativa de cura, mas, no seu percurso e

desenvolvimento, Freud criou também uma teoria da estrutura e do

funcionamento do psiquismo "normal". Nesta teoria distinguem-se, na

constituição do psiquismo, duas séries assim chamadas: a série disposicional e

a série desencadeante. Essas séries denominam-se complementares. Tudo

que acontece na vida psíquica, tudo que se pode considerar fenômenos ou

efeitos da estrutura do psiquismo é determinado pela articulação entre estas

duas séries. A série disposicional é composta pelos elementos

heredogenéticos que um sujeito psíquico tem e que lhe são legados por seus

72

progenitores, ou seja, pelos sujeitos psíquicos que o geraram. Acrescente-se a

isso as experiências da infância precoce. Então, o hereditário mais as

experiências tidas durante a gestação, mais as correspondentes ao parto e

primeira infância, tudo isso fica registrado e organiza o psiquismo segundo uma

das séries: a série disposicional. Mas com essa série disposicional e a partir de

quando começa a chamada latência, isto é, com o fim do complexo de Édipo

(classicamente entre os cinco e seis anos de idade), o sujeito se incorpora

plenamente à vida social, adquire contato com os grupos chamados

secundários, grupos de jogos, de estudo, de educação, grupos sociáveis no

sentido amplo. Seu Superego está instalado e com ele o sistema de valores

consciente e inconsciente que vai classificar seu mundo de significações. As

marcas que têm deixado nele as experiências libidinais e dolorosas prévias

adquirem retroativamente sentidos morais. Suas representações são

secundariamente recalcadas e estão prestes a retornar do recalcado. Em

seguida, continuam sucessivas incursões nas atividades e grupos sociais que

fazem com que o sujeito atravesse uma situação diferente atrás da outra, e que

tenha de enfrentar essas circunstâncias com a bagagem disposicional que traz.

Essas eventualidades vão exigir de seu aparelho psíquico uma série de

movimentos e de adaptações, de criação e de transformação. Algumas dessas

situações são altamente tensionantes, intensamente pressionantes para o

psiquismo. Quando a série dessas experiências, constituída pelas situações da

vida, atua sobre a série disposicional que o sujeito traz, pode resultar numa

falha do sujeito no processo de simbolização e reação produtiva diante dessas

exigências situacionais. E isso resultará na doença psíquica, em sintomas.

Então o adoecer psíquico – e também a "normalidade" – são produtos desta

articulação entre a série disposicional e a série desencadeante; pode efetuar-

se em comportamentos ativamente adaptativos, sublimatórios, ou pode ser

causante de processos patológicos. Outra forma de referir-se à série

disposicional é qualificá-la de acordo com o grau em que o sujeito conseguiu,

durante sua primeira infância, resolver, elaborar – ou não – o chamado

Complexo de Édipo, que constitui o núcleo central de sua série disposicional.

Se não resolver, então esse desenvolvimento vai ficar afetado por "pontos de

fixação". Então, quando a série desencadeante atua sobre a disposicional, gera

no psiquismo um processo de regressão a esses pontos de fixação. O

73

psiquismo vai funcionar de uma maneira primária, arcaica, e isto é que vai

resultar no retorno do recalcado como sintoma. Logicamente, cada sujeito é

singular, único, irrepetível, e as configurações da série desencadeante – que

podem gerar patologia, atuando sobre a série disposicional – são totalmente

variáveis. É por isso que uma situação que desencadeia uma patologia para

um sujeito (porque atua sobre determinada série disposicional), não é

patologizante para outro sujeito (que tem uma série disposicional diferente). No

entanto, a Psicanálise costuma dizer que existe uma maneira de sistematizar,

de universalizar quais são os traços das situações desencadeantes capazes de

produzir patologia em geral. Essas são experiências de frustração,

experiências de privação, e experiências daquilo que em Psicanálise se chama

castração. Apesar de não podermos desenvolver agora, é importante assinalar

que entre frustração, privação e castração existem diferenças. Privação refere-

se à falta de subsídios para necessidades biológicas, concretas; castração

refere-se a um tipo de falta de caráter libidinal (a castração é castração do

desejo), ao passo que a frustração é um desengano de amor. Ou seja, são

exigências diferentes, faltas diferentes cuja elaboração ou não gera efeitos

diferentes. Elas, em geral, atuam em conjunto. De um ponto de vista mais

amplo, sociopsicanaliticamente falando, poderíamos resumir esses três tipos

de carências, esses três tipos de falta, em uma experiência de impotência, em

uma experiência de incapacidade, porque se trata de um sujeito relativamente

indefeso, em estado de menos valia, exigido por situações que o tornam

carente. A carência, por sua vez, é produto da regressão ao estado de

dependência e de impotência iniciais do sujeito. Então, o que lhe fazem sentir é

sua impotência para resolver essas situações. Isso é o que desencadeia o

processo regressivo a um ponto de fixação, atuando sobre a série

disposicional, e assim gerando a patologia, os sintomas e os quadros das

doenças. O sujeito se refugia em soluções imaginárias e fantasmáticas que

eram as únicas de que dispunha no seu estado de criança indefesa.

Até agora ficamos restritos ao campo estritamente psicanalítico. Agora,

acontece que as formulações da Psicanálise são elaboradas para os sujeitos

"individuais", para os sujeitos enquanto "pessoas" isoladas. Apesar da

Psicanálise nunca ter pretendido negar que os sujeitos psíquicos não vivem

74

isolados, porque se relacionam sempre com um'outro – e é do outro que vem a

frustração, a castração e a privação-, na verdade, nem o sujeito nem o outro

são pensados como coletivo real, não são concebidos como grandes conjuntos

humanos, cuja existência depende de uma obrigada e necessária associação.

Por isso é que Mendel tenta acrescentar ou articular as postulações

psicanalíticas com as postulações clássicas do Materialismo Histórico. Uma

das primeiras afirmações do Materialismo Histórico é que para produzir e

reproduzir, ou seja, manter a vida humana sobre o planeta, os homens tiveram

que associar- se, que estabelecer uma aliança entre si para,

fundamentalmente, dominar a natureza e colocá-la a seu serviço. Isso porque a

natureza não é espontaneamente benévola com o homem. Ela o agride e lhe

nega muitos dos elementos de que ele precisa para sobreviver. Então o

homem desenvolveu, nessa associação coletiva, um processo de trabalho que

é um procedimento de transformação, de domínio da natureza para que ela se

lhe tornasse propícia. Todos sabemos que o homem, como animal biológico, é

particularmente fraco: ele não tem pelo, não tem couro, não tem garras nem

dentes fortes; é lento, frágil. Inclusive, no momento do nascimento, o homem é

dos animais mais particularmente indefesos e incapazes, tanto que seu

processo de gestação tem de completar-se depois de seu nascimento, através

de uma longa criação totalmente dependente, que leva pelo menos dois ou três

anos. Então o homem compensou, e em parte piorou, essa sua fraca

defensividade, com seu processo histórico de associação coletiva para

trabalhar em conjunto com a finalidade de dominar a natureza. Digo que em

parte compensou porque isso foi o que o transformou naquilo que

pitorescamente se chama "o Rei da Criação". Também em parte piorou porque

na dimensão em que o homem se transforma, por sua associação, em uma

espécie poderosíssima, cada um de seus membros nasce cada vez

biologicamente mais fraco. Na medida em que se desenvolvem as máquinas e

os elementos técnicos, nossa dotação biológica está cada vez pior. Talvez

acabaremos tendo uma" grande cabeça" e nada mais. Neste processo

associativo, então, o homem tem de lutar não apenas contra os imensos

poderes da natureza (que ele tem chegado a controlar em alta proporção, mas

que está longe de controlar em sua plenitude), mas tem de aprimorar o

desenvolvimento da palavra, da linguagem e outras formas de comunicação

75

inter -humana, o desenvolvimento da inteligência, do processo de pensamento

do cérebro humano, o desenvolvimento das máquinas – que em princípio

podem ser pensadas como enormes extensões ou ampliações dos membros e

dos sentidos humanos. O gênero humano adquiriu um grande poder, mas ele

não controla totalmente as forças naturais. Elas o ameaçam sempre. Não

apenas as forças naturais externas a seu corpo, como também aquelas

internas a seu corpo, que forma parte da natureza. A natureza é brava, e o

corpo é frágil. Mas o homem tem outro inimigo perigoso, que são os problemas

gerados pela própria organização que ele tem de se dar para se converter

numa entidade coletiva. Então, segundo a versão tradicional, o homem, para

poder associar-se e formar essas fortes civilizações, teve de aceitar muitas

restrições, teve de submeter-se e privar-se de muitas coisas para atingir esse

poder coletivo. Ou seja, o homem teve de dar-se leis, instituições,

organizações, aparelhos, tais como descrevemos, para preservar esta união,

que é difícil, exige muito sacrifício de seus integrantes. Mas o pior de tudo é

que nunca funciona bem, geralmente é imperfeita. E isso traz como

consequência o fato de que a associação entre os homens não é equitativa,

fraterna nem justa, e que a distribuição dos sacrifícios, dos esforços e dos

benefícios é desigual entre eles. Isso dá lugar a fenômenos que podemos

detectar como universais e onipresentes na história da humanidade, que são a

exploração de um setor da humanidade por outro, a dominação de um setor da

humanidade pelo outro, a mistificação e a manutenção da ignorância de um

setor da humanidade por outro. Isso faz com que as ameaças da natureza e do

corpo se somem às ameaças da organização social, da injustiça ou do fracasso

da ordem civilizatória. Cada organização histórica, cada civilização, cada modo

de produção da vida humana sobre a terra tem suas modalidades de

dominação, de exploração e de mistificação. Mas o modo de produção

capitalista é o modo de produção que atingiu o maior grau de extensão e de

universalidade sobre o planeta. É também o modo de produção em que esta

associação humana tem-se tornado mais poderosa e mais capaz de dominar a

natureza, produzir riqueza e elevar o padrão de vida dos seres humanos. O

muito conhecido filósofo Marcuse diz que chegamos à era da abundância,

porque temos adquirido um poder produtivo inédito na história da humanidade.

Mas nem por isso, sabemos muito bem, temos conseguido superar os

76

fenômenos da exploração, dominação e mistificação que no capitalismo

adquirem características muito próprias. Então, o que acontece? Os homens

associados, cuja principal potência é a capacidade de trabalho coletivo,

encontram-se diante do fato de que o fruto de seu trabalho não lhes retorna na

medida em que eles deveriam ser seus legítimos proprietários. O poder sobre a

natureza, o poder sobre o controle dos fenômenos da vida, também é injusta e

desigualmente repartido. Com o saber acontece a mesma coisa. A imensa

maioria dos; homens que trabalham reunidos vivem uma situação de

impotência, e não é apenas a fragilidade perante a natureza, frente à condição

mortal e frágil de seu próprio corpo, mas a incapacidade devido à desigual

distribuição da riqueza, do poder, do prestígio e do conhecimento. Então, de

uma forma ou de outra, poderíamos dizer que se tomamos a formulação

psicanalítica de uma impotência fundamental, que se converte no elemento

central da série desencadeante, e a articulamos com o Materialismo Histórico,

podemos dizer que, no sentido coletivo, a experiência universal de impotência,

que gera os processos patológicos, é produto dessa desigual distribuição da

riqueza, do resultado do trabalho, do poder e do prestígio, que faz com que

quem gera esses valores, ou seja, a imensa maioria da humanidade que

trabalha, não desfrute dos resultados deste esforço. Então, o que Mendel vai

afirmar é que, se isso é verdade (e é difícil admitir que não o seja), o lugar onde

deve ser estudada a experiência essencial da impotência e o

desencadeamento dos processos patológicos é o "lugar natural" em que os

homens se associam para exercer sua potência, ou seja, nos âmbitos de

trabalho. Para Mendel, as vicissitudes individuais dessa experiência de

impotência não serão nunca compreendidas se não forem analisadas num

sentido coletivo e no lugar pertinente onde elas acontecem que é no lugar de

produção. O que Mendel diz é que isso deve ser abordado nas organizações

de trabalho, entendendo o trabalho num sentido muito amplo, não apenas

trabalho industrial, mas também trabalho escolar, médico, comercial, ou seja,

não apenas produção de bens de consumo, mas também produção de

serviços; e assim por diante. Mendel diz que quando se abordam os coletivos

que formam parte dessas organizações, é fácil ver que esses conjuntos

vivenciam, de mil maneiras diferentes, essa experiência de impotência devido

às condições do trabalho alienado no capitalismo. E essa experiência de

77

impotência gera neles, incidindo sobre a série disposicional de cada um deles,

um processo regressivo. Só que esta regressão não deve ser pensada como

sendo da ordem individual, mas da ordem coletiva. Por isso, a regressão que

se produz é uma regressão de um funcionamento psíquico que Mendel chama

psicossocial ou psico-institucional a um outro, chamado funcionamento psico-

familiar. Isso consiste num processamento psíquico em que o imaginário e o

inconsciente já não estão em relação de retificação com o real, ou seja, recai-

se num funcionamento em que os sujeitos vivem uma vida fantasmática – e

não uma vida simbólica, adequada às circunstâncias concretas que os

rodeiam, com um conhecimento simbolizado do que está acontecendo na

realidade. Esta experiência de impotência gera uma regressão do psico-

institucional ao psico-familiar, no sentido em que os sujeitos vão definir esse

campo real em que estão como se fosse uma situação familiar arcaica pela

qual já passaram, quando se estava construindo sua série disposicional. Ou

seja, eles vão viver a situação de trabalho, a situação organizacional como se

essa fosse uma situação familiar arcaica. E as figuras determinantes reais

dessa situação atual vão transformar-se para eles nas figuras imaginárias de

sua situação familiar. Em consequência, reagirão de uma maneira irreal e

fantástica, como acontecia na sua infância, em que, objetivamente, eles eram

pequenos, sós e impotentes, e não tinham outra forma de solucionar essa

situação senão refugiando-se num mundo de fantasia. Devido a essa

regressão que mencionamos, o coletivo institucional como um todo faz uma

regressão arcaica, familiar, e também se refugia no mundo da fantasia. Tenta

solucionar seus problemas de impotência mediante saídas mágicas,

imaginárias, como sintomas, atuações, inibições, delírios, somatizações, enfim,

como tudo quanto constitui a patologia biopsicossocial. Então, se isso está

mais ou menos entendido, a proposta de Mendel é a de deflagrar dentro dessa

classe institucional um processo de autoanálise, feito em colaboração com uma

equipe interveniente, que permita aos integrantes deste coletivo fazer a crítica

e obter a compreensão da regressão que os afeta, chegando à ressignificação

simbólica de sua regressão imaginária, para poder ter de novo um acesso ao

real atual, que estão negando, desconhecendo. Dessa maneira, recuperarão

uma definição correta das circunstâncias que lhes permitirão assumir seu

verdadeiro poder como classe institucional, porque, afinal de contas, eles são

78

os produtores da riqueza, eles são os geradores do poder e eles são os que

merecem prestígio.

Este processo opera teoricamente, como já dissemos, com pontos de

vista e postulações perfeitamente clássicas da Psicanálise e do Materialismo

Histórico. A metodologia de intervenção conserva muitas das características da

intervenção psicanalítica, sobretudo o recurso interpretativo. É preciso apenas

sublinhar que o conceito de "cura" não é individual, mas coletivo, e não passa

exclusivamente pela tomada de consciência e pela supressão dos sintomas,

mas exige um movimento coletivo concreto de recuperação da margem de

poder possível, que se tem perdido devido à regressão do âmbito psico-

institucional ao psicofamiliar.

Agora resumiremos a posição de Lourau, Lapassade e seus

companheiros – que são, senão os criadores exclusivos, pelo menos os que

desenvolveram esta proposta que se chama Análise Institucional. Tentando

outra vez uma síntese, que por tratar de ser clara pode resultar

empobrecedora, digamos o seguinte:

Para a Análise Institucional, uma sociedade está ordenada por um

conjunto aberto – quer dizer, não totalizável – de instituições. Uma instituição é

um sistema lógico de definições de uma realidade social e de comportamentos

humanos aos quais classifica e divide, atribuindo-lhes valores e decisões,

algumas prescritas (indicadas), outras proscritas (proibidas), outras apenas

permitidas e algumas, ainda, indiferentes. Essas lógicas podem estar

formalizadas em leis, em normas escritas ou discursivamente transmitidas, ou

podem ainda operar como costumes, quer dizer, como hábitos não-

explicitados. As citadas lóÓgicas se concretizam ou se realizam socialmente

em formas materiais ou "corporificadas" que, segundo sua amplitude, podem

ser: organizações, estabelecimentos, agentes, usuários e práticas. Cada

instituição é universal, ou seja, indispensável para toda e qualquer sociedadet

mas para realizar-se em suas formas concretas passa por um momento de

particularidade e outro de singularidade única e irrepetível.

Se bem que cada momento da instituição seja positivo (digamos: é como

ela sabe ser em si mesma), também tem uma relação.de negatividade consigo

mesmo, com referência aos outros e em relação ao sistema global que as

79

instituições integram e que, ainda que seja de maneira aberta, as engloba.

Essa característica faz com que quando se analisa uma instituição, como por

exemplo, uma norma universal (digamos as relações de parentesco), uma

modalidade particular do matrimônio poligâmico, ou um caso singular do

casamento de um casal em uma colônia de mórmons norte-americanos, a

partir da organização positiva e visível em que essas relações se concretizam,

tende-se a atribuir-lhe funções inteiramente claras, eficientes e em geral

consideradas necessárias, indispensáveis, úteis etc. Assim consideradas,

essas entidades, tanto para o saber espontâneo de seus agentes sociais

quanto para os experts que as descrevem, ocultam funcionamentos

divergentes, contraditórios e antagônicos que só se evidenciam quando se

decifra ou se entende as maneiras em que, como dizíamos, cada uma é

negada pela outra ou pelo sistema integral. Em palavras diferentes, é preciso

considerar como cada uma destas instâncias está ausente no seio das demais,

e essa ausência é registrada como um não-saber, que é parte do saber

espontâneo ou técnico que se tem de cada uma delas.

A Análise Institucional não é, então, um super-saber ou um meta-saber

absoluto que poderia dar conta de todos estes desconhecimentos, positivando

de uma vez por todas o tecido social. Pelo contrário: trata-se de uma

investigação permanente, sempre lacunar e circunscrita de como o não-saber e

a negatividade operam em cada conjuntura.

Por exemplo, no caso das organizações do trabalho, a Análise

Institucional parte da ideia de que, devido ao processo que se chama "divisão

técnica e social do trabalho", cada coletivo de uma organização está alienado

no não-saber, no não conhecer quais são as condições reais em que está

trabalhando. É vítima, digamos assim, de um desconhecimento que, em parte,

é um desconhecimento devido à desinformação e à estrutura e funções

mesmas de instituições e organizações; é a ausência de um conhecimento que

nunca foi adquirido. Mas, em parte, é vítima de um processo de doutrinamento

ativo por parte das classes dominantes que lhe transmitem uma definição do

mundo, uma noção do processo de trabalho, dos objetivos da vida, dos valores,

do sentido da existência e uma definição da função das organizações que lhe é

profundamente desfavorável e que o faz compactuar com o poder, com as

80

classes dominantes. É o que o Marxismo chamava, classicamente, de

Ideologia. Sobretudo é o aspecto alienado da Ideologia, entendida num sentido

menos amplo e mais restrito às organizações, que o mesmo Marxismo não

sabe decifrar. Isto é, esse mesmo processo de impotência, ao qual se referia

Mendel, existe nas organizações, porque quem é o proprietário dos meios de

produção, dos meios de decisão, também é proprietário de um saber. E cada

saber envolve um poder: a propriedade de um saber possibilita o exercício do

poder tanto nas organizações capitalistas quanto nas socialistas. Esse poder é

entendido como a imposição da vontade das classes ou setores dominantes

sobre as classes ou setores dominados, das classes ou setores exploradores

sobre as classes ou setores explorados. Isso gera, em todas as organizações,

o fato, como diria Mendel, da classe institucional trabalhadora, tanto nas suas

bases como nos estratos que lhe são próximos, desconhecer os principais

vetores que ordenam a organização na qual está inserida. Ela considera

indiscutivelmente indispensável o papel do capital como "criador de fontes de

trabalho", ela considera absolutamente necessária a organização da produção

destinada a gerar mercadorias (e não a gerar bens de uso), ou destinada à

produção de armamentos exigidos pela belicracia de Estado. Ela considera

necessária a existência de hierarquia técnica e burocrática em que uma

posição de maior saber dá, "naturalmente", uma posição de maior poder. E não

teria de ser assim, forçosamente. E assim apenas porque a divisão técnica do

trabalho se faz coincidir com uma divisão social. Mas a divisão técnica não

deveria implicar nenhum privilégio social. Então, trata-se de criar um dispositivo

no qual os coletivos possam analisar cada um dos fenômenos de mal-estar, de

conflito, de impotência, de disfunção que aparece devido a toda esta divisão

injusta e perversa do trabalho. Isso constitui parte do não-dito institucional. Em

um sentido amplo, o não-dito compreende a relação de não-saber que cada

momento da instituição guarda com respeito ao outro e o não-saber que cada

saber contém pelo fato de ser específico.

Esses analisadores são muitos, como já dissemos anteriormente.

Alguns deles são" espontâneos", outros são construídos pelos interventores

institucionais. Mas os que podem delimitar-se com maior frequência são, por

exemplo, o analisa dor "dinheiro", o analisador "sexo", o analisador "prestígio",

81

o analisador "poder". São fenômenos conflitivos, são vivências sofridas, são

acontecimentos mais ou menos explosivos, são lugares de atrito que estouram

nas organizações devido ao fato de elas estarem destinadas a um trabalho que

produza não apenas um produto cujo resultado não seja planejado e

reassumido por aqueles que o produzem, mas também uma série de relações

humanas distorcidas, monstruosas, que geram essa experiência de impotência.

Então, essas contradições vão estourar em fenômenos como o do

absenteísmo, como o da diminuição da produção, incidência do alcoolismo, da

tóxico-dependência, de acidentes de trabalho, conflitos, brigas,

incomunicabilidade, rebeldia e revolta estéril, arbitrariedades que as classes

dominantes da organização costumavam, e ainda costumam, solucionar

drasticamente, com medidas disciplinares; tudo isso as classes institucionais

dominadas podem também tentar solucionar com certo tipo de respostas

individualistas, desordenadas ou autodestrutivas. Então as classes e grupos

dominantes, na modernidade, descobriram uma disciplina que hoje se pode

chamar de diversas maneiras – Recursos Humanos, ou Psicologia

Organizacional, ou Relações Públicas, ou Relações Humanas –, que se destina

a transformar toda essa problemática em uma simples questão de negociação

ou comunicação. Trata-se de colocar os quadros em contato para que

solucionem esse assunto conversando, negociando ou vivenciando, relaxando-

se, mas sem sair da lógica do sistema, sem que se tome consciência de como

as determinantes básicas da alienação são as causadoras dessa problemática.

O que a Análise Institucional propõe é a criação de dispositivos para que o

coletivo se reúna e discuta, exaustivamente, esses fenômenos, e descubra a

maneira como esses efeitos antiprodutivos são a expressão, a conseqüência,

tanto do não-saber das contradições da estrutura e da função do sistema,

como um desvio das forças críticas, das forças revolucionárias, das forças

subversivas. Trata-se de criar condições para que possam, dessa maneira,

correlacionar esses analisa dores com suas causas e dar conta delas – de

forma a adquirir consciência de que não vão poder solucionar esses

fenômenos sem uma ampla reformulação da estrutura e do processo produtivo

em si mesmo, mas nas formas peculiares que este adquire em seu caso

singular.

82

O objetivo, pode-se ver, é parecido com o de Mendel. Em todos os dois

há certa semelhança, mas também diferenças. O objetivo último é propiciar a

auto-análise e a autogestão, ou seja, a recuperação do poder de organização e

do autogerenciamento do processo produtivo, eliminando as situações de

burocracia, de imposição, de dissociação – não a diferenciação técnica, que é

necessária-, mas a dissociação e hierarquização social do trabalho. Mas a

Análise Institucional é mais crítica com a Psicanálise e o Materialismo Histórico

que a Psico-Socioanálise.

Um dos aspectos importantes desta postura é a afirmação de que a

equipe interventora também é uma organização e que ela também pode sofrer

os efeitos desta divisão técnica e social do trabalho. E que também existe para

ela um certo desconhecimento de como as características gerais do sistema

incidem no trabalho coletivo que ela está realizando; a isso se chama

"implicação". Então, a equipe interveniente também vai integrar-se com a

organização intervinda numa organização compartilhada, na qual vão poder

analisar os fenômenos de alienação de uma e de outra. De modo que esse

processo autogestivo e auto-analítico, que vai tentar deflagrar na organização

intervinda, vai ser ocasião de poder analisar também os seus próprios conflitos

da mesma natureza. Finalmente, cabe esclarecer que uma intervenção pode

fazer-se "a frio", quando se pratica sobre uma organização circunscrita, com

uma conflitiva mais ou menos moderada, ou "a quente", quando se opera no

seio de processos ativíssimos que ocorrem dentro de uma tentativa de

transformação autogestiva generalizada de uma sociedade inteira.

Tentarei agora introduzir a Esquizoanálise de Deleuze e Guattari,

tratando de caracterizar algumas diferenças essenciais. Creio que elas

poderiam passar pela questão de que a Sociopsicanálise de Gérard Mendel e a

Análise Institucional de Lapassade e Lourau, em última instância – apesar de

sua franca inspiração libertária, de sua enérgica vocação revolucionária – são

prestações de serviço mais ou menos tradicionais. Isto é, a demanda, o

requerimento de uma análise de uma intervenção institucional ou do tipo sócio-

analítico, é feita por alguns setores ou pela totalidade de um coletivo

organizado a outro coletivo organizado, que oferece seus serviços de uma

maneira mais ou menos tradicional, como prestação de serviço profissional.

83

Isto é, os sociopsicanalistas e os analistas institucionais, apesar da rigorosa

autocrítica que exercitam, apesar de uma vocação militante que têm no seu

trabalho, não deixam de ser experts, não deixam de ser técnicos, científicos;

não deixam de estar agrupados neste tipo de organização característica dos

experts profissionais. Por exemplo: o grupo de Mendel, que se chama

Degenettes, trabalha em muitos lugares do mundo, mas tem uma espécie de

central em Paris. Pode-se, então, ir até lá e solicitar seus serviços. Isso gera,

entre a organização solicitante e a organização solicitada, todo um processo de

diagnóstico, prognóstico e indicação, e um contrato de trabalho. Então, apesar

de todas as ressalvas, autocríticas e análise da implicação, trata se de uma

prestação profissional de serviço, na qual se discutem honorários, tempo e

demais coisas. Além disso, é geralmente um serviço apresentado por um

coletivo organizado a outro coletivo organizado, dentro de um marco mais ou

menos convencional, ou seja, a uma escola, a um sindicato, hospital, fábrica,

convento, quartel etc. Isso, como já dissemos, se denomina" autogestão a

frio", enquanto a" autogestão a quente" é a gerada numa situação

revolucionária mais ou menos generalizada.

Deixando momentaneamente de lado as características teóricas da

Esquizoanálise de Deleuze e Guattari, que são muito sofisticadas e

complicadas, digamos que a relação de Deleuze e Guattari com a Psicanálise e

com o Materialismo Histórico é muito mais complexa que a de Lourau e

infinitamente mais distante que a de Mendel. A posição de Deleuze e Guattari é

muito mais crítica com respeito a todos os grandes monumentos ocidentais do

conhecimento que a dos outros autores das outras orientações. Eu diria que de

Mendel a Deleuze e Guattari existe, politicamente, todo um abandono paulatino

do Liberalismo e da Social Democracia e até do Marxismo, para se aproximar

muito mais do Anarquismo. Então, uma diferença técnica central é que para

Deleuze e Guattari não existe, necessariamente, essa prestação de serviços

convencionais. A Esquizoanálise pode ser feita por qualquer pessoa e em

qualquer lugar. É considerada não como uma ciência ou como uma disciplina,

mas basicamente como uma nova forma de pensar, um modo de ser, ou uma

maneira de viver. Propõe algo assim como um processo de análise

permanente, generalizado e ubíquo, presente por toda parte, em qualquer

84

momento, e protagonizado por qualquer pessoa que tenha, naturalmente,

interiorizados os princípios teóricos desta concepção – que não se reduz a

nenhuma das que a precederam. Não implica, necessariamente, uma relação

de contratação. Não é, indispensavelmente, desempenhada por experts nem

por profissionais. Não implica um lugar nem tempo determinado. Não é

necessariamente uma atividade coletiva, senão que pode ser dual ou

individual. Sequer implica um trabalho de um agente sobre um usuário, mas

que pode ser um trabalho feito por um sujeito sobre si mesmo. Mas que tem

também um aspecto analítico, ou seja, a compreensão de como as

determinações alienantes do sistema, responsáveis pela dominação, pela

exploração e pela mistificação, estão presentes em cada uma de nossas

atividades vitais, as afetivas, as sentimentais, as econômicas, as políticas, as

artísticas, as relações com os outros e as relações conosco mesmos. Eu diria

que é uma posição maximalista ou extremista dentro do Institucionalismo. Além

disso, que não tem técnica nem metodologia própria – características das duas

posições anteriores. Para ela, são os princípios teóricos de compreensão que

dão um entendimento que permite localizar a alienação e propiciar, per se, a

invenção de uma metodologia e de técnicas, táticas e estratégias

absolutamente singulares para cada caso, para cada situação, e que não

podem ser sistematizadas nem transladadas para outra oportunidade.

Então, poderia-se perguntar: essa teoria da Esquizoanálise se

aproximaria mais da filosofia, é uma doutrina, uma ideologia, uma crença? A

rigor, apesar de um de seus produtores ser considerado o maior filósofo

contemporâneo, na nossa opinião não se trata de filosofia. É alguma coisa que

está além da filosofia porque é um entendimento do mundo, da história, da

vida, do psiquismo, que pretende ser um novo gênero, não enquadrável, nem

como uma ciência, nem como ideologia, mas, na versão dos autores, como

uma proposta radicalmente nova, que não é redutível a nenhum dos gêneros

de saber anteriores.

Novamente imagino que os que já ouviram falar de certas idéias de

Deleuze e Guattari, como, por exemplo, aquela das máquinas desejantes, se

perguntaram qual é a definição de desejo em cada uma dessas escolas do

Institucionalismo. É uma pergunta justa que vai ter uma resposta pobre: em

85

Mendel, a concepção do desejo, eu poderia dizer, é rigorosamente freudiana: é

a que Freud dá nas formas que, segundo uma epistemologia clássica, são as

mais amadurecidas de sua obra. Em Lourau – apesar de ele considerar muitas

propostas freudianas, ele não dá muita ênfase a essa categoria e a esse

conceito. Não lhe interessa, particularmente, a participação do desejo, embora

reconheça a existência de um inconsciente institucional e organizacional, mas

não é um inconsciente particularmente relacionado com o desejo e sim um

inconsciente relacionado com o não-dito e não-sabido, da vida organizacional,

por referência não apenas à instituição familiar, senão à do dinheiro e outras.

Em Deleuze e Guattari, a coisa já muda radicalmente, porque eles consideram

a definição freudiana do desejo; mas para eles a questão se altera por

completo. Para Freud, o desejo é uma força inconsciente que anima o

psiquismo, mas é uma força pertencente a esse domínio, a esse campo

completamente diferente das forças naturais e das forças sociais, entendendo

por sociais as forças políticas e as econômicas. Inclusive, se aceitamos que na

civilização moderna a esfera das máquinas mecânicas, elétricas, eletrônicas

etc. já forma como que uma terceira natureza, podemos dizer que existe a

"natureza ecológica", a "natureza humana", a "natureza social", a "natureza

psíquica" e a "natureza maquínica" – a esfera maquínica; só que essa esfera

do mundo maquínico também tem suas forças animantes. Para Deleuze e

Guattari, não se trata de domínios nem de esferas separadas, isoladas entre si,

mas entre suas formas molares; no nível molecular, a produção e o desejo são

uma e a mesma coisa. É a mesma natureza com uma diferença de regime. A

proposta deles é introduzir o desejo na produção e a produção no desejo.

Equivale a dizer que a substância ou a matéria última de todo o real – do real

social, do real psíquico, do real natural e do real maquínico – é a produção, é o

produzir. Não a produtividade, que é a produção já deformada pelo capitalismo,

mas a produção como processo de geração constante do novo. Então, eles

dizem que se consideramos o conceito marxista de produção, tal conceito não

consegue englobar todas as formas de produção possíveis. Ao passo que, se

tomamos o conceito freudiano de desejo – ele, especificamente psíquico, como

dizíamos, é restitutivo, e tenta esterilmente repetir um estado anterior –, esses

autores dizem que se se junta o conceito de produção com o conceito de

desejo, que são imanentes entre si, vai-se gerar uma nova categoria de

86

produção, que abrange todas as formas materiais corporais e incorporais de

geração possíveis, e com essa característica de gerar sempre o diferente e em

todas as atividades possíveis, incluída a psíquica. Ou seja, para eles o desejo

não é restitutivo, o desejo é produtivo. A produção não é apenas produção

mecânica social ou natural, mas é também produção desejante, segundo as

características do processo primário.

Mais ou menos essas são as diferenças. Baseando-nos nelas, para

concluir, digamos que, por exemplo, em Mendel, é claro que o desejo e seus

produtos devem ser decifrados. Para quê? Para que, uma vez interpretados, os

sujeitos possam controlá-los, dominá-los e utilizá-los no sentido de ganhar uma

margem de poder possível. Para Deleuze e Guattari não há nada para decifrar,

porque as representações não interessam tanto quanto as forças; o que se tem

de fazer é liberar, propiciar, deflagrar a potência da produção, do desejo e da

diferença. Tudo isso justamente por causa da natureza última do desejo que

eles supõem; no caso de Mendel, por exemplo, o desejo é, de uma natureza

conservadora que pode ser encaminhada para a revolução e para a produção,

enquanto em Deleuze e Guattari, ele tem uma natureza intrinsecamente

revolucionária, que só precisa ser veiculada, liberada de suas constrições.

Para Deleuze e Guattari, a realidade está composta por três superfícies

imanentes entre si: a da Produção, a do Registro Controle_e a do Consumo-

Consumação. Cada superfície (termo tomado dos filósofos estóicos) tem uma

energia própria: Superfície de produção = Libido; Superfície de Registro =

Númen; Superfície de Consumo = Voluptas. A Superfície de Produção está, por

sua vez, integrada pelo Corpo sem Órgãos e pelas Máquinas Desejantes. O

Corpo sem Órgãos é o contrário de um organismo, ou seja, compõe-se de

matérias não-formadas e energias ainda não-vetorizadas como forças. Em si

mesmo o Corpo sem Órgãos é o grau zero de Intensidades, mas quando ele é

ajeitado como um Plano de Consistência de um Dispositivo ou Agenciamento

revolucionário, desejante-produtivo, as Intensidades circulam por ele

configurando as Máquinas Desejantes e suas conexões criativas, geradoras de

tudo quanto é novo. Este conceito compreende o de Instituinte e o amplia. O

Corpo sem Órgãos assim povoado se transforma numa Nova Terra, enquanto

que, em condições desfavoráveis, quando os experimentos do Plano de

87

Consistência fracassam, pode-se tornar um buraco negro ao acelerar-se ao

infinito e levar à morte ou à demência. O nível de funcionamento da Superfície

de Produção é sub-microscópico ou molecular.

Na Superfície de Registro, o Corpo sem Órgãos e suas intensidades e

máquinas desejantes são capturados como entidades molares (que

correspondem aproximadamente aos instituídos-órganizados: Estado, Igreja,

empresas, bancos, dinheiro, organismos, representações e estruturas

edipianas). A este nível cristalizam-se em territórios. É o lugar das identidades

e dos controles e da repressão generalizada. Também a ele pertencem as

pessoas, os indivíduos, os sujeitos, os códigos, sobrecódigos e axiomáticas

que quadriculam a vida biopsico-sociotécnica. O Corpo sem Órgãos torna-se

Corpo Cheio e adquire um órgão centralizador e hierarquizado que, segundo se

trate das formações primitivas, asiáticas ou capitalistas, será respectivamente o

Corpo da Terra, do Déspota ou do Capital-Dinheiro, ao qual "milagrosamente"

se atribui ser a causa da produção.

Os dispositivos ou agenciamentos produtivo-desejante- revolucionários

gerados por encontros ao acaso das intensidades, ou máquinas desejantes,

são capazes de desestruturar os estratos e territórios da Superfície de

Registro, propiciando desterritorializações e linhas de fuga pelas quais o

desejo e a produção se plasmam em novidades radicais. Toda entidade tem

uma textura molar e outra molecular, um pólo paranóide (capturante a

antiprodutivo) e outro esquizóide (produtivo-desejante-revolucionário).

Como se vê, apenas podemos enunciar estes conceitos porque sua

proliferação nessa teoria torna impossível defini-los em detalhe. Para tentar

enriquecer um pouco essas definições, sugiro consultar o glossário deste livro,

assim como a bibliografia incluída ao final do mesmo.

PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO V

1) O que se entende pela Sociopsicanálise de Gêrard Mendel?

88

2) O que se entende pela Análise Institucional de Renê Lourau e Georges

Lapassade?

3) O que se entende pela Esquizoanálise de Gilles Deleuze e Félix Guattari?

4) Qual ê a relação entre estas três tendências, a Psicanálise e o Materialismo

Histórico?

5) Com que movimentos políticos poderia-se relacionar predominantemente

cada uma das tendências do Institucionalismo descritas neste capítulo?

Capítulo VI

ROTEIRO PARA UMA INTERVENÇÃO INSTITUCIONAL PADRÃO

Vamos tratar de um roteiro para uma intervenção institucional do tipo

standard, isto é, a mais habitual, a mais corriqueira, a mais conspícua. Antes

de começar, no entanto, eu gostaria de fazer uma breve classificação – que,

seguramente, será muito incompleta e esquemática – de algumas formas

diferentes de intervenção, pois me parece que, metodológica e tecnicamente, é

uma questão que não estou seguro de ter conseguido transmitir no percurso

destes capítulos. É um assunto importante, porque quando não fica claro,

permanece nas pessoas uma dúvida enorme no tocante à condição de

contratação deste tipo de serviço. Então eu gostaria de, pelo menos, mencionar

algumas delas.

Tendo em vista a divisão já mencionada dentro do Institucionalismo

entre a configuração de um campo de análise e um campo de intervenção, é

evidente que o campo de análise consiste apenas num espaço conceitual ou

nocional. Em outras palavras, é um tema do qual o institucionalista quer se

ocupar. Esse tema pode ser abstrato ou concreto; pode ser contemporâneo,

passado ou futuro. E pode ser muito vasto ou mais restrito. Mas é um processo

de produção de conhecimento com respeito a esse campo e não implica

necessariamente uma intervenção técnica; envolve apenas o fato de que o

institucionalista vai tentar entendê-lo. Aliás, isso pode abranger até mesmo um

tipo de material que não é propriamente histórico-social, no sentido das formas

89

institucionalizadas-organizadas: pode ser um texto literário ou uma obra

arquitetônica, por exemplo.

Agora, o campo de intervenção, como já foi dito, pressupõe um campo

de análise, porque se pode entender sem intervir, mas não se pode intervir sem

entender, embora durante a intervenção iremos entendendo cada vez mais. O

campo de análise pode não coincidir, em termos empíricos, com o campo de

intervenção. Ou seja, pode-se escolher como campo concreto de intervenção

uma fábrica, uma indústria. Mas pode-se delimitar um campo de análise que

não compreenda unicamente o entendimento dessa fábrica, e resolver estudar

o processo histórico de implantação desse tipo de indústria no Brasil, para

poder saber como funciona essa organização concreta, fabril, escolhida como

campo de intervenção.

Partindo, pois, dessa discriminação entre campos de análise e campo

de intervenção, digamos que as modalidades de intervenção podem ser

variadas. Uma modalidade de intervenção – aquela a que vamos nos referir de

forma predominante quando repassarmos este roteiro standard, tradicional – é

um serviço oferecido desde posições mais ou menos clássicas, convencionais,

habituais, dentro do panorama social. É o que se dá como serviço oferecido na

condição de profissional liberal ou autônomo, na condição de sociedade

cientifica – uma sociedade científica de Análise Institucional que oferece

trabalhos, por exemplo; é o exercício oferecido por um estabelecimento de

prestação de serviços privados, um instituto de Análise Institucional que pode

ser uma sociedade anônima de responsabilidade limitada ou uma

microempresa; é o que pode ser oferecido por um departamento especial de

uma faculdade, um departamento de Análise institucional numa universidade.

Outra modalidade possível de prestação deste serviço pode ser feita por

parte de uma equipe que integra, que é interna à organização na qual se vai

intervir. É o famoso caso, por exemplo, do departamento de Recursos

Humanos de uma empresa, que tem de fazer uma intervenção dentro de sua

empresa mesma, ou um departamento de acompanhamento institucional de

urna universidade.

Outra possibilidade é a de uma prestação de serviços feita de uma

maneira parecida com esta anterior, que acabamos de expor, mas menos

90

caracterizada burocrática e profissionalmente. Por exemplo, é o caso de um

sindicato ou de um partido político que, nos seus quadros, tem institucionalistas

que são militantes formais. Então, esse sindicato ou esse partido político pede

a seus militantes institucionalistas urna intervenção em um setor, em um

segmento, em urna frente, em um espaço da vida e da atividade partidária,

trabalho esse que pode ser ou não pago, contanto que seja considerado corno

parte da vida militante. Mas, em todo caso, é um acordo muito definido, pois se

trata de uma oferta e uma solicitação formais, em que se reconhece no

militante institucionalista um saber" específico", e ele é procurado nesta

condição.

Urna outra possibilidade é aquela pela qual um institucionalista – que

não se caracteriza corno tal e não oferece seus serviços corno tal – infiltra-se

em urna organização, à qual ele pode pertencer organicamente ou não, e o faz

sob um rótulo, na condição de qualquer outra coisa que faça parte dos papéis

formais existentes nessa organização, mas que não seja o de institucionalista.

É o caso, por exemplo, de um morador numa associação de bairro, em que

ninguém sabe que seja institucionalista, ninguém está informado de que ele

oferece serviços institucionalistas, mas que, dentro de seu papel de morador,

opera corno institucionalista, sem explicitar essa condição.

Existe urna última possibilidade dentro desse espectro esquemático que

ainda é pobre, limitado, que consiste numa variação dessa última possibilidade.

Urna variação que parece a menos comprometida e, sem dúvida, é a mais

difícil de todas: é a daquele que pratica o Institucionalismo na convivência

cotidiana. Ou seja: é aquele que nem oferecem serviços corno institucionalista,

nem é solicitado corno tal, nem se infiltra sob outra condição não formal, mas

simplesmente é um "cristão", isto é, é um próximo que, tendo assimilado

princípios teóricos, formas técnicas de operar, vive dessa maneira, convive

dessa forma e, então, pratica o Institucionalismo com sua mulher, com os

filhos, com os companheiros, com os adversários. Em outras palavras: é

aquele que tem. do mundo urna concepção institucionalista e urna maneira de

viver de acordo com esses princípios. Isso inclui o seu âmbito de trabalho, mas

é principalmente na coexistência, na colaboração cotidiana com seus

companheiros, que ele se comporta corno institucionalista.

91

Essa esquemática sistematização requer um tratamento, uma

explicitação e uma abordagem muito detalhados e complexos das

peculiaridades que adquire cada uma dessas inserções possíveis, o que não

faremos por várias razões; em primeiro lugar, porque ela não foi

exaustivamente feita em texto algum – e suspeito que jamais será feita, porque

é demasiadamente ampla, heterogênea, complexa, inclusive por causa da

pretensão institucionalista de que cada intervenção tem de ser singular, tem de

ter uma característica de originalidade, de irrepetibilidade, o que torna a

sistematização dessas diferenças eventualidades muito difíceis e improváveis.

Mas, em todo caso, o importante é reter isso, a amplitude de possibilidades,

amplitude essa que produz um efeito contraditório nos jovens institucionalistas,

porque esses novatos são formados dentro de uma orientação disciplinar:

querem ser especialistas, querem ser profissionais e querem ter um corpo de

saber e de prescrições, de estratégias e de táticas, claro, simples, limitado e

preciso. Querem saber quem são, que direitos têm, que deveres têm, qual o

seu estatuto científico, qual sua condição profissional, e querem ter uma teoria

simples, clara, assim corno opções técnicas não demasiadamente numerosas

para poderem saber, com toda facilidade, o que devem fazer em cada

conjuntura. E nisso consiste a formação disciplinar que tende a produzir –

técnicos e, em muitas ocasiões, embora não em todas, à condição de técnico

se acrescenta a de funcionário ou de burocrata.

Felizmente ou não, o Institucionalismo não é assim; não é isso o que ele

propõe, apesar de que, em algumas ocasiões infelizes, possa vir a cair nisso.

Então, essa amplitude gera nos jovens agentes uma angústia, um mal-estar

que pode derivar numa recusa, que pode levá-los a adotar uma atitude

depreciativa que os conduz a dizer: "Isso é muito vago, muito complicado,

muito impreciso; não faço; deixe-me tranquilo corno médico, corno advogado,

algo tradicional e não demasiadamente autocrítico." É o famoso problema de

focalizar isso de maneira otimista ou pessimista. A maneira pessimista é dizer

que é muito complicado, muito impreciso, há demasiadas opções. A maneira

otimista é dizer: "Graças a Deus, há tantas possibilidades e tantas margens

para a invenção... "

92

O que vamos desenvolver agora é apenas uma dessas formas de

intervenção, que é a intervenção institucional standard, a qual: 1) não é a única

(o que espero, tenha ficado claro); 2) nem sempre é a melhor – apesar de

costumar ser a mais clara e a mais sistematizada; e 3) muito frequentemente

não é possível, porque as características da demanda não a propiciam. Então,

deve-se ter cuidado, porque se a gente se prende a esse tipo de intervenção,

se se apega a esse modo de operar, corre o risco de pensar que quando ele

não é possível, não existem outros que, pelo menos, deixaremos esboçados.

Ora, a intervenção apresenta uma série de passos que têm de ficar bem

explicitados. São passos ideais, aos quais deveríamos prestar atenção, tratar

em separado a cada um deles durante a intervenção, se houvesse tempo, se

houvesse calma, se houvesse dinheiro, se houvesse todas as condições

necessárias para fazer as coisas de maneira confortável. Em geral essas

condições não existem, então pulam-se e misturam-se passos, e age-se, mais

ou menos, "como é possível". Se vocês querem um exemplo corriqueiro,

conhecer esses passos e executá-los é como em algumas épocas gloriosas da

etiqueta, quando nos ensinavam a caminhar de maneira elegante e, então, se

nos diziam: calcanhar planta-ponta, calcanhar-planta-ponta... Ora, ninguém

caminha assim. Mas acontece que caminhar assim resulta num andar elegante.

Depois, a gente não vai mesmo pensar nisso, e simplesmente caminha mais ou

menos, tão elegantemente como pode. Ou como quando a gente aprende a

nadar, que consiste primeiro em levar o braço direito, depois o braço esquerdo,

e bater as pernas coordenadamente, e a cabeça se volta para esse ou aquele

lado... Quando a gente nada assim, só pensando nessas regras, se afoga,

apesar de ser a maneira mais correta de faze-lo...

O primeiro passo consiste em fazer a análise da produção da demanda.

Isso, em um sentido particular, consiste no cuidadoso exame que a

organização ou a pessoa que está para fazer a intervenção institucional faz da

maneira como ela ofereceu os serviços; ou seja, o estudo da forma como ela

produziu a demanda que lhe é feita. Temos enfatizado muito que correntes

atuais, tanto de Marketing quanto de Psicanálise, ou de Psicanálise e

Marketing (que não estão nada separados), têm insistido bastante na questão

da demanda do usuário: o usuário demanda isso, mas não sabe que, na

93

verdade, demanda outra coisa. Sistematicamente se esquece, nessas leituras,

nessas investigações, que não existe demanda espontânea, que toda demanda

é produzida, é gerada, e que existe um cruzamento na natureza da demanda,

de tal maneira que não é necessariamente a organização que oferece um

serviço a única responsável pela produção de demanda desse serviço. Muitas

vezes, a produção da demanda de um serviço, por exemplo, um serviço de

saude, é. "naturalmente", em princípio, produzida pelos estabelecimentos de

saúde que oferecem seus serviços. Mas ela é produzida, igualmente, pela

falência, por exemplo, de outras ofertas de outras organizações e dos serviços

dessas organizações que são incompletos, que são distorcidos, que são

anacrônicos e que geram demanda de serviços de saúde porque não resolvem

bem os problemas da sua especificidade. Em outras palavras: como as

organizações responsáveis pela demanda urbanística, de moradia, realizam

mal e resolvem mal sua oferta, elas produzem uma demanda à qual não

respondem. Isso traz consequências em saúde; os problemas sanitários, por

exemplo. Então, quem é que gerou a demanda do serviço de saúde? Não

foram apenas os estabelecimentos de saúde. Foram também os

estabelecimentos de urbanização, não por geração de uma demanda de saúde

coerente, racional e consciente, articulada com a oferta, mas pela

inconsciência e pela falência de sua oferta. Mas esse exemplo que acabo de

dar é insignificante, porque, devido às questões de atravessamento e às

questões de transversalidade, isso se torna um complexo mecanismo no qual a

gente só consegue averiguar algumas das determinantes cruzadas da

produção de demanda com a oferta... e em geral se perdem muitas. É

importante que isso fique claro. Mas, em todo caso, o mínimo que podemos

saber sobre isso é que não existe demanda espontânea e natural, nem

universal, nem eterna, mas, pelo contrário, ela é produzida pela oferta.

Portanto, a primeira coisa a ser feita ao nível de um campo de análise é uma

pesquisa, a mais ampla possível, de como produzimos a demanda de serviços.

Nesse caso, a demanda de Análise Institucional é, como o leitor compreenderá,

nem mais nem menos que o começo da análise da implicação. Porque se a

análise da implicação é a análise do compromisso sócio-econômico-político-

libidinal que a equipe analítica interventora, consciente ou não, tem com sua

94

tarefa, ela começa pela análise da implicação existente na oferta, ou sefa, na

produção da demanda.

Na oferta ou produção de demanda há muitas características que não

podemos detalhar aqui porque excede nossos propósitos. Mas há uma que

temos de revelar, ter presente, e eu gostaria de descrevê-la de maneira

pitoresca, para que seja mais lembrada pelos leitores. Há uma piada famosa

que se passa num forte militar, numa dessas guarnições que ficam lá na

fronteira. Um oficial pede a um soldado que suba na torre de controle para ver

se os índios estão vindo ou não. É um forte americano, em território índio.

Então, o vigia sobe, olha e diz:

"Sim, os índios estão vindo... São muitos; vêm correndo." O oficial pergunta:

"Mas esses índios são amigos ou inimigos?" Ao que o soldado responde:

"Olhe, devem ser amigos, porque estão vindo todos juntos... " Se a gente se

lembra desta piada, fica mais fácil lembrar que a realidade com que

trabalhamos vem toda junta. A divisão em especialidades, profissões, só existe

dentro da classe ou da equipe, mas não nos usuários. A realidade "vem toda

junta": as divisões que fazemos são totalmente produzidas. Mas a realidade

vem junta e nós não estamos juntos; o mais que conseguimos, às vezes, é

estar próximo, um ao lado do outro. E o que acontece é que cada

especialidade, cada profissão, acha que os problemas da realidade são

problemas de seu campo. Isso não é maldade dos agentes; pode ser uma

desonestidade, e muitas vezes são, mas não frequentemente. Acontece que o

aparelho científico disciplinar e a condição profissional estão estruturados para

isso, para encarar qualquer problema da realidade e estar, em princípio,

convencido de que o problema é nosso: de cada um, do especialista, do

profissional. Então, um senhor ou uma organização vem consultar-nos sobre

um problema de saúde. Eu sou especialista em saúde. Além disso, sou

profissional. Vivo disso. Adquiri uma série de conhecimentos nos quais confio

porque eles têm-se demonstrado eficazes. Cabe lembrar que obtenho todo o

meu dinheiro, todo o meu poder social e todo o meu prestígio através disso que

eu faço. Então não tenho culpa de nada. Se alguém me consulta por um

problema de saúde, certamente ele tem saúde ou não tem saúde e isso é da

minha alçada. Então: "Venha que esse problema é comigo...” Quantos

95

profissionais, quantos cientistas vocês conhecem que, após ouvirem

cuidadosamente alguma demanda, concluem que esse problema não é para

eles resolverem, e encaminham a alguma organização ou a outra

especialidade? Não se conhecem muitos profissionais assim... Existem poucos.

Às vezes há quem diga: "Sim, o problema é meu, mas seria conveniente fazer

uma consulta a um especialista em tal ou qual área." Isso já é muito, é difícil de

se ouvir. O que é absolutamente improvável de se ouvir é uma resposta do

tipo: "Permita-me dizer-lhe que esse problema não é privativo de nenhuma

especialidade. Esse problema tem de ser resolvido com seus amigos, seus

companheiros, seus colaboradores ou sozinho." Estou tratando de ser simples.

O problema fundamental é esse: quando a gente recebe uma demanda, a

primeira coisa que ocorre é que a gente tende a pensar que não tem nada a

ver com a crítica dessa demanda; se o sujeito está demandando em primeira

instância, somos levados a aceitar que é porque já sabe o que está

demandando. E se me procura, estou a seu dispor. Procura-me porque algum

lado do problema tem a ver com o que faço, e então o atendo, esquecendo-me

de que, se ele me procura, é porque me ofereci. Não necessariamente me

ofereci a essa pessoa que me procura; pode ser uma oferta vasta, ampla,

cruzada. Mas se eu não me oferecer, ninguém me procura. Se eu não me

constituo num lugar científico, profissional, se não vendo o que faço, ninguém"

compra".

Então, o que tenho de fazer é analisar, com cuidado, como foi que vendi

isso, para que foi que "vendi", que coisas, realmente, posso solucionar, que

coisas posso solucionar parcialmente e que coisas não devo solucionar, devo

encaminhar noutra direção ou devo devolver, dar de volta ao usuário o que ele

solicita de mim. Essa é a análise da implicação na produção da demanda, ou

seja, na oferta. Essa análise tem aspectos conscientes e pré-conscientes

formuláveis assim: "Companheiros de equipe, vamos ver como foi que

convencemos este fulano a nos procurar." Mas tem aspectos inconscientes, ou

seja: que fiz eu, sem me dar conta, o que foi que fizemos nós sem dar-nos

conta, para" capturar este peixe"? Mas é claro que essa pergunta não tem uma

resposta reflexiva e voluntária. A primeira coisa a ser feita para isso é despojar-

se da convicção de que a oferta de nossos serviços é lícita, válida, resolutiva

96

etc., porque, pelo contrário, o que vivemos fazendo é lutar pela legitimação,

pela autorização e pelo reconhecimento social de nosso serviço.

O passo seguinte é a tentativa de análise do encaminhamento, isto é:

quais foram os passos intermediários que conectaram o usuário-demandante

conosco? Há muitos, mas para dar um exemplo simples: qual foi o cliente que,

definindo nossos serviços como eficientes chegaram à conclusão de que seu

próximo se beneficiaria também com esse serviço? Quais são as razões

válidas e as razões inconfessáveis, ou as razões recalcadas pelas quais ele fez

esta recomendação? O que acontece quando quem fez esta recomendação é

um congênere, isto é, não é exatamente um colega, mas outro profissional e

outro especialista que resolveu fazer a concessão de nos encaminhar alguém?

São passos intermediários da conexão entre a oferta e a demanda. “São as

famosas fórmulas: consulta a organização tal ou o fulano de tal porque “é o

melhor”; consulta porque “é caro”; consulta porque” é barato"; consulta porque

ele é "dos nossos". É preciso ver o que significa cada um desses atributos: qual

é o problema que agIu tina a quem solicita. “Consulta porque” é daqui", ou

porque "vem de fora". Tudo isso modula a demanda, e o faz com elementos

conscientes e inconscientes no usuário, na mesma proporção neles e em nós,

que ofertamos o serviço.

O passo seguinte é a análise da gestão parcial. Isto é: qual foi o setor da

organização que assumiu o papel de vir consultar-nos ou fazer o contato? É o

setor de direção? É o setor administrativo? É o setor financeiro? São os

quadros intermediários? São as bases? É o proprietário? Ou seja: a gestão

parcial da demanda de serviços é protagonizada por diferentes. Segmentos da

organização. E isto é muito importante, porque nos pode dar toda uma

antecipação dos motivos desta consulta, os interesses em jogo, os desejos em

pauta e, sobretudo, o grau de consenso, de unanimidade que motiva os

protagonistas dessa solicitação. Não é a mesma coisa ser solicitado pela

direção ou pelos proprietários e ser solicitado pelas bases. Costuma ser, para

os institucionalistas, infinitamente melhor serem solicitados pelas bases do que

pela direção ou pelos proprietários. Isso, sem dúvida, não é nenhuma garantia,

porque as bases não são homogeneamente revolucionárias, nem

homogeneamente progressistas, nem homogeneamente sinceras. Coisa que

97

se constata claramente naquela célebre frase que diz: “A ideologia dominante é

a ideologia das classes dominantes." Então, as bases são, em geral, originais,

singulares, solidárias etc., mas estão infiltradas pelos interesses e desejos dos

setores dominantes. Então, ser solicitado por elas não é garantia de uma

intenção transparente. Isso também tem de ser analisado.

O grupo que protagoniza a gestão parcial em geral não contém todas as

partes, mas apenas uma delas. Estamos falando de uma situação ideal em

que, geralmente, vem apenas um segmento (apenas uma parte faz a

demanda). Por outro lado, uma organização numerosa nunca virá toda para

fazer uma solicitação. Vem um setor, que dá uma visão absolutamente parcial

da realidade. A compreensão da determinação dessa parcialidade é

importante, pois o fato de você considerar o parcial é que vai lhe permitir

imaginar a existência de uma totalidade complexa, contraditória, desigual,

conflitiva. Isso, claro, sabendo que uma organização nunca é integralmente

totalizável.

Então, a análise da gestão diz respeito a isso: como foi que esse grupo

resolveu consultar e como foi que consultou. O passo' seguinte é a análise do

encargo.

Na análise do encargo há um problema terminológico que seria

interessante que ficasse claro para os leitores. Há uma discriminação muito

importante que se estabelece entre demanda e encargo. Nessa terminologia,

demanda é a solicitação formal, consciente, deliberada, que nunca coincide

com o encargo, que é um pedido que envolve os três níveis da discriminação

que fizemos entre má-fé, desconhecimento e recalque. A diferença entre

demanda e encargo pode passar por esses três tipos de determinações. A

demanda nunca coincide com o encargo. Mas não coincide por quê? Por má-

fé? Pode ser. É claro que as pessoas estão solicitando uma coisa, mas o que

elas querem obter é outra. Pode-se dar um exemplo clássico, mas não único,

nem exclusivo: à solicitação de intervenção institucional, na medida em que a

Análise institucional está cada vez mais em moda e que crescentemente ocupa

lugares formais, é uma solicitação consciente que, em geral, passa pela ideia

confusa de que um serviço de Análise Institucional forma parte da parafernália

de serviços característicos do progresso, da tecnologia moderna em relações

98

humanas. Então, a demanda é geralmente uma demanda do tipo: "Bom, veja,

viemos consultá-lo porque sabemos da importância desta disciplina e

queremos melhorar o ambiente dos operários, da direção, ou queremos

melhorar o clima entre professores e alunos, a comunicação, o entendimento, a

negociação etc." Por quê? Porque já se sabe que existe uma tecnologia

modernista que conhece do assunto e vai se ocupar disso. Ora, acontece que o

encargo pode não ter nada a ver com isso. O encargo pode ter a ver, por

exemplo, com algo que acontece quando, na organização, está surgindo um

grave conflito por problemas de condições de trabalho, por problemas de nível

de salário, por problemas de autoritarismo na liderança, todo tipo de atritos

mais ou menos explícitos. Então, há uma demanda, num plano manifesto, de

uma intervenção profilática, progressista, melhoradora. O encargo, no entanto,

é: "Olhe, veja se acaba com esta revolta, localiza os líderes, me aconselha

como desmontar este movimento, como desmobilizar, como fragmentar, como

paralisar isto, ou como aumentar a produtividade sem tocar na questão do

salário." Isso pode ser feito com plena consciência e com má-fé. Muitas vezes

o interventor solicitado tem uma trajetória que permite que lhe seja solicitado

isso com toda clareza, porque é um corrupto ou porque é um reacionário. Há

especialistas em fazer essas coisas. Agora, quem tem fama de institucionalista

dificilmente será solicitado abertamente para isso, porque já se tem uma vaga

ideia de que se ele não é revolucionário, pelo menos é democrata ou

humanista. Então não se lhe pede isso diretamente. Mas pode-se perceber,

perfeitamente, que se diz uma coisa e se está pedindo outra.

Mas a diferença entre a demanda e o encargo pode não passar pela má-

fé. Pode ser fruto do desconhecimento, ou seja, você pode perfeitamente ter

uma impotência sexual psíquica, e procurar um urologista, que não sabe uma

palavra sobre isso. O urologista irá receitar, então, cloridrato de ioimbina ou

Viagra, e se isso não funcionar, vai acabar implantando uma prótese peniana

para ver se opera, quando, simplificando humoristicamente, trata se de algum

conflito com a "mamãe"... Não é comum isso? Trata- se, pois, de um problema

de ignorância. O usuário não tem como saber qual é o lugar e o expert

adequado (?) para a consulta.

99

Mas pode ser, finalmente, um problema recalcado, inconsciente, de

quem vem consultar alguém que tenha reprimido (em um sentido amplo) qual

seja a diferença entre sua demanda e o encargo recalcado, entre o que ele

pede e o que ele inconscientemente espera conseguir.

Agora cabe aclarar uma coisa importante. Quando se simplificou isso,

anteriormente, no tocante à diferença entre a demanda e o encargo, em termos

de má-fé, de desconhecimento ou de recalque, falou-se no caso de quadros de

proprietários ou de quadros diretivos que pedem um serviço. Mas se os

quadros são de base, pode acontecer exatamente o mesmo: o pedido pode ser

fruto de má-fé, de desconhecimento ou de recalque, porque os quadros de

base podem fazer essa solicitação, por exemplo, porque não querem trabalhar,

descartado o fato de que todo trabalho é alienado, que sempre existe uma

extração de mais valia, e que sempre há dominação etc. Mas vocês devem ter

ouvido, com frequência, estes grandes "protestos revolucionários", porque não

se quer estudar, não se quer trabalhar. Então solicita-se alguma reivindicação,

mas tem-se outro pedido como encargo: "Dê um jeito para que a gente não

trabalhe." Já tenho recebido demandas dramáticas, heroicas, pelo fato de ter

sido colocado o cartão de ponto. É claro, numa sociedade onde o trabalho é

alienado, o cartão de ponto quer dizer muita coisa, e a maioria delas não são

boas. Mas também quer dizer que você tem um horário de trabalho que odeia

cumprir, ou um estudo que não tem vontade de 'encarar, ou uma autocrítica

que não consegue suportar. Sem dúvida este desagrado pelo trabalho ou o

estudo não é produto de uma "natureza ruim", ou de uma essência "vadia". Os

determinantes do "desprazer ocupacional" na nossa sociedade são reais e

espantosamente complexos. Frequentemente a "resistência" à tarefa é uma

tática de luta que exprime o fato de que trabalhamos por dever ou forçados

pela sobrevivência. Mas, em todo caso, é bom que tais manobras fiquem claras

para o institucionalista e para o demandante.

Já dissemos do que se trata a análise de encargo parcial. Já sabemos o

que é encargo, e também análise da demanda parcial. Na realidade, não se

podem separar esses dois pontos. Entendendo a demanda parcial e sua

diferença em relação ao encargo parcial – são dois pólos de uma unidade, não

se pode entender um sem o outro –, então temos de caracterizar os

100

analisadores "naturais". Vocês se lembram do que é analisador natural: é um

fenômeno (dito em termos clássicos, incorretos e ilustrativos) mais ou menos

similar ao que Pichon Rivière chama de emergente, que é o que surge como

resultante de toda uma série de forças contraditórias que se articulam neste

fenômeno. E são "naturais", porque não foram fabricados por um interventor

institucional. Então, suponhamos um analisador chamado natural (criticamos a

palavra natural porque nada é "natural"): um analisador natural seria um

terremoto, e nunca nos chamaram para analisar um terremoto porque temos

pouco para dizer a respeito disso, pelo menos enquanto acontecimento

geológico. Então, não existem analisadores naturais propriamente ditos. Na

verdade os analisadores são espontâneos ou históricos. Qual seria um

analisador desse tipo? Grande, pequeno ou médio, poderia ser uma greve, a

morte de um operário, o aumento das doenças de trabalho, uma grande briga:

esses são analisadores chamados naturais. Então, temos de caracterizá-los,

delimitar quais são. E quando tivermos feito tudo isso, poderemos chegar ao

que se chama diagnóstico provisório. Um primeiro entendimento sobre o que

está acontecendo lá na organização. Só que esse diagnóstico provisório é o

que os médicos costumam chamar de "presuntivo", que é uma hipótese ainda

especulativa sobre o quadro. Mas então, temos de fazer, a esta altura, um

contrato de diagnóstico. Este contrato já implica a construção de dispositivos

para ouvir todas as partes. O contrato de diagnóstico é um acerto, é um

convênio feito para poder construir um dispositivo no qual possamos ouvir

todas as partes. Porque só ouvimos uma, aquela que fez a demanda parcial.

Só que é bom fazer este novo acordo, porque ele implica que o diagnóstico já é

uma operação de intervenção Então já tem de ser autorizado, legitimado e, no

caso de existirem honorários, já devem ser pagos, Senão, o que acontece?

Toda a intervenção pode acabar aí, no entanto não é valorizada pelos usuários.

Por isso, se entre outras coisas o institucionalista vive disso, é interessante

receber os honorários, e também porque um contrato de diagnóstico lhe dá

direito a credenciais para poder ter acesso aos lugares que têm de ser

diagnosticados. Senão, se vai lá, entra-se para diagnosticar e o segurança te

manda embora. Depois do contrato de diagnóstico, criam-se dispositivos para

recolher todos os materiais necessários. Então, tenta-se analisar,

fundamentalmente, as defesas, isto é, quais foram às resistências que se

101

levantaram, nos outros setores que se foi ouvir. Com esse contrato, assegura-

se o respeito geral necessário, pelo fato de que, em primeira instância, o

institucionalista foi solicitado por um setor, por um segmento qualquer, e não

por todo o coletivo.

O passo seguinte consiste em, a partir desse diagnóstico provisório,

poder planejar uma política, uma estratégia, uma tônica e técnicas para

começar sua intervenção. Mas não foi concluído ainda o diagnóstico provisório.

Ainda é um presuntivo já mais elaborado, mas não é sequer o diagnóstico

provisório. Então vai-se criar analisadores construídos, ou dispositivos para

poder recolher todos os dados do diagnóstico provisório. Por enquanto, só se

ouviu os setores distintamente. Ouviu-se passivamente, mas não se criou

condições para cutucar o não dito que queremos investigar, Mas será que

quando crio instrumentos de investigação, de indagação, não estou deixando

de ser institucionalista no sentido de que faço averiguações ativas sob a minha

ótica? Posso correr este risco? Sim e não. Evidentemente é um procedimento

ativo e não é "natural"; é "artificial" – já fizemos a diferença entre analisadores

naturais e analisadores artificiais. Mas talvez isso se possa entender um pouco

melhor simplificando esses dispositivos e analisadores construídos. Eles não

são tão indutivos assim, porque se trata simplesmente de propor. Vamos dar

um exemplo fácil. Depois que se fez a investigação passiva, resolve-se que o

analisador artificial que vai agitar o ambiente e que vai dar-nos o material mais

profundo, mais crítico, mais comprometido, é uma reunião de cineclube.

Cheguei à conclusão de que vou propor a projeção de um filme e uma

discussão sobre o mesmo, e importante, porque é indireto, desloca a

problemática da situação espontaneamente referida. Por outro lado, não é

demasiadamente indutivo, porque o interventor não está baixando regras, mas

está propondo um dispositivo agitador, um agenciamento ativador. Os usuários

podem aceitar ou não. Se não aceitam, teremos que pensar em outras

alternativas. Uma vez aceito, pode dar certo ou não. Pode ter um resultado rico

ou pode não dar em nada. Também se pode propor outra coisa bem

interessante: um laboratório prolongado de fim de semana em um espaço

diferente do habitual: vamos nos reunir todos em um lugar e vamos conviver

102

durante estes dois dias e permitir-nos observar o que acontece nessa

convivência. É muito recomendável e não é nada autoritário, nada impositivo.

Depois que se executam os dispositivos do diagnóstico provisório,

reúne-se a equipe interventora e parte-se para analisar toda a colheita,

fazendo-se a análise da demanda e do encargo definitivo. Da mesma maneira

que ativamos esse coletivo ou mobilizamos e o colocamos em condições de

manifestar-se muito mais livremente, muito mais ricamente, também somos

mobilizados, somos igualmente ativados, temos uma vivência de contato

diferente. Então, temos de voltar a fazer uma autoanálise da implicação: o que

foi que isso acordou, despertou em nós, que não tínhamos percebido em todos

os passos anteriores? Particularmente o material inconsciente. Por exemplo,

depois de todo esse novo exame, temos adquirido solidariedade ou

cumplicidade inconscientes com segmentos organizacionais? Isso agitou em

nós ambições e desejos que não tínhamos e agora percebemos? Por exemplo,

quando se mantém uma convivência prolongada, pode-se chegar à conclusão

que dessa intervenção podem ter origem dezenas de outras intervenções,

porque essa agência faz parte de uma cadeia nacional de agências e que se a

equipe fez uma boa intervenção aqui, vai conseguir outras intervenções

noutros lados. É possível não se dar conta de que essa ambição acordou-se

nos interventores. Então, a análise da implicação significa pesquisar,

exaustivamente, no coletivo interventor, quais foram os inconfessáveis e

imperceptíveis ou recalcados que foram ativados. Nova análise da implicação.

Por que é importante? Porque o passo seguinte é o diagnóstico definitivo e o

planejamento da intervenção definitiva. Nova política, novas estratégias,

táticas, técnicas definitivas, analisadores definitivos e um passo seguinte

fundamental: proposta de intervenção e novo contrato.

Esse contrato definitivo, que envolve maior compromisso e requer mais

retribuição, exige ter muito claro aquilo com que se está lidando e quais foram

as ressonâncias inconscientes que isso. despertou na equipe interventora.

Também será preciso definir qual a orientação geral que vai ser dada ao

processo, será necessário precisar quais são as estratégias, os movimentos

fundamentais para conseguir os propósitos políticos; será necessário desenhar

as táticas, os espaços onde se vai dar essa "guerra", a ordem dos mesmos, a

103

importância dos mesmos e as técnicas, os procedimentos: psicodrama,

técnicas expressivas, qualquer técnica, mas pensada anteriormente; uma festa,

um cineclube, uma guerra simulada, um quebra-cabeça coletivo, toda técnica é

boa, sempre que a tática, a estratégia e a política estejam bem claras e

resultem do diagnóstico definitivo e do entendimento da implicação.

Depois temos a autogestão do contrato de intervenção, isto é, vamos

fazer uma proposta de contrato definitivo, mas não vamos impor nenhum dos

termos e deixaremos que o coletivo proponha se quer pagar quanto quer

pagar, por que quer pagar, que tempo pensa destinar ao trabalho, que poderes

quer nos dar e porque, o que será muito ilustrativo do significado que a

intervenção tem para cada segmento. O interventor institucional nunca faz uma

declaração assim: "Eu quero um contrato por tanto tempo, eu cobro tanto e

quero que se me autorize produzir tais e quais transformações na organização

ou introduzir tais mudanças." Primeiro quero saber o que o coletivo propõe

nesse sentido, e porque. Isso é completamente diferente das prestações de

serviço profissionais habituais, em que o profissional diz: "Minha hora custa

tanto, o tratamento vai durar tanto tempo, e quero que você se deite e me deixe

examinar seu ouvido esquerdo com este aparelho. Se não for assim, não

atendo." Não é esta a ideia. Os temas a investigar são: Como você concebe

este serviço? Quanto tempo você acha que vai durar? Quanto dinheiro você

acha que deve ser pago? E como está distribuído o pagamento? Quando cada

um pensa que deve pagar e por quê? Quais são os direitos que você nos vai

dar para podermos intervir? Podemos estar aqui todos os dias? Podemos

acompanhar o trabalho hora após hora? Podemos estar nas reuniões

reservadas? Podemos ver os livros contábeis da organização? É claro que,

depois de analisar a proposta, o institucionalista pode fazer uma

contraproposta e fundamentá-la, para chegar a um acordo consciente.

Depois vem a execução da intervenção, tal como foi planejada. Logo

vêm as avaliações periódicas, que são momentos de parada para qualificar os

resultados e voltar a analisar a implicação que se vai gerando na equipe

durante o processo. Consideração dos índices de transferência, resistência,

produção, antiprodução, atravessamento, transversalidade, todos os conceitos

104

que explicamos durante o curso e que agora não poderemos tratar em

detalhes.

Quando acaba a intervenção temos de fazer um prognóstico, que

poderemos ou não comunicar ao coletivo. Poderemos ou não propiciar a

implantação de um dispositivo de autoanálise coletiva permanente; ou seja, no

momento em que saímos da organização, ficará uma disposição e uma

instrumentação de dispositivos para que esse coletivo continue fazendo, de

forma permanente, o processo de autoanálise e o processo de autogestão que

induzimos que introduzimos como hetero. Nós saímos, e o trabalho continua.

Podemos fazer um acordo de acompanhamento, de intervenções periódicas de

atualização. E, finalmente, já por nossa conta, temos de discutir, profunda e

exaustivamente, como vamos elaborar todo o material, como vamos teorizá-lo

e o que vamos fazer com ele, se vamos publicá-lo ou se vamos obter algum

tipo de benefício com ele: o coletivo no qual intervimos está alheio, mas a

implicação e os problemas éticos, políticos e econômicos continuam sendo

importantíssimos, sobretudo porque é um material que nos pertence muito

relativamente: é propriedade do coletivo considerado. Nossa decisão deverá

ser submetida a ele.

A intervenção standard que tentei explicar tem milhares de variações,

tanto que se pode dizer que a regra são as exceções. Mas, em todo caso, é um

esquema para se considerar e omitir os passos que não sejam possíveis, que

não sejam recomendáveis, condensar tantos outros etc. Em todo caso, é

importante que cada interventor possa inventar um procedimento sui generis

para cada situação.

105

PERGUNTAS REFERENTES AO CAPÍTULO VI

1) Que modalidades de intervenção institucional você conhece?

2) Qual é a vantagem do roteiro standard de intervenção institucional?

3) Repasse cada um dos itens do roteiro standard.

4) Que diferença existe entre um analisador "natural" e um construído?

5) Qual é a importância da autogestão do contrato?

106

Capítulo VII

O INSTITUCIONALISMO NA ATUALIDADE

f) O Institucionalismo e suas vicissitudes

Convencionamos denominar o Movimento Institucionalista, ou Anti-

institucionalista, ou Instituinte, ou simplesmente Institucionalismo, a um

conjunto aberto e internamente diversificado de correntes que mostram certos

valores em comum, bem como marcadas diferenças.

Não é nossa intenção enumerá-las e caracterizá-las todas, não só

porque este propósito excede em muito os limites deste livro, mas também

porque supomos que este universo seja não totalizável. O mesmo se

incrementa incessantemente com discursos e práticas originais que podem

diferir marcadamente dos que cada um considera os mais notáveis e

respeitáveis desta agrupação.

Basta dizer que compreende numerosos saberes e fazeres que tomam

por objeto os coletivos sociais no que se refere às lógicas que os regem, às

formas concretas em que essas se "materializam", às finalidades que

perseguem e à medida que as alcançam, assim como aos recursos que

empregam para obtê-las. Em outras palavras: ocupam-se das instituições,

organizações, estabelecimentos e equipamentos, assim como dos agentes e

práticas que estes protagonizam.

Essa abordagem tem o que poderíamos chamar em geral, e não sem

ressalvas, uma vocação crítica, que tenta conceituar de diferentes maneiras.

Podemos eleger uma, insistindo que não será necessariamente compartilhada.

Trata-se de diferenciar em cada uma destas entidades sua função ou

funcionalidade de seu funcionamento.

A função remete a fins e meios declaradamente universais e

necessários para o suposto "bem comum". O funcionamento remete à

virtualidade que essas entidades detêm de um potencial transformador, a

serviço, principalmente, da produção de novas formas libertárias da vida. Essa

vaga descrição introdutória permite reconhecer que o espectro de propostas

dos diversos "institucionalismos" é classificável em uma escala que vai desde

posições relativamente conservadoras, seguindo por outras crescentemente

107

reformistas, até chegar a concepções e ações alternativas, marginais,

clandestinas, revolucionárias e, até talvez caiba dizer, extremistas.

Muito sumariamente mencionada, a gênese social desse Movimento

pode relacionar-se, em seus aspectos conservadores ou reformistas, com uma

longa série de tentativas históricas de regular racionalmente a existência das

coletividades. Arbitrária e muito simplificadamente, proporíamos as grandes

balizas da Revolução Francesa, o Iluminismo e o Enciclopedismo como

acontecimentos importantes pioneiros deste tipo. Pelo contrário, em suas

versões mais drásticas, o Institucionalismo tem parentesco com todos os

ensaios libertários que as culturas e civilizações tenham pensado ou

experimentado, desde a tribalidade primitiva e nômade até as tentativas

autogestivas modernas da Iugoslávia, Argélia e, sobretudo, da República

durante a Guerra Civil Espanhola.

Quanto à gênese conceitual, sabe-se que o Instituciona lismo nutre-se

de linhas teóricas contrastantes, na medida em que estas não são

homogêneas. Por um lado, não pode deixar de se inspirar na filosofia mais ou

menos "oficial" do Ocidente: Sócrates, Platão, Aristóteles, os Escolásticos,

Descartes, Kant, Hegel e Heidegger. Por outro, adere com muito mais

entusiasmo ao espírito dos materialistas pré-socráticos, assim como aos

sofistas, megáricos, epicuros, estóicos, Espinosa, Nietzsche, Hume, Bergson,

Kierkegaard e Sartre. Algo similar ocorre com os pensadores políticos e

jurídicos cuja nomeação resultaria demasiado extensa. Basta mencionar a

preferência do Institucionalismo pelos utopistas como Tomas Morus,

Campanella, Rabelais, Fourier e, à sua maneira, por Marx, Bakunin e outros.

Se for permitido falar-se de uma gênese operacional, é sabido que as origens

do Movimento podem fazer-se partir de três grandes campos da práxis, a

saber: o da Educação, o da Saúde Pública (especialmente a mental) e o da

Indústria. Poder-se-ia acrescentar toda aquela atividade vinculada aos Serviços

Sociais, os problemas da Urbanização e Demografia, e assim por diante.

Simultânea ou consecutivamente, esses limites se ampliaram a quase todo tipo

de organizações e estabelecimentos (comerciais, financeiros, partidários,

sindicais, eclesiásticos e até militares). Essa difusão culminou com uma

conflituosa incorporação (crítica ou não) dos recursos institucionalistas ao

108

"planismo" em grande escala, quer dizer, às grandes campanhas estatais para

o gerenciamento e a administração das sociedades civis e das populações em

geral.

As bases teórico-técnicas mais específicas do Institucionalismo são

surpreendentemente numerosas e compreendem não só contribuições de

ciências constituídas Sociologia, Psicologia, História, Economia, Semiótica e

Antropologia –, como também de disciplinas como a Pedagogia e a Medicina,

ou interdisciplinas formal-tecnológicas como a Teoria da Comunicação, dos

Sistemas, dos Jogos etc. Cada um desses setores do conhecimento,

obviamente, não é homogêneo, e nem sua herança institucionalista o é.

Encontramos, assim, influências predominantes de várias correntes, por

exemplo: Comportamentalismo, Rogerianismo ou Psicanálise (em Psicologia),

Funcionalismo, Estruturalismo ou Materialismo Histórico (em Sociologia e

Economia Política) e assim por diante.

Desde logo, todas essas influências estão moduladas segundo matrizes

filosóficas, ideológicas e políticas assumidas expressamente ou não pelos

teóricos e praticantes institucionalistas, entre os quais encontramos, como

mínimo, liberais, marxistas e anarquistas. Sem contar que boa parte entende

que o Institucionalismo é uma visão política integral do mundo em si mesmo e

que não pode reduzir-se a nenhuma das posições políticas reconhecidas.

Quanto ao estatuto gnosiológico pretendido por cada orientação para a

sua práxis, a gama abarca desde as escolas que, aspiram a títulos de

cientificidade (de acordo, está claro, com a definição de ciência que sustentem

as epistemologias às quais respectivamente subscrevam) até as que se

postulam como afazeres artesanais militantes ou ainda não enquadráveis em

qualquer categoria que não seja uma nova concepção da convivência

cotidiana.

Consequentemente, essa heterogeneidade não pode mais que

desembocar em uma quase Torre de Babel, no que tange a uma certa

unificação de termos indispensável para a produção teórica (coerência,

consistência, precisão, convalidação, verificação etc.). Como veremos mais

adiante, o mesmo ocorre com as convicções requeridas para a articulação de

uma Ética, Estratégia e Tática do Movimento. Se o instrumental teórico, método

109

e objeto de estudo são tão proteiformes e problemáticos, o que esperar acerca

do arsenal técnico, o qual se desdobra entre as ferramentas clássicas da

Sociologia (pesquisas de opinião e atitude, análise de conteúdo, entrevistas

livres ou dirigidas, assembléias, workshops etc.), passando pelos

procedimentos informativos, dramáticos, sugestivos ou interpretativos das

psicoterapias até chegar à doutrinação ou à agitação política segundo padrões

mais ou menos tradicionais.

Em síntese: esta "evolução", "progressão" ou, mais neutramente

dizendo, este "percurso" de sua gênese social, conceitual e operativa, coloca

ao Movimento agudos problemas pertinentes a seu estatuto ético, jurídico-

político, gnosiológico e profissional.

Esses temas costumam aparecer no Institucionalismo em torno de

polêmicas sobre a cientificidade e a profissionalidade. Com a cientificidade

joga-se o reconhecimento e a autorização das comunidades científicas e

acadêmicas (diplomas, títulos, carreiras, publicações etc.). Com a

profissionalidade o que está em jogo é a legitimidade, legalidade, ou o que quer

que se queira chamá-lo, do Institucionalismo, com relação aos códigos jurídicos

nos quais se enquadra e aos normativos a que se atém... e suas óbvias

consequências econômico-políticas (operações de oferta, demanda e

contratação de serviços, possibilidade de confissão dos objetivos reais da

intervenção, avaliação de eficácia, questões de neutralidade-abstinência ou

imparcialidade-indução).

Essa conflitiva do Movimento nas dimensões da especificidade

(cientificidade) e da profissionalidade já é incômoda mesmo para as

modalidades mais conservadoras e reformistas na escala de correntes. Certas

orientações como a denominada "Desenvolvimento Organizacional" ou a

"Cibernética Social" são vistas pelos setores acadêmicos ou pelos mais

politizados como "penetras", mercantilistas e adaptativas; isso não impede que

existam e às vezes alcancem um êxito mercadológico e efetivo entre seus

usuários. Mas a questão de fundo que se coloca é como o "devir" das posições

no fazer e saber institucionalista foi se pronunciando:

110

a. Quanto à especificidade, sobre uma crítica radical das cumplicidades

das leituras e intervenções científico- tecnológicas com os sistemas e

setores dominantes;

b. Quanto à profissionalidade, sobre uma impugnação extremada do

papel de certas prestações de serviços, cujos privilégios corporativos

e condições mercantis contratuais seriam reprodutores flagrantes da

divisão técnico-social do trabalho e da alienação-dependência do

saber-poder dos coletivos de usuários.

No extremo, e coerentemente, as formas mais marginais, alternativas ou

revolucionárias do Movimento costumam compartilhar uma utopia quase

insurrecional de ampliação e generalização da análise e da intervenção em

grandes situações em escala regional, nacional e até planetária.

Os setores tradicionais do Movimento, de acordo com os países onde se

desenvolvem, conseguiram uma considerável aceitação e até uma

consagração que os incorpora (mais de fato que de direito) à tecnologia da

human engineering (Psicossociologia das Relações Humanas, Treinamento em

Recursos Humanos etc.). Pelo contrário, a faixa mais subversiva do

Movimento, impulsionada por uma clara perseguição aos objetivos de

coletivização e generalização da auto-análise, da autogestão e da

autodeterminação das comunidades, afasta-se cada vez mais dos parâmetros

epistemológicos e legais que regem as prestações convencionais das quais

partiu no início do Movimento.

Durante esse trajeto, as orientações mais radicais produziram

"instrumentos" teórico-técnicos valiosos sob todos os prismas, tais como:

implicação, analisador, demanda, encargo, efeitos: Mulhman, Lukács, Weber,

frio-quente, centro-periferia etc. (ver glossário), que atendem à autocrítica dos

valores da equipe de prestadores de serviços e da reconquista, por parte dos

coletivos, das potencialidades acima apontadas. Contudo, as expectativas de

mudanças substanciais e duradouras nas comunidades de usuários não foram

inteiramente satisfeitas, e muito menos as de propagação da utopia

transformadora a vastas unidades sociais. Como veremos mais adiante, o

complexo panorama do mundo atual nos mostra coletivos brutalmente

submetidos, ou persuadidos ao participacionismo, ou totalmente apáticos e

111

dispersos. Isso tudo acontecendo em um estado coisas objetivo de injustiça

social que exigiria mais que nunca uma ação conjunta decidida.

Parece que o Institucionalismo avançado, e mais ainda o "maximalista",

que não simpatiza com as formas políticas "progressistas" e/ou revolucionárias

convencionais (tais como partidos ou vanguardas elitistas), não foi capaz de

deflagrar por si mesmo sólidos processos, pontuais ou amplos, de mudança

libertária. A rigor, não é seguro que seja isso o que o Institucionalismo

avançado pretende. Mais corretamente, a ideia consiste em encontrar canais

de conexão, formais ou não, com as iniciativas históricas circunscritas ou

massivas que se encontram já em andamento, para contribuir com as mesmas

para a plena vigência das modalidades gestionários singulares que necessitem

e decidam dar-se.

Mas é justamente este um dos pontos nos quais se coloca para o

institucionalista avançado o mais duro desafio, radicado na elaboração dos

citados canais de cooperação. Se por um lado os procedimentos habituais de

produção de demanda de serviços lhe estão dificultados ou impedidos pela

peculiaridade de seus ideais, por outro as célebres categorias de inserção nos

movimentos e lutas, tais como as de integrante, colaborador, aliado ou

simpatizante lhe são insuficientes.

Diante dessa perspectiva, o agente institucionalista com inquietações

militantes encontra dilemas excruciantes, nem sempre realistas, que se em um

sentido podem constituir fatores de propulsão ao aperfeiçoamento de seus

recursos, em outro, ameaçam submergi-lo em uma certa paralisia. René

Lourau tratou lucidamente desses impasses em dois capítulos memoráveis seu

livro "El Estado y el Inconsciente" (Ed. Kairos, Barcelona, 1980). Na segunda

parte do citado texto, os capítulos V e VI intitulam-se: "El Estado en el Analisis

Institucional" e "El Analisis Institucional en el Estado". Resume-se aí o drama

Institucionalismo: definindo o Estado, soma do instituído, uma maneira vasta e

diversificada como "o inimigo principal" (a expressão é nossa), o autor tenta

sistematizar os obstáculos, possibilidades e impossibilidades que a

onipresença do "Leviatã" impõe ao Movimento em todos os campos de sua

provável atuação. Mas não deixa de assinalar o peso das mortíferas

determinações estatais imanentes ao próprio seio do Movimento. Remetemos o

112

leitor a essa leitura obrigatória porque queremos partir dela para enfatizar

alguns inconvenientes, não por acreditarmos que não tenham sido

abundantemente tratados neste e em outros escritos, senão no tangente à

nossa experiência particular. O primeiro refere-se ao fato de que o

lnstitucionalismo avançado e até o "maximalista" não é suficientemente

conhecidos devido à sua pouca difusão, de modo que os pequenos grupos e

organizações não sabem de sua existência. Por outra parte, a maioria dos

grandes experimentos "revolucionários" massivos atuais não sustenta

integralmente os ideais libertários antes mencionados, sendo pouco provável

que solicite a colaboração de um institucionalista, mesmo supondo que

conheça sua proposta.

Isso reduz as demandas de trabalho àquelas apresentadas por

organizações de pequena e média envergaduras, que na maioria das vezes

confundem o serviço que procuram com qualquer uma das variedades

"normativizantes" anteriormente descritas.

Também devido à pouca divulgação do Movimento, o Institucionalismo

se vê forçado a recrutar quase exclusivamente seus adeptos praticantes nos

estabelecimentos de formação acadêmica de especialistas e profissionais.

As duas dificuldades, a de uma demanda errada e a de uma

procedência logocêntrica e corporativa dos agentes, contribuem para o

aggiornamento da corrente no sentido das orientações mais adaptacionistas ou

reformistas. Contudo, segundo nossa experiência na América Latina, algumas

regiões da Europa e (por referências) nos Estados Unidos, proliferam cada vez

mais movimentos, espaços e correntes idiossincráticos (de singularidades

etárias, sexuais, raciais, religiosas e até trabalhistas) "naturalmente"

predispostas a coletivizações autônomas, senão à autogestão generalizada "a

quente". Em cada um desses âmbitos ou nos interstícios de outros mais

"oficiais", abre-se para o institucionalista outras tantas oportunidades para

reinventar sua "maestria". Trata-se, mediante a autoanálise da implicação

despertada pelo encontro com a singularidade do coletivo intervindo, de

expurgar os emergentes de profissionalismo e especialismo que se levantam

como impedimentos para a plena realização produtiva da intervenção como

acontecimento. Fazem-se imperiosos para o Institucionalismo estudos

113

cuidadosos e particularizados da estrutura e estratégias do Estado (entendido

como ubíquo, inconsciente e "contínuo") em cada formação social. Essa

falência também foi indicada por Lourau e outros; enquanto essa não for

remediada por um extenso sistema de intercâmbio e acumulação de

informações (chame-se, por exemplo, "Praxiologia", como sugerem alguns), o

Institucionalismo estará condenado a uma série de apreensivas apostas, sobre

algumas das quais voltaremos ulteriormente.

Sem pretender sequer introduzir o tema de uma "Estatologia Diferencial

Institucionalista", queremos apenas observar que as sociedades opulentas (em

especial as sociais democracias européias), por um lado, parecem propícias

ao Institucionalismo devido à sua permissividade e tecnologização dos

sistemas de controle social, ao elevado nível de padrão de vida e de instrução

pública e à preocupação generalizada com a ameaça atômica e a deterioração

ecológica. No entanto, por outro lado, os Estados gerentes pseudo-exitosos,

modernos e eficientes administradores de enormes riquezas, persuadiram as

populações com benefícios concretos ou imaginários, levando-as a uma atitude

de "conservadorismo crispado" (segundo F. Guattari) ou de indiferença

complacente (que alguns entendem como formas de resistência passiva).

Nos capitalismos tardios latino-americanos (por exemplo) ocorre algo

diferente. As massas extremamente depauperadas, as burguesias nacionais

retrógradas (aquelas por total falta de opções reais de sobrevivência, estas por

quase absoluto desinteresse pelo cuidado com a força de trabalho e o cultivo

do mercado interno), não são propensas às propostas institucionalistas. Ao

mesmo tempo, o brutal contraste entre o discurso, estrutura e recursos estatais

(essencialmente demagogos, insuficientes, incompetentes e corruptos) e o

trágico nível de carência dos coletivos fazem com que o "planismo" seja um

ostensivo fracasso. Como consequência, o Estado precisa urgentemente de

otimizar sua gestão e as comunidades, profundamente decepcionadas com

suas expectativas acerca do providencialismo estatal, começam, penosamente,

a dar-se soluções próprias. Esta superfície mostra algumas brechas para o

Institucionalismo, se tal coisa existe, para certo trabalho "no Estado" e "com a

sociedade civil". Nesses empreendimentos, contudo, a reformulação das

características do agente e de sua práxis se faz imperiosa: a precariedade de

114

meios de remuneração e a violência repressiva – como a cooptativa, sempre

pronta a desencadear-se sobre o institucionalista e seu cliente – impõem

estratégias e táticas infinitamente sutis e cautelosas.

Essas questões não são, de maneira alguma, novas para o Movimento.

Deu-se para elas respostas já célebres que levam nomes tão aceitos como

vituperados pelos diferentes segmentos do Institucionalismo: empresarização,

entrismo, maquiavelismo, infiltracionismo, distorção da demanda,

marginalismo, clandestinismo, ressingularização das práticas são alguns dos

termos usados para designar manobras de contato e entrada nos coletivos de

usuários. Consagrados e repudiados, esses modi operandi, como muitos outros

referentes a uma diversidade de assuntos do Movimento, expressam a

permanente tensão e oscilação que ocorre entre a conveniência de associar as

diversas correntes do Institucionalismo e seu horror à totalização. Em geral, o

estado incipiente dos intercâmbios teóricos e casuísticos gera uma

exacerbação da crítica fundamentalista operante em uma espécie de "vazio".

Ao perigo de paralisia ao qual se aludiu anteriormente, causado

basicamente pelo poderio, a ubiqüidade e flexibilidade das forças reativas

atuais, acrescentam-se certos agravantes que iremos apenas esboçar aqui.

Freqüentemente o institucionalista, calouro ou experiente, mais ou menos

acostumado a suportar as limitações de sua tarefa e a crítica exógena ao

Movimento, sofre sérias pressões resultantes da crítica endógena, ou seja, da

crítica que nasce da luta entre as correntes internas (conservadoras,

reformistas, alternativas, revolucionárias e até "terroristas") da corrente.

Não é nada estranho que assim seja; em outras palavras: não há nada

de inesperado no fato de haver dissidências em um Movimento que possui a

estranha virtude de ter produzido, em pouquíssimo tempo e com mínima

repercussão "pragmática", uma rica e profunda autocrítica. Ela afeta tanto as

disciplinas teórico-técnicas, das quais as tendências institucionalistas se

originaram, quanto elas mesmas, independente do grau de desenvolvimento

que chegaram a alcançar.

Essa crítica disseca, metaforicamente falando, cada uma das células,

vísceras, tecidos, sistemas, organismos e funções que as integram. Mas esse

115

trabalho é feito habitualmente em abstrato e não sobre o que alguns

denominam uma "clínica ampla" do Movimento. Tanto é assim que capítulos

fundamentais, tais como o da logística (avaliação de disponibilidades ou

resultados) ou, seguindo com a metáfora, a genética (estrutura e dinâmica da

reprodução e mutação), a biotipia (taxonomia de perfis) e a eugenesia

(replicação de perfis ótimos) ainda não foram escritos. Cabe aqui acrescentar a

ressalva de que, segundo certo conjunturalismo ou improvisacionismo

extremado de alguns institucionalistas, talvez não seja necessário escrevê-los

senão como curiosidades museológicas, na medida em que tais registros só

seriam reconstrutivos de experiências consumadas. Essas, triunfantes ou

falidas, teriam uma singularidade tal que careceriam de qualquer valor

prescritivo ou prospectivo generalizável.

A problemática que esboçamos tem, como uma de suas áreas mais

sensíveis, a da sistematização de uma "Pedagogia Institucionalista". Se se

admite que o Institucionalismo é, em última instância, uma modalidade de viver

coletivamente, adquire sentido a afirmação (um tanto esnobe) de que "não se

ensina". Dito de outra maneira, a proposta é que cada coletivo construa as

condições para se autoconhecer, autodeliberar e autodecidir a forma sui

generis, única e irrepetível, que deseje dar-se para existir. Este processo

prioriza a crítica e a dissolução das formas alienadas das quais padece,

incluindo entre elas boa porção dos conceitos com os quais as lê e as avalia.

Nesta reelaboração, as figuras do profissional e do técnico "em fazer isso" são

forçosamente demolidas e, junto com elas, as dos "que ensinam a fazer isso",

especialmente se o fazem para formar "experts em fazer isso".

Mas se não se admite um "especialista em autogestão", deve-se

necessariamente conceber (pelo menos doutrinária e provisoriamente)

procedimentos de inspiração autogestionária para formar diversos

especialistas, fazendo, no possível, uma clara discriminação entre

especificidade e especificismo. A redistribuição do saber e do fazer nas

gestões autônomas cria condições para surpreendentes descobertas e

resultados protagonizados por participantes ou grupos dos quais "menos se

poderia esperar". Mas isso não implica que se tenha obrigatoriamente de

reinventar tudo e que não exista alguma divisão operacional e vocacional do

116

trabalho, assim como tampouco descarta que alguém que "passou por muitas

gestões" possa participar de outras nas diversas qualidades que acima

confessamos não havermos conseguido classificar. Aludimos, é claro, ao que

há algumas décadas se denominava "acumulação social do saber".

O assunto torna-se mais nítido no caso de coletivos de estudantes de

alguma disciplina que desejam aprender sua matéria no marco de uma

experiência institucionalista e, mais claro ainda, quando se trata de disciplinas

diretamente aparentadas com as origens do Institucionalismo, tais como

Sociologia, Psicossociologia, Ciências Políticas etc. A nota em comum, que

configura estas comunidades como tais, é a de associar-se com a finalidade de

gestionar uma forma coletiva e autônoma para adquirir o manejo de certas

contribuições teóricas e operativas dos saberes constitutivos da prática geral

do Movimento. Que a organização e procedimentos adotados sejam "não-

diretivos", "permanentes", "co-gestivos", não é tão importante quanto parece.

Tampouco o é o tanto que a iniciativa seja parcialmente autogestiva (em âmbito

ideológico, pedagógico e político) ou integralmente autogestiva. O ponto crucial

é que o projeto esteja decididamente encaminhado, em cada um de seus

dispositivos, a uma articulação e disseminação do Institucionalismo com e em

outros coletivos atuantes. Esse objetivo, quando é claramente assumido, exige

ou não a autodissolução do agenciamento pedagógico, mas pressupõe a firme

disposição dos agentes formadores à autodissolução e recolocação de sua

"identidade" segundo os novos paradigmas nos quais se insiram. Completando

a ideia: impõe a não- reprodução do equipamento e do modelo pedagógico que

o gerou. É evidente que dispositivos desse tipo só se justificam, e dão

modestos frutos, enquanto a "frieza" do contexto social que os contém não

permite senão uma discreta transversalização do ensinamento com as forças

Instituinte "pesadas" do Trabalho ou da Grande Política. Só alguns extraviados

fanáticos ou duvidosamente intencionados "puristas" confundem o que é

"deixar aprender" Análise Institucional ou Sócio Análise em um

estabelecimento ou curso isolado, "a frio", com o que é tentá-lo numa

autogestão social generalizada. No primeiro caso, o máximo que se

autodissolverá, e só até certo ponto, será a assimetria educacional entre

professores e aprendizes. No segundo, ambos deverão dissolver-se em

117

uníssono, assim como sua organização mesma, nas práxis dos coletivos que

lhes ensinaram "em ato" como e para quê fazê-lo. Enfim: como dissemos,

resulta perfeitamente compreensível e ainda indispensável que os processos

de autoexame e transformação constante do Movimento se exerçam sem

pausa nem concessão alguma. Mas se essa implacabilidade tem efeitos

inequívocos sobre as formas radicais antecedentes ou pioneiras do

Institucionalismo, eles não são tão límpidos quando se opera com

indiscriminada dureza sobre as infinitas variedades de propostas

institucionalistas contemporâneas.

Tensionado entre a necessidade de sobrevivência, a de "autorização" e

o desejo produtivo, de um lado, e os duros limites do Estado e das forças

reativas do outro, o institucionalista deve ainda enfrentar a crítica interna. Por

isso, não é nada infrequente encontrá-lo decepcionado, culpado, onipotente ou,

o que é mais comum, perplexo. Frente a esses difíceis panoramas, três

deformações tocaiam o agente institucionalista, como outras tantas soluções

de compromisso do conflito que o dilacera.

Um primeiro caminho é o regressivo. O agente retrocede às modalidades

mercantis, adaptacionistas, burocráticas e corporativas do Movimento. Entre

elas destacam-se o empresarismo, o funcionalato e o academicismo.“Só que

essas adoções se realizam “em nome do Institucionalismo", e com um verniz

mais ou menos progressista e declamatório. Os profissionais mais propensos a

esse destino são os psicólogos de empresa, administradores, comunicólogos e

psicanalistas, assim como professores universitários.

Uma segunda vicissitude é a que resulta de uma espécie de falsa

aceleração pela qual o agente se lança às formas clássicas da militância

política, sejam as reformistas e eleitoreiras, os ativismos messiânicos ou as

vanguardas intelectuais contestatórias meramente discursivas. Sem que

pretendamos condenar a pertinência conjuntural dessas estratégias, urge se

fazer constar que, em sua assunção, todo e qualquer "espírito" próprio do

Institucionalismo se perde nas estratificações partidárias, sectárias ou

facciosas.

Uma terceira escolha, tão engenhosa quanto discutível, é a que pedimos

licença para denominar com a pitoresca metáfora de "Tática do Tero". O tero é

118

uma ave da planície Argentina que, segundo a tradição gaúcha, "grita em um

lugar e põe os ovos em outro", para assim protegê-las da voracidade das

espécies predadoras. Tentamos ilustrar assim a prática dissociada de alguns

institucionalistas, que obtêm subsídios e apoio em estabelecimentos e serviços

ostensivos nos quais ensinam, publicam ou intervêm, segundo versões

híbridas, circunscritas e moderadas do Movimento. Ao mesmo tempo,

colaboram ou protagonizam, clandestinamente ou não, mas em real condição

de implicados nos eventos e empreendimentos mais puristas aos que têm

ocasião de incorporar-se. Não nos parece que esta composição seja das

piores, mas sim que é uma saída desgastante, inevitável, às vezes, devido às

limitações no desenvolvimento da doutrina e do Movimento antes

apresentados.

Como quer que seja, e em referência a esse terceiro tipo de agente,

muito nos importa esclarecer que não deve ser confundido com outro, que

cremos conhecer muito bem e que é urgente desmascarar. Aludimos a certos

"pseudo institucionalistas" que, sabendo das características dispersivas,

erráteis e libertárias que definem para alguns setores (provavelmente os mais

criativos) a essência do Movimento, as usam com os fins mais espúrios que se

possa imaginar. Inteirados nominalmente de um punhado de noções da

corrente, as brandem como slogans para empreender um agitacionismo

fanático: do "antiautoritarismo" (que desvirtua toda autoridade fundada), da

"desordem produtiva" (que inviabiliza qualquer organização e eficácia), da

"novidade radical" (que impossibilita qualquer regularidade operacional) da

provocação-auto- heterodissolvente (que hipostasia a negatividade e carece de

propostas construtivas), do saber ex-nihilo (que proscreve o estudo e prescreve

um intuicionismo inconseqüente) etc. Como notas secundárias

caracterológicas, estes "anarquistas de bar" costumam glorificar "a paixão"

(que confundem com um sentimentalismo raso), a "liberdade sexual" (que para

eles é uma promiscuidade confusa e obscena), o "hedonismo" (que consiste

em um consumismo alcoólico, drogadito e parasitário) etc.

Variedades da marginalidade desocupada ou subempregada, originada da

lumpenização das faixas médias urbanas universitárias, tais "revoltosos",

119

líderes, acólitos ou franco- atiradores, não só "não passam" como também

"nem chegam" a encarnar essas célebres figuras que a militância ortodoxa

qualificava de esquerdosos festivos. Em termos institucionalistas: desviantes

organizacionais, libidinais ou ideológicos incapazes de produção. Sua triste

história consiste em que uma vez tenham destruído e saqueado, brandindo

"palavras" instituintes, qualquer iniciativa que os tirou do anonimato, dedicam-

se a dar rédeas soltas a sua "vontade de nada", ou melhor, a reproduzir

caricaturalmente os vícios (sem as virtudes) da "imperfeita" entidade de origem.

Nem Eros, nem Teros, nem Ananké; em resumo: ladrões de galinhas.

II) O Institucionalismo e seus valores

Se as aproximações até aqui esboçadas foram ilustrativas, cabe

concluir, no mínimo, que restam muitas questões sem esclarecimento no

Institucionalismo. Essa óbvia constatação não é proclamada aqui apenas por

pruridos éticos, consciência epistemológica ou autocomiseração sentimental. O

motivo fundamental é estratégico e tende a propor e demonstrar a

possibilidade e conveniência de algumas medidas a serem adotadas pelo

Movimento. Política, logística, estratégia, táticas, técnicas, modalidades de

divulgação, implantação, desenvolvimento, transmissão, autorização,

contratação, avaliação de resultados, alianças, morfologia organizacional

devem ser revistos no Institucionalismo. E isso não significa exclusivamente

que esses conhecimentos devam ser produzidos, mas que muitos deles

precisam ser apenas comunicados, intercambiados e elaborados

coletivamente. Para tal, o Movimento deve dar-se dispositivos formais, amplos

e fortes, com respeito aos quais tem uma proverbial desconfiança. Será

procedente diagnosticar nesta encruzilhada algo assim como uma

"enfermidade infantil do Institucionalismo"?

Alguns textos que conhecemos procuraram uma abordagem de conjunto

de pelo menos parte desta problemática. Muitos pontos incertos são tocados e

soluções interessantes colocadas com rigor e vigor. Experientes

institucionalistas exortam seus colegas a um certo ecumenismo bem-

entendido, assim como à subscrição de convenções normativizadas e

120

inteligíveis para a socialização da experiência das inúmeras tendências do

Movimento. Dá-nos a impressão, contudo, de que (até onde sabemos) essas

sugestões ainda não reconhecem nem aproveitam devidamente os

adiantamentos, em alguns casos admiráveis, que a crítica produtiva de outros

institucionalistas já gerou, justamente sobre os valores e recursos em nome

dos quais se põem em marcha tais entendimentos. Por outra parte, e até há

pouquíssimo tempo, não havíamos percebido colocação alguma para uma

estruturação internacional do Movimento, apesar da lucidez que os

institucionalistas avançados e experientes demonstram acerca da onda de

integração planetária de todos os processos sociais.

Um tema exemplar para compreender essa curiosa combinação de falta

de experiência elaborada com uma espécie de puritanismo ético encontra-se

no capítulo sobre as modalidades de contrato e enquadre das prestações de

serviços. É óbvio que para os institucionalistas mais "profissionalistas" e

"especificistas" este ponto não significa problema algum enquanto já está

regulado por leis ou normas ditadas por organismos acadêmicos, trabalhistas

ou jurídicos externos ao Movimento. Já para alguns, se bem que esses

requisitos sejam indispensáveis, só se exige que suas condições sejam

rigorosamente autogestadas pelos coletivos de usuários, compartilhadas pelas

equipes intervenientes e tomadas por ambos como analisadores construídos a

serem cuidadosamente analisados. Entretanto, para as correntes puristas,

todo setting seria um aparato ou equipamento no qual se cristalizariam, como

tecnologia falsamente "neutra", as forças mais reativas do "especificismo" e

"profissionalismo". Afirmam que se toda intervenção está encaminhada a

propiciar a inventiva e a auto invenção dos coletivos, instituir um ponto de

partida contratual instauraria uma espécie de "repressão primária" inaugural

cujos conteúdos permaneceriam opacos para sempre aos "oficiantes" de tais

"cerimoniais". Constituir-se-ia assim um núcleo cego, e, portanto repetitivo,

que tenderia a reiterar-se como reprodução ou fabricação do mesmo. Em

outras palavras: da racionalidade, do poder, do lucro e do prestígio, do saber e

fazer disciplinar que dessa maneira ritual se funda. Essa limitação, extremada

no caso de abordagens assumidamente interiores às ciências "humanas" e

"sociais" (Psicologia Social, Sociologia das Organizações, Psicanálise

121

Aplicada etc.), existiria ainda nos convênios de serviços da Análise

Institucional "Clássica" ou da Psico-Socioanálise.

Via esta questão restrita do contrato e do enquadre, nos introduzimos

em uma contradição aguda e geral do Institucionalismo. Por uma parte,

recordemos a verdade de Perogrullo, de que a autogestão não se decreta nem

se concede, que não existe uma prescritiva para a invenção e que, como dizia

Bakunin, "só a liberdade engendra a liberdade". Por outra parte, tenhamos

presente que em quase todos os casos em que um institucionalista "é

chamado" a intervir, isso ocorre porque os coletivos não conseguem aproveitar

as condições de liberdade de que dispõem para produzir (inventar), com a

autogestão como meio e como fim, aquela liberdade que desejam.

Consideremos um coletivo que decidiu dar-se uma forma autogestiva de

funcionamento. Se a mesma é integral, ou seja, se compreende os aspectos

econômicos, políticos, "culturais" e libidinais de sua práxis (e enquanto a

tentativa estiver sendo exitosa), não se vê porque um companheiro

institucionalista iria ser convocado a participar. Pode acontecer que já pertença

"naturalmente" ao coletivo em questão, caso este que parece não criar

problema algum, porquanto seu saber e fazer serão entendidos como

pertencentes ao tesouro do conjunto e espontaneamente utilizados.

No limite, cabe perfeitamente colocar-se o modelo ideal de um coletivo

autogerido de analistas institucionais, o que tornaria difícil, ainda que não

impossível, imaginá-lo solicitando os serviços de colegas para catalisar uma

intervenção sobre si mesma.

Por outro lado, uma iniciativa autogerida sólida e assumida não teria por

que privar-se do emprego crítico de qualquer recurso tecnológico

contemporâneo. E claro que ninguém ignora a distância que separa as

aplicações da física à computação, por exemplo, da human engeneering. Mas

se aceita-se que o paradoxal "expert" em autogestão tem muito que dizer

sobre a implicação institucional dessas duas disciplinas (além da própria), não

se entende por que não apelar a ele em caso de necessidade ou ainda de

"luxo", e menos ainda porque seu trabalho não haveria de ser pago.

122

O que está em jogo neste ponto, como em qualquer dos outros, é uma

questão político-epistemológica de fundo no Institucionalismo. Deve-se ter

presente que o Movimento afirma, como um de seus mais essenciais

fundamentos, a convicção de que os coletivos das sociedades modernas são

muito mais vítimas que beneficiários da divisão técnico-social-libidinal do

trabalho. O vertiginoso avanço das ciências e técnicas nos últimos cem anos,

produtor de seus detentores, a casta privilegiada dos tecno burocratas, e

reforçador ao infinito de seus "padrões" dominantes – o Grande Capital e o

Estado administrador-gerente – submergiu os povos em um grau de

dependência inédito na História Universal. As comunidades, cujas

necessidades, demandas, hábitos de consumo e soluções são integralmente

produzidas pelas elites cientificistas e os equipamentos de poder, ficaram

substancialmente despossuídas de toda possibilidade de protagonismo no

conhecimento das determinações que as constringem, assim como de seu

levantamento pelos recursos que poderiam gerar por si mesmas. O único

recurso que restaria às populações seria aceitar as requisições do

participacionismo, quando não do colaboracionismo, que os centros oraculares

de poder se vêem obrigados a lançar, quando a mesma entropia de sua

arbitrária gestão os enfrenta com a ineficácia dos "planos" e a resistência

passiva dos usuários. Mas a certeza do Institucionalismo, acerca de que toda

desalienação deve passar atualmente pela recuperação do saber e fazer dos

coletivos sobre seu destino, não consegue especificar os modos e graus em

que a riqueza científico-tecnológica já produzida deve ser reapropriada pelos

movimentos autogestivos.

Félix Guattari, a quem se atribui fundamentadamente o título de criador

do termo "Análise Institucional" e de cuja vocação autogestiva se torna difícil

duvidar, escreveu: "A autogestão como consigna pode servir para qualquer

coisa. De Lapassade a De Gaulle, da CFDT aos anarquistas: Autogestão de

quê? Referir-se à autogestão em si, independentemente do contexto, é uma

mistificação. Converte-se em algo assim como um princípio moral, um solene

compromisso de que será em si mesmo, por si mesmo, que se administrará o

que é de si mesmo, de tal ou qual grupo ou empresa. A eficácia de tal consigna

depende, sem dúvida, de seu efeito de auto-sedução. A determinação, em

123

cada situação, do objeto institucional correspondente é um critério que deveria

permitir esclarecer a questão. A autogestão não pode ser senão uma consigna

de agitação transitória que, em definitivo, corre o risco de criar bastante

confusão se não estiver articulada numa perspectiva revolucionária coerente...

Se 'impugna', no imaginário, a hierarquia. A autogestão, tomada como

consigna política, não é um fim em si mesmo. O problema consiste em definir,

em cada nível de organização, o tipo de relação, de formas que devem

estimular-se, e o tipo de poder a instituir. A consigna da autogestão pode

converter-se em uma fachada se substitui massivamente as respostas

diferenciadas pelos níveis e setores diferentes em função de sua complexidade

real... Não há uma 'filosofia geral' da autogestão que a torne aplicável em todas

as partes e em toda situação... " ("Psicanálise e Transversalidade", Ed. Siglo

XXI, México).

Poder-se-ia argumentar que essa citação foi tomada de um texto antigo

e que a evolução posterior deste autor o conduziu cada vez mais ao

espontaneísmo radical e polimorfo que parece caracterizar o que me permitirei

chamar a modalidade mais extremista do Institucionalismo, quer dizer, a

"Esquizoanálise". De qualquer maneira, e considerando a complexidade do

desenvolvimento dessa concepção, assim como a infinita diversidade de suas

estratégias, ela não fez mais que contribuir para a pluralização da morfologia

das iniciativas autogestionárias e o questionamento da autogestão como valor

unitário e abstrato. Além do mais, não descarta o apoio de tecnologia alguma,

pelo contrário. Guattari é um de seus mais ardentes defensores. O conceito de

autogestão que acabamos de comentar sucintamente não é mais que um caso

de quantas categorias o Institucionalismo maneja. Nenhuma corrente, mesmo

as mais drásticas do Movimento, assume que seus termos teóricos não sejam

apenas instrumentos formais, mas também, no sentido mais forte do vocábulo,

valores.

Na tendência esquizoanalítica que antes mencionávamos, assim como

em muitas outras, os máximos valores promovidos predicam-se como:

Produção (oposto à Reprodução), Invenção (oposto à Fabricação), Afirmação

da Singularidade, Diferença, Potência, Ser do Devir etc. (opostos à

Generalidade, Negatividade, Identidade-Repetição, Reatividade, Ser como

124

Permanência etc.) A essas categorias podem-se acrescentar as de:

Agenciamento, Dispositivo, Desejo, Máquina de Guerra, Acontecimento,

Simulacro, que têm a ver com o Instituinte e os Bons Encontros (opostos às

Formações de Soberania, Objetivações das Idéias Puras ou Modelos, como

sinônimo do Instituído, dos Maus Encontros etc.). Toda a História Universal (a

das Formações Econômico-Sociais, Civilizações, Subjetividades e ainda a do

Pensamento e a da Natureza) estaria atravessada pela miscigenação entre

modos sedentários (territorializados) e modos nômades (desterritorializados)

do Ser e do Existir, pensáveis com os critérios mencionados anteriormente.

Uma análise genealógico-epistemológica de tais conceitos- valores seria

uma tarefa colossal e apaixonante, que supera por completo as fronteiras de

nossa capacidade e deste trabalho. Se os repassamos aqui é apenas para

referir-nos a certas confusões que sua polissemia propicia e que levam a que

sejam usados com fins e resultados totalmente alheios a seus propósitos e,

não poucas vezes, diametralmente contrários a eles.

Não estamos falando do arsenal nem das estratégias manifestas e

"molares" (como se chama na "Esquizoanálise") do Capital, do Estado, da Lei,

da Igreja, da Família ou da Corporação. Já a Teoria Crítica Clássica do

Marxismo e do Funcionalismo conseguiu que os aparatos, equipamentos e

manobras capitalistas, fascistas ou "democráticas" nos resultem cada vez mais

definidos e visíveis. O Institucionalismo (particularmente com os estudos de

Foucault, Deleuze, Guattari, Lourau e outros) contribuiu para detectar as

formas "micro" desta rede, tornando-a ostensiva.

Tampouco nos referimos aos célebres mecanismos de recaptura com os

quais o Sistema reincorpora à torrente da reprodução e do consumo, assim

como ao tabuleiro do registro e da dominação, as invenções dos movimentos

produtivo- libertários. Nós os temos muito em conta, pelo menos em tese, para

precisar invocá-las novamente neste contexto... a não ser que se considere

recapturas os efeitos de entorpecimento e antiprodução que se geram no seio

dos grupos, organizações e práticas institucionalistas: é a estes que queremos

nos referir.

No capítulo anterior esboçamos uma qualificação crítica das correntes

adaptacionistas e "pseudo-ultra" do espectro de posições dentro do

125

Institucionalismo e descrevemos algumas de suas características

contraproducentes. Talvez tenhamos deixado a impressão de que se trata de

setores patentemente definidos que seriam simples de localizar e até

personalizar. Desde logo, existem casos em que isso é possível, mas aqui nos

interessa destacar estes perfis como tendências imanentes a todos e a cada

um dos segmentos (incluída a subjetividade dos agentes) de qualquer corrente

institucionalista. Convém precisar com respeito a suas propostas teóricas e sua

atuação política e técnica, que da mesma forma que não cabe esperar nada de

uma "Filosofia Geral da Autogestão", tampouco corresponde fazer uma

"Demonologia Geral Abstrata" desses desvios. Naturalmente, não se trata de

fomentá-las nem de privilegiá-las, mas sim de permanecer abertos aos

inesperados efeitos revulsivo-produtivos que uma intervenção assim conduzida

pode causar, como notável independência dos princípios que a guiam e que,

eventualmente, pode fazê-la preferível a outras mais tecno-burocráticas, ou

mais dissolventes ainda. Ninguém deve escandalizar-se frente à aparente

contradição entre o postulado de um juízo preciso classificatório de uma

corrente e a recomendação de uma abertura expectante no tocante a tolerar

sua atuação e observar seus resultados. Basta compreender que as séries

opositivas de valores que antes enumeramos, cujos primeiros termos seriam

essenciais a uma estimativa institucionalista, não são nem axiomas, nem

evidências. Não são axiomas justamente porque o Institucionalismo insistiu,

desde diversos ângulos, em dessacralizar o tradicional estatuto da Teoria em

sua práxis, e mais ainda da Teoria baseada em parti pris formalizados. Pelo

contrário, insistiu em uma reivindicação da singularidade das práticas, para as

quais as Teorias funcionam apenas como uma frouxa orientação, quando não

se limitam a prover certa intelecção pos' facto.

Por outra parte, os valores mencionados não são evidências, pois

apesar da predileção do Institucionalismo pelos atos e transformações

concretas que sejam percebíveis como tais para técnicos e usuários, sem

misteriosas avaliações de seita, a amplitude e ambição que caracterizam a

utopia ativa fazem com que o Movimento distingua-se bastante de todo

positivismo, empirismo, pragmatismo ou "intuicionismo".

126

Como quer que seja, compreende-se que em um Movimento, no qual

não se pode apelar ao veredicto de uma Teoria específica nem ao de uma

evidência fulgurante, os conflitos e discordâncias serão dirimidos em função de

parâmetros marcadamente sutis, processuais e conjunturais. Tudo isso se

torna particularmente delicado, algo assim como um artesanato militante cujos

princípios são depuradamente contrários aos dominantes.

Como já expressamos mais acima, o Institucionalismo tem,

hipoteticamente, inúmeros aliados nos coletivos subjugados e explorados, mas

quem impera atual e universalmente (embora não sem contradições) são seus

poderosos e ubíquos adversários e inimigos. Procede enfatizar que o

Institucionalismo não é somente opositivo ao Capitalismo e suas formas

históricas econômico-político-culturais (tais como os totalitarismos de Estado

ou as democracias burguesas), mas também à maioria das tendências e

organizações críticas contrárias a esses sistemas. Por outro lado, ocupa similar

posição de antagonismo relativo em referência às sociedades "em transição"

ao Socialismo.

Frente a um panorama tão desfavorável, o Institucionalismo exige que

suas decisões de condução sejam, no possível, exaustivamente deliberadas e

exclusivamente consensuais, o que torna sua gestão insuperavelmente coesa

e homogeneamente revolucionária quanto às transformações de fundo e a

longo prazo. Não obstante, resulta notório que esse principismo sui generis,

que se nega a separar meios de fins, não facilita as resoluções e execuções

táticas imediatas, diante de contendedores tão ágeis, fortes e onipresentes. É

no campo dessas dificuldades (e de outras que antes mencionamos) que

recrudescem os conflitos, inerentes a todo Movimento, que os próprios

institucionalistas contribuíram tanto para sistematizar. Em algumas de suas

formas típicas esses conflitos podem ser descritos assim:

1) As pressões que o mercado competitivo exerce sobre as organizações

institucionalistas sobre-exigem o tempo e os esforços destinados à

implantação, sobrevivência e crescimento, digamos, vegetativo ou infra-

estrutural das iniciativas.

2) Os poderes oficiais, acadêmicos, corporativos ou simplesmente

profissionalistas desencadeiam campanhas repressivas, injuriosas ou

127

recuperadoras sobre a ação ou imagem dos institucionalistas. Entre essas

manobras destaca-se o que ironicamente podemos chamar

"desvanecimento e usurpação de patente". Tudo é "Análise Institucional",

logo, "nada o é".

3) Em conseqüência do dito nas alíneas 1 e 2, exacerba-se, no seio das

organizações e dos sujeitos-agentes institucionalistas, a designação de

recursos de todo tipo, para a luta pela obtenção, apropriação e "inflação" de

"identidade", "legalização", "legitimação", "reconhecimento", "autorização",

"prestígio", "solvência financeira" etc., valores estes que insensivelmente

fazem derivar até a luta pelo "poder", o "lucro", a "primazia" etc. Ou mesmo,

até um suposto contrário: o matiz "beneficente", "caritativo" ou "filantrópico"

das prestações de serviços.

4) Em função de tudo isso, começa um questionamento obsessivo quotidiano

da "ética" da práxis, das estratégias e táticas externas, assim como das

relações internas, de modo que estas se enrijecem estatutariamente, se

"assembleízam" deliberativamente ou se "vertiginizam" ativisticamente. O

organograma e o fluxograma internos se "piramidalizam" e se dispersam. O

regime das alianças tende a uma regressão filiativa. Em resumo:

"paranoidiza-se" a verticalidade, "perversifica-se" a horizontalidade e

"extravia-se" a transversalidade.

5) Fica preparado, então, o ambiente para que o Movimento degenere para as

diversas direções do vanguardismo segregacionista e do sectarismo

hipercrítico, em suas modalidades de protopaternalismo, fraternidade do terror

e, finalmente, a serialidade. No plano da produção de subjetividades, isso se

registra como uma edipianização geral com suas reterritorializações

neuróticas e "psicossomáticas", perversas ou psicóticas. Na terminologia

organizacional: amadurecem as condições para a eclosão de certas figuras

clássicas tais como a cisão de grupos dissidentes e a burocratização – que às

vezes derivam para a empresarização ou para uma morfologia política

convencional que, não por ser "menos pior", é a mais desejável: o centralismo

democrático. No nível grupal dessas configurações surgem as tradicionais

lideranças "autocráticas" ou laíssez-faíre e os papéis de "bode expiatório",

"sabotador" etc.

128

6) Em resumo: cedo ou tarde, tais deformações (que no espaço da

subjetividade podem reduzir-se aos efeitos do "narcisismo das pequenas

diferenças") conduzem, pelo caminho do famoso "individualismo pequeno

burguês", à atomização do Movimento. Este foi caracterizado por perfis que

talvez ainda não seja hora de descartar como obsoletos: o ativismo,

o voluntarismo, o imediatismo, o oportunismo, o utilitarismo, ou a corrupção

franca. Toda uma vasta produção bibliográfica atual tratou com maior ou

menor propriedade dessa problemática do individualismo moderno (L.

Rozitchner, D. Riesman, C. Lasch, R. Sennett, L. Dumont) e pós-moderno (D.

Bell, G. Lipovetsky, J. Baudrillard, P. Virilio e outros). Se os primeiros

enfatizam a fragmentação pulverizante e competitiva do Capitalismo

Industrial, os últimos sublinham a subjetivação indiferente e abúlica das

sociedades pós-industriais. Coincidem, no entanto, em constatar a

decadência da res publica e de quase todas as formas de solidariedade

orgânica "a la Weber, Durkheim ou Marx".

7) Em outro escrito resumimos esta tendência dos coletivos no conceito de

"compulsão à autodissolução" ("A Compulsão à Dissolução", publicações

internas do Ibrapsi, Rio, 1988). Seguimos acreditando que se trata de uma

força reativa, como diria Nietzsche, a ter muito em conta nas vicissitudes

do Movimento Institucionalista. A rigor, trata-se de uma curiosa

exacerbação do que a teoria postula como um requisito dos grupos

revolucionários, quer dizer, a capacidade deles de prever sua própria morte

e de decidir sua extinção quando deixam de ser estritamente necessários

para o processo transformador que lhes dá sentido.

8) Se se repassa o exposto, especialmente o referente à "compulsão à

autodissolução", os "desviantes ideológicos, organizacionais e libidinais" e

os vícios provenientes do uso exacerbado da autogestão como consigna

abstrata e descontextuada com finalidade de oposicionismo demagógico,

teremos uma imagem ilustrativa das deformações que emboscam o

Movimento Institucionalista.

9) Uma observação mais demorada que compare estas distorções com a

breve enumeração que fizemos dos valores promovidos pelo

Institucionalismo permitirá constatar que as primeiras são com frequência

129

(como diriam Deleuze e Guattari) "coartações" ou "acelerações ao infinito"

dos processos que os segundos infundem e orientam. Em outras palavras:

frequentemente os vícios do Movimento são uma caricatura de suas

virtudes.

10) Para fins de síntese e conclusão, digamos que se tivéssemos de

escolher alguma dessas virtudes do Movimento Institucionalista na qual se

apoiar para construir "o presente futuro de sua ilusão" (no sentido de êxito

da Utopia Ativa), seria a afirmação de sua positividade. Se se mostrou

indubitavelmente que tanto teórica quanto estratégica, tática e

tecnicamente o Institucionalismo é uma práxis transversal, heterogênea,

diversificada, intersticial e não – totalizável, qual pode ser sua condição

ontológica, axiológica e epistemológica?

Ontologicamente, em que pode consistir sua "identidade que não seja

viver na nebulosa das "puras diferenças", quer dizer no "simulacro" das

entidades estabelecidas para forçá-las até seu limite, para cavalgá-las,

incrementando seu pólo progressivo, para mimetizá-las, parodizá-las, infiltrá-

las, recortá-las por linhas clivagem bizarras, dividi-las até o infinito, refluidificá-

las, fazê-las proliferar, "alternativizar", diluir-se, rachar, etc.?

Axiologicamente, que ética pode reger esta atividade não enquadrável,

mais que tudo, um "modo de viver" que atravessa qualquer "forma de vida"

indiferente à "vida das formas", tentando exclusivamente propiciar que "nova

vida" se forme? Como enunciar os postulados dessa ética além de exortações

como "desejar o acontecimento" ou "intensificar a singularidade", segundo a

vontade de potência produtiva, em todo tempo e lugar? Uma ética que

prescreve gerar as próprias leis para que cada vez mais do real virtual se torne

atualizável.

Epistemologicamente, parece indiscutível que o Institucionalismo, longe

de orientar-se por critérios de Verdade, seja estes revelados, especulativos ou

experimentais, dedica-se a genealogizar suas formas históricas de produção

para expor manifestamente os poderes que as envolvem. Que outro recurso

lhe compete além da construção de "verossímeis", "simulações", "efeitos

especiais", indecidíveis, indemonstráveis, mas realizados? Como pensar o

130

radicalmente novo senão com uma "nova maneira de pensar", um pensamento

"sem fundamento", ou melhor, "não-fundamentalista"?

Quando sustentamos que a principal virtude do Institucionalismo deve

ser a afirmação da sua positividade, queremos indicar sua capacidade de

apropriar-se de todo e qualquer fragmento de código, discurso, organização,

estatuto ou prática, incluídas aí as específicas e profissionais, e remetê-las a

funcionar segundo se produzam, e a produzi-las segundo funcionem. Por

conseguinte, ao Institucionalismo não deve interessar muito a negatividade

crítica e a "superação" dos instituídos dentro do marco dos próprios cânones

dos mesmos. Melhor dedicar-se a pinçar neles cada elemento produtivo, tudo

que "abra", "possibilite" e "conecte", agenciá-la de acordo com a lógica de seus

"princípios" e intensificá-la até gerar um acontecimento.

Nada impede, pois, ao institucionalista, "devir" (que embora lúdica não

deixa de ser revolucionariamente) sociólogo, economista, psicanalista,

engenheiro de sistemas, profissional liberal ou funcionário, sempre que o faça

(como diriam Deleuze e Guattari) "à moda" de um bárbaro, um artista ou uma

criança.

Se isso está correto, boa parte dos pruridos, assim como os purismos e

desviacionismos internos ao Movimento que mais acima descrevíamos, é

passível de ser analisados, avaliados e resgatados para um fortalecimento

geral do Institucionalismo que precisa cada vez mais de dispositivos fortes,

amplos e numerosos.

GLOSSÁRIO

131

Elaborado por Gregorio F Baremblitt com a participação de Cibele

Ruas de MeIo

Advertências para a leitura deste Glossário

Devido ao caráter introdutório deste livro, este glossário tem por objetivo

apenas informar acerca da existência de alguns dos termos mais empregados

pelo Institucionalismo, bem como da diferente acepção que tomam outros,

advindos de áreas onde seu uso foi consagrado de forma diferente. Embora

este propósito não baste para explicar as limitações do texto, nós, os autores,

fazemos questão de explicitá-las mais detalhadamente:

1) A autoria das definições e suas referências bibliográficas não estão

citadas literalmente, pois esse requisito excederia as aspirações e

possibilidades deste livro.

2) Os autores crêem ter sido fiéis aos significados mais aceitos dos

termos, mas se responsabilizam por toda e qualquer omissão ou distorção que

as definições impliquem.

3) De forma coerente com o exposto anteriormente, e como desculpa

por qualquer injustiça cometida com a paternidade ou a precisão dos conceitos,

os autores renunciam a qualquer pretensão de originalidade, ou seja, de

propriedade intelectual dos mesmos.

4) E desnecessário dizer que este glossário, assim como o volume do

qual forma parte, não pretende haver dado conta nem da maioria dos autores

nem dos termos que, segundo a definição ampla dada do Movimento, deveriam

estar nele incluídos.

132

5) Em alguns casos, como por exemplo no da Esquizoanálise, os autores

estão cientes de haver incluído e definido termos que não estão

suficientemente esclarecidos. Espera-se que o leitor compreenda o dilema que

termos pertencentes a teorias tão vastas apresentam para os glossaristas: ou

se renuncia por completo a mencioná-las, o que empobreceria demais esta

leitura, que pretende ser panorâmica, ou se os inclui e define de uma forma

sumária e provisória. Esta última opção está destinada a motivar o leitor a

procurar a bibliografia de origem para entendê-los e aprofundá-los.

ACASO: modo de devir que se caracteriza por ser aleatório imprevisível e

incontrolável. Frequentemente se equipara este termo ao que é casual,

contingente, insólito etc., apesar de os sentidos destes vocábulos serem

variados. Nos paradigmas ou modelos que partem da ordem, o acaso é

considerado como uma vicissitude probabilisticamente possível, mas em geral

indesejável. Com o auge contemporâneo dos paradigmas ou modelos da"

desordem", este é considerado o modo de ser do devir dos processos, e se

procura maneiras de pensar e atuar que incluam a "desordem" e sua potência

produtiva. No Institucionalismo (ver Movimento Institucionalista *), de modo

geral, a" desordem" e o acaso que caracterizam os processos são

considerados fontes de produção* e essência do desejo*, geradores da

transformação e da novidade nos sistemas. Em um sentido estrito do

instituído*, o organizado*, o estabelecido tenta a repetição do mesmo (ver

Repetição*), são conservadores, enquanto o Institucionalismo se interessa por

propiciar a ação do instituinte*-organizante*, através da liberação do acaso-

radical, deflagrador da diferença, do novo absoluto.

ACONTECIMENTO: ato, processo e resultado da atividade afirmativa do

acaso*. É o momento de aparição do novo absoluto, da diferença e da

singularidade. Estes atos, processos e resultados, conseqüências de conexões

insólitas que escapam das constrições do instituído*-organizado*, estabelecido,

são o substrato de transformações de pequeno ou grande porte que

revolucionam a História* em todos os seus níveis e âmbitos. O acontecimento

atualiza as virtualidades, cuja essência não coincide com as possibilidades. O

virtual não existe, mas faz parte da realidade.

133

ADAPTAÇÃO: termo tomado da Biologia Evolucionista segundo o qual um

órgão modifica-se, tornando-se mais apto para sua função. Usa-se também

para referir-se às mudanças que uma espécie animal adota para sobreviver,

como reação a diversos fatores que obstaculizam ou favorecem seu

desenvolvimento. Nas chamadas Ciências Humanas, essa noção foi

empregada com frequência, mas é muito criticada por evocar uma

transformação dependente, apesar de que frequentem ente se lhe adicione o

qualificativo "ativa". No Institucionalismo*, o vocábulo adaptação costuma ser

sinônimo de adequação ao instituído* – organizado* e implica acomodação.

AGENCIAMENTO OU DISPOSITIVO: é uma montagem ou artifício

produtor de inovações que gera acontecimentos* e devires, atualiza

virtualidades e inventa o novo radical. Em um dispositivo, a meta a alcançar e o

processo que a gera são imanentes (ver imanência*) entre si. Um dispositivo

compõe-se de uma máquina semiótica e uma pragmática e se integra

conectando elementos e forças (multiplicidades, singularidades, intensidades)

heterogêneos que ignoram os limites formalmente constituídos das entidades

molares (estratos, territórios, instituídos* etc.). Os dispositivos, geradores da

diferença absoluta, produzem realidades alternativas e revolucionárias que

transformam o horizonte considerado do real, do possível e do impossível.

AGENTE: indivíduo-pessoa-sujeito protagonista das práticas* que se

desenvolvem no complexo instituído* – organizado* – estabelecido e seus

equipamentos*. Entendido como produção de subjetivação*, o agente pode ser

peça especialmente gerada para formar parte de um dispositivo (ver

agenciamento ou dispositivo*) transformador. De todas as maneiras, o agente,

no Institucionalismo, funciona mais como engrenagem ou efeito dos

processos, e não como causa dos mesmos.

ALIENAÇÃO: no sentido filosófico, designa um processo pelo qual um ser

perde sua identidade ou seus atributos essenciais, "alienando-se" ou

"transbordando-se" no outro, ou em um "fora de si". No Institucionalismo a

significação deste termo é próxima à da Sociologia: os homens, ::''TUPOS ou

classes sociais alienam suas potencialidades, atribuindo-as a entidades

sobrenaturais (os Deuses), como disse Feuerbach, ou a uma classe social

que, por ser a proprietária dos meios de produção, se apropria do valor da

134

força de trabalho não remunerada da classe produtora. Em geral isso lhe

permite também acumular poder político e prestígio.

ALTERNATIVA: designa-se assim as ideias, pessoas, organizações,

movimentos e práticas que supõem uma opção para seus simétricos oficiais,

reconhecidos e consagrados. Se bem as propostas alternativas possam reunir

a condição de opositoras, dissidentes e marginais, não chegam a ser

consideradas clandestinas, subversivas ou revolucionárias. As forças e

entidades dominantes desaprovam ou desqualificam as alternativas, mas em

geral as toleram ou as ignoram. Excepcionalmente, as recuperam.

ANALISADOR ARTIFICIAL OU CONSTRUÍDO: dispositivo* inventado e

implantado pelos analistas institucionais para propiciar a explicitação dos

conflitos e sua resolução. Para tal fim, pode-se valer de qualquer recurso

(procedimentos artísticos, políticos, dramáticos, científicos etc.), qualquer

montagem que torne manifesto o jogo de forças, os desejos, interesses e

fantasmas dos segmentos organizacionais.

ANALISADOR "ESPONTÂNEO" OU "NATURAL': analisador de fato,

produzido" espontaneamente" pela própria vida histórico-social-libidinal e

natural, como resultado de suas determinações e da sua margem de liberdade.

ANÁLISE DA DEMANDA: é a análise e deciframento que se faz do pedido de

intervenção por parte de uma organização. É o primeiro e um importante passo

para que se comece a compreender institucionalmente a dinâmica dessa

organização. É o material de acesso inicial que já contém valiosos aspectos

conscientes, manifestos, deliberados, assim como todo um filâo de aspectos

inconscientes e não-ditos* que remetem a um esboço inicial da conflitiva e

problemática da organização solicitante. A demanda tem conotação especial

para o lnstitucionalismo, particularmente a de que é produzida pela oferta (ver

Análise de Oferta") de bens e serviços.

ANÁLISE DA IMPLICAÇÃO: a implicação define-se como o processo que

ocorre na organização analítica, em sua equipe, como resultado de seu

contato com a organização analisada. É um termo que tem certa semelhança

com o conceito psicanalítico de contratransferência (reaçâo – consciente e

inconsciente – que o material do paciente produz no analista), só que no

lnstitucionalismo a implicação não é um processo apenas psíquico, nem

135

inconsciente, mas de uma materialidade múltipla e variada, complexa e

sobredeterminada (ver Sobredeterminação"). É ao mesmo tempo, um

processo político, econômico, social, etnológico heterogêneo que deve ser

examinado em todas as suas dimensões. Por outra parte, não é apenas uma

reação da equipe interventora ao contato com o objeto de análise. Ela pode

até ser prévia a qualquer contato. Não começa no "cliente" e é, isso sim, uma

interinfluência recíproca, simultânea, que faz parte integrante do processo de

análise da organização. Análise de implicação é a compreensão da interação,

da interpenetração dessas duas organizações, enfatizando a parte que cabe à

intervinda.

ANÁLISE DA OFERTA: é um exercício de auto-análise" ao qual a organização

analítica tem de se submeter para deslindar sua implicação no tocante à

geração da demanda. A publicidade, a divulgação (científica ou não), a

proposta direta u indireta dos serviços da organização analítica têm

necessariamente uma relação de causalidade (geração ou modulação) no

referente à formulação da demanda de seus serviços. A toda oferta de

prestação de serviços subjaz a duvidosa mensagem que consiste na

suposição de se saber e se ter o que o ou tro precisa, que por sua vez não

sabe que não tem e não entende o que é porque é complexo, sutil, técnico. A

análise da demanda* deve estar necessariamente articulada com a análise da

produção desta demanda – ou seja, a análise da oferta, que forma parte da

implicação dos interventores.

ANÁLISE INSTlTUClONAL: seus fundadores e principais expoentes são G.

Lapassade e R. Lourau, apesar de a denominação ter sido criada por F.

Guattari. Esta corrente institucionalista, uma das mais coerentes e

empenhadas, reconhece como seus antecessores a Psico-Sociologia, a

Dinâmica de Grupos, a Psicoterapia e a Pedagogia lnstitucionais, assim como

a Socioanálise de Van Bockstaele. Contudo, a Análise lnstitucional superou

amplamente esses precursores no sentido de uma radicalização de suas

teorias, modos de intervenção e objetivos últimos. Impossível resumir aqui

suas contribuições, bastará dizer que se propõe a propiciar os processos auto-

analíticos (ver Auto-Análise*) e autogestivos (ver Autogestão*) circunscritos (se

136

for o caso), mas tendendo sempre a que se expandam até conseguir um

alcance generalizado e revolucionário.

O lnstitucionalismo deve a esta orientação conceitos tais como insti tuin te*

instituído", institucionalização, analisadores históricos e construídos",

demanda-encargo*, efeitos" Mulhman, Lukács etc. A Análise lnstitucional

insistiu particularmente na análise da implicação*, ou seja, nas resistências

econômico-político-ideológico-libidinais dos agentes analistas aos processos

autogestivos durante as intervenções (crítica da Sociologia abstrata e

"neutra"). A Análise Institucional considera a prática de seus agentes como

uma militância, e propõe para eles o perfil de um intelectual implicado, à

diferença do intelectual orgânico (partidário) ou engajado (freqüentemente um

tanto especulativo). Como dispositivo* de intervenção, inclina-se pela

Assembléia Geral Permanente, na qual os não-ditos* institucionais são

forçados a expressar-se a té suas últimas conseqüências transformadoras.

ANSIEDADES: correntes institucionalistas, tais como as psicologias

institucionais de base psicanalítica kleiniana (Elliot Jacques, Pichon Rivière,

Bleger e outros), subscrevem, de diversas formas, a tese de que as

organizações são" sistemas de defesa contra a ansiedade". O conceito de

ansiedade deve ser entendido, nessas teorias, como similar ao cunhado por

Melanie Klein para sua concepção da personalidade psíquica, particularmente

para sua descrição do "mundo interno" ou "self inconsciente" dos sujeitos. As

posições esquizoparanóides e depressivas, que são as configurações que

adquirem os variados elementos que compõem o self (pulsões, objetivos,

defesas, fantasias) no curso do desenvolvimento, são acompanhadas de

vivências características denom.inadas ansiedades. Assim se fala de

ansiedades paranóides, depressivas, confusionais etc., sendo que as defesas

que se arbitram contra elas (dissociação, projeção, idealização, negação etc.)

podem tomar os elementos institucionais e organizacionais (contratos,

organograma, regulamentos) como suportes.

ANTlPEDAGOGIA: a partir das idéias questionadoras de Rousseau, diversos

pedagogos procuraram reformar, liberalizar ou revolucionar as instituições" e

sistemas de ensino. Métodos como os de Montessori, Pestalozzi, Freinet e

outros deram origem a várias tentativas de desburocratizar (ver – cracias') e

137

tornar a Pedagogia menos autoritária, dando aos alunos um maior ou menor

protagonismo e liberdade na gesti10 do processo pedagógico. Tais tentativas

replicam, ao nível da aprendizagem, os exemplos anarquistas, marxistas e

liberais de democratizaçiío (ver cracias *) ou franca libertação do trabalho.

Segundo sua diferente inspiração e seu grau de radicalidade, surgiram as

experiências de Makarenko na União Soviética, o Plano Dalton e as propostas

de Lewin e Rogers nos Estados Unidos, assim como a Pedagogia Institucional

de F Oury, A. Vasquez, M. Labat, e outros, na França. Generalizando, pode-se

dizer que são tentativas antipedagógicas que pretendem modificar ou destruir

a instituição do ensino, substituindo-a por opções participativas ou co-gestivas

(ver Co- Gestão*). Entretanto, é possível que seja a proposta de G. Lapassade

e R. Lourau de uma autogestão* pedagógica (primeiro parcialmente, como

contra-instituição, e depois generalizada) a forma mais conspícua de

antipedagogia que se possa conceber, na qual os alunos assumem

integralmente o curso da institucionalização da aprendizagem.

ANTIPRODUÇÃO: as potências produtivas de todo tipo – naturais, psíquicas e

sociais (em especial as instituintes*) –, são capturadas pelas grandes

entidades de controle e reprodução* (por exemplo: o Estado, o Capital etc.) e

suas forças são voltadas contra si mesmas, levando-as à repetição estéril ou

autodestruição. As potências singulares, que o sistema dominante não está em

condições de assimilar para transformar em bens, serviços ou valores

alienados (mercadorias) e incorporá-las à sua lógica, são alvos dos

mecanismos repressivos que eliminam mais ou menos deliberadamente as que

não conseguem capturar.

ANTIPSIQU1ATRIA: nascido junto à grande corrente de crítica cultural e

politica dos anos 60 nos Estados Unidos e Europa, este Movimento, mais ou

me nos radical, de impugnação do objeto (doença mental) assim como das

teorias e métodos da Psiquiatria e da Psicopatologia, impulsionou uma

profunda revolução nesse campo. Seus máximos representantes – Thomas

Szasz e I. Goffman nos Estados Unidos, Michel Foucault, Félix Guattari e R.

Castel na França, Ronald Laing e D. Cooper na Inglaterra, F. Basaglia na Itália

e E. Pichon Rivière na Argentina – insistiram na idéia de que as qualificações"

científicas" da loucura e da parafernália de recursos variavelmente violentos

138

destinados a tratá-la não seriam senão eufemismos da alienação política,

econômica e cultural da sociedade moderna. A maioria desses autores, que

estiveram reunidos em um Congresso no Rio de Janeiro, em 1978, foram

mentores ou participantes do Movimento Institucionalista *.

ATRAVESSAMENTO: a rede social do instituído*-organizado* estabelecido,

cuja função prevalente é a reprodução do sistema, atua em conjunto. Cada

uma dessas entidades opera na outra, pela outra, para a outra, desde a outra.

Esse entrelaçamento, interpenetração e articulação de orientação

conservadora, serve à exploração*, dominação* e mistificação*,

apresentando-as como necessárias e benéficas.

AUTOANÁLISE: processo de produção e re-apropriação, por parte dos

coletivos autogestionários (ver Autogestão*), de um saber acerca de si

mesmos, suas necessidades, desejos, demandas, problemas, soluções e

limites. Esse saber se acha em geral apagado, desqualificado e subordinado

pelos saberes científico-disciplinários, que não só estão em boa medida a

serviço das entidades dominantes (Estado, CapitaL Raça ete.), como também

operam com critérios de Verdade e Eficiência, que são imanentes aos valores

de tais entidades. A auto-análise possibilita aos coletivos o conhecimento e a

enunciação das causas de sua alienação*.

AUTO DISSOLUÇÃO: O lnstitucionalismo* enfatiza que os grupos,

organizações* e movimentos instituintes* (em outra terminologia:

revolucionário-produtivo-desejantes) devem constituir morfologias sociais

estritamente funcionais, subordinadas e coerentes com suas utopias ativas*.

Um dispositivo* instituinte ou um grupo-sujeito*, protagonista de um processo

transformador, deve ter sempre presente sua natureza transitória e "finita". Tal

consciência é precondição para seu bom funcionamento, que implica conjurar

os riscos de cristalização do instituído. Quando um conjunto instituinte cumpriu

todos os seus objetivos, ou quando constata que não está mais conseguindo

isso com a "identidade" que se deu, deve ser capaz de autodissolver-se para

não se perpetuar como uma finalidade em si mesma.

AUTOGESTÃO: é, ao mesmo tempo, o processo e o resultado da organização

independente que os coletivos se dão pora gerenciar sua vida. As

comunidades instituem-se, organizam-se e se estabelecem de maneiras livres

139

e originais, dando-se os dispositivos* necessários para gerenciar suos

condições e lnodos de existência. Todo processo instituinte*-organizante*

implica uma certa divisão técnica do trabalho, assim como alguma

especialização nas operações de planejamento, decisão e execução. Essas

diferenças podem implicar hierarquias, mas as mesmas não envolvem escalas

de poder. Os conhecimentos essenciais são compartilhados e as decisões

importantes tomadas coletivamente. As hierarquias correspondem a diferenças

de potência, peculiaridades e capacidades produtivas que visam sempre ser

funcionais para a vontade comunitária.

CAMPO DE ANÁLISE: é o perímetro escolhido como objeto para aplicar o

aparelho conceitual disponível destinado a entender o campo de intervenção*:

a inteligência acerca de como ele funciona, a articulação de suas

determinações, a forma como são gerados seus efeitos etc. Este aparelho

conceitual pode constituir-se de materiais teóricos muito heterogêneos,

dependendo da sua eficiência para fazer a "leitura" do campo de intervenção*.

O campo de análise não está delimitado segundo um perímetro que coincida

com a definição empírica ou "oficial" (instituída e organizada) de um segmento

social. Quanto mais amplo o campo de análise, mais possibilidades existem de

entendimento do campo de intervenção, por mais aparentemente pequeno que

este seja.

CAMPO DE INTERVENÇÃO: é o perímetro que delimitará o espaço dentro do

qual se planejarão e executarão estratégias *, logísticas *, táticas * e técnicas *

que, por sua vez, deverão operar neste âmbito específico para transformá-lo

de acordo com as metas propostas. Está em estreita dependência do campo

de análise*, desde o qual será compreendido, pensado. Só se intervém

quando se compreende, sendo que posteriormente se compreende à medida

que se intervém. O campo de intervenção pode ser muito amplo ou restrito a

um estabelecimento ou organização (escola, sindicato, empresa etc.).

CAPTURA E RECUPERAÇÃO: o instituído*-organizado*-estabelecido, em

especial o Estado, o grande Capital, as classes e grupos dominantes,

procuram detectar, classificar e apropriar-se de toda e qualquer singularidade

e força produ tiva. Quando o conseguem, as incorporam à lógica acumulativa

do Sistema, fundamentalmente transformando as linhas de fuga

140

revolucionário-desejantes e seus produtos (ver Desejo*) em mercadorias.

Quando o aparato de captura e recuperação falha, as mencionadas entidades

operam de forma repressiva ou supressiva, inibindo ou destruindo as forças

produtivas, em especial as instituintes*.

CLANDESTINIDADE: remete a modos de existência social cuja característica

principal é serem sigilosos, ocultos ou secretos. As idéias, pessoas,

organizações ou movimentos deste tipo podem somar a condição de

opositores, dissidentes ou marginais, mas sua característica essencial consiste

em que sua relação delinqüencial, subversiva ou revolucionária com a ordem

dominante os torna indesejáveis, ameaçadores ou francamente perigosos para

o instituído-organizado. Reciprocamente, a clandestinidade costuma ser

condição de possibilidade de existência para idéias ou segmentos sociais

frente às forças e recursos repressivos ou eliminatórios que o sistema no qual

atuam pode mobilizar contra eles.

CLASSE INSTlTUCIONAL: a Sociopsicanálise de G. Mendel designa o

estatuto do conjunto de agentes que são igualmente responsáveis por uma

etapa ou um nível dentro do processo de produção de um produto ou serviço.

Tal participação fica evidenciada quando a classe institucional se retira do

trabalho, interrompendo o curso do processo produtivo em um ponto

determinado. As classes institucionais de uma organização* são despossuídas

da parte do poder* que lhes corresponde pela classe suprajacente e

despossuem, por sua vez, à classe subjacente. A classe institucional é o

segmento organizacional indicado como objeto de intervenção

sociopsicanalítica e não se deve misturar seus integrantes com os menlbros de

outros segmentos.

CO-GESTAO: dá-se este nome a um tipo de gestão organizacional na qual

diferentes segmentos – por exemplo, de um estabelecimento – cuja posição

formal no organograma implica hierarquias e poderes diversos e, portanto,

relações de subordinação em última instância, elaboram um pacto ou acordo

de trabalho ou administração conjunto para realizar uma tarefa, sem mnunciar

às categorias antes mencionadas.

COLABORACIONISMO: costuma-se denominar assim as atitudes e

comportamentos de setores oprimidos, explorados e mistificados que prestam

141

subserviência, apoio ou cumplicidade às forças ou t'ntidades que os

subordinam ou submetem.

COMUNIDADE: este temo é usado com uma grande variedade de sentidos

nas ciências naturais e humanas. Em geral refere-se a um conjunto de

indivíduos (pequeno, médio ou grande) que está vinculado por algum traço,

característica ou atividade compartilhada. Esta peculiaridade pode ser de

espécie, gênero, classe, categoria, sexo, idade, raça, lugar, tempo, valores etc.

O importante é que atribui uma singularidade e/ou identidade, assumida ou

não pelos integrantes que, de uma forma ou de outra, lhes confere uma certa

coesão e solidariedade. Para a Sociologia Clássica, é fundamental que essa

solidariedade seja orgânica (organizada, diversifica da, hierarquizada e

articulada), e não apenas mecânica. J. P. Sartre distingue uma associação

serial ou aglutinada da resultante de uma fraternidade do terror, e esta de uma

em processo de institucionalização que se vai fazendo a si mesmo. Para o

lnstitucionalismo, é essencial que as unificações e totalizações das

comunidades sejam invenções provisórias e mutantes, subordinadas às forças

instituintes* e organizantes'" durante o curso da institucionalização.

CONFLITO: entendendo por conflito a oposição e luta dos contrários (dito em

um sentido muito amplo), para algumas tendências do Institucionalismo a

contradição é a fonte de todos os transtomos e, ao mesmo tempo, o único

motor da mudança nos sujeitos, organizações*, movimentos, sociedades* e

civilizações. Todas as forças, estruturas, instâncias e mecanismos que

compõem a realidade biossocial-libidinal funcionam de forma conflitiva, e da

cristalização ou da resolução de sua dialética * depende o destino produtivo,

reprodutivo ou antiprodutivo (ver Produção*,

Reprodução* e Antiprodução*) dos processos históricos.

Essa formulação recolhe, entre tantas outras origens teóricas, Os princípios e

fundamentos da Psicanálise e do Materialismo Histórico e Dialético, até incluir

certas raízes nietzschianas e existencialistas do pensamento institucionalista.

Os conflitos entre instituinte* – instituído*, centro-periferia, exploradores-

explorados, dominadores-dominados são apenas alguns exemplos da série

interminável que se pode imaginar. Contudo, para outras correntes, os

conflitos, sua paralisação dilemática ou sua resolução dialética não são do

142

nível determinante do real, porque a substância da realidade é a pura

afirmação produtivo-desejante.

CÓPIAS: dentro do que interessa ao Institucionalismo, as cópias (segundo o

pensamento platônico) são as almas que, havendo tido, nos tempos míticos,

uma proximidade, imagem e semelhança com as Idéias Puras* ou Modelos,

perderam a semelhança e só conservaram a imagem, esquecendo se dessa

"queda". A maiêutica socrática consistiria em um procedimento pelo qual,

mediante o raciocínio, se conseguiria que as almas recuperassem a memória,

e com ela o acesso às Idéias Puras. O método platônico da clivisão em

gêneros, espécies (etec.) seria uma forma de seleção para cliferenciar as

"boas" das "más" cópias, sendo que as primeiras estariam aptas para

recuperar sua semelhança com as Idéias Puras. As cópias são sinônimos de

"representações". Para a interpretação institucionalista desse pensamento, ver

Idéias puras*.

-CRACIAS: ARISTOCRACIA, BUROCRACIA, LOGOCRAClA, SEXOCRACIA,

TEOCRACIA, TECNOCRACIA: optamos por agrupar e tratar em conjunto

estes termos porque, com a finalidade de explicitar seu interesse para o

Institucionalismo, esta abordagem permitirá resumir a exposição. O sufixo

cracia significa governo de ou poder de: aristo (elite supostamente integrada

pelos melhores membros de uma sociedade, cuja condição de superioridade

está dada por uma linhagem hereditária); buro (categoria ou classe que se

ocupa da administração, com freqüência supostamente "científica" das

organizações); tecno (categoria ou classe que detém e exercita um saber

habitualmente de cunho científico); pluto (alude a classes ou grupos

economicamente opulentos); logo (alude aos possuidores da razão como

saber discursivo); sexo (alude a uma definição sexual em detrimento das

outras);e teo (alude aos supostos representantes da clivindade ou à divindade

mesma, "encarnada" em um indivíduo ou grupo). Aqui vale acrescentar a

palavra "nepotismo", em que nepo, em sentido restrito, alude aos filhos

naturais dos Papas, eufemisticamente denominados "sobrinhos". Em sua

acepção ampla, refere-se à designação de parentes de um governante para

cargos oficiais.

143

Para o Institucionalismo, que postula o autogoverno dos coletivos (sistema que

só admite lideranças provisórias baseadas no afeto, prestígio e

exemplaridade), nenhuma dessas condições e seus respectivos governos são

aceitáveis, configurando vícios de condução que são, por sua vez, causa e

efeito da impossibilidade ou incapacidade para uma democracia au togestiva.

CRISE: em sua origem grega e segundo os campos de atividade nos quais era

empregada, a palavra krisis significava: interpretação (por exemplo, dos

sonhos), seleção (por exemplo, das vítimas de um sacrifício), juízo (por

exemplo, procedimento para chegar a um veredicto), momento crucial das

vicissitudes ou do metabolé (por exemplo, cena de apogeu numa tragédia),

fase de definição, no sentido da melhoria ou da piora do curso de uma

enfermidade. Provavelmente por extensão da noção médica, o conceito de

crise aplica-se a processos de qualquer natureza, nos quais, dentro de um

andamento relativamente regular, chega-se a um ponto de desequilíbrio

(desorganização, desordem) mais ou menos imprevisível na sua aparição e em

seu desenlace. Esse estado de crise ocorre, segundo alguns, por caducidade

dos mecanismos e recursos vigentes, devido a seu desgaste e/ ou à incidência

de forças e acontecimentos positivos ou negativos acidentais, contingentes,

circunstanciais, extraordinários ete. As crises são etapas de mudanças para o

bem ou para o mal, mas em geral aceleradas e radicais. Alguns atribuem as

crises à exacerbação das contradições de um sistema ou ao acúmulo de

mudanças quantitativas que desembocam em uma transformação qualitativa.

Outros sustentam que são períodos ou espaços de transição entre tempos e

lugares precisos e conhecidos, enquanto há os que pensam que se trata dos

prolegômenos do surgimento do absolutamente novo.

Para certos autores (por exemplo, Marx), o Capitalismo é um sistema histórico

que existe em crise permanente, posto que incorporou essa condição a seu

modo normal de transcurso. Para o Institucionalismo, tanto enquanto campo de

análise* como de intervenção (ver campo de intervenção*), os estados de crise

são considerados fecundos, na medida em que envolvem a falência do

instituído* – organizado* e a emergência do instituinte* – organizante* no seio

da "desordem criadora". Alguns institucionalistas, como Lapassade, tentam

intervenções deflagradoras de crise grupal ou organizacional (provocação

144

institucional), e a maioria prefere intervir nos momentos críticos, melhor ainda

se generalizados a grandes segmentos ou à sociedade inteira.

DEFESAS: para as correntes institucionalistas tais como as psicologias

institucionais de base psicanalítica kleiniana (Elliot Jacques, Pichon Rivière,

Bleger e outros), as posições esquizoparanóides e depressivas – as

configurações adquiridas pelos variados elementos que compõem o self

(pulsões, objetos, fantasmas) no curso do desenvolvimento-, vêm

acompanhadas de vivências características denominadas ansiedades **. Assim

se fala de ansiedades paranóides, depressivas, confusionais etc. Os

mecanismos que se erguem contra elas (dissociação, projeção, idealização,

negação etc.) denominam-se defesas e podem tomar como suportes os

elementos institucionais e organizacionais (contratos, organograma,

regulamentos etc.). Por isso se diz que as instituições são "sistemas de defesa

contra a ansiedade*". Descritivamente falando, isso explica os quadros

psicóticos que muitos agentes* desenvolvem quando suas organizações

entram em crise ou os expulsam.

DESEJO: a Psicanálise demonstrou que os sujeitos psíquicos estão

determinados por uma força inconsciente sobre a qual não têm conhecimento

nem controle voluntário. Essa força se origina, por sua vez, das pulsões, e

tende à busca do prazer e à evitação do desprazer. A Psicanálise postula que

o desejo é uma força do tipo conservador ou repetitivo, que procura restituir

um estado arcaico perdido, prévio à constituição do sujeito: o narcisismo.

Durante esses incessantes ensaios, o desejo, que carece do objeto real, se

"satisfaz" ou "realiza" animando fantasmas (montagens de representações

imaginárias inconscientes que transcorrem em "outra cena"). Em última

instância, o desejo persegue o gozo absoluto, quer dizer, sua própria extinção

definitiva, na qual se encontra com a pulsão de morte. O Complexo de

Castração, que instaura a lei no psiquismo, constitui o desejo, ao mesmo

tempo em que lhe permite simbolizar-se e servir aos objetivos de vida. O

desejo, para a Psicanálise, gesta-se no seio do Complexo de Édipo; no início

do desenvolvimento, atua exclusivamente na dramática da vida familiar, e só

posteriormente induz os sujeitos psíquicos a entrarem nos processos sociais

amplos.

145

Algumas correntes do Institucionalismo compartilham a definição psicanalítica

de desejo (Sociopsicanálise). Para outras (por exemplo, a Esquizoanálise), o

desejo é essencial e imanentemente produtivo, gera e é gerado no processo

mesmo de invenção, metamorfose ou "criação" do novo. Sua essência não é

exclusivamente psíquica, pois participa de todo o real. Corresponde

aproximadamente ao que Nietzsche denominou "Vontade de Potência", ao que

Espinoza chamava "Substância" e os estóicos "Acontecimento Incorporal", que

resulta do encontro entre os corpos (devir). Igualmente o desejo (assim

entendido) tem afinidade com o "virtual" bergsoniano, com as "quantidades

intensivas" em Kant e com as "impressões intensivas" em Hume. Esse desejo

atua em todo e qualquer âmbito do real, não carece do objeto, ignora a lei e

não precisa ser simbolizado porque se processa sempre de fomla

inconsciente. Não tende à morte porque constitui a essência da vida como

"Eterno Retomo das Diferenças Absolutas". Assim entendido, o desejo

também está parcialmente submetido a entidades repressivas, mas estas não

são exclusivamente psíquicas, e sim um complexo conjunto ao mesmo tempo

político, econômico, comunicacional etc. Na Esquizoanálise de Deleuze e

Guattari, o desejo é imanente à produção, daí o conceito de produção

desejante.

DESVIANTE: nas organizações e movimentos podem surgir sujeitos, grupos ou

tendências que questionam o instituído* – organizado, através de diversos

discursos, atitudes e comportamentos. Protagonizam, assim, um desvio ou

afastamento da linha condutora hegemônica da organização. Sua dissidência*

ou discordância pode ser mais ou menos enérgica, mas em geral é

predominantemente reativa, quer dizer, se bem impugna e denuncia os defeitos

do instituído-organizado, não consegue fazê-lo com consciência suficiente e

estratégia adequada para gerar uma real alternativa ou uma mudança

profunda. O segmento desviante pode ser ideológico (quando propõe uma

divergência ou oposição teórica ou dou trinária), organizacional (quando altera

a estrutura ou a dinâmica do organograma e fluxograma) ou libidinal (quando

apresenta opções na definição sexual ou outras vinculadas a eleições

idiossincráticas em torno do prazer, da moral etc.). A proposta e ação desviante

podem, eventualmente, tornar-se o gérmen de um processo produtivo-

desejante-revolucionário.

146

DIALÉTICA: é um método para pensar e discutir as realidades materiais e

metafísicas cujas diferentes versões estão presentes em todo saber ocidental,

desde a Antiguidade até a época contemporânea. É um pensamento que

concebe a realidade material e a espiritual em permanente movimento e

transformação, devido a sua essência intrinsecamente contraditória. Opõe se a

todas as concepções que supõem o ser como estático e invariável, sendo as

mudanças que se apresentam apenas superficiais, ilusórias ou aparentes. A

dialética atinge sua maior sistematização com Hegel, que a postula como

método para pensar o movimento do "Espírito Absoluto", essência de todo o

real. Karl Marx, o fundador do Materialismo Dialético e Histórico, de alguma

forma conserva a concepção hegeliana do movimento dialético, mas o atribui à

matéria em suas várias qualidades, e não ao espírito.

A dialética sustenta que o movimento é regido por três leis: 1) Negação da

negação; 2) Passagem da quantidade à qualidade; e 3) Coexistência dos

opostos em cada unidade. Isso implica uma total refutação das leis da Lógica

Formal Clássica, pois os princípios de identidade, contradição e terceiro

excluído perdem vigência. Outro aspecto importante da dialética refere-se aos

denominados "momentos" de análise da realidade, que pode ser examinada

como "universal", "geral, particular" e "singular". Como nas leis do devir, cada

momento nega o anterior, o supera e ao mesmo tempo o conserva. O

conhecimento da essência de toda e qualquer realidade circunscrita deve ter

em conta esse "trabalho do negativo" que não é diretamente apreendido pela

consciência.

Algumas correntes do Institucionalismo incorporam recursos da concepção

dialética (Análise Institucional*), outras entendem que a dialética ainda é uma

maneira conservadora de pensar e conceber o real (a negação da negação

supera, mas também conserva o superado), postulando, em troca, uma ideia

do ser como puro devir no qual retornam exclusivamente as diferenças

(Esquizoanálise*).

DISPOSITIVO: ver Agenciamento.

DISSIDÊNCIA: costuma-se empregar este termo para referir-se à posição de

setores discordantes ou divergentes de uma organização ou movimento, sendo

que tal divergência afeta principalmente a linha teólica ou ideológica. As

147

tendências dissidentes podem manter-se no interior da organização-

movimento ou separar-se dele.

DISSOCIAÇÃO INSTRUMENTAL: denomina-se assim na Psicanálise, no

Grupalismo e no Institucionalismo a operação pela qual o analista, a equipe

interveniente ou outros segmentos organizacionais conseguem

simultaneamente protagonizar os processos plenamente implicados neles e

distanciar-se o suficiente para poder analisá-los e compreendê-los (ver Análise

da Implicação*).

DISTORÇÃO DA DEMANDA: alguns institucionalistas consideram que certas

demandas de intervenção, que expressam claramente uma falta de vontade

Instituinte*, ou mais ainda, um apreciável encargo repressivo ou ligeiramente

reformista, podem ser atendidas. O analista inicia a análise e a intervenção

sobre essas bases, confiando em que durante o curso do processo poderá

reverter o equilíbrio de forças e encaminhar o andamento em direção à

autogestão* e à autoanálise * .

DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO: todo processo de produção,

particularmente de bens materiais e serviços, exige um trabalho, e este, por

sua vez, consome força de trabalho. Os processos de trabalho complexos, em

todas as sociedades da História e especialmente na modernidade industrial,

estão diversificados em diferentes tarefas articuladas entre si. Essa

composição conferiu à produção uma rapidez e eficácia jamais igualadas.

Contudo, devido à propriedade privada dos meios de produção e à compra e

venda injusta de força de trabalho nos sistemas capitalistas (extração de

mais-valia), à divisão técnica do trabalho se superpõe uma divisão social.

Determinadas tarefas são consideradas privilegiadas e fundam hierarquias

que outorgam riqueza, poder e prestígio. Coisa similar Ocorre em outros

sistemas de produção pela extração dos mesmos e dos outros tipos de mais-

valia ("Socialismo Real"). Para o Institucionalismo, a divisão técnica e social

do trabalho é importante porque causa muitos dos conflitos a serem

analisados e intervindos. As divisões sociais do trabalho mais clássicas são

as que separam e subordinam a produção manual intelectual, do campo-

cidade, masculina-feminina etc.

148

DOMINAÇÃO: imposição, por diversos meios (dentro de um espectro de

violência que vai desde a sedução até a destruição física), da vontade de

indivíduos, grupos ou classes sobre outros. Os instituídos* –

organizados* estabelecidos, em especial o Estado e o grande Capital,

mantêm seus privilégios dominando a vontade coletiva ou majoritária. A

dominação é simultaneamente política, econômica, jurídica, semiótica,

Iibidinal ete., e freqüentemente consegue contar com a passividade e

também com a colaboração dos dominados (servidão voluntária).

ECRO: conceito da Psicologia Social de Pichon Rivière que é a sigla de

"esquema conceitual referencial e operativo". Refere-se, em primeira instância,

às teorias, logísticas, estratégias, táticas e técnicas que um coordenador de

grupo ou um psicólogo social empregam para pensar e intervir sobre seus

objetos' de trabalho. Contudo, o ECRO é muito mais que o até aqui

mencionado, porque inclui também tudo quanto seja acervo de vivências,

experiências, afetos e outros elementos que compõem a personalidade de

todos os participantes. Por outra parte, a idéia do esquema denota o caráter

provisório e marcadamente conjuntural do dispositivo* teórico-técnico utilizado.

EFEITOS: várias correntes do Movimento Institucionalista* sustentam que a

gênese teórica dos conceitos é inseparável de sua gênese social. Em outras

palavras: que a produção do conhecimento sobre as leis que dão conta dos

fatos sociais está sempre ligada aos acontecimentos concretos que

possibilitaram e exigiram sua formulação. Se bem esta afirmação não refute o

caráter universal e omnivalente das grandes leis das ciências chamadas

"humanas" (por exemplo, a Lei do Valor, no Materialismo Histórico), o

Institucionalismo enfatiza o momento "formal concreto" do conhecimento,

ressaltando suas características singulares devido à condição única, irrepetível

e contingente do fato em questão. Por isso prefere qualificar esses

acontecimentos como "efeitos", seguindo uma orientação das ciências físicas,

enquanto esse termo designa processos e fenômenos com um alcance menos

geral e mais local ou circunstancial. A lista de efeitos que podem ser propostos

é, por definição, interminável, mas mencionaremos aqui os mais conhecidos:

Efeito Weber: tem o nome do grande sociólogo Max Weber. Refere-se ao fato

de que quanto mais" desenvolvida" e complexa se torna uma sociedade* e

149

quanto mais saberes especializados produz acerca de si mesma, mais ela se

torna opaca (incompreensível) em seu conjunto para os agentes* sociais que a

integram.

Efeito Lukács: recebe o nome do filósofo Georg Lukács. Refere-se à

constatação de que o não-saber de uma sociedade acerca de si mesma é

conseqüência do progresso da ciência. Quanto mais formalizada, rigorosa e

quantificada aparece uma ciência, e quanto mais perde de vista as condições

sociais de seu nascimento e desenvolvimento (ou seja, quanto mais

profundamente realiza seu "corte epistemológico"), mais satisfaz as exigências

cientificistas e mais contribui para o não-saber de um conjunto social acerca de

sua própria existência.

Efeito Heisemberg: o físico Werner Heisemberg sustentava que o que torna

questionável a Teoria da Causalidade a nível subatômico é a impossibilidade

física de se medir objetivamente valores exatos, como, por exemplo, precisar

simultaneamente a velocidade e a posição de uma partícula. Nos experimentos

da mecânica quântica, sujeito e objeto constituiriam uma unidade inseparável

no seio da qual se produziria o fenômeno. Essa constatação pode conduzir a

um irracionalismo (ou seja, a uma renúncia a um tratamento sistemático da

determinação desses fenômenos), ou, pelo contrário, à concepção de outras

modalidades da causalidade. O lnstitucionalismo aproveitou essa idéia para

abordar a problemática da implicação, quer dizer, do intrincamento que se

produz não só entre a equipe interventora e a organização intervinda, mas

também na construção que o analista institucional faz de seu objeto de estudo

e intervenção e a desconstrução analítica que faz do mesmo Em todos esses

casos, cada um dos elementos mencionados é um "resultante" do campo que

assim se configura.

Efeito Frio-Quente: é óbvio que a história das sociedades mostra períodos de

estabilidade e "congelamento" da ordem constituída, assim como outros de

agitação, mobilização e grandes transformações. Alguns antropólogos

pretenderam, erroneamente, que as sociedades chamadas primitivas, por

oposição às modernas, seriam "estáticas", quer dizer, que careceriam de

história. O Institucionalismo sustenta que é nos períodos "frios" da história que

se consolida a produção do conhecimento social científico, e, portanto, o não-

150

saber de uma sociedade acerca de suas capacidades Instituinte e a

"naturalização" de seus instituídos*. Em outras palavras: a separação entre a

"consciência ingênua" e o "saber científico". Nessas fases, a análise e as

intervenções institucionais só podem ser contratadas e circunscritas. Já nas

etapas "quentes", em que todo o saber social está em ebulição, ocorre o

contrário: as experiências sociais se multiplicam, as informações circulam por

fora dos canais formais e criam-se condições para a apropriação crítica por

parte dos coletivos do saber acadêmico. Também se afirma a verdade dos

saberes espontâneos e a vontade de aplicar de imediato todo o apreendido na

ação instituinte. Quer dizer: geram-se processos de autoanálise* e autogestão*

espontâneos e generalizados.

Efeito Mülhman: este sociólogo das religiões descreveu um processo através

do qual os movimentos messiânicos, inspirados por uma profecia libertária,

chegam a um ponto de seu desenvolvimento em que alguns dos segmentos

que os integram considera-os "fracassados". Essa "função de fracasso" é

capaz de provocar a cisão do movimento e a saída ou a expulsão de facções

dissidentes. Isso permite aos setores remanescentes institucionalizar o

movimento e capturar as forças vivas e o potencial de origem em estruturas e

normas organizacionais "oficiais" e burocráticas rígidas. O lnstitucionalismo

constata que desfechos similares acontecem em todos os movimentos,

especialmente nos políticos.

Outros Efeitos: Lefevre, Einstein, Reich, Artaud, centro-contra-periferia etc.

EMERGENTE: na Psicologia Social de Pichon Rivière, denomina-se

"Emergente" a todo e qualquer efeito (suportado em materialidades diversas:

"mentais"," corporais" e "sociais") resultante da composição de forças e

elementos presentes e atuantes que integram uma situação e um campo vital.

Um emergente pode manifestar-se através de um indivíduo, um grupo ou uma

organização, sendo que o efetivador" escolhido" pelas forças em conflito

expressa, por sua vez, as tendências mais patológicas e as mais sadias do

conjunto. Em nosso entender, a idéia de emergente tem uma similaridade com

a de analisador*, mas provém de uma tradição filosófica existencialista ("o Ser

como presença" ou "a Verdade que se revela") e não enfatiza a capacidade do

analisador de analisar-se a si mesmo.

151

ENCARGO: no Institucionalismo*, a noção de encargo recebe definições e

sinônimos diversos que tornam difícil precisar seu significado. Em gerat pode-

se dizer que este termo alude aos sentidos não explícitos, não-manifestos,

dissimulados, ignorados ou reprimidos, e que comporta uma demanda de bens

ou serviços. Em uma acepção ampla, refere-se a uma solicitude ou exigência

de soluções imaginárias ou de ações destinadas a restaurar a ordem

constituída quando a mesma está ameaçada. O encargo nunca coincide com a

demanda e deve ser decifrado a partir dela, sendo que seu sentido varia

segundo o segmento organizacional que a formula. De acordo com o contexto

discursivo de que se trate, o encargo pode admitir como sinônimos: demanda

latente, pedido, encomenda etc.

ESPECIFICIDADE: a modernidade tem como pré-requisito e como

conseqüência o auge da racionalida de científica e de suas aplicações

tecnológicas, que possibilitaram o desenvolvimento da sociedade industrial. A

modalidade do saber dominante durante este processo é a do conhecimento

científico, cujo procedimento é, por definição, analítico. Cada ciência, que num

sentido acadêmico denomina-se disciplina, tem seu próprio objeto, teoria,

método e técnicas, sendo que frequentemente se subdivide, por sua vez, em

um número crescente de especialidades. Essa fragmentação do saber,

articulada com a Divisão Técnica e Social do Trabalho*, consagrou a

especificidade – a delimitação taxativa da correspondência entre cada domínio

teórico e um território da realidade que lhe é procedente – como o valor

cognoscitivo mais importante de nossa cultura.

O Institucionalismo estuda criticamente os efeitos distorsivos e alienantes (ver

Alienação*) que essa cultura da especificidade radical tem sobre a

reconstrução gnosiológica de um mundo humano integrado. Sobretudo se

interessa sobre o efeito do não-saber ou do desconhecimento que instaura em

cada disciplina a ausência das outras e, em todas elas, a desvalorização dos

saberes não-qualificados (saber artístico, popular, da loucura etc.).

ESPECIFIClDADE (OU ESPECIALIDADE, OU ESPECIALIZAÇÃO): num

sentido muito amplo, é o que corresponde a uma espécie de forma exclusiva

ou prevalente. Em termos sociais e epistemológicos, tem a ver com a divisão

das condições e atividades humanas em geral e do trabalho em particular.

152

Essas diferenciações, à medida que reduzem o campo de atuação de cadél

agente social, possibilitam o incremento de sua competência e eficiência,

resultando no aumento espetacular de sua produtividade. Por outra parte,

redundam na fragmentação, dispersão e perda da visão crítica e do sentido de

conjunto das práticas que pode conduzir à "alienação", ou seja, à incapacidade

de julgar e conduzir seu andamento.

No caso das ciências e disciplinas, sua circunscrição teórica e sua aplicação

tecnológica irrestrita tornaram-se valores de nossa civilização, erigindo a

"verdade" e a" eficiência" científicas como metas dominantes e indiscutíveis.

Isso levou a deformações tais como o operacionalismo, pragmatismo e

utilitarismo irreflexivos que acabam sendo incondicionalmente funcionais à

lógica acumulativa e concentradora do Capitalismo Planetário Integrado. As

diversas modalidades do Movimento Inslitucionalista, além de insistirem na

crítica global desses efeitos, pretendem resgatar os valores instituintes* e

organizantes*, em resumo, revolucionários, das contribuições científicas. Mas,

por outra parte, também visa produzir uma abordagem intersticial que dê conta

do não-sabido de cada ciência (enquanto as outras estão ausentes nela),

assim como seu conjunto teórico-técnico carece do aporte de outras formas do

saber e do fazer (particularmente do saber e fazer dos coletivos populares de

usuários e consumidores).

EQUIPAMENTO: conglomerados complexos, montagens de diversas

materialidades (mais especialmente de recursos técnicos), prevalentemente a

serviço da exploração, dominação e mistificação. Os equipamentos podem

pertencer ao Estado* ou às entidades dominantes da sociedade civil

(empresas, corporações). Podem ser de grande porte (por exemplo, os

instrumentos da comunicação de massas) ou de pequena dimensão (por

exemplo, arquivos, impressoras, relógios de ponto etc.).

ESQUlZOANÁLISE: soma não totalizável de saberes e afazeres praticáveis por

qualquer agente, em qualquer tempo ou lugar. Inventada por Gilles Deleuze e

Félix Guattari e exposta pela primeira vez de maneira singularmente

sistemática no livro "O Anti-Edipo" (1972), essa corrente não é enquadrável nos

gêneros de pensamento e ação até agora conhecidos. Qualquer tentativa de

resumir essa amplíssima leitura da realidade natural-histórico-social-libidinal e

153

tecnológica seria estéril. Mencionaremos apenas que, para essa concepção,

tais materialidades são imanentes (quer dizer, consubstanciais ou inseparáveis

uma da outra), e mais ainda, estão" precedidas" por um campo de

materialidades "puras", puras diferenças intensivas.

A essência do real é a "produção desejante", ou seja, a incessante

metamorfose geradora de diferenças inovadoras que se originam ao acaso*.

Nesse sentido, o real é constante e integralmente produzido, podendo-se

distinguir nele uma produção de produção, uma de "registro-controle" e uma de

"consumo-voluptuosidade". O processo produtivo de produção pode ser

pensado segundo a lógica que caracteriza o funcionamento da esquizofrenia

(não como patologia, mas como ser do devir), a microfísica e a biologia

molecular. Trata-se de um funcionamento absolutamente livre, infinito e

imprevisível que consiste em conexões e cortes de fluxos energéticos entre

unidades intensivas denominadas "máquinas desejantes", cada uma das quais

é uma pura e irrepetível singularidade*. As máquinas desejantes dispõem-se e

agenciam sobre uma matriz de gradientes energéticos denominada "corpo sem

órgãos". Mas a produção de produção de novidades é capturada pelos

estratos, territórios e equipamentos da produção de controle-registro que tende

à repetição do mesmo, colocada a serviço de uma entidade centralizadora,

totalizante, concentradora e acumulativa, que varia segundo o modo de

organização histórica da produção de que se trate ("Corpo Cheio da Terra", "do

Déspota" ou do "Capital-Dinheiro"). Na atividade de controle-registro

predominam a reprodução e a anti-produção. Uma dessas formas é o que a

Psicanálise chama Pulsão de Morte.

Segundo a entendemos, a Esquizoanálise compreende toda e qualquer

atividade intelectual ou prática que procura liberar o processo produtivo-

desejante-revolucionária, demolindo as constrições da parafernália de controle-

registro. Esse conjunto não-totalizável de práxis singulares configura a

"Micropolítica", em cujo âmbito as inúmeras revoluções são feitas não apenas

por necessidade ou dever, mas pelo desejo. Entendida como procedimento

para pensar e compreender o real, a Esqllizoanálise compõe-se de tarefas

negativas de crítica e desconexão de valores dominantes e outras positivas,

destinadas a propiciar o livre fluir da .produção e do desejo na vida biológica,

psíquica, comunicacional, política, ecológica etc. A Esquizoanálise também é

154

definida com outras denominações, tais como "Pragmática Universal", "Análise

Nômade" etc.

ESTADO: Conglomerado complexo de instituídos*-organizados*-estabelecidos,

agente e instrumento de persuasão, repressão, coerção e até eliminação social

a serviço prevalentemente das classes, grupos e idiossincrasias dominantes.

Opera principalmente através da captura e recuperação* de singularidades e

forças produtivas de toda natureza, reinvestindo-as na lógica do sistema ou

suprimindo-as. Seu principal instrumento é o Direito, corpo estabelecido de

leis* que regulam as relações sociais a favor dos setores privilegiados,

apresentando-se aparentemente como expressão da vontade majoritária.

Existem muitos diferentes tipos de Estado, mas o Estado moderno precisa de

reconhecimento e legitimação, que obtém por meio de sua concordância com a

Lei. O Estado não se compõe apenas de grandes organismos, mas também de

microagências instaladas no corpo biológico e no psiquismo (Estado contínuo;

micropoderes do Estado). Não é que o Institucionalismo negue a existência de

forças e processos instituintes organizantes dentro do Estado, mas privilegia a

denúncia de seus aspectos de reprodução e antiprodução.

ESTRATÉGIA: trata-se da decisão quanto à forma da intervenção. É uma

sistematização das metas a serem alcançadas (cuja máxima expressão

seriam a autoanálise* e autogestão*), e o planejamento da progressão das

manobras, a previsão de curso, as alternativas viáveis, os avanços

esperados, os possíveis retrocessos etc.

EXPLORAÇÃO: processo de expropriação das forças, meios e resultados dos

processos produtivos de toda índole, efetuado pelos setores dominantes

sobre os produtores. A exploração é possibilitada e reforçada pelos

mecanismos de dominação* e mistificação*.

FANTASMA: para a Psicanálise, o fantasma é uma cena latente cujo sentido

ou script pode ser decifrado a partir do discurso associativo de um sujeito e

que apresenta o desejo inconsciente como imaginariamente "realizado". Os

psicanalistas grupalistas encontraram formações fantasmáticas "de grupo"

que "realizam" um desejo inconsciente grupal que já não se reduz ao de

nenhum dos sujeitos que o integram. Os sociopsicanalistas decifram e

interpretam esses fantasmas na classe institucional (que é o grupo

155

organizacional com o qual preferentemente trabalham) e confrontam essa

representação imaginária com as condições reais de trabalho, para que a

classe recupere a margem real de poder que sua posição objetiva lhe

possibilita. A Esquizoanálise sustenta uma complexa teoria do fantasma que

o vincula com o sentido e o acontecimento e o distingue do sujeito, do estado

de coisas às quais este se relaciona, e ainda do significado do que diz. O

fantasma (que sempre é grupal) é uma realidade sui generis em si mesma.

FUNÇÃO: denominação que se dá aos propósitos, procedimentos e objetivos

dos instituídos*-organizados*- estabelecidos, seus agentes* e práticas*. A

função está sempre, prevalentemente, a serviço das diversas formas históricas

da exploração*, dominação* e mistificação*. A função apresenta-se às

representações e crenças das sociedades “deformadas” pela mistificação como

sendo uma atividade "natural", eterna, invariável, universal, lógica e necessária.

A rigor, opera fundamentalmente como ação reprodutora (ver Reprodução*)

dos sistemas.

FUNCIONAMENTO: designa o movimento dos processos produtivo-desejante-

revolucionários de qualquer materialidade e essência (entre eles o instituinte*-

organizante*). É o gerador da diferença, da novidade, da invenção e da

metamorfose. Entre seus produtos estão os instituídos* -organizados*-

estabelecidos que tendem rapidamente a perder seu valor de funcionamento e

adotar as características da função* (por exemplo, a burocracia, a tecnocracia,

a belicracia etc.).

GÊNESE SOCIAL E GÊNESE TEÓRICA: particularmente a Análise

institucional tem insistido em que as teorias e doutriné1s, sejam elas

científicas, ideológicas, filosóficas ou estéticas, têm apenas uma autonomia

relativa com respeito aos acontecimentos*, conjunturas, organizações e

movimentos histórico-sócio-libidinais no seio dos quais surgiram. Em

consequência, não se pode analisar nem compreender as origens e o

conteúdo de discursos e textos postulando sua independência em relação às

condições concretas de seu começo e existência atual. Do mesmo modo, não

se entende nem se avalia um movimento sem conhecer o pensamento que o

inspira e justifica. Em todo caso, a afirmação de que a gênese social e teórica

é inseparável entre si, opõe-se a qualquer crença na neutralidade e

156

universalidade das teorias, assim como à crença de que os "fatos" sociais

possam "falar por si mesmos", prescindindo de alguma leitura que os torne

inteligíveis.

GRUPO SUJEITO E GRUPO SUJEITADO: estes conceitos são de autoria do

institucionalista Félix Guattari (ver Esquizoanálise*). Se um grupo constitui-se

com uma Utopia Ativa * capaz de gerar suas próprias leis para realizá-la e de

construir a si mesmo durante o processo, tendo sempre presente sua finitude e

a perspectiva de sua própria morte, então é um grupo sujeito (protagônico).

Pelo contrário, um grupo alienado (ver Alienação*) em objetivos,

procedimentos, estruturas e leis* que se lhe impõem desde outros segmentos

ou desde a totalidade social, que se empenha em subsistir como um fim em si

quando não cumpre com sua finalidade, é um grupo sujeitado. Para Guattari, a

formação grupal é tão importante que o leva a afirmar a existência somente de

fantasmas "de grupo", e não "individuais" ou "coletivos".

HISTÓRIA: para o Institucionalismo, é um saber que procura reconstruir os

acontecimentos do passado, assumindo que o fará a partir dos desejos,

interesses e tendências de quem protagoniza esse estudo. Assim entendida, a

História não é a investigação acerca do que já está definido, obsoleto e morto,

mas o conhecimento de processos vigentes no presente, que começaram no

passado e que determinam virtualidades e possibilidades futuras (Utopia

Ativa*). Não existe um processo em um tempo unitário que possa ser

reconstruído em um relato único. Existem variados processos, cada um

transcorrendo em um tempo que lhe é próprio e que pode ser relatado em uma

história da diversidade. Assim, existem histórias econômicas, políticas,

culturais, biológicas, geológicas, raciais, geracionais, sexuais. Pode-se tentar

articular o diferente tempo dos variados processos históricos em uma leitura

que caracterize eras, etapas, períodos ou épocas localizáveis geográfica ou

cronologicamente, mas sem perder de vista que os resultados nunca serão

totalizáveis nem determinados em "última instância" por nenhum dos processos

assim agrupados. A História, para o Institucionalismo, não é apenas um

exercício erudito que estuda o que se repete e caracteriza o que não se repete.

Trata-se da reconstrução dos grandes momentos contingentes e imprevistos

que se efetuaram em acontecimentos* de radical novidade. Por outra parte,

157

não investiga como o passado determina o presente e pode condicionar o

futuro, mas como o presente ativa e deflagra virtualidades do passado e como

propicia os acontecimentos* no porvir.

HISTORIOGRAFIA: trata-se de um relato dos fatos históricos, aparentemente

claro e acessível. Em geral, é uma versão "oficial" que foi conservada e

divulgada por coincidir com os interesses do Estado*, das classes dominantes

e do instituído*-organizado*-estabelecido, que possuem mecanismos para

arquivar e selecionar os dados que lhes convêm. Esses textos historiográficos

são apresentados como descrições "objetivas" neutras e preferenciais,

quando não exclusivas. A rigor, consistem apenas numa versão a mais, tão

tendenciosa como qualquer outra, mais importante pelo que omite ou disfarça

do que pelo que afirma.

HORIZONTALIDADE: na Psicologia Social de Pichon Rivière, a

horizontalidade designa a dimensão grupal atual, ou seja, o conjunto de

elementos que coexistem e operam, configurando-se no aqui e agora do

campo grupal. Na Psicossociologia* Organizacional e no Institucionalismo, a

horizontalidade define a dimensão da vida organizacional que corresponde às

relações e aos processos informais, ou seja: rumores, intrigas de corredor,

vínculos sexuais etc.

IDÉIAS PURAS: no que interessa ao Institucionalismo, as Ideias Puras,

segundo Platão as concebeu, são seres idênticos a si mesmos, eternos e

invariáveis, modelos de tudo que existe. Delas só se pode predicar sua

própria essência (por exemplo: a brancura é branca). O desejo dos corpos

humanos por outros corpos belos deve ser encaminhado como amor ao

saber, à procura da Verdade, que é a visão das Idéias Puras, e essa é

também uma proposta ética, enquanto implica a virtude e o bem supremo.

Diversas correntes do Institucionalismo abordaram criticamente essa

concepção como sendo a base especulativa dos sistemas institucionais

(incluídos os subjetivos) de subordinação a um ideal ou modelo, e de

hierarquização e seleção dos" candidatos" a funções de poder e prestígio. As

Idéias Puras são sinônimos de "ídolos" para alguns autores.

IDEOLOGIA: classicamente se entende por ideologia um conjunto mais ou

menos sistemático de representações (crenças, convicções, valores) que os

158

sujeitos e grupos formam sobre a vida e o mundo. Essas representações estão

animadas por vontades e desejos. Quando configuram sistemas amplos,

denominam-se cosmovisões ou visões do mundo. Enquanto sistemas de

representações, constituem as ideologias teóricas, mas podem ser também

disposições para a ação ou comportamentos concretos (ideologias práticas).

A ideologia, definida como oposta à ciência, é entendida como um sistema de

reconhecimento-desconhecimento, ou seja, apenas um saber aproximativo e

viciado por erros. Esses erros seriam provocados pela posição que os sujeitos

ocupam nos sistemas que se representam erroneamente, ou por forças ativas

(por exemplo, as das classes dominantes) que produzem, distribuem e fazem

adotar estas crenças equivocadas que favorecem seus interesses.

Em outra direção, a ideologia é considerada uma representação imaginária que

os homens fazem de sua relação com suas condições reais de existência.

Segundo esse sentido, à ideologia manifesta subjazem fantasmas

inconscientes que são "realizações" de desejos inconscientes. Esse significado

de ideologia a aproxima do anseio ou da ilusão.

Segundo seu matiz político ou ético, as ideologias classificam-se em

progressivas (se sustentam valores evolutivos ou revolucionários) ou

regressivas (se são reacionárias ou conservadoras). Em geral, em uma

sociedade"', a ideologia dominante é aquela que os setores dominantes

conseguem produzir e difundir. Para algumas correntes do Institucionalismo, a

ideologia é um conceito importante e operacional (Sociopsicanálise*, Análise

Institucional *); para outras, carece de interesse, por pertencer ao espaço da

representação e não ao das forças (Esquizoanálise *).

IMANÊNCIA: para alguns filósofos, este termo designa a interioridade de um

ser ao ser de outro. Opõe-se à transcendência. Para o Institucionalismo,

expressa a não-separação entre os processos econômicos, políticos, culturais

(sociais em sentido amplo), os naturais e os desejantes. Todos eles são

inerentes, intrínsecos e só separáveis com finalidades semânticas ou

pedagógicas.

INCONSCIENTE: em um sentido amplo, refere-se a realidades e processos

que não são conscientes. O significado psicanalítico designa instâncias,

processos, mecanismos, forças e representações, em especial o Complexo de

159

Édipo e o desejo, que são mantidos no espaço psíquico inconsciente pela força

ativa do recalcamento, especialmente o recalcamento primário. Algumas

correntes institucionalistas compartilham a definição psicanalítica (por exemplo,

a Sociopsicanálise). Para outras, o inconsciente é a qualidade de pré-

materialidades e processos das mais diversas essências que se gera como

espaço no ato mesmo da produção do novo. É um campo histórico que sofre

uma repressão político-econômica e libidinal dada pelo horizonte do possível

de cada formação social.

INFRA-ESTRUTURA: no Materialismo Histórico, ciência da História, da

Sociologia e da Economia Política marxistas, denomina-se infra estrutura à

instância do todo social na qual se desenvolve o processo de produção,

distribuição, apropriação, troca, consumo e desfrute de bens materiais. Esse

processo é considerado a base material e condição de existência de toda e

qualquer sociedade, operando a reprodução* econômica restrita do modo de

produção*. Na versão clássica do Materialismo Histórico, a infra-estrutura

determina a superestrutura*.

INSTÂNCIAS: no Materialismo Histórico, particularmente na versão de

Althusser, denomina-se instância a cada região que compõe o território ou

domínio do modo de produção, dito em sentido amplo, de uma sociedade

humana. Essa terminologia resulta da importação do modelo da Segunda

Tópica freudiana para a teoria do Modo de Produção, quer dizer, a que

apresenta a personalidade como integrada pelas instâncias do Ego, Superego

e ld, e também das instâncias do aparelho jurídico.

INSTITUIÇÃO: são árvores de decisões lógicas que regulam as atividades

humanas, indicando o que é proibido, o que é permitido e o que é indiferente.

Segundo seu grau de objetivação e formalização, podem estar expressas em

leis* (princípios-fundamentos), normas ou hábitos. Toda instituição compreende

um movimento que a gera: o instituinte*; um resultado: o instituído*; e um

processo: da institucionalização. Exemplos de instituições são: a linguagem, as

relações de parentesco, a divisão social do trabalho*, a religião, a justiça, o

dinheiro, as forças armadas etc. Um conglomerado importante de instituições é,

por exemplo, o Estado*. Para realizar concretamente sua função

regulamentadora, as instituições materializam-se em organizações* e

160

estabelecimentos. As origens das instituições são difíceis de determinar. Pode-

se falar de quatro instituições "fundantes" das sociedades humanas (ver

sociedade*).

INSTITUÍDO: ao resultado da ação instituinte* denomina-se instituído. Quando

esse efeito foi produzido pela primeira vez, diz-se que se fundou uma

instituição. O instituído cumpre um papel histórico importante porque vigora

para ordenar as atividades sociais essenciais para a vida coletiva. Para que os

instituídos sejam eficientes, devem permanecer abertos às transformações com

que o instituinte* acompanha o devir social. Contudo, o instituído tem uma

tendência a permanecer estático e imutável, conservando de juri estados já

transformados de facto e tornando-se assim resistente e conservador.

INSTITUlNTE: é o processo mobilizado por forças produtivo-desejante -

revolucionárias que tende a fundar instituições ou a transformá-las, como parte

do devir das potências e materialidades sociais. No transcurso do

funcionamento do processo de institucionalização, o instituinte inventa

instituídos* e logo os metamorfoseia ou cancela, de acordo com as exigências

do devir social. Para operar concretamente, o processo de institucionalização

deve ser acompanhado de outros organizantes* que se materializam em

organizações*. Os dinamismos instituintes e organizantes* são orientados

pelas Utopias Ativas*.

INTERESSE: denomina-se assim às motivações, desejos, aspirações,

expectativas e demandas pré-conscientes e conscientes que impulsionam ou

mobilizam os agentes, grupos ou classes na atividade social. Os interesses

caracterizam-se por serem conhecidos e assumidos pelos sujeitos e estarem

dotados de uma certa racionalidade. Em geral, os interesses divergem ou se

opõem aos desejos e fantasmas inconscientes, e freqüentemente se descobre

que sua suposta racionalidade não é mais que uma racionalização.

INTERVENÇÃO lNSTITUClONAL: ação transformadora praticada segundo

uma ética e uma política e formalizada em uma teoria aplicada segundo certas

regras metodológicas e uma série de recursos técnicos. Todo esse

procedimento parte de uma avaliação 1ogística de disponibilidades e é

planificado segundo uma estratégia que se decompõe em táticas. Seu objetivo

central é propiciar nos coletivos intervindos a ação do instituinte* organizante*

161

e, no seu limite, a implantação de processos plenos e continuados de auto-

análise* e autogestão*.

LEIS: consistem na formalização e explicitação, em textos e/ou discursos, das

árvores de valores e decisões que constituem as instituições*. Quando

expressam rígida e exclusivamente a vontade do instituído-organizado* e se

apresentam como universais e mais ou menos invariáveis, sendo

referendadas, por exemplo, pelo Estado ou a Igreja, são apenas a justificativa

da dominação* – exploração-mistificação. Quando são provisórias e singulares

e expressam realmente a vontade instituinte*-organizante* que "se dá suas

próprias leis", são instrumentos formais produtivo-desejante- revolucionários. O

Institucionalismo conhece e aplica as leis científicas que lhe são úteis, mas

aceita e enfatiza o papel do acaso* nos processos de que se ocupa.

LÍDER: as lideranças são papéis específicos que adquirem importância

especial por suas funções dirigentes ou de condução. Os mais característicos

são: o autoritário, o laíssez-faire e o democrático. Quando o líder é um

autêntico recurso para o funcionamento instituinte, denomina-se revolucionário-

desejante-produtivo. Seu estatuto não é o de um modelo, mas o de um

exemplo singular.

LOGÍSTICA: balanço dos recursos e forças disponíveis no início de uma

intervenção. Avalia-se o que está disponível para contribuir ou para dificultar o

trabalho, que se iniciará se houver um mínimo de possibilidade de realização. A

logística vai sendo reavaliada durante o percurso da intervenção.

MARGINALIDADE: por referência a teorias, doutrinas, ideologias,

organizações, movimentos, espaços físicos, geográficos ou abstratos,

idiossincrasias (sexuais, raciais, etárias, nacionais, econômicas, jurídicas) etc.,

considera-se marginal a todo e qualquer elemento afastado do que se entende

por central, legítimo, consagrado ou autêntico nos campos correspondentes. O

marginal em geral adquire um matiz pejorativo que denota ou conota tanto

aquilo que está desvirtuado como até o que se avalia francamente como

negativo ou perigoso. Obviamente, o termo marginalidade está muito

relacionado com a oposição centro-periferia.

162

MASSAS: noção de difícil definição, que foi empregada de muitas maneiras

não coincidentes. Num sentido, designa grandes segmentos da população que

se opõem às minorias (particularmente às elites) e podem vir a ocupar seu

lugar. Em outra significação, refere-se a conjuntos humanos amorfos, cujos

integrantes carecem de "identidade" própria. Também se diz de seus

componentes que são dirigidos por outros; e não intradirigidos. Freud utilizou o

conceito de massa como sinônimo de grande agrupação. As massas efêmeras

dividem-se naquelas que se fomlam e dissolvem espontânea ou fugazmente

(multidão) e nas que se organizam ocasionalmente em torno de um líder. As

massas "estáveis" são, de modo plausível, sinônimo de organizações; Freud dá

como exemplo a Igreja e o Exército. Chama-se "Sociedade de Massas" aquela

em que as diferenças (por exemplo, a de classes) se apagam em função de

outros parâmetros (por exemplo, o acesso ao consumo de certos produtos).

MISTIFICAÇÃO: processo mais ou menos deliberado de produção, difusão e

assimilação de representações, crenças, convicções e valores que deformam,

encobrem ou falsificam a realidade natural ou social com a finalidade de

enganar as forças e agentes* instituintes* e organizantes* Perpetuam-se assim

os instituídos*-organizados*-estabelecidos, e com eles, as formas históricas

que adotam a exploração" e al dominação*. Pode-se considerar os processos

de mistificação como sinônimos de produção, difusão e assimilação de

ideologias regressivas ou, segundo outra terminologia institucionalista, de

máquinas de semiotização de captura e recuperação* .

MODULAÇÃO (PRODUÇÃO) DA DEMANDA: O lnstitucionalismo questiona a

crença de que existem necessidades "naturais" (portanto universais e eternas)

que se expressam em "demandas espontâneas". Uma sociedade* tem

necessidades que não conhece e não consegue definir como tais, assim como

supõe ter necessidades cuja existência foi produzida e cuja expressão em

demandas foi gerada e modulada pela oferta. A produção de objetos

suntuosos, bens de luxo e desperdício dos setores dominantes, tem sido

sempre prioritária. O que resta da produção é o que se oferece às

comunidades, categorizado como "objetos das necessidades básicas". Dessa

maneira, definem-se tais necessidades e se convoca e modula sua demanda.

Nas sociedades industriais modernas, a construção de um "Estado beneficente,

163

previdenciário, administrador-gerente-cientista" e de um mercado de bens e

serviços submete a produção de necessidades e a modulação das demandas à

ação dos saberes disciplinares e de seus agentes*, os experts. São eles os que

decidem o que, como, quanto, onde, porque e quando as pessoas

"necessitam" e "demandam", no que se refere a bens de consumo ou de

"capital" e a serviços de saúde (física e mental), educação, transporte etc.

Essas decisões e as ações que elas orientam são, segundo dizem os experts,

"cientificamente" fundadas, e de acordo com a "vontade popular", sempre

visando "o bem comum".

A partir da Psicanálise, costuma-se afirmar que o desejo* mediatiza a relação

entre necessidade e demanda. Ou seja, entre as exigências da necessidade e

sua expressão significante atua o desejo, que a Psicanálise define como

essencialmente faltoso de objeto ou carente de resposta material possível. A

necessidade não satisfeita origina uma privação que pode ser resolvida com os

objetos materiais correspondentes. Já a demanda, do ponto de vista

psicanalítico, não é um pedido do que manifestamente se solicita, mas de

"amor" e "reconhecimento", sendo compensável com as respostas que a

complementem. O desejo, em troca, pede uma impossível restauração

narcisística, o gozo absoluto. A produção de um fantasma pode lhe dar uma

satisfação imaginária e transitória, e a simbolização, um destino socializável,

enquanto só a morte pode conferir-lhe uma definitiva. Algumas correntes

institucionalistas questionam radicalmente essa concepção do desejo*.

MOLAR: para a Esquizoanálise*, este termo designa uma ordem de

organização do real que caracteriza a superfície de registro e controle e a de

consumo-consumação. Nessa ordem, as entidades características são os

estratos e os grandes blocos representativos dos territórios constituídos. É o

lugar dos códigos, sobrecódigos e axiomáticas, das formas sujeitos e objetos

definidos, dos organismos biológicos e das grandes corporações e corpos

cheios do Estado*, Igreja etc. Compõe o que em outra terminologia se

denomina instituídos*-organizados*-estabelecidos. Nesse espaço constituem-

se as matérias formadas e as forças vetorizadas (númen voluptas). É o campo

da regularidade, da estabilidade, da conservação e da reprodução*, onde

164

operam os equipamentos sedentários de captura e recuperação*. Aproxima-se

ao que se chama "o mundo do macro".

MOLECULAR: para a Esquizoanálise, este termo caracteriza os elementos que

compõem a superfície de produção desejante. Essa superfície está integrada

pelo "corpo sem órgãos" (uma rede de intensidades puras que se distribuem

em gradientes delimitados por limiares a partir de zero) e pelas "máquinas

desejantes" (rede de singularidades acopladas de maneira binária – máquina-

fonte-m.áquina-órgão – que se conectam em todas as direções, segundo o

acaso* ou uma lógica aleatória). Essas conexões fazem circular fluxos (devires-

esquizias) interrompidos por cortes que, em suas ligações anárquicas locais ou

à distância, resultam em uma eclosão do novo ou na metamorfose das

entidades molares,que assim se desestratificam e se desterritorializam por

linhas de fuga. É o lugar das matérias não-formadas e das energias não

vetorizadas onde as máquinas moleculares se formam ao nlesmo tempo em

que funcionam. Os dispositivos* e máquinas de guerra nômades,

agenciamentos* que se montam com especial permeabilidade para o desejo* e

a produção*, estão desenhados para funcionar com esta lógica que produz o

Desejo* e o lnconsciente libertários. Em outra terminologia, o molecular

corresponde parcialmente ao instituinte* – organizante*.

MOVIMENTO INSTlTUCIONALISTA: conjunto não totalizável de escolas e

correntes cujas diversas tendências subscrevem alguns objetivos comuns,

entre os quais os mais compartilhados consisten\ em propiciar nos coletivos

processos de autoanálise* e autogestão*. Essas orientações se diferenciam

entre si por suas teorias, métodos, técnicas, estratégias e táticas de leitura e de

intervenção, assim C0l110 pelo alcance dos objetivos que se propõem. Assim

configuram uma escala que vai desde o reformismo ao maximalismo.

MUDANÇA: as diferentes civilizações atribuíam ou atribuem à permanência

(status quo) ou à transformação valores diferentes. Para algumas comunidades

primitivas, o funcionamento ideal de sua vida consistia em que tudo se

mantivesse exatamente idêntico em organização, costumes etc., para imitar o

mundo e o tempo divinos, eternos e invariáveis. No outro extremo da História, a

modernidade caracteriza-se pela glorificação da mudança constante e

acelerada dentro de uma trajetória linear e evolutiva denominada progresso.

165

Em todo caso, a oposição, em todos e cada um dos aspectos da vida, entre

posições "conservadoras" contra outras "progressistas", ou, em um sentido

mais amplo, "transformacionistas"; permeia todos os processos naturais-

sociais-libidinais.

A Sociologia e a Psico-Sociologia de origem positivista e estrutural-

funcionalista insistiram muito na problemática da mudança e da "resistência à

mudança", tal como ela se apresenta nos grupos, organizações e comunidades

diante das situações desconhecidas e novas. A Psicanálise, por sua parte,

também tem, entre seus temas mais importantes, a questão da mudança –

entendida como a exigência colocada ao sujeito psíquico de dominar os efeitos

do impulso e da compulsão à repetição, que resulta da natureza conservadora

das pulsões, da insistência do desejo e dos princípios de constância e inércia.

Para as diversas correntes do Institucionalismo, a problemática da mudança,

ligada a categorias de diferença-repetição, transferência-resistência, reação-

reformismo-revolução etc., é tratada segundo as inspirações teóricas e políticas

às quais as escolas se afiliam. Em geral, pode-se dizer que, dentro de um

espectro de radicalidade crescente, que vai desde posições mais ou menos

reformistas até outras francamente revolucionárias, ou até extremistas, o

Institucionalismo: a) confia em que pequenas mudanças locais podem

repercutir à distância ou propagar-se como reações em cadeia; b) sustenta que

as mudanças, para seren1 sólidas, devem ser integrais, ou seja,

simultaneamente bio sociolibidinais, e não apenas econômicas ou

convencionalmente políticas; c) afirma que a substância do real é a diferença

pura e a produção desejante, sendo que os arcaísmos e as estruturas-

tenitórios conservadores e repelitivos são produtos da captura que a

parafernália de controle-registro dos sistemas faz da potência das

singularidades pré-pessoais e pré-sociais.

NÃO-DITO: no Institucionalismo, o termo "não-dito" parece recolher todas as

significações que essa fórmula adquiriu nas ciências humanas e na cultura

ocidental. Basicamente, refere-se a todas aquelas informações que estão

omitidas ou distorcidas nos discursos, textos, atitudes, comportamentos ou

qualquer outra forma de expressão ou manifestação. Essa omissão ou

distorção pode ser voluntária ou involuntária, consciente ou não, assumida ou

166

não, mas é considerada invariavelmente fonte de mal-entendidos e conflitos

que afetam a convivência, ou então causas ou efeitos de um desconhecimento

cuja superação se supõe enriquecedora. Contudo, no Institucionalismo, o não-

dito remete predominantemente à ignorância, à má-fé ou à repressão no seio

dos discursos, textos, atitudes, comportamentos, estrutura e dinâmica dos

agentes, grupos, organizações e movimentos. Esse omitido ou distorcido

concerne principalmente ao instituinte*, que foi "esquecido" e reprimido pelo

instituído* durante o processo de institucionalização. O não-dito refere-se tanto

às vicissitudes da potência produtiva, ao desejo e à vida, como aos manejos do

poder, da antiprodução* e da morte. O não-dito se diz de maneiras diretas ou

disfarçadas nos analisadores históricos ou nos construídos (ver Analisadores

Artificiais* e Analisadores Espontãneos*).

OBJETO DE ANÁLISE: na interseção da organização analisante com a

organização analisada, vai-se produzir uma nova organização que é o

verdadeiro objeto de análise, pois para o Institucionalismo não é possível uma

posição clássica de "neutralidade" ou "objetividade". É na junção que se vai

tentar entender essa nova realidade que se produz no encontro.

OPOSIÇÃO: na vida das organizações e movimentos, chama-se oposição à

ação de correntes que se contrapõem à linha de pensamento e de gestão da

fração social ocupante do governo (situação). A oposição pode ser mais ou

menos acirrada, mas em geral é reconhecida, autorizada, legitimada e ainda

necessitada pela lógica institucional do sistema que a integra.

ORGANIZAÇÕES: são as formas materiais nas quais as instituições* se

realizam ou" encarnam". De acordo com sua dimensão, vão desde um grau

complexo organizacional, como um ministério, até um pequeno

estabelecimento escolar. Na terminologia da Esquizoanálise, correspondem às

grandes formas molares da superfície de registro.

ORGANIZADO: é o produto dos processos organizantes*. Conjunto de

ordenamento dos recursos humanos, técnicos, espaciais, cronológicos (etc.)

que configuram uma organização ou estabelecimento*. O organizado é

ilustrado no esquema do organograma e do fluxograma da organização. E

necessário para orientar o funcionamento da entidade, mas tem tendência a

tornar-se rigido e esclerosar-se, perpetuando-se e tornando-se um objetivo em

167

si mesmo. Assim, exagera-se em torno de sua função, adquirindo uma série de

vícios; o mais conhecido é a burocracia.

ORGANIZANTE: atividade permanentemente crítica, inventiva e

transformadora que tende à otimização das organizações entendidas como

dispositivos ou agenciamentos*. Esse processo exige das organizações a

abertura para efetuar as mudanças necessárias com a finalidade de realizar a

Utopia Ativa* que as inspira. Uma organização* só cumpre com este objetivo se

mantém fluida e constante a relação entre o organizante e o organizado*, a

ponto de admitir sua autodissolução* quando deixa de servir ao produtivo-

desejante-instituinte (ver Produção*, Desejo* Instituinte*).

PAPÉIS: conceito cunhado pela Psico-Sociologia e pelo Psicodrama que define

os lugares e funções sociais em geral e grupais em particular, come caracteres

de personagens teatrais. Cada papel ganha precisão em sua relação com

todos os outros e carece de sentido fora desse vínculo, consciente ou não. Os

papéis são emergentes de configurações estruturais que organizam a interação

social e mostram uma mobilidade que os faz serem desempenhados por

diferentes indivíduos-sujeitos-agentes* sociais, segundo as circunstâncias.

Quando um agente social abandona o papel este se expressa ou manifesta

através de outro participante. Pichon-Riviere detectou nos grupos alguns

papéis regularmente emergentes, como o de "bode expiatório", "seguidor",

"sabotador". Os papéis podem ser inerentes (pré-fixados, como "masculino" e

"feminino") ou atribuídos (como os acima mencionados).

PARTICIPAÇÃO: dá-se este nome a um tipo de gestão organizacional na qual

os segmentos formal e efetivamente dominantes de uma organização

concedem aos quadros subordinados diversos graus de possibilidade de

intervenção na planificação, decisão, execução e benefícios da atividade. Isso

não significa maiores modificações de fundo na propriedade, na estrutura ou na

estratificação hierárquica o organismo em pauta.

PARTICULARIDADE: ver Universalidade, Particularidade e Singularidade.

PODER: embora no Institucionalismo o termo "poder" não seja empregado com

significações unívocas, em geral ele se aplica a uma gama de recursos

diversos com grau de violência crescente, destinados a impor a vontade de um

168

segmento social sobre os outros ou sobre a sociedade em seu conjunto. Michel

Foucault insistiu na idéia de que o poder não se possui ou se detém, mas que

se exercita, e não apenas em um sentido restritivo (de coação ou proibição),

mas também em um sentido positivo de orientação: o poder incita, provoca,

convoca, ativa etc.

POTÊNCIA: no Institucionalismo, emprega-se o termo "potência" para referir-se

às capacidades virtuais ou atuais de produzir, inventar, transformar etc. Em

geral, a potência designa a magnitude das forças geradoras do radicalmente

novo, criador de vida.

POTENCIAL HUMANO: o movimento denominado "Potencial Humano"

compreende um conjunto de correntes teóricas e técnicas, algumas cujas

características comuns consistem na importância dada ao trabalho corporal,

expressivo e dramático nos tratamentos clínicos, coordenação de grupos e

intervenções organizacionais. Entre as tendências que o integram, pode-se

mencionar a Bioenergética (baseada nas idéias de Wilhelm Reich), a Gestalt

Terapia (que partiu das postulações da Psicologia da Forma) e até algumas

que incluem a Terapia de Rogers e diversas práticas orientalistas e africanas.

No Institucionalismo, a incorporação mais notável dos recursos do Movimento

de Potencial Humano foi a realizada por Georges Lapassade, com sua

proposta de Transe-Análise.

PRÁTICAS: em um sentido epistemológico, designa todo processo pelo qual

um agente, dotado de força de trabalho qualificada, a aplica com os meios de

produção adequados sobre uma matéria-prima, gerando um produto

específico. Em um sentido descritivo, diz-se das ações que os agentes* sociais

realizam nas instituições*, organizações* e estabelecimentos*, tanto a serviço

do instituinte*-organizante* quanto do instituído"-organizado*. Em geral utiliza-

se o termo "prática" para as ações específicas e qualificadas, enquanto se usa

a palavra "atividades" para referir-se às inespecíficas e não-qualificadas. Para

o Institucionalismo, com a finalidade de se fazer a crítica à profissionalidade* e

à especificidade*, é importante considerar a frase de Max Weber: "Uma prática

social nunca é mais opaca em suas determinações que para seus próprios

agentes." As práticas dividem-se em discursivas ou teóricas e não-discursivas.

169

PRÁXIS: denomina-se assim certo tipo de prática* na qual estão

indissoluvelmente unidos o pensamento crítico esclarecedor e a ação

transformadora do real.

PRODUÇÃO: geração do novo – daquilo que a Utopia Ativa persegue. É

equivalente ao funcionamento*. É aquilo que processa tudo que existe natural,

técnica, subjetiva e socialmente. É a permanente geração de tudo que pode

logo tender a cristalizar-se. É o devir, a metamorfose.

PROFISSIONALIDADE: em um sentido tradicional, as profissões

compreendiam o Sacerdócio, a Advocacia, a Medicina e a Carreira Milita,:

Eram as primeiras ocupações com as quais se podia subsistir sem praticar

propriamente o trabalho manual ou comércio. A ética das profissões tinha um

marcado caráter religioso ("professar": atuar em prol de uma fé) e exigiam

vocação "vocare": chamado de Deus). Tratava-se de um certo tipo de

apostolado cujo exercício estava tingido de um matiz de militância, e por todas

essas conotações imbuía-se de uma condição elevada de desprendimento,

assim como de autonomia e independência relativa. Apesar do já dito, a

agrupação dos profissionais nas corporações de grêmios e academias

universitárias teve, desde o início, uma dupla natureza – de controle de

qualidade dos serviços, mas também de exclusividade e sobrevalorização dos

mesmos. Com a modernidade, produziu-se uma série de mudanças no status

de profissional. Esse título ampliou-se a outros ofícios, antes considerados de

segunda categoria. As práticas profissionais, por um lado, mercantilizaram-se,

visando o lucro; por outro, ligaram-se ao poder do Estado e ao das empresas,

formando as cúpulas tecno-burocrático acadêmicas – mas também se

degradaram como conseqüência do vínculo assalariado e da

hiperespecialização. O Institucionalismo insiste no estudo e no

desmascaranlento das formas sob as quais os interesses de lucro, poder e

prestígio do corporativismo e do academicismo se ocultam sob disfarces da

"neutralidade" cientificista, da "modernidade" hiperespecialista e da suposta

independência e suposto apostolado do profissional autônomo ou do

funcionário.

PSICOFAMILIAR: denomina-se modalidade de funcionamento psicofamiliar à

definição fantasmática e imaginária que as classes institucionais regredidas

170

fazem, inconscientemente, de suas condições reais de trabalho e do verdadeiro

poder de que dispõem para mudá-as. (ver Psico-Socioanálise *.)

PSICOLOGIA SOCIAL: é uma disciplina delimitada pela superposição de áreas

da Psicologia e da Sociologia que, de uma maneira ou de outra, toma como

objeto de estudo e de intervenção as mútuas determinações ou influências dos

sujeitos-agentes* entre si (enquanto sujeitos psíquicos e agentes sociais).

Existem várias correntes de Psicologia Social, distinguíveis segundo pertençam

predominantemente à Psicologia (Psicanalítica, Comportamentalista,

Gestaltista) ou à Sociologia (por exemplo, Interacionismo Simbólico). De

maneiras muito variadas (por exemplo, consciente ou inconsciente), todas

afirmam a constituição, gratificação, frustração de cada sujeito-agente pelo

outro considerado individual ou coletivamente. O Institucionalismo toma muitos

recursos teórico-técnicos das psicologias sociais, mas se diferencia delas,

entre outras coisas, por não reivindicar o caráter científico (ou seja, "neutro",

instrumental ou operacional) que elas se atribuem.

RECURSOS HUMANOS: desde o início da década de 70, começou-se a

empregar a expressão "Recursos Humanos" para referir-se, no campo da

Administração, à área de estudos e atividades que trabalha com questões

relativas ao elemento humano nas organizações, regiões, nações etc .. Fala se

de Recursos Humanos como um dos componentes de um espectro de

recursos: físicos, tecnológicos, econômicos e outros.

REPETIÇÃO: em um sentido etimológico, significa voltar a pedir. No filosófico,

refere-se à reiteração ou reapresentação de idéias ou de realidades.

Toda a filosofia ocidental parece estar dividida por uma polêmica em torno de

se o que se repete ou retoma é: 1) o idêntico ou igual; 2) o diferente, entendido

por relação de negação, analogia ou semelhança com o idêntico ou o mesmo;

3) o diferente absoluto, ou seja, o que cada vez é afirmativa e radicalmente

novo. O Institucionalismo sustenta que o que retoma na História não é o

idêntico, o igualou o mesmo, mas o diferencial, ou ainda, a diferença absoluta,

que é radicalmente transformadora ou motor da História. Em conseqüência,

não interessa tanto estudar as leis que dão conta das repetições

aparentemente regulares que regem a repetição do mesmo com o modelo do

relógio ou dos sistemas astronômicos do cosmos ordenado. Trata-se, melhor,

171

de entender o retorno do diferente, produto do acaso, do aleatório e

imprevisível, tal como a História o mostra nos pequenos ou grandes

acontecimentos* que alteraram seu curso. Se bem seja certo que a superfície

de registro, o instituído*-organizado*-estabelecido, tenda a capturar o retorno

do diferente para colocar seu funcionamento a serviço da reprodução* do

sistema, capturando-o e recuperando-o (ver Captura e Recuperação), nunca o

consegue por completo.

REPRODUÇÃO: num sentido etimológico, significa cópia ou imitação. Na

Filosofia, na Sociologia e para o Institucionalismo (ver Movimento

Institucionalista *), designa as tentativas de reiterar algo idêntico, igualou

similar ao que já existe, cumprindo sua função conservadora. Dessa maneira,

procura-se deter os devires, acontecimentos e transformações naturais,

sociais, culturais e subjetivas.

ROMANCE INSTITUCIONAL: por analogia com o termo freudiano "romance

familiar do neurótico", o romance institucional refere-se às diferentes versões

que podem ser reconstruídas da história de uma organização, grupo ou

movimento. Os elementos a partir dos quais tal reconstrução se efetua são

muito variados. Trata-se de comportamentos, atitudes, mitos, documentos,

tradições, grafitos ete. Mesmo o Romance Institucional sendo composto de

dimensões simbólicas, realísticas, a tendência é vê-lo como um relato

fortemente influenciado pelo desejo* e por ele tingido de matizes imaginários e

fantasmáticos.

SIMULACROS: em que interessa ao Institucionalismo, os simulacros (na

filosofia platônica) são puras diferenças que não conservam nem a imagem,

nem a semelhança de sua relação com as Idéias Puras e, obviamente,

carecem por completo de identidade. Platão os considera falsos, demoníacos e

inclassificáveis. Não são seres, mas puro devir, e podem disfarçar-se de cópias

ou de Idéias Puras para confundir os espíritos. Sua "encarnação" mais

prototipica estaria nos sofistas, pensadores que não se interessam pela

Verdade ou a Virtude e que argumentam apenas para seduzir e convencer

Algumas correntes institucionalistas consideram os simulacros platônicos como

a essência do real, que se compõe de diferenças puras, fluxos, singularidades*

172

intensivas, que são o ser do devir ou processo produtivo desejante-

revolucionário.

SINGULARIDADE: ver Universalidade e Particularidade.

SOBREDETERMINAÇÃO: tipo de causalidade pela qual um efeito psíquico ou

social é o produto resultante da participação causal, desloca da e condensada

de todas as forças, instâncias e representações que, sinérgica ou

contraditoriamente, compõem a tópica da personalidade ou o modo de

produção* de uma sociedade*, respectivamente. Em cada modo de produção

(entendido em um sentido amplo, não apenas econômico) reconhece-se uma

instância" determinante última" (condição de existência), uma" don1inante"

(condição de reprodução) e uma" decisiva" (condição de transformação). A

ação causal conjunta, complexa, articulada, hierarquizada e diversifica da das

instâncias é o que se denomina sobredetermi nação.

SOCIEDADE: o Institucionalismo tem sua concepção própria do que é uma

sociedade. Define-a como uma rede, um tecido de instituições*, organizações*,

estabelecimentos*, agentes* e práticas*. Alguns institucionalistas afirmam que

as sociedades humanas estão constituídas no mínimo por quatro instituições: a

língua, as relações de parentesco, a religião e a divisão técnica e social do

trabalho. As instituições interpenetram se e articulam-se para regular a

produção e a reprodução* da vida humana. Como se vê essa definição está

bastante centrado no instituído*, organizado*, estabelecido. Corresponde ao

que a Esquizoanálise denomina socius, que pertence às formas definidas da

superfície de registro. É possível, contudo, ampliar essa definição, incluindo o

instituinte*, o organizante* e a superfície de produção.

SOCIOLOGIA DAS ORGANIZAÇÕES: esta disciplina começa com as

contribuições de sociólogos clássicos como Durkheim acerca da divisão técnica

e social do trabalho*, assim como a passagem da solidariedade mecânica à

orgânica. Igualmente fundadores são os estudos de Max Weber sobre a

burocracia (ver – Cracias *). No entanto, é a partir da década de 20, Com o

desenvolvimento do Capitalismo norte-americano e os estudos de Elton Mayo

sobre a indústria, que a Sociologia das Organizações começa a definir seu

objeto – como a investigação e intervenção sobre a empresa enquanto unidade

social que recebe o nome de organização*. Os objetivos desse enfoque são a

173

racionalização e otimização da eficiência do funcionamento de tais

associações, sem questionar em nada sua lógica ou suas finalidades. Se for

certo que posteriormente aparecem alguns enfoques menos pragmatistas,

como o de T Parsons e outros, francamente críticos, como os de W Mills e W

H. Whyte, a Sociologia das Organizações é considerada pelo Institucionalismo

como um enfoque contrário às utopias* auto-analíticas (ver Autoanálise*) e

autogestivas (ver Autogestão*). Segundo a denúncia institucionalista, a

Sociologia das Organizações, particularmente uma de suas modalidades,

denominada Desenvolvimento Organizacional, visa facilitar os mecanismos

culturais, comunicacionais e motivacionais (do conjunto empresarial e dos

grupos que o integram.) apenas com fins de melhorar o "clima" ou a

"atmosfera", conseguindo, assim, diminuir os insumos, aumentando e

melhorando a produtividade e o lucro dos proprietários.

SOCIOINSTITUClONAL: na Psico-Socioanálise, denomina-se assim à

percepção, avaliação e comportamentos transformadores que as classes

institucionais em processo de progressão (resultante da intervenção) produzem

em relação a suas condições reais de trabalho e à margem de poder que

recuperam.

SOCIOPSICANÁLISE: é uma das correntes que integram o Movimento

Institucionalista*. Foi fundada e desenvolvida por Gérard Mendel. Articula uma

concepção relativamente tradicional de Psicanálise com outra, bastante

ortodoxa, do Materialismo Histórico. O resultado é uma abordagem

politicamente moderada, cuja viabilidade é considerável. Mendel articula

formulações psicanalíticas (elaboradas para os sujeitos enquanto indivíduos)

que postulam uma impotência fundamental inerente ao ser humano (devido ao

estado indefeso no qual nasce, necessitando dos cuidados de um outro para

ter sua sobrevivência garantida). Essas formulações combinam-se com as

afirmações do Materialismo Histólico de que, num sentido coletivo, a

experiência universal de impotência é produto da distribuição desigual da

riqueza, do resultado do trabalho, do poder e prestígio, que alienam (ver

Alienação*) quem produz esses valores. Segundo Mendel, o âmbito ideal em

que se deve estudar a experiência essencial de impotência e o

desencadeamento de processos patológicos é o local de trabalho, onde as

174

vicissitudes individuais da experiência de impotência serão melhor

compreendidas, sendo analisadas num sentido coletivo no lugar mesmo onde

ocorrem – o lugar da produção. A Sociopsicanálise sustenta que, quando se

abordam os coletivos, pode-se ver que esses conjuntos vivenciam esta

experiência de impotência devido às condições do trabalho alienado (ver

Alienação*) no Capitalismo. Essa experiência de limitação gera neles,

trabalhadores, devido à sua série disposicional pessoal, um processo

regressivo de ordem coletiva. Trata-se de uma regressão do funcionamento

psico-social ou psico-institucional a um funcionamento psicofamiliar, no qual os

sujeitos viven. uma vida preferencialmente imaginária, em vez de

principalmente simbólica (correspondente às circunstâncias concretas com que

se defrontam). A situação de seu campo real vai definir-se com base numa

situação arcaica pela qual já passaram, o que os levará a vivenciar a situação

de trabalho como se essa fosse uma reedição de uma situação familiar prima

lia, povoada por figuras fantasmáticas de sua vida familiar. Suas reações

estarão tingidas pela situação de impotência infantil que os levava a se refugiar

num mundo de fantasias. Com isso, o coletivo institucional também passará a

funcionar nesse registro, buscando soluções mágicas, contraproducentes, que

vão res ultar em sintomas (atuações, inibições, delírios, somatizações,

toxicodependências), enfim, em todo tipo de patologia biopsico-social. No plano

da militância, esses quadros podem expressar-se bastante bem no que

podemos sintetizar, com Lênin, como "enfermidades infantis do trabalho":

voluntarismo, populismo, autoritarismo, messianismo, clie,ntelismo, fisiologismo

ete. A metodologia de intervenção sociopsicanalítica conserva muitas

características de intervenção psicanalítica, principalmente a interpretação.

Mas a cura não é definida em termos individuais, e sim coletivos, e pressupõe

um movimento de cada classe institucional para a recuperação da margem de

poder possível que foi tirada deles pelo sistema capitalista de trabalho

alienado.

STATUS: o status é considerado "a parte estável ou fixa" do papel. Trata-se da

condição obtida por um papel dentro de uma sistematização hierarquizada dos

mesmos.

175

SUBJETIVAÇÃO (PRODUÇÃO DE): Como dizíamos a respeito da produção de

subjetividade*, para algumas orientações do Institucionalismo não existe uma

essência ou estrutura invariável, ubíqua e universal do sujeito filosófico, social

ou psíquico. Do mesmo modo que não existe uma imagem do homem idêntica

a si mesma em qualquer sociedade, momento histórico, classe social, raça ete.

Inclusive, o modelo científico que temos no Ocidente como universal, invariável

e ubíquo é produto de um processo de produção complexo e de longa duração

que culmina no que certos historiadores denominam ilustrativamente como" a

formação do homem íntimo".

Há, sim, por contraposição ao processo de produção de subjetividade uniforme,

sujeitada e submetida, infinitos e heterogêneos processos de produção de

subjetivação livre, produtiva, desejante, revolucionária. Esses são

absolutamente contingentes, próprios de cada momento, lugar e conjuntura, e

geram sujeitos singulares nas margens de cada acontecimento*. O

Institucionalismo pretende propiciar, através da análise e da intervenção, a

montagem de dispositivos* capazes de gerar acontecimentos * e, junto com

eles, os modos de subjetivação que os mesmos precisam.

SUBJETIVIDADE (PRODUÇÃO DE): muitas correntes filosóficas e psicológicas

(entre elas, a Psicanálise), sustentam que existe uma forma universal e

invariável de constituição, composição, transformação, reprodução e extinção

do sujeito (tanto daquele da reflexão filosófica como o do psiquismo). O que

varia em cada sujeito seriam os conteúdos (representações e modalidades de

configuração dos fantasmas ou função dos mecanismos): nisso radicaria a

singularidade de um sujeito. Algumas correntes institucionalistas compartilham

essa concepção (Sociopsicanálise, por exemplo). Para outros Institucionalistas,

não existe um sujeito com uma estrutura universal e com variações apenas de

desenvolvimento, conteúdo ou estilo. O que existem são processos de

produção de subjetividade pelos quais as sociedades tendem a reproduzir

sujeitos idênticos ou similares, segundo os padrões dominantes do grupo ou'

classe de que se trate e de acordo com os moldes do instituído*- organizado*-

estabelecido.

SUPERESTRUTURA: no Materialismo Histórico, ciência da História, da

Sociologia e da Economia Política Marxistas, denomina-se superestrutura a

176

instância do todo social na qual se desenvolvem os processos ideológicos e

jurídico-políticos que têm a seu cargo a produção de sujeitos-agentes*

ideológicos, assim como de produção, difusão e assimilação de representações

e valores ideológicos. Por ou tra parte, na instância jurídico política é onde se

processam os meios legais e o uso da força para a constituição e manutenção

da ordem vigente. Os processos superestruturais operam a reprodução

ampliada do modo de produção. Na versão clássica do Materialismo Histórico,

a superestrutura reverte ou interaciona causalmente com a infra-estrutura.

TÁTICAS: são pequenos segmentos que compõem a estratégia*. É o momento

de seleção de recursos a serem empregados na etapa imediata, remetendo-sé

sempre ao panorama maior delineado pela estratégia.

TÉCNICAS: são recursos eletivos que servirão para instrumentar as táticas*.

Sua escolha é consideravelmente livre e dependerá do treinamento e

inspiração da equipe operadora, do objetivo geral e imediato a ser alcançado e

do momento e peculiaridades do coletivo em questão. Trata-se de

procedimentos (interpretativos, informativos, sensibiliza dores, expressivos,

discursivos, artísticos, desportivos, lúdicos, interrelacionais, grupais, coletivos

etc.) a serem adotados de acordo com as circunstâncias, com propósitos

diagnósticos e elaborativos.

TRANSE-ANÁLISE: modalidade de intervenção institucional e de coordenação

de grupos criada por Georges Lapassade baseada nas experiências dos cultos

afro-brasileiros, tais como: Umbanda, Quimbanda e Candomblé. Consiste

basicamente na provocação de regressões rituais e formas arcaicas de

comunidade através de estados de transe. Posteriormente, as mesmas são

elaboradas e incorporadas a novas formas da sociabilidade grupal.

TRANSFERÊNCIA: diversas tendências dentro do lnstitucionalismo

assimilaram o conceito de transferência tanto da Psicanálise freudiana como

dos continuadores de Freud (Melanie Klein, Lacan, Reich e outros). No

Institucionalismo, a idéia de transferência pode ter, segundo a corrente de que

se trate, uma definição quase igual à da Psicanálise ou outras bastante

modificadas, tanto no plano teórico como nas aplicações técnicas.

Em geral, entende-se por transferência um conjunto de processos repetitivos

conscientes, pré-conscientes e inconscientes que se dão na subjetividade

177

"individual" e" coletiva". O que se repete são pulsões, desejos, demandas,

fantasmas, papéis, hábitos comunicacionais, estereótipos gestionários,

estruturas e até complexos destinos organizacionais. No caso particular da

corrente denominada Psicoterapia lnstitucional, que propõe a autogestão* ou a

gestão participativa dentro de cada estabelecimento, considera-se que a

transferência se dá entre o coletivo de internos e os variados aspectos da vida

institucional como um todo.

Certas correntes do lnstitucionalismo, como por exemplo a Esquizoanálise,

elaboraram uma profunda reflexão filosófica sobre a transferência em relação

ao conceito de transversalidade e com uma crítica da categoria de repetição.

Para essa orientação, o que se repete substancialmente é o diferente, e, em

conseqüência, existiria uma transferência que não funciona como resistência

ou obstáculo, mas como motor das transformações.

TRANSVERSALIDADE: interpenetração, entrelaçamento, no rizoma (modelo

de uma raiz vegetal que não tem membranas celulares nem limites externos

precisos), que é imanente à rede social das forças produtivo -desejantes-

instituintes-organizantes. A transversalidade veiculada pelas linhas de fuga do

desejo e da produção* é uma dimensão do devir que não se reduz nem à

ordem hierárquica da verticalidade nem à ordem informal da horizontalidade

nas organizações*. A transversalidade é capaz de provocar sínteses insólitas

entre elementos incompatíveis, gerando efeitos à distância sem transmissores

detectáveis, a partir de conexões locais. É uma travessia molecular dos

estratos molares. Como montagens, os dispositivos ou agenciamentos*

heterogêneos inovadores que escapam aos limites de estratos, territórios,

códigos, sobrecódigos e axiomáticas (em outra terminologia: os IDE) formais e

oficiais, deflagram efeitos transversais inventivos e libertários.

UNIVERSALIDADE, GENERALIDADE, PARTICULARIDADE,

SINGULARIDADE: no que interessa ao Institucionalismo, o denominado

momento de universalidade do conceito significa que este compreende todos

os casos particulares e singulares de seu objeto. Contudo, é importante

diferenciar um conceito universal abstrato de outro concreto. Um juízo ou um

conceito universal abstrato é, em certa medida, vazio, um puro produto do

pensamento. O momento da generalidade compreende a caracterização de um

178

atributo abstrato da universalidade. O momento de particularidade do conceito

compreende alguns casos abstratos da generalidade. Pode-se entender que

um conceito particular dá conta apenas de como alguns casos realizam o que

já estava compreendido no conceito universal, mas também é possível

sustentar que os casos particulares negam o conceito universal enquanto

abstrato e lhe acrescentam determinações não previamente incluídas nele. O

momento da singularidade do conceito compreende cada caso da

universalidade concreta. Pode-se sustentar que nega de uma só vez a

universalidade e a generalidade abstratas e a particularidade, na medida em

que se refere a um objeto único, máximo nível de determinação atingível.

Quando o conceito universal abstrato é reformulado incorporando as negações

gerais do particular e do singular, é que se torna um universal concreto

verdadeiro ou da Razão (segundo Hegel).

Aplicando o lnstitucionalismo a essas categorias da lógica, cabe sustentar que

uma instituição é pensável nesses quatro momentos: a universalidade abs trata

(por exemplo, a linguagem: a generalidade dos atributos das línguas), a

particularidade (por exemplo, as línguas indo-européias), a singularidade (por

exemplo, tal dialeto napolitano e seu uso concreto, por um falante/ouvinte

desse dialeto). Segundo entendemos a proposta de R. Lourau, a Análise

Institucional estudaria as insuficiências do conceito em seus respectivos

momentos, enquanto cada um deles se define por sua afirmação e não é capaz

de incluir o que resulta de negar e ser negado pelos outros. Supõe-se que a

intervenção no caso singular daria oportunidade para evidenciar os efeitos de

desconhecimento que a lógica do conceito gera no discurso e no saber dos

coletivos institucionais; dessa maneira possibilitaria sua desalienação, assim

como contribuiria para a reformulação incessante do conceito das instituições

como universais concretos.

USUÁRIO: no Institucionalismo, entende-se por usuário quem demanda,

adquire, se apropria, possui, consome, usufrui de bens ou serviços "materiais"

ou "ideais". Cabe acentuar que esse usuário-consumidor pode ser individual ou

coletivo, personalizado ou anônimo. No caso de uma intervenção institucional

standard, frequentemente designa-se o conjunto dos usuários como "staff-

cliente".

179

UTOPIA ATIVA: denomina-se assim as metas e objetivos mais altos e nobres

(no sentido dado a esses termos por Nietzsche) que orientam os processos

produtivo-desejante-revolucionários dos movimentos e agenciamentos* sociais

em seus aspectos instituintes*-organizantes*. Essas metas não estão

colocadas em um futuro remoto nem terminal, do tipo dos que são enunciados

como escatologias ("Fim da História" ou "Fim dos Tempos"). Na Utopia Ativa há

uma imanência entre fins e meios; o processo produtivo desejante-

revolucionário é seu próprio fim e meio em cada aqui e agora.

VERTICALIDADE: na Psicologia Social de Pichon Rivière, a verticalidade

designa a dimensão histórico-pessoal que cada integrante do grupo traz como

disposição que passará a fomldr parte da determinação dos fenômenos do

campo grupal. Na Psico-Sociologia Organizacional e no Institucionalismo, a

verticalidade define a dimensão da vida organizacional que corresponde ao

organograma formal, quer dizer: cargos, hierarquias, funções etc.

APÊNDICE

O INSTlTUClONALISMO NO FINAL DO MILÊNIO

O presente apêndice foi escrito para a terceira edição em português

deste livro, em outubro de 1995. Optei por reproduzi-lo quase sem alterações,

para que possa ser comparado com um post scríptum redigido especialmente

para a quinta edição. Parece-me interessante que o leitor possa, desta forma,

avaliar acertos e desacertos do primeiro texto, relacionado-o com o segundo,

obviamente a partir de suas próprias convicções.

Primeira Parte

O grande institucionalista e amigo Félix Guattari costumava repetir que

os escritos tinham que ser datados. Essa recomendação devia-se não somente

180

ao fato de que situar um texto em um calendário permite relacioná -lo com a

biografia do autor, e isso costuma ser definido como "contexto ou conjuntura

histórica", mas também à importância de marcar essa data com um nome e um

tempo que designam um encontro-acontecimento, ou seja, a individuação de

um real-absolutamente novo – do qual o mesmo texto pretende ser parte.

Obviamente, este apêndice não tem a pretensão de alcançar tal

excelência, contudo me parece que tem o direito de tentar. Neste final de

milênio vivemos, sem dúvida alguma, umepos peculiar, composto dos seus

próprios ethos, cronos, pathos, topos, lagos e telos, expressando isso de uma

forma clássica. Desde já, a existência de uma composição sui generis não é

exclusiva da nossa fase, sendo que cada período histórico tem, como se sabe,

a sua. Também cada" civilização", porém, detém sua imagem e sua maneira de

efetivar aquilo que entende por "passado", "presente", "cultura", "espaço",

"movimento", "permanência", "troca", "todo", "partes", "valores", "pensamento".

Guattari propunha denominar a nossa" etapa" de "Capitalismo Planetário

Integrado", como aplicação teórica de um termo matemático que qualifica um

sistema hipercomplexo e heterogêneo em movimento, integrado por uma

função axiomática que equaciona todas as coordenadas gerais e modula

permutas equivalências entre seus produtos. Nessa designação há muita

coincidência com aquilo que Karl Marx antecipou como a chegada de "A fase

Superior do Capitalismo", sendo que, tanto na denominação de Marx como

naquela de Guattari, cabem – devidamente redefinidos – termos mais ou

menos "na moda", tais como "Globalização", "Transnacionalização",

"Sociedades Pós-Industriais", "Pós-Classes" e "Pós -Massas", ou

"Hipermodernas", ou "Pós-Modernas", ou "lnformatizadas", ou

'A.utomatizadas", "Multitudinárias" e assim por diante.

Uma análise detalhada dessas categorias seria, evidentemente,

excessiva neste escrito. Conformarei-me apenas em recordar algumas

características que se tornou habitual atribuir a este panorama.

Costuma-se declarar, e porque não, constatar, de certa forma, que: – No lapso

de tempo incluído entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a atualidade tem

havido, em setores localizados do mundo, um crescimento enorme da

181

"Riqueza" – entendida como meios de produção, de distribuição, de

comunicação, de circulação, de troca e de consumo.

– Esse incremento inclui bens materiais, incorporais, serviços, e que

esse aumento qualitativo e quantitativo resultou em uma melhora considerável

de "qualidade de vida" dos setores por ele beneficiados.

– Nesse mesmo lapso, gerou-se uma tendência ao desmorona mento de

regimes políticos totalitários, ditatoriais, autoritários e outros, e sua crescente

substituição por diversas modalidades de sistemas democráticos indiretos,

representativos e eleitorais, onde vige, pelo menos formalmente, o Estado de

Direito, os Direitos Civis e os Direitos Humanos, possibilitando, assim, tanto a

existência como a expressão e a militância de todos os tipos de idiossincrasias

minoritárias, regionais, nacionais, raciais, sexuais, de culto, de idade, de

situação econômica, política, cultural, geográficas.

– Como causa e efeito dessas transformações, tem havido o

aperfeiçoamento e a consolidação das instituições democráticas, judiciais,

legislativas e executivas, tanto na estrutura dos Estados como na da Sociedade

Civil, o mesmo tendo se realizado em todos os campos e níveis, desde o local

até o mundial. Isso propiciou uma inclinação ao predomínio da negociação

universal como método para dirimir as diferenças e conflitos, no lugar da

predisposição ao uso dos recursos violentos e bélicos de quaisquer espécies.

– Todas essas manifestações de "progresso" desenvolveram-se sobre a

base da implantação geral de diferentes variedades do sistema econômico

capitalista – preservação da propriedade privada dos meios de produção,

economia de mercado, empresas livres e outros-, incluindo nele as variedades

político-culturais do Liberalismo, os Socialismos Reformistas, as Sociais-

Democracias e ou tros similares. A mencionada instauração geral acelerou-se

após o estridente fracasso de todos os ensaio de "Comunismo", "Socialismo

Real", "Nacional-Socialismo Nazi-Fascista", diversos "estatismos" e"

coletivismos" cujas conseqÜências deletérias demoraram algumas décadas, e

ainda hoje continuam trazendo prejuízos à vigência plena da proposta histórica

à qual nos referimos aqui.

– As metamorfoses do Capitalismo trouxeram como conseqüência uma

tendência à racionalização – diminuição, limitação, compactuação,

182

eficientização, baratização, democratização, modernização das estruturas,

funções e atribuições – dos Estados Nacionais e da sua responsabilidade

perante os cuidados com a saúde, educação, justiça e ordem pública, assim

como os aspectos essenciais da infra-estrutura e da soberania nacional. Isso

significou a vigilância e ingerência sobre tais poderes, exercícios e benefícios

por parte da Sociedade Civil.

– Obviamente, toda essa" evolução" está em curso e coexiste com a

permanência, em todos e em cada um dos processos, estruturas, agentes,

usuários, consumidores,lógicas e âmbitos, de formas arcaicas, todavia não

superadas," em vias de desenvolvimento e de crítica".

– Desde já, esses processos não são universais nem suficien temente

implantados, e nem aperfeiçoados. Por isso, persistem graves dificuldades de

toda espécie que afetam tanto algumas regiões do mundo, assim como

determinados países e também alguns segmentos das nações prósperas que,

por diversas razões, resistem em adotar os princípios e cumprir com os

esforços necessários para propiciar sua incorporação à Ordem e Progresso

generalizados. Esses setores a dificultam devido a vocação, desejos,

interesses e açôes contrários a esses desígnios.

Todos esses indicadores de "evolução", que tendem a realizar-se de

forma gradual, crescente e incessante, não somente em quantidade como

também em amplitude, podem passar em alguns momentos e lugares por

"conjunturas" adversas, transitórias e circunstanciais. As mesmas se devem

frequentemente a fatores ainda incontroláveis, tais como fenômenos naturais

de grande porte ou erros de avaliação, planejamento e execução, que são

oportunamente subsanáveis.

No campo do social, cultural e subjetivo, essa orientação mundial dirige-

se ao treinamento de indivíduos-sujeitos-agentes-produtores consumidores-

usuários conscientes, imbuídos de um espírito de sociabilidade variável e suí

generís, porém invariavelmente inspirados por valores de cidadania e respeito

à lei, assim como pelo culto à liberdade, à justiça e à competição sadia.

Esse andamento, apesar de não ser a culminância, é a sólida

confirmação de que os modos de produção, os regimes políticos e os sistemas

de representação cultural que compõem este estágio do Capitalismo Mundial

Integrado, mesmo frágeis e frequentemente precários, demonstram ser a

183

"menos pior", senão a única alternativa possível para a consolidação histórica

dos ideais que animaram os grandes movimentos que deram origem à

Modernidade.

Segunda Parte

O que acabamos de ler no ponto anterior é uma tentativa de expor, de

forma esquemática e prototípica – e faço votos para que não tenha sido irônica

–, uma maneira de descrever, entender e avaliar o panorama munclial

contemporâneo. Está claro que existem inúmeras versões a respeito que,

apesar de muito mais sofisticadas e matizadas, não deixam de conduzir a

conclusões parecidas.

Quem investiga o mundo atual e também vive e atua nele acostuma se a

experimentar, frente ao quadro que acabamos de delinear, uma série de

impressões que, a meu ver, vale a pena repassar.

Em primeiro lugar, vem-lhe à mente a idéia de que deve haver certo erro

ou mal-entendido em algum ponto, pelo qual a realidade – por mais relativa

que seja sua aparição – não parece coincidir de modo algum com o "retrato"

que se pinta dela.

Em segundo lugar, não se pode evitar a sensação de que, de acordo

com esta leitura do panorama mundial, uma imensa quantidade de

conhecimentos produzidos nos últimos séculos por ilustres

autores especialistas em diversos conhecimentos e também no saber do

sentido comum – parece ter perdido toda e qualquer validade, ou é

repetida, de forma parcial ou distorcida, como se fosse uma "novidade

recém descoberta".

O saber tecno-burocrático-acadêmico dominante nestes tempos ou

ignora os clássicos, ou os cita apenas nas passagens em que supõe poder

refutá-las, ou bem os despreza, comportando-se como se acreditasse que "na

prática todas essas teorias são outra coisa", isto é, não servem para nada, ou

funcionam somente dependendo do uso peculiar que se decide fazer delas.

Em terceiro lugar, isso que acabamos de dizer aplica-se também à

memória dos acontecimentos históricos. Estes, incluídos os considerados

antecedentes propícios ou contrários ao horizonte imperante, são tratados

184

como se fossem inexistentes ou irrelevantes, à medida que "o que importa" é a

caracterização empírica do que está acontecendo agora, os chamados fatos –

definidos como tais na proporção em que são protagonizados e interpretados

por supostos triunfadores.

O mais grave desta "realidade", da qual estas "impressões" são um registro, é

que a versão que relatamos anteriormente – que, por outro lado, os

conhecedores dos processos de construção e difusão "ideológica", de "opinião

pública" ou de "produção de subjetividade" sabem de sobra – não é exclusiva

dos beneficiários ou dos favorecidos pelo estado atual das coisas. A colossal,

heterogênea e onipresente maquinária que gera esses efeitos consegue que

essas concepções – entendidas no sentido mais amplo possível e os "estilos

de vida" e "de morte" que lhe são conseqüentes, sejam adaptados ou

almejados pela imensa maioria da humanidade.

Os críticos mais implacáveis desse panorama – especialmente os

denominados "de esquerda" –, mesmo se empenhando em denunciar o que

consideram flagrantes contradições, falsidades e flagelos dessa Ordem

Mundial, acabam por compartilhar, desavisadamente, muitas das suas

categorias, conceitos, procedimentos e resultados. Boa parte dessa conivência

involuntária – ou dessa cumplicidade mais ou menos assumida resulta não só

da estupidez e de necessidades, desejos e interesses do pensamento crítico,

mas também da difundida convicção de que, "a rigor", não existem reais

alternativas para a situação imperante, a não ser aquelas que consistem

em um aperfeiçoamento do conhecimento e na execução da mesma

lógica que a infunde.

Em quarto lugar, é sabido e constatado que aqueles pensadores

militantes, ou simplesmente cidadãos que resolvem falar, escrever, agir e

coerentemente viver de acordo com uma inteligência crítica e segundo alguma

dessas propostas questionadoras supostamente inexistentes,não apenas

podem sofrer as mesmas ações repressivas de seus antecessores de todas as

épocas – que, dependendo do país onde atuam, vai desde a eliminação física e

a tortura até a reclusão ou o exílio – mas também tornar se passíveis de

inúmeras modalidades de desqualificação, desprezo e exclusão mais ou menos

sutis.

185

Uma outra modalidade parecida que na atualidade adquiriu uma

importância bastante considerável é a de ter que suportar a atribuição do status

e papel de "catastrófilos"," catastrólogos", "catastrofistas", rótulos esses que

servem para etiquetá-los como "amantes ou cultores" mórbidos, ou como"

especialistas com falso prestígio", ou como" delirantes adoradores "de um

cataclismo imaginário e inexorável. A sentença mais draconiana é que "são

inaptos para oferecer algum projeto positivamente útil" e só sabem "criticar e

vaticinar o caos".

Em verdade, tudo depende de como se define cada um dos termos:

noções, funções, conceitos, categorias, signos, indicadores, analisadores ou

idéias com os quais se pensa, se avalia e se procede frente ao estado

contemporâneo das coisas. Em alguns campos do saber e da

vida notoriamente na Economia, Sociologia, Psicologia e Política – as

declarações, planos e resultados dos experts chegaram a um grau de

hermetismo, obscuridade, refinamento e desacordo que, longe de serem

sinônimo de inteligência e eficiência, conseguem apenas dissimular sua

sistemática inoperância. Porque, se por um lado – como veremos mais adiante

– alguns aspectos do mencionado estado das coisas são tragicamente

ostensivos outros são confusos, ambíguos, delicados e contraditórios. Prestam-

se, assim a valorizações complexas nas quais a tônica "otimista" ou

"pessimista" das estimativas é de difícil decisão.

Essa questão de "otimismo" versus "pessimismo" é, evidentemente, tão

velha como o próprio mundo, mas segundo o meu entendimento, tantc no

passado como nas circunstâncias presentes, é abordada de fom,a errônea O

problema não consiste em puxar conclusões sobre se o mundo de hoje é

melhor ou pior, quantitativa e qualitativamente, em todos ou em algum dos

aspectos da existência, que na Idade Média. Tampouco, por exemplo consiste

em cotejar o que o Capitalismo veio a ganhar com os desmandoó do

Socialismo Real. Trata-se de comparar o desenvolvimento potencial e efetivo

de todos os tipos de forças produtivas de uma época com as realizações

abstratas ou concretas alcançadas durante a mesma. Dito de outra maneira, o

assunto consiste no confronto entre o que poderíamos fazer e o que realmente

fazemos.

186

Muitos autores enfatizaram a velocidade do processo que o incremento

das mais diversas potências adquiriu nos últimos vinte anos: a mesma é tão

vertiginosa que resulta muito maior que a conseguida nos recentemente

passados duzentos anos. Frente a essa formidável escalada, o problema

corretamente posto reside em perguntar o que se conseguiu exatamente com

essas disponibilidades. É uma brevíssima avaliação dessa natureza que me

proponho intentar, a seguir.

Para examinar os aspectos mais relevantes dessa comparação, não

citarei muitos dados estatísticos que, se bem necessários e ilustrativos,

tornariam estas linhas intoleravelmente difíceis de serem escritas e lidas. Por

outro lado, nossos tempos, com respeito às estatísticas, mostram uma

peculiaridade surpreendente. Há hoje levantamentos estatísticos acerca de

"tudo", e "todo mundo" parece ter acesso aos mesmos. Contudo, são poucos

os resultados que podem ser considerados confiáveis; não costumam coincidir

uns com os outros; e os números que verdadeiramente interessam para tomar

posição definitiva acerca das questões mais cruciais são considerados

sigilosos e mantidos em secreto. O que parece constatável são algumas

conclusões que a seguir apenas menciono.

As últimas reuniões de cúpula e as informações dos organismos

internacionais de grande porte insinuam que:

– Dos mais de seis bilhões de habitantes da Terra, pelo menos um

bilhão vive em um estado que a Organização Mundial da Saúde denomina

Miséria Absoluta, e outro bilhão e meio vive em um nível de Miséria Relativa ou

Pobreza.

– Dois bilhões de pessoas do globo terrestre subsistem em um estado

que contempla apenas racionalmente o que – de maneira muito controvertida –

denomina-se "satisfação de suas necessidades básicas".

– Dos quinhentos milhões restantes, 30% (trinta por cento) possuem

70% (setenta por cento) de qualquer tipo de riqueza disponível no planeta.

– Até pouco tempo atrás, o número reduzido de nações mais poderosas

havia acumulado um arsenal bélico cuja capacidade era mil vezes superior

àquela necessária para destruir qualquer indício de vida sobre a face da terra.

Devido às diferentes gestões internacionais, que resultaram no fim da Guerra

Fria, o arsenal de armas atômicas foi reduzido; continua-se discutindo, porém,

187

se houve aumento ou não de armas pesadas e de curto e médio alcance.

Neste momento, estão em andamento quase cem guerras de tipo internacional,

limítrofe, civil, religioso, racial e outros; a cada ano duplicam-se os

equipamentos militares e policiais destinados, supostamente, à manutenção da

ordem constituída e à segurança pública, cujo foco principal é a defesa da

propriedade privada e da pessoa dos proprietários. Surpreendentemente –

como todos estão cansados de saber – a criminalidade, salvo exceções locais,

só vem aumentando.

– A distribuição da miséria absoluta e relativa, à qual me referia acima,

prejudica inapelavelm.ente todo o continente africano e, de forma menos

espetacular, a Índia, Oriente Médio e América Latina. Ela se encontra –

desigualmente, mas estrondosamente – em 95% dos países, nos seus

respectivos bolsões internos de pobreza.

– Os grandes blocos dos países ricos – EUA, Canadá, CEE e os

chamados "Tigres Asiáticos" (Japão, Coréia do Sul, Vietnã, Indonésia, Malásia,

Taiwan e, de maneira muito peculiar, a China Comunista) –, apesar de serem

os principais assentos de opulência mundial, apresentam marcados desníveis e

reconhecem que estão ameaçados pela possibilidade de graves crises de

diversos tipos, tanto na atualidade como no futuro próximo.

– Os indicadores mundiais de desemprego certificam constantemente

que a desocupação é devido não apenas ao acelerado processo de

substituição da força humana de trabalho pela automação, mas também à

tendência ao esgotamento dos mercados externos e internos, assim como à

hiperprodução desregulada e à acumulação de estoques.

– O aparente crescimento econômico das chamadas "economias

emergentes" – apesar dos casos serem diferentes e complexos – em geral é

fraco e instável, e está baseado seja na venda da força de trabalho baratíssima

e informal, sem direito laborais e sociais, seja na extração irrecuperável de

matérias-primas e energéticas, ou ainda nas condições contratuais leoninas

dos acordos de exploração, remessas de lucros, exceção de impostos... Além

de tudo isso, o incremento da riqueza nesses "capitalismos nacionais tardios"

mostra uma distribuição desigual do benefício, idêntica ou pior à que tinha

vigência nas fases coloniais ou neo-coloniais clássicas dessas mesmas

nações.

188

– Os Estados Nacionais – tanto os "democráticos" como os

"autoritários", particularmente os dos países chamados" periféricos", "em vias

de desenvolvimento", "dependentes" – apresentam-se cada vez mais

empobrecidos, ineficientes e desprovidos de poder internacional devido a sua

subordinação aos onipotentes organismos econômicos internacionais. A

decadência mundial do Estado de Bem Estar – causada fundamentalmente

pela limitação orçamentária imposta à política tributária pelo Capital também

obedece à privatização crescente de suas funções. Isso pela necessidade do

Capitalismo de incorporar à produção e ao mercado ganancioso todas as

atividades possíveis para compensar a tendência de queda da taxa de extração

da mais-valia resultante das causas acima apontadas. Esse problema, porém,

torna-se gravíssimo nos países "periféricos" por razões óbvias: as

necessidades de serviços infra-estruturais como os de educação, saúde,

seguro-desemprego, moradia, saneamento básico e segurança pública, são

infinitamente maiores que nos países centrais; a distribuição da renda é muito

mais desigual, o poder econômico dos lobbies locais sobre os governos é

enorme, a política tributária é ridiculamente favorável às grandes fortunas e a

política fiscal é incompetente, corrupta, corporativo-burocrática, eleitoreira

demagógica. É de se supor o que ocorre quando esses países são afetados

pelo declínio próprio da transnacionalização-privatização.

– Certo incremento do acesso de setores mais an1plos da população a

alguns produtos e serviços – devido à hiperprodução e ao barateamento da

produção massificada dos mesmos – deve ser entendido como um resultado

muito mais atribuível ao poderio tecnológico dos parques industriais que ao

efeito da ascensão econômica de tais segmentos populares. A lógica dessa

melhora é parecida com aquela responsável por certa diminuição dos índices

de morbi-mortalidade: não se trata de um aperfeiçoamento amplo e consistente

de saúde popular, resultante de uma sólida elevação das condições de vida e

de atenção médica integral, e sim do espetacular e barato progresso da técnica

imunológica.

– O aumento da criminalidade, particularmente da organizada -

empresarial – está se tornando não geométrica, mas exponencial. As

chamadas genericamente "máfias", relacionadas ao narcotráfico e ao tráfico de

armas, ao jogo ilegal, à prostituição, ao contrabando, ao seqüestro, ao roubo, à

189

falsificação e assassinato por encomenda, têm adquirido tal poder financeiro

que parecem estar integrando formalmente os processos econômicos e

políticos, tal é seu grau de interferência no comércio de influência, de proteção

e outros.

Para não carregar demasiadamente este texto, que não é nada mais que

um apêndice, terei que parar por aqui, limitando-me a mencionar problemas

tais como a nomadização forçada das populações miseráveis para os países

ricos, a sinistra questão dos fundamentalismos, do terrorismo sectário ou de

Estado, o comércio de crianças e de órgãos humanos, a total falência dos

aparelhos judiciários, policiais, carcerários e assim por diante.

É esse o "Mundo Feliz" da Globalização do Capitalismo Planetário

Integrado em sua "Fase Superior"?

Terceira Parte

Esse tema do "otimismo" versus "pessimismo" está intimamente

relacionado com o outro, o do "velho" e do "novo" que mencionei anteriormente

e que poderíamos reformular e ampliar do seguinte modo apesar de que, devo

avisar, não poderei definir detalhadamente neste âmbito, como desejaria, todos

os termos que utilizarei.

Quando se afirma que o Capitalismo Planetário Integrado – a

"Globalização" e a internacionalização mundial do Capitalismo em sua Fase

Superior – é resultado do "desenvolvimento", do "progresso", da "evolução" do

Capitalismo, o mínimo que se pode fazer é analisar o significado exato dessas

palavras. É preciso, porém, aclarar que esta análise, em si mesma, é parte da

questão do "velho" e do "novo", à medida que já foi antecipada quase

exaustivamente por vários dos colossais pensadores do século passado

e que, devido a um laborioso esquecimento de seus detalhes, nos vimos

na obrigação de expor esta descrição como se fosse uma premissa. Esses

grandes trataram, cada um a seu modo, de periodizar as formações históricas,

explicando como cada uma delas era e é – à medida que as mesmas

subsistem no panorama atual – um modo sui generis, digamos, de gestar,

190

administrar e destruir tudo o que compõe a realidade, seja como for que ela se

defina.

Cada formação histórica compreende, no mínimo, quatro grandes

"continentes" ou "territórios", distribuídos em superfícies (vide Nota 1): da

Natureza, da Sociedade, da Subjetividade e da Maquinária. Cada formação

histórica caracteriza-se pela modalidade com a qual, em cada um de seus

territórios e em todos eles, dá andamento a quatro processos: de Produção da

Produção, de Produção de Reprodução, de Produção de Antiprodução e

de Produção de Demanda-Consumo e Consumação.

Em cada formação histórica, os territórios citados e os processos que

os" animam" estão intimamente interpenetrados entre si, e isso implica que são

parcialmente diferenciados, e também imanentes. Nenhum deles é

prescindível, nenhum é causa última nem efeito exclusivo do outro, apesar de

que, em cada formação histórica, algum possa prevalecer e/ou aparecer como

sendo assim.

A modalidade e a prevalência de cada um desses processos em cada

um desses territórios-superfícies determina as peculiaridades das funções,

mais ligadas à reprodução e a antiprodução, e dos funcionamentos, mais

relacionados à produção e à consumação, de cada "parte" e do "todo" de cada

complexo histórico.

Uma nova definição de maquinária como conjunto difuso, externamente

aberto e internamente heterogêneo, heterólogo, heteromórfico, auto-

producente, em movimento transformador contínuo, semi-determinado, semi-

aleatório de "peças" variáveis, dispersas e "oni conectáveis" – ou seja, uma

formação histórica que pode ser entendida como uma Megamáquina,

Maquínica. Isso é diferente de dizer "mecânica" ou "automática", seja nas

modalidades das máquinas elétricas ou eletrônicas, cibernéticas etc.

Dadas as características das funções e do funcionam de cada formação

histórica – ou seja, de sua "Totalidade" ou Megamáquina – os efeitos deletérios

do predomínio da Reprodução e da Antiprodução podem manifestar-se através

de inumeráveis índices ou indicadores. Limitarei-me, porém, a mencionar três

fenômenos: os graus e tipos qualitativos e quantitativos de exploração,

dominação e mistificação lhes são próprios. Nestes indicadores, mesmo

prevalecendo os coletados no território da sociedade, também importam as

191

relações dos mesmos com os campos da natureza, da subjetividade e da

maquinária.

Obviamente, cada formação histórica possui também os recursos

próprios de pensamento, saber, conhecimento e valores que, a seu modo,

conseguem inventar, definir, detectar e criticar esses índices. Sendo assim, a

decisão, o procedimento e a interpretação dos resultados da comparação – de

forma a fazer uma avaliação – de uma formação histórica com outra são, por

sua vez, outro indicador do tipo de formação histórica que assim o faz.

Dito de outra maneira, as avaliações dos dados são valores das

sociedades que dominam as sociedades que avaliam.

Espero ser mais explícito agora sobre porque devemos comparar nossa

formação histórica atual – a primeira que está em vias de conseguir uma

hegemonia mundial quase absoluta – não com as outras, mas com as

potências de produção que detêm, assim como com o grau de

reprodução e anti-produção que as investem, isto é: com os índices de

exploração, dominação e mistificação que lhes são próprios.

Se não procedermos dessa forma, cairemos exatamente em um dos

mecanismos de mistificação que são especiais da nossa formação histórica,

isto é, a falsa generalização de algumas melhoras localizadas – por exemplo, a

realização de blocos de nações ricas, a qualidade de vida dos países nórdicos

e outros.

Repassando o panorama descrito na segunda parte deste apêndice,

trata-se de julgar, não se nossos terríveis índices de exploração,

dominação e mistificação são melhores ou piores, por exemplo, que os

do Feudalismo, mas se dadas as incalculáveis forças que a humanidade

dispõe, quanto deixa de fazer com elas, ou quanto e como as investe na

reprodução ou antiprodução que geram as atrocidades dos referidos

índices. Isso precisa ser dito, sem ignorar que, se comparamos alguns dos

nossos indicadores com, por exemplo, os de algumas formações primitivas

tribais – cujas forças produtivas são ínfimas –, seus tipos de exploração,

dominação e mistificação são, sem dúvida alguma, bem "menos atrozes" que

os nossos.

Considerando o que foi exposto, o que significam "Progresso",

"Evolução" e "Desenvolvimento" enquanto valores definidos pelo Capitalismo

192

triunfante? Por um lado, dado que os indicadores medidos como resultado da

aplicação dos critérios da própria lógica do Capital são deploráveis, isso

significa que nosso " progresso", "evolução" e "desenvolvimento" estão

longe de tornarem-se efetivos. Por outro lado, julgados segundo a

potencialidade produtiva intrínseca ao Capitalismo, tais índices mundiais são,

sem dúvida, cataclísmicos.

Por consequência, a afirmação de que o Capitalismo é o modo, sistema,

regime que "melhor" está protagonizando a realização gradual de uma certa

maneira de gerar e relacionar Produção, Reprodução e Antiprodução (assim

como seus estilos" de vida" e" de morte") – tal como foi anunciado na famosa

fórmula da Revolução Francesa e do Iluminismo, "Liberdade, Igualdade,

Fraternidade" – não é apenas uma mentira, um erro, um equívoco, um

sofisma, uma racionalização ou um delírio megalomaníaco. Trata-se de

uma auto-convalidação da Lógica do Capital, imanente a "todos" e a cada

um dos campos ou territórios antes citados que, apesar do cinismo

peculiar do sistema de representações dessa fórmula mundial, continua

sendo um recurso necessário para sua permanência. Ou seja, apesar da

crítica, por exemplo, da Esquizoanálise à importância da ideologia ou das

ridículas afirmações acerca de seu " final", o Capitalismo ainda precisa

mentir.

Cabe apenas mencionar agora, muito elementarmente, uma série

desses conhecimentos do século XIX – produzidos por autores de diferentes

orientações – que parecem ter sido "esquecidos", ou que são citados como

"insuficientes" ou "já superados", ou que são enunciados – prévia deformação

– como "novidades" funcionais para essa leitura "otimista", "realista",

"moderna".

O Capitalismo, estrictu sensu, é um modo de produção-reprodução-

antiprodução-consumação da realidade – dito no mais amplo sentido já definido

– que se caracteriza por estar regido por uma integral axiomatizada,

supostamente geradora, "animadora" hierarquizadora, organizadora, limitante e

destruidora do "todo" da realidade. Essa integral é denominada Equivalente

Geral Dinheiro.

O Equivalente Geral, a Axiomática do Capital – que pode se expressar

através de quantidades abstratas, de dinheiro-moeda ou "letras" de diferentes

193

naturezas, como títulos de propriedade, ações, bônus, cédulas ou registros

informáticos – é uma medida arbitrária de valor. Esse Equivalente Geral, que

se acumula como inumeráveis forças produtivas não retribuídas, torna-se a

medida para a qual deve ser traduzido o resultado da extração, apropriação,

acumulação e centralização de inumeráveis forças-formas de produção não

pagas.

As modalidades clássicas do Capital são o Capital Latifundiário, o

Industrial e o Financeiro; subalternamente, porém, é possível falar também de

Capital de Poder, de Saber, de Desejo – Consciente e Inconsciente –, de

Semiotização, e até de Beleza – Dominação e Mistificação.

Entre as principais forças-formas dessa produção está a força-forma do

Trabalho "Humano" – entendendo como tal aquele composto por energias

físico-químicas, biológicas, psíquicas, sociais, subjetivas – que deve ser

"forçada", de maneira sumamente variada, a submeter-se à citada equivalência

e a sua valorização e remuneração parcialmente não paga – Dominação e

Mistificação – pela força física ou por modalidades de subjetividade,

semiotização e outras.

As condições fundamentais que possibilitam a produção, distlibuição,

possessão, apropriação, troca, consumo e fruição dos produtos de toda

espécie, é a conversão crescente de tais produtos em mercadorias bens de

troca, enquanto interessam por seu valor de compra-venda, e só

secundariamente pelo seu valor de uso-satisfação – pois se o processo de

capitalização realiza-se em cada passo desse circuito, cada um deles está

informado pelo circuito de compra-venda, ou seja, operações de troca

mediadas pelo dinheiro.

O Capitalismo como modo – dito no sentido amplo antes apontado –

está constituído por contradições famosas que lhe são essenciais. Por

exemplo: as primárias, que se estabelecem entre o desenvolvimento das forças

produtivas de todo tipo e as relações de produção de toda espécie; e as

secundárias, como as que ocorrem na competição entre as diversas

modalidades do Capital. Essas contradições são tanto produtoras do

crescimento produtivo e cumulativo e da reprodução das condições restritas e

amplas da existência do Capital quanto demarcadoras de seus

tetos classicamente denominados limites internos e externos – e de sua

194

subsistência. Os limites internos costumavam ser reduzidos à existência da

força de trabalho disponível, ou seja, comprável e vendável através do Capital

chamado variável, o qual habitualmente era tido como sinônimo da existência

de trabalhadores vivos e produtivos. Era costume atribuir aos limites externos a

existência de mercados solventes, isto é, de compradores suficientes de

mercadorias.

O Capital variável inclui também os insumos produtivos: gastos de

crédito de dinheiro-mercadoria, empreendimento, energéticos e territoriais, de

matérias-primas e manutenção e aperfeiçoamento dos meios de produção

propriamente ditos – esses últimos constituindo o Capital fixo.

Porém, além dos gastos da reprodução ampliada – manutenção das

condições jurídico-político-subjetivo-libidinais do Capitalismo, cujo protagonista

principal é o Estado –, dependendo do ramo de produção tratado, deve ser

acrescentado ao Capital fixo e ao variável o que podelíamos chamar de gastos

com a produção de necessidade de demandas de consumo e fruição

propriamente ditos, isto é, produção de mercado. Entre as variadas situações

nas quais essas contradições transformam-se em aporias e conduzem à

celebre crise do Capitalismo, as mais conhecidas são aquelas que resultam

das hiperproduções – excesso de mercadorias que se barateiam

"excessivamente" e não compensam as inversões – ou do esgotamento

relativo dos mercados, que perdem assim seu poder aquisitivo.

Concomitantemente, podem haver crises provoca das, pois as lutas operárias e

camponesas questionam a propriedade das diversas formas de Capital fixo,

incrementam o gasto do Capital variável através de reivindicações salariais ou

de melhores condições de trabalho ou chegam, em suas lutas políticas, a

apropriar-se parcial ou totalmente do aparelho de Estado. Sabe- se, porém,

que o Capitalismo é um modo histórico que, desde suas origens, não só

aprendeu a prevenir e resolver as crises, mas também viver com elas, nelas e

delas. As manobras do Capitalismo a esse respeito são inumeráveis e, não

podendo ampliar detalhadamente este ponto, mencionaremos somente

algumas essenciais.

Ao nível da produção, o Capitalismo suplantou a extração de mais-valia

relativa – aumento das horas do trabalho não remuneradas – pela absoluta –

195

aumento da produtividade pela intensificação do trabalho em si mesmo ou em

menos tempo.

Nisso participa, se agrega e finalmente substitui a exploração típica a

extração de mais-valia maquínica, isto é, o aperfeiçoamento das máquinas e

uma nova articulação entre a força de trabalho "humano" e "não-humano".

Outra celebre tática é a diminuição deliberada da produção, ou a destruição

dos produ tos para aumentar seu preço. Na esfera da distribuição, apropriação,

troca e consumo, o Capitalismo obteve uma enorme agilidade e bara teamen to

desses processos mediante a informatização e a robotização dos mesmos. Já

a crise gerada pelo esgotamento da expansão extensivo geográfica dos

mercados foi superada com a intensificação quantitativa e qualitativa da venda

através do consumo de massas. Esse, por sua vez, foi alcançado com o

barateamento e multiplicação dos produtos, assim como através da

planificação de produtos perecíveis, facilmente descartados e "melhorados",

mas, sobretudo, pelo aperfeiçoamento tecnológico da produção de demanda –

marketing.

Não é necessário explicar como a guerra sempre foi um recurso

complexo para superar as crises, pois atua em todos e em cada um dos níveis

dos processos do "Todo Capitalístico". A inflação é mais um exemplo de

fenômeno provocado: se, por um lado, alguns setores do Capital são

prejudicados, outros são notoriamente beneficiados. Por último, o resultado de

cada crise é uma redistribuição de riquezas, pela qual o Capital – em quaisquer

de suas formas de existência – acaba por concentrar-se, não necessariamente

em menos "pessoas", senão em um número real, não explicitamente formal, de

entidades que são suas proprietárias, megaempresas, megabancos e, enfim,

oligopólios e monopólios.

De qualquer maneira, é importante destacar que o Capitalismo é um

modo – dito no sentido amplo definido acima – em que a inflexão exploradora,

dominadora e mistificadora que lhe é característica tende a orientar toda a

produção, a reprodução, a antiprodução e o consumo para a extração de

mais-valia econômica. Isso é válido para o lucro, renda e ganhos, mas

também para o saber, o poder e o prestígio. Longe de conseguir – através

do tipo de competição generalizada e" de cartas marcadas" que é sua

característica – uma otimização das forças produtivas de quaisquer

196

naturezas (sejam as que verdadeiramente o mesmo suscitou, e das que

potencial e insolitamente disporia), esse sistema as paralisa, desaproveita

e destrói em uma proporção jamais igualada.

Tenho dado ênfase à afirmação de que o Capitalismo foi e é assim

desde seus albores até os nossos dias, apesar de que suas modalidades

de produções de produção, reprodução e antiprodução variem muito com

o tempo e os lugares nos quais operam o diferente tipo de Capital.

Perante uma assertiva deste porte, torna-se de radical importância precisar

quando e como este Modo começou e quais foram suas sucessivas ou

simultâneas transformações. Partindo do princípio de que o Capitalismo é uma

singular relação e composição de substâncias, energias, formas e

maquinaria, podemos admitir, seguindo alguns autores, que é possível

encontrar seus antecedentes nas formações histólicas dos séculos XII e XIII, e

dali em diante. Também é possível aceitar que sendo a economia mercantil, o

Estado, a vigência de uma sociedade institucionalizada, assim como de formas

sui generis de subjetividade, semiotização e parques maquínicos – condições

essenciais e existenciais de muitas formações históricas antigas –, as mesmas

podem ser consideradas como precursoras do Capitalismo. Pessoalmente,

tendo a considerá-las, à maneira de Marx e Engels, como formações pré

capitalistas.

O Capitalismo propriamente dito – cuja preparação se inicia com o fim

do Feudalismo e prossegue no decurso da Renascença, da Reforma e da

Contra-Reforma e das revoluções européias e norte-americanas – culmina com

a instauração da indústria manufatureira na Inglaterra, que é, em minha

opinião, a primeira expressão "verdadeira" do Capitalismo na História.

Nestas linhas, o nosso interesse está centrado em mostrar que as suas

peculiaridades essenciais estavam pré-figuradas, que continuam incólumes e

que as transformações acontecidas, responsáveis por nossa chegada a

esta "Fase Superior", embora sejam originalíssimas e necessitem

cuidadoso estudo, incluem, contudo, as anteriores, e não têm mudado em

sua essência desde aquelas até as contemporâneas. Esse esclarecimento

parece-me imprescindível para poder discriminar de forma convincente

que o "novo" do Capitalismo Mundial Integrado não implica uma

transformação substancial do "velho". Pelo contrário, o "novo"

197

Capitalismo é, em sua essência, muito pior que o anterior, razão pela qual

não justifica nenhum "otimismo", nem nos exime de nenhum tipo de luta

pela sua extinção.

Então, em suma, com uma modéstia conceitual exigida por esta síntese:

quais são as principais "novidades" apresentadas pela atual "Fase Superior"?

O processo da produção adquiriu, devido à revolução tecnológica e industrial,

uma velocidade e uma eficácia totalmente imprevisíveis para os teóricos do

século passado. As consequências dessa incrível aceleração consistem

principalmente no seguinte:

– A maquinaria da indústria extrativa, da agroindústria, da geradora de

produtos e serviços está transformando e diminuindo – gradual, porém

firmemente – a participação da força de trabalho "humana" nos processos

produtivos. A força de trabalho maquinal e a exploração da mais-valia

maquínica vão suplantando aquela humana, trazendo como consequência

desemprego, subemprego, emprego transitório e precário, processo esse cujo

aspecto jurídico se denomina "fIexibilização".

– Os grandes grupos empresariais, apesar de que seus ganhos, lucros e

renda parecem estar crescendo, empenham-se numa política de diminuição de

custos produtivos, de Capital fixo e variável. Algumas dessas manobras

consistem em descentralizar a produção de grandes complexos infra-

estruturais caros, transferindo a parte básica, ecologicamente "suja" e

altamente tributada nos países centrais, para os países periféricos, com" mão

de-obra" e impostos baratos.

– "Terceirização" contratual de segmentos da produção pouco rentáveis

para empresas menores ou para trabalhadores independentes, alguns dos

quais operam na economia informal ou em seus próprios domicílios, havendo

indiscriminação da jornada de trabalho e do tempo livre.

– Hiperespecialização e/ou fIexibilização dos poucos trabalhadores que

"permanecem" empregados com incentivos de produtividade, através da

participação nos lucros e na propriedade – via compra de ações minoritárias e

reciclagem contínua da capacitação técnica. Desse modo, formam-se elites ou

aristocracias de trabalhadores que passam a fazer parte do Capital fixo da

empresa, assumindo a identidade e os in teresses desta, desfiliando-se de

qualquer organismo de classe ou luta coletiva de defesa de suas reivindicações

198

trabalhistas. Multiplicação, mudança e anonimato crescente das sedes e

proprietários do Capital, que criam a ilusão participativa, ocultando sua

concentração e o poder decisório dos tecno burocratas que presidem e

gerenciam as estratégias empresariais.

– Ênfase na geração de produtos e serviços baseados na tecnologia de

ponta – informática, cibernética, telemática, robótica –, formados segundo

planos artificiosos e rapidamente "aperfeiçoáveis" que os tornam

imediatamente "perecíveis" e "descartáveis", obrigando a uma substituição

incessante.

Essas e muitas outras estratégias conduzem a uma divisão mundial

técnica, mas sobretudo econômico-social do trabalho, em que – diferente do

período imperialista fordista da produção – os ramos produtivos de bens e

serviços indispensáveis e "pesados", assim como aqueles que entram

subsidiariamente nos produtos e prestações altamente remuneráveis,

localizam-se nos setores mundiais "em vias de desenvolvimento". Esses

setores tornam-se, assim, participantes de baixíssimos custos e, ao mesmo

tempo, também mercados pobres – compradores de bens e prestações

relativamente obsoletos e encarecidos internacionalmente –, porém

complementares daqueles centrais já saturados. Um "fordismo periférico".

Os processos de ordenamento, distribuição, apropriação, troca,

consumo-consumação – que incluem os de financiamento,

comercialização, "fabricação" de necessidades e demandas (escassez,

falta, carência) – foram "hipertecnologizados" pelos grandes massa-

media e pela propaganda. Essa parafernália adquiriu os níveis máximos de

eficiência, velocidade, artifício e inutilidade relativa para o consumidor –

maiores ainda que os da produção de bens duráveis e não duráveis

propriamente ditos-, sendo o mais importante gerador de subjetividade conhecido na História.

Não por sua real eficiência, mas por sua necessidade expansiva, o

Capitalismo atual provocou a privatização, profissionalização e mercantilização

de "quase todos" os territórios e atividades recentemente não-lucrativos ou

considerados "gratuitos" ou "públicos". Alguns exemplos ilustrativos são os

que, até pouco tempo, eram próprios dos mecanismos de "reprodução

ampliada": tarefas familiares, aparatos e funções de Estado – energia, rede

199

viária, comunicações, moradias populares, transporte, saneamento básico,

saúde, segurança, educação e diversão "públicos", preservação e restauração

do "meio ambiente", seguros, previdência, operações administrativas e

contáveis, estabelecimentos carcerários e outros.

No chamado "mercado de capitais", o Capital financeiro, devido, entre

outras razões, ao caráter instantâneo da comunicação e da informática e à sua

subordinação a núcleos ubíquos, anônimos, às vezes dispersos e condensados

do Capital monetário, acionário, documentário, prolifera geometricamente –

sobretudo como empréstimo para as contas correntes dos países "em

desenvolvimento" ou emergentes. Como se sabe, os mesmos costumam ser

governados por demagogos, corruptos e incompetentes cuja gestão acaba

sempre em grande déficit – contraído em um montante de dívidas com juros

astronômicos, que compõem os investimentos da usura "flutuante",

"andorinha", transitórios, móveis, descomprometidos e quase sempre não

tributados. O lucro financeiro puro possui seu mecanismo mais pelverso nos

citados interesses e no refinanciamento eterno das dívidas externas e internas

dos Estados e empresas nacionais estatais, que elevam à enésima potência a

devolução da quantidade originariamente emprestada, sendo que, no caso das

dívidas externas do "Terceiro Mundo" por exemplo, esses empréstimos não

são nada mais que a mesma riqueza explorada pela força durante a conquista,

o Colonialismo e o Neo-Colonialismo, assim como capitais dos financistas do

próprio país que depositam seu dinheiro nos paraísos fiscais e o reinvestem

com o privilégio dado aos estrangeiros. Por outro lado, essa proliferação torna-

se infinita no chamado "Mercado de Futuros", onde se negociam matérias-

primas, produtos, divisas, títulos inexistentes.

A constituição de enormes e onipotentes monopólios nacionais ou

internacionais – legalmente formalizados, juridicamente dissimulados ou

simplesmente clandestinos, supostamente resultantes e defensores do

"Livre Mercado" e da omissão reguladora do Estado e de organismos da

sociedade civil – acaba por criar e regular à vontade as convenções de

custos e preços que regem esses mercados, assim como a qualidade e

quantidade de demanda e oferta, estritamente segundo seus interesses e

nunca segundo os dos consumidores e usuários.

200

A mencionada, reiteradas vezes, hegemonia do poder econômico – o

financeiro e o das grandes empresas – modula arbitrariamente os resultados

eleitorais ou porque tal poder é proprietário, ou porque é manipulador dos

meios de propaganda, ou ainda por causa do poder de seus lobbies sobre os

políticos e funcionários do Estado. Por sua vez, o Estado fomenta o surgimento

de cartórios eleitorais, clientelismo, fisiologismo, nepotismo, burocracia, e

domina a condução política das nações. Por outro lado, o doutrinamento

persuade, convence e corrompe o eleitorado em si mesmo, criando os vícios

conhecidos, entre outros, da compra de votos. Finalmente, o Capital, que como

explicamos, já dispõe de novos n,eios para reproduzir as condições de sua

existência e proliferação – produção de subjetividade, semióticas econômicas,

políticas, jurídicas, institucionais, culturais e libidinais incorporadas à sua

lógica-, está empenhado no desmonte, na privatização e re-significação da

estrutura e das funções do Estado. Esse processo se enfatiza na dissolução do

chamado Estado Beneficente ou Providencial – cujas atribuições são

demasiado onerosas para o Capital –, em crise no mundo inteiro. O

enfraquecimento do Estado realiza-se em nome da modernização, da

racionalização, da eficiência – o que não deixa de ter o seu sentido, dados os

vícios de "nascença" da máquina estatal. Não obstante, esse processo, a rigor,

objetiva a subordinação das soberanias nacionais e respectivas populações a

entidades supranacionais cujos paradigmas são o Fundo Monetário

lnternacional, a Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial.

Em última instância, não sem contradição, crises autofagicamente

resolvidas e também acontecimentos metamorfósicos irreversíveis e

incapturáveis – toda essa grande transformação que aponta para a assunção

voluntária e pacífica por parte de todos os agentes, sujeitos, indivíduos,

grupos, comunidades do Axioma que rege a Lógica do Capital – vêm se

impondo até o presente. Trata-se de implantar nas nações o regime

político da democracia indireta, representativa, competitiva e

heterogestionária, que permita prescindir dos recursos repressivos

clássicos, demasiado caros e ostensivamente "inumanos".

Esses regimes e seus sistemas de "representação" – num sentido

amplo de produção de subjetividade, o que segundo os clássicos

marxistas denominava-se "Democracia Burguesa" – são a garantia do

201

"bom comportamento" dos povos em questão. "Bom comportamento"

que implica uma administração completamente submetida ao Capital

transnacional – sobretudo o financeiro –, ao pagamento" correto" das

dívidas públicas externas, à privatização a preços baixos das empresas e

serviços

estatais, à "livre" radicação – ou seja, não tributada e salarialmente

flexibilizada – das empresas transnacionais e, finalmente, ao

compromisso incondicional com as alianças, sobretudo as bélicas, dos

países "guardiões" do patrimônio do Capital.

Ocorre, porém, que a construção da megamáquina planetária do

Capitalismo Global Integrado não pode prescindir por completo dos velhos

equipamentos, procedimentos, agentes e práticas que possibilitavam suas

modalidades clássicas de exploração, dominação e justificação. Tampouco

lhe foi possível eliminar totalmente as modalidades de resistência próprias

dos neoarcaísmos, tais como os regimes integralistas, fundamentalistas e

os totalitários – que o Capital supranacional fomenta quando lhe são

funcionais, e depois tenta substituí-los por democracias formais ou

nominais, sem dúvida mais "baratas" e mais favoráveis para a produção de

mercadorias e a apropriação de mercados. Por isso, o carro-chefe do

Capitalismo Mundial, os EUA, invadiu Panamá e Granada e tentou fazer o

mesmo com Cuba – sem o menor respeito pela autonomia que proclama-,

assim como subvencionou as piores ditaduras latino-americanas e

africanas, e também as do Oriente Médio, seja com dinheiro e armas, seja

com a famosa participação direta de seus "assessores" militares.

Por outro lado, o Capitalismo Planetário Integrado tem que lidar com

os movimentos separatistas – de inspiração socialista ou não –,

revolucionários ou genuinamente reformistas, de liberação das

singularidades raciais, nacionais, culturais, sexuais, etárias, ou pacifistas,

ambientalistas, de direitos humanos, religiosos e assim por diante.

Sem considerar essas observações como um estudo profundo da

contemporaneidade, no entanto suficientes para entender que, como dizia

anteriormente, se em alguns campos e setores parece que o balanço de todos

esses andamentos mostra alguns "progressos" estridentes, os indicadores de

exploração, dominação e mistificação sui generis dessa "Fase Superior"

202

são inequívocos sinais de um tremendo predomínio da reprodução e da

antiprodução sobre a produção possível e virtual da qual o mundo seria

potencialmente capaz hoje em dia.

A geração de um imenso contingente de excluídos da produção e do

consumo, dos não-inseridos nas instituições e organizações, despossuídos de

direitos e também de qualquer identidade-miseráveis, enfermos, analfabetos,

errantes, sem-terra, sem-casa, marginalizados, clandestinos, delinqüentes – é

mais que suficiente para diagnosticar e avaliar a situação mundial

contemporânea. A essa degradação e deterioramento, mais que expressivos

da degradação e destruição do "parque humano", temos que acrescentar a

destruição massiva da natureza, a modulação supérflua e luxuosa do

parque industrial, a banalização ou obscenidade da cultura, o crescimento

cancerigeno das megalópolis, o esvaziamento rural, o mau aproveitamento

das fontes energéticas e muito mais. Acredito que tudo isso já é conhecido

por demais e serve para caracterizar, sem dúvida alguma, o panorama

paradoxal e sinistro de decadência.

Quarta Parte

Se essa entidade que denominei Movimento Instituinte existe, apesar de

que duvido que ela mesma se reconheça como tal, acredito ser importante para

o seu destino introduzir uma pequena modificação no excelente conceito de

Capitalismo Planetário Integrado, como foi chamado por Félix Guattari.

Permito-me sugerir que seria melhor, talvez, denominá -lo de "Capitalismo

Planetário Integralizante". Pois "integrado" é um particípio passado e designa

um objetivo já conseguido, coisa que o Capitalismo contemporâneo ainda está

longe de alcançar,e vai depender de todos os institucionalistas para que não o

alcance.

Quero aqui parafrasear unia sentença do "Anti-Édipo" – texto

fundamental para o que denomino de Institucionalismo – que qualifica o

Capitalismo como sendo" a mescla bizarra de tudo aquilo no qual alguma vez

se acreditou com aquilo no qual nunca se acreditou verdadeiramente".

Decididamente, se esse modo não é um non plus ultra, tampouco se reduz,

como dizia Mão, a um "tigre de papel".

203

Todas as forças crítico-reformistas-revolucionárias que o enfrentam

atualmente estão num momento de trágico desânimo. O sistemático "fracasso"

– e escrevo fracasso entre aspas porque, como expressei em outra parte, "não

existe reparação possível para esse cataclismo, a não ser a convicção de uma

vitória sem fim"; que é quase o contrário de uma vitória futura final,

complemento adequado de uma derrota sempre presente" dos experimentos

socialistas às vezes impressionam como uma extenuação do élan

metamorfósico.

Dissemos anteriormente que o Capitalismo é a formação histórica que

conseguiu não apenas "superar" as crises, senão viver nelas e delas. É exa

tamente essa capacidade de adaptação plástica e ativa que faz com que a

lógica, a máquina abstrata geral e as micro-máquinas concretas pseudo

democráticas e cripto-fascistas do Capital sejam não tanto "ossos duros de

roer", mas uma espécie de protoplasma polimorfo e sobrevivente,

presuntivamente perene. Para poder pensá-lo – com a única finalidade de

combatê-lo – são indispensáveis novas maneiras de pensar, sentir, atuar.

O estudo dos grandes impérios históricos – o Chinês, o Egípcio, o Grego

de Alexandre Magno, o Romano, o de Carlos V, o de Napoleão, o do

"Socialismo Real" – mostra que sua decadência e sua queda não sobrevieram

do seu" exterior", mas" cresceram de dentro". O problema, porém, é que o

Capitalismo Planetário Integralizante não tem mais, rigorosamente falando,

"exterior" e "interior", no sentido geopolítico que essas palavras adquiriram

nesses enunciados. Não é que as contradições "internas" e "externas",

primárias, secundárias do Capitalismo não estejam vigentes e atuantes, mas

que, como também diziam Deleuze e Guattari, "ninguém nunca morreu de

contradição". Se há algo que ameaça a sobrevivência do Capitalismo, é a

potência do que Deleuze e Guattari chamam" Processo Produtivo Desejante",

Foucault designa como "Forças do Fora", Nietzsche denomina "Vontade de

Potência" e Bergson como "Realidade Virtual", fontes da invenção do

radicalmente novo, impensável e imprevisível. O Capitalismo é demasiado ágil,

hábil, elístico, ubíquo e versátil, e também sabe – e pode ir se adequando às

suas próprias contradições, declinação assintótica e indefinida que se

apresenta como "desenvolvimento", "progresso" e "evolução". Esse apresentar-

se não se explica apenas pelos efeitos da "ideologia", isto é, pela "redação",

204

difusão e apropriação de sistemas de representações "imaginárias" que

"falsificam" a realidade, e/ou se oferecem como fantasmas a serem animados

pelo desejo inconsciente ou pelos interesses pré-conscientes-conscientes dos

sujeitos-agentes, engendrando atitudes e ações conseqüentes. Não obstante a

"ideologia" siga cumprindo uma importante função nos circuitos pré-modernos

e ainda nos modelos de reprodução ampliada do Capitalismo, está ficando

evidente o que se passou a chamar – muito discutivelmente – de "cinismo" da

Pós-Modemidade Capitilista. Por "cinismo" se entende que o "espírito" do

Capitalismo Avançado – empregando literalmente a velha expressão de M.

Weber – já não se empenha demasiado em desconhecer nem ocultar os

mecanismos e efeitos de suas modalidades peculiares de exploração,

dominação e mistificação. Sobretudo esses últimos, os da mistificação, estão

sendo essencialmente reformulados. Essa não é uma" descoberta insólita", tal

como já a havia percebido W Reich quando, referindo-se ao nazismo, afirmava

que "o povo alemão não foi enganado". Sabia perfeitamente tudo aquilo que a

proposta do Terceiro Reich implicava.

As cúpulas proprietárias, as camarilhas tecno-burocráticas, as

vanguardas programadoras, deliberativas e executivas da megamáquina do

Capital sabem, com maior ou menor lucidez, que são "peças" de uma lógica –

ao mesmo tempo exuberante e letal – que as constitui em suas funções e dela

se vale. O extraordinário é que a assumem, a encarnam, e até a desejam,

sem iludir-se a respeito.

Os diversos estratos e segmentos da subjetividade e da sociabilidade, em

proporções e clarezas variáveis, também o sabem, assumem e desejam, e

assim o Parque Humano se divide entre os que possuem grandes

probabilidades de sobreviver, os que têm poucas e o enorme contingente que

não tem nenhuma. É notório, segundo o que se entende por sobreviver, que

cada um dos modos de subjetividade sente que contém cada uma dessas

divisões e contraposições dentro de si, afetando aspectos mais ou menos

sutis do que se entende por vida.

Não obstante a Psicanálise queira explicar esses efeitos como

expressão, por exemplo, da Pulsão de Morte ou do Masoquismo Primário, em

nível de estrutura e dinâmica dos sujeitos edipianos especificamente

205

considerados como objetos universais dessa disciplina, tal explicação tem

validade apenas para uma forma triunfante e dominante de subjetividade.

É preciso compreender que o que emerge enquanto subjetividades e

sócio-institucionalidades não são efeitos específicos e pontuais de mecanismos

"educacionais", "psíquicos", "culturais", "lingüísticos" ou "mediáticos", mas

afeções – como dizia Espinoza – operadas em conjunto pelo tipo de

maquinismo que modula prevalentemente o atravessamento dos territórios da

natureza, da sociedade, da subjetividade e das máquinéls dentro dessa

megamáquina.

Indivíduos, agentes, sujeitos, sócius, instituições, desejos, interesses,

práticas, éticas e estéticas são produzidos, reproduzidos e antiproduzidos

pela modalidade peculiar da imanência que se dá entre esses processos do

Capitalismo Planetário Integrado contemporâneo. Por isso, é importante

entender, por exemplo, o Estado, a Igreja, o Mercado, a Educação, o Trabalho,

o Tempo Livre como subjetivados – de certo modo – e as subjetividades como

"infundidas" por um Estado, Igreja e Mercado "íntimos contínuos" – como diria

Foucault.

Cabe ao Movimento lnstituinte – levando-se em conta sua suposta

infinita heterogeneidade interna e sua irrestrita abertura externa – inventar os

recursos e as práticas que possam empurrar o Capitalismo Mundial

Integralizante além de seus próprios limites, tornando-o permeável à irrupção

das forças do "fora" que são capazes, realmente, de transmutá-lo.

Quando lemos o panorama mundial, como procurei fazê-lo nestas linhas,

a rigor nos sentimos tentados, não apenas a perguntarmo-nos – de acordo com

a famosa fórmula – "Que Fazer" para transfomá-lo, senão antes interrogar:

"Como consegue manter-se hegemônico e aparentemente próspero sem nem

sequer esforçar-se demasiado em dissimular sua fragilidade e sua

contraprodução?"

Apesar de que a perplexidade dos pensadores críticos e gestores da

troca é ostensiva, devemos tomar consciência de que aquela dos experts e

condutores do Capitalismo não é menor. Ninguém é capaz de fazer predições a

médio e longo prazos acerca do futuro de cada "parte" e desse "todo"

infernalmente deletério. Justamente por isso é que nos resta apenas avaliar e

lutar, incessantemente, em TODOS OS LUGARES E AGORA.

206

NOTAS

1 – A definição rigorosa desses conceitos para torná-los acessíveis ao tipo

de leitor ao qual este texto se destina requereria um volumoso tratado à parte.

Para aproximar-se do entendimento de alguns deles, pode ser consultado o

Glossário deste Compêndio. De qualquer maneira, devo advertir que muitos

destes termos não são usados aqui no sentido estrito de sua bibliografia de

origem.

POST-SCRIPTUM

Janeiro de 1998

A releitura do apêndice anterior, escrito em 1995, suscitou em mim

impressões contraditórias. Se me atrevo a comentá-las com os leitores, não é

apenas – como espero seja possível apreciar mais adiante – por motivos

autocríticos e justificantes, contudo que esses também possam existir. Penso

que, como sempre acontece, os três últimos anos possam ter trazido

elementos para melhor avaliar a pertinência do que se poderia qualificar, com

benevolência, de cem e do que tentei dizer.

Essas páginas de 95 me parecem retorcidas, desgarradas e mutiladas

entre as exigências pedagógicas e sintéticas do texto, por um lado, e suas

pretensões analíticas, e até vaticinantes, exorbitantemente amplas, por outro;

acredito ter sido desde o início, e involuntariamente, insuficiente, assistemático,

às vezes pouco claro e, em geral, não suficientemente fundamentado. Tão

fortemente acredito nisso que decidi catalogar este escrito numa simpática

categoria inventada por um amigo, o filósofo brasileiro Peter Pal Pelbart,

segundo o qual o que estamos lendo não é um "ensaio", e sim um" globo de

ensaios". Não obstante, quero conceder-me os benefícios de um certo

paradoxal beneplácito.

Durante este tempo, à grave crise "civilizatória" mundial que muitos já

identificavam foi-se agregando uma crise econômica de incalculáveis

proporções que, pelo que entendo somente alguns poucos prenunciavam. Não

sei se é excesso de petulância incluir-me entre esses últimos, porém não pude

deixar de constatar que o "pessimismo" de cada página do "Apêndice" que

antecede a este post-scriptum insistia sobre esta predição.

207

A crise atual está em desenvolvimento – como o fato precedente do

ataque especulativo à lira italiana e à libra inglesa e o outro que afetou o

México – e engloba diretamente todos os "Tigres Asiáticos" – Malásia,

Tailândia, indonésia, Singapura, Hong Kong, Laos e, por último, Filipinas;

menos drasticamente, Japão, Coréia do Sul e, de outra forma, China e Taiwan;

e numa dimensão mais ou menos ameaçadora, todos os "capitalismos

emergentes", sendo que em outra, ainda indefinida, também as grandes

potências capitalistas. Esta é uma realidade clamorosa.

Obviamente, não cabe aqui uma análise excessivamente detalhada.

Permito-me fazer somente alguns comentários globais que podem reafirmar,

eventualmente, uma ou outra tese já postulada neste livro.

Em primeiro lugar, chama fortemente a atenção, sem ignorar diferenças

nacionais, a cômica discrepância que os economistas e outros especialistas

mostram quando tentam explicar esse fenômeno colossal que se iniciou com

uma dimensão regional. Começamos pela admissão do FMI de que "se

equivocou" na avaliação e condução desse assunto, tanto que está chegando

ao limite de sua disponibilidade financeira para" auxiliar" os falidos – isso

significa socorrer os investidores especulativos para que não percam seu

dinheiro. Vamos continuar observando muitos experts atribuírem à "falta de

dados" – porque ocultados ou distorcidos por parte das economias em questão

– a surpresa e a perplexidade que a catástrofe ocasionou. E mais: porque,

entre essesexperts, alguns atribuem o flagelo à cumulação de empréstimos

enviados aos países em crise, outros às suas falências bancárias ou à

desenfreada especulação imobiliária que ocorreu no seu território, ou ainda à

sobrevalorização de sua moeda, e assim sucessivamente... Ou a "todas" essas

causas juntas e a muitas outras. Essas explicações, a meu ver, podem reduzir-

se a três tipos:

– Ou esse é um erro regional de modelo, cálculo, planejamento que

implica dos povos até os governos – desde logo, com uma distribuição muito

desigual de responsabilidades.

– Ou essa é uma fraude de magnitude hemisférica e configuração

escalonada que vai desde os produtores-consumidores, passando por todos os

segmentos sociais, econômicos e políticos, até chegar aos organismos

208

internacionais – desde logo, com uma distribuição muito desigual de

responsabilidades.

– Ou se trata de um efeito processual, substancial, essencial e inerente

ao Capitalismo Planetário em via de lntegração.

Com respeito à primeira hipótese, no caso dela ser correta, o mínimo

que se pode considerar é que o destino do mundo está em mãos de

presunçosos incompetentes. Isso não implica "falha humana", senão

principalmente um erro radical sobre os meios de pensar a realidade. A

idoneidade da "Ciência Econômica" e da "Economia Política" oficial capitalista

não só é, em muito, inferior à da Meteorologia, mas nem sequer tem a

humildade de reconhecer o estatuto de interfase do sistema caótico ordenado

própria de seu "objeto".

O erudito "Científico-Presidente" do Brasil, FH. Cardoso foi feliz e sincero

quando, solicitado a opinar acerca das consequências da crise para a

economia do Brasil, respondeu: "Só Deus sabe."

Pelo que se refere à segunda hipótese, se acertada, temos que assumir

que o destino da humanidade este) nas mãos de delinquentes. Fica aberto o

tema da qualidade e gradualidade de imputabilidade de cada um dos

envolvidos e do acordo sobre o critério de legalidade segundo o qual devem

ser julgados (veja-se mais adiante.

Se a terceira hipótese está correta – e isso tem afirmado

constantemente nesse modesto e elementar livro-, resulta evidente que as

duas primeiras podem ser perfeitamente incluídas na última, porém, assim

como as três não são excludentes, tampouco são exaustivas. E também, mas

não somente, por estúpidos e ladrões que os agentes-sujeitos individuais e

coletivos do Capitalismo assumem os lugares, as funçôes e as práticas

segundo os quais a lógica da Máquina Abstrata do Capital os produz e aciona.

Está comprovado – e isso é o que tenho procurado, simplesmente,

lembrar aos leitores, uma vez que não precisa ser demonstrado porque já o foi

durante um século – que a sábia ignorância dos experts, tanto quanto a

desonestidade dos agentes e das entidades, não esgotam o repertório de

riscos que caracterizam as subjetividades capitalistas. O que mais nos deixa

pasmos e surpresos no espectro das mesmas é o cinismo, ao qual já nos

referimos reiteradamente; é preciso apenas definir, pelo menos parcialmente,

209

em que consiste este risco. Não se trata, é claro, de desconhecimento, nem

somente de uma tendência delituosa de transgredir ou ignorar a Lei – qualquer

que seja a Lei da qual estamos falando, especialmente se nos referimos a uma

abstração ou hipóstase que se costuma denominar "A Lei", com a qual os

psicanalistas e outros teóricos enchem a boca. Em um certo sentido, trata-se

de cumprir ao pé da letra as leis vigentes, ou de aproveitar os limites de seu

império e de suas falhas intersticiais para pô-la à serviço – às vezes

condicional, às vezes incondicional – da Axiomática do Capital, da qual a

ordem jurídica imperante é uma engrenagem perfeitamente coerente (vide a

plena vigência do Direito Positivo). A lógica dessa axiomática está, em última

instância, absolutamente em sintonia com a racionalidade ética e proposicional

das leis nacionais e internacionais – as propriamente jurídicas ou as "internas"

aos enunciados específicos disciplinares, científicos ou não. Excepcional e/ou

aparentemente, as leis se contrapôem a essa Lógica, ou como leis maiores

formais, "Direitos Humanos" que concretamente podem ou não podem ser

cumpridos dentro do que se chama hipocritamente" condições constitutivas,

direitos fundamentais ou reais" da formação da soberania em questão, ou

como leis menores – decretos, especificações, regulamentações, normas...

Os célebres conceitos e a análise foucaultianos acerca do

atravessamento entre os enunciados – as dizibilidades – e aquilo que o autor

chama visibilidades – os dispositivos do poder, imanentes ao jogo de forças de

uma formação histórica (por um lado), e o diagrama, complexo de forças

informais (por outro) – dão conta admiravelmente de alsrumas das maneiras

com as quais as funções de reprodução e antiprodução se realizam em cada

sistema.

Entre vários requisitos, essas montagens dão conta de conferir uma

certa inteligibilidade e um certo "moralismo" à Ordem Capitalista Constituída,

visando produzir as condições mínimas nas quais essa última possa subsistir –

e encontrando viabilidade, crescer –, garantindo sua reprodução simples e

ampliada tanto em seus aspectos econômicos como em todos os outros que já

mencionamos. Que o lado "progressista" dessas leis – tanto as "maiores",

puramente nominais, como as "menores", que resultam operantes somente

para matizar, mitigar ou amenizar os efeitos fundantes da Lógica do Capital –

expresse, em sua maioria, o resultado de heróicas e cruentas lutas da

210

humanidade, e como tais são admiráveis, não deve enganar ninguém.

Principalmente não deve tranqüilizar ninguém acerca da perfeição do modo

econômico e de seus rebrjmes – jurídico-político subjetivo e outros. Em sua

essência, não são nada mais que estratégias, especialmente aquelas que se

consideram concessões – geralmente tão inevitáveis quanto mínimas, bem

distantes dos "ideais", sempre considerados irrealizáveis. Essas concessões

são invariavelmente tardias e de aplicação sujeita ao horizonte do "possível",

supostamente apoiado por uma "realidade" que o panorama da Axiomática do

Capital delimita e modula. Ao menos numa vertente dominante de sua

essência, estão destinadas a desorganizar, desmobilizar, fragmentar e

recapturar as forças críticas e metamórficas, ou ainda, o que é mais astuto, a

implicá-las em dispositivos nos quais a modalidade organizativa e os objetos a

serem conquistados resultam relativamente irrelevantes e/ou absorvíveis pelo

Capital.

Um exemplo ilustrativo a esse respeito são as contendas entre os

partidários neoliberais do "Livre Mercado" e os defensores da "Regulação

Estatal". Os primeiros fazem uma apologia do individualismo, da imprensa livre

e da competição liberal e neoliberal, aos quais atribuem todos os méritos da

Modernidade – que, obviamente, sempre foi consubstancial ao Capitalismo,

pois não se conhece outra-, sem considerar os seus defeitos. “Os segundos

prescrevem uma quantidade maior" da mesma Lógica do Estado, que começou

muito antes daquela do Capital, possibilitou o seu começo e ainda lhe é

imprescindível.

Outro caso ilustrativo é a luta da economia de mercado e democracias

representativas contra as "massas ausentes", os neo-arcaísmos e o terrorismo.

O mérito relativo do pensamento de alguns autores, como Jean Baudrillard,

está na virtude de chamar a atenção – apesar de que unilateral e exagerada –

sobre a estratégia de resistência não consumista e eleitoral (indiferença dos

votantes) como "neutralização, omissa e passiva" das massas, complementada

pela irracionalidade monstruosa, "absurda" e intempestiva dos

fundamentalismos e do terrorismo. Essas estratégias, apesar de apresentarem

uma triste originalidade, não deixam de ser uma resposta cega às manobras

orquestradas pela Máquina Abstrata do Capital, habilmente engenhada para

propor e propiciar contendas, de maneira que os explorados, dominados e

211

mistificados" comprem a briga", como se diz pitorescamente falando, isto é,"

entrem numa provocação desviante".

Perante essa constelação, não é pleonástico repetir que o processo do

Capital não constitui uma unidade monolítica, e muito menos estática. Não

somente ao nível das contradições antagônicas e agônicas do que Deleuze e

Guattari chamam de "Superfície de Registro e Controle" composta por

territórios, segmentos, instituições, organizações, agentes dotados de uma

identidade mais ou menos precisa e circunscrita. Veja-se, senão, a ferocidade

das contraposições recentes e suas conseqÜências entre o Capital Financeiro

"apátrida" volátil, o Industrial e o Latifundiário – tanto nos domínios "globais"

como nos regionais, nacionais, locais. Mas "ninguém morreu de contradições".

A imanência entre as potências e processos de desterritolialização e

reterritorialização capitalistas movimenta-se sem cessar, com uma velocidade

que passa de geométrica para exponencial. Assim, apenas descritivamente, o

mundo atual é um poliverso vertiginoso, proteiforme, heterogêneo, heteromorfo,

heteróclito e bizarro de colisões, que vão desde o preciso até o indecidível,

mas que têm aprendido a viver em crise e da crise.

É claro que espero e desejo fervorosamen te ser explícito dizendo isso,

sem a menor intenção de desvalorizar nenhuma forma de luta tradicional ou

nova que as forças da Vida vão inventando, como infinitos agenciamentos e

acontecimentos no seu combate contra as equações variáveis de reprodução e

antiprodução do Capital. "Todas" as Máquinas de Guerra e as Linhas de Fuga

simultaneamente econômicas, políticas, jurídicas, filosóficas, científicas,

artísticas, idiossincrásicas – na medida em que são individuações, expressões

de singularidades intensivas –, e mais enfaticamente, suas transversalidades,

conexões disjuntivas inclusas, sinérgicas e potencializantes, seu entusiasmo e

sua alegria – como dizia Espinoza – foram, são e serão "o sal da terra". As

preocupações dos militantes acerca do grau de capacidade de recuperação

que o Capital exerce sobre as mesmas geralmente não são mais do que

hesitações compreensíveis, porém acidentais, devido tanto às resistências que

minam o processo de suas façanhas quanto à dureza de suas vicissitudes.

Diante de tudo isso, o pouco que proponho enfatizar aqui pode se resumir,

creio eu, da seguinte maneira:

212

Os militantes e pensadores instituintes contemporâneos passam por

divergências e discussões dilemáticas – que freqüentem ente os dissociam nas

suas campanhas – acerca de se a luta deve dar-se a partir de dentro ou de fora

das organizações do Estado, do Capital ou da chamada Sociedade Civil (a

esse respeito, vejam-se os memoráveis capítulos da "Revolução Molecular" de

F. Guattari, os de "O Estado e o Inconsciente" de René Loureau e até alguns

capítulos deste livro). Outro desses dilemas é o já célebre que se trava entre os

"reformistas" e os poucos "revolucionários" que ainda sobraram – seja como for

que se defina revolução. No espectro que vai do pólo dos" apocalípticos", por

um lado, aos "integrados" – bem intencionados – por outro, existem

inumeráveis posições intermediárias que dão espaço a quantas vontades de

transformação seja possível imaginar assim como às melhores delas, que são

as que escapam a toda imaginação. Cabe, porém, reforçar que a reivindicação

idiossincrásica nunca acaba de propagar-se como uma onda extensiva, entre

outras razões porque insiste em enfatizar-se como intensiva, confundindo

singularidade com isolamento, linha de fuga com evasão, ubiquidade com

fragmentação dispersiva. Em consequência disso, tanto os movimentos

chamados "Alternativos" quanto a Esquerda tradicional parecem perder de

vista os macro indicadores inequívocos da deterioração do "todo" capitalista,

que consegue manter-se porque a única classe verdadeiramente universal é a

burguesia.

Contudo, se me permitem uma digressão, antes de concluir com uma

nova tentativa de síntese, acrescentarei quanto segue. Rememoro que em

minha juventude, quando estudava a crítica marxista da Economia Política,

tinha sérias dificuldades para entender tanto o conceito da tendência à

diminuição da taxa de extração da mais-valia quanto a contestação que os

economistas positivistas faziam a essa teoria. O argumento principal, se me

lembro bem, baseava-se na tese de que tal indicador era in1possível de ser

medido empiricamente; e por ser uma hipótese de "alto nível", inviável quanto à

operacionalização, verificação e falseamento; por isso carecia de sentido

epistemológico.

Em função do que foi exposto acerca da crise presente, reiterarei que no

momento a mesma tem respeitado, de forma aceitável, somente a nação que

continua sendo o assento das maiores sedes centrais do Capital mundial,

213

assim como de seu principal aparato bélico-repressivo: os EUA. O crescimento

de quase 4% de sua economia em 97 e o decréscimo de seus índices de

desemprego, déficit interno e externo, apesar de que isso não o exonere

inteiramente das consequências imediatas da crise, não faz senão demonstrar

o uso extorsivo que sabe fazer de sua hegemonia política – em grotesco

contraste com suas declarações neoliberais de "livre-mercado" e de

democracia. Também Alemanha, Canadá, França e Reino Unido, Itália e

Espanha mantêm-se relativamente estáveis, mesmo que todos os países

enumerados apresentem altíssimos índices de desemprego – com mais ou

menos proteção estatal-, discretos indicadores de crescimento econômico e

variados sinais de decomposição social e subjetiva.

Lembrarei também que alguns adora dores do neoliberalismo, bastante

afetados por essa debacle setorial insuspeita, empenham-se em reivindicar

que, apesar de tudo, o modo capitalista e seu Sistema Democrático Nominal

conseguiram, desde a Segunda Guerra Mundial até hoje, o milagre inédito de

reduzir em quase 50% a pobreza asiática. Essa afirmação adquire relevância

pelo contraste com a decadência dos países do ex-bloco do Socialismo real, o

qual, como é notório, está em pleno declínio. De outro lado, sustentam que

apesar da instabilidade persistente, a intervenção dos países prósperos e dos

organismos internacionais já está dando conta de controlar a onda de

falências,moratórias e outros flagelos. As excelsas democracias capitalistas "se

ajudam".

Diante dessas afirmações, torna-se importante esclarecer que, em

primeiro lugar, Alemanha, Japão e Itália começaram seu crescimento a partir

da inversão massiva do Capital "aliado" – novas versões do Plano Marshall e

da 'Aliança para o Progresso" – e nas condições políticas severamen te

repressivas das nações derrotadas e "ocupadas". Em segundo lugar,é

apropriado pontuar que boa parte do desenvolvimento dos "Tigres Asiáticos"

processou-se sob governos ditatoriais e autoritários, como Coréia e Vietnã, e

teve uma base de lançamento nada depreciável, pelo fato de serem aliados

dos países centrais nas guerras anticomunistas. Por último: como não requerer

(apenas porque não sei se isso já foi feito) um levantamento cuidadoso e

verídico dos coeficientes de concentração de riquezas que têm sido

realizados e perpetrados nesses países, mesnlO que uma parte dessa riqueza

214

tenha sido destinada "humanitariamente" à geração de força de trabalho

cnpacitada e eficiente e de condições de governabilidade? Que papel cumpre,

nas falências atuais, a fuga desse Capital acumulado, destinado a inversões

especulativas em outros mercados mais lucrativos e/ou estáveis?

Alguns famosos economistas acabam de declarar, por exemplo, que não

precisamos nos preocupar demasiado com as falências generalizadas. Afinal,

"é bom que as coisas se precipitem, porque assim a economia mundial se

corrige e ajusta". Outros têm manifestado que, ao final, a parte do Produto

Bruto Mundial correspondente aos países estremecidos pelo "sismo" alcança

somente 6 ou 7% do total mundial. Ironizam, assim, os mecanismos de

"contágio" sofrido por aqueles que atribuem maior importância às falências e

desencadeiam" corridas" na Bolsa...

Ora: que Economia Mundial é essa que entra em pânico por um

"acidente" que afeta apenas 7% de sua produtividade anual? O verdadeiro

pavor não consistirá de fato em que uma das suas derivações pode ser a

estrepitosa baixa de preços dos produtos asiáticos (dumping) e o perigo

iminente de benefício dos consumidores e prejuízo dos inversores? A quais

maldades políticas terá que se apelar para evitar essa presuntiva "injusta" festa

dos compradores? Com certeza não será "democrática" nem "livre-

empresista". A iminência da segunda Guerra do Golfo e da terceira Mundial

não é apenas hipótese de ficção científica.

Em síntese: os mais lúcidos afirmam que a presente crise é, como se diz

eufemisticamente, "estrutural", e se funda, "em última instância", no predomínio

nebuloso do Capital Financeiro mundial – completamente independente de sua

base material – e sua desregulação total, que em vão se reclama limitar jurídica

e institucionalmente.

Como explicar esse império inquestionável a não ser pelas

peculiaridades da globalização, que não é outra coisa mais que o pleno reinado

universal – ostensivo, estridente, descarado – da Máquina Abstrata do Capital

e sua Axiomática Suprema?

O que manda é o Equivalente Geral, suas formas monetárias e

informáhcas, subordinando à sua força quase tudo que existe como realizado

no horizonte do existente.

215

Pelo fato que já mencionamos antes dessa interessante questão da

correlação inequívoca entre ética, "liberdade" mercadológica e "liberdades"

políticas e humanas, não é apaixonante que a Suíça – país que deve uma

parte indefinida de sua prosperidade aos depósitos bancários de boa parte dos

capitais "espúrios" do mundo: evasão tributária, ditatoriais, narcotraficantes,

mafiosos e delinquenciais em geral – tenha um sistema político dotado de

Assembléias Populares Comunitárias Cantonais?! A "plena" democracia suíça

"perpetrou" um plebiscito, segundo o qual votou se a favor de continuar

mantendo o segredo sobre suas contas bancárias. A hegemonia da Axiomática

do Capital consegue, às vezes, incorporar tanto os Círculos de Qualidade

japoneses como a Autogestão!

Segundo me parece, existem algumas outras perguntas-chave que

precisamos nos fazer nessas circunstâncias, sem descartá-las por serem

ingênuas e menos procedentes. São as seguintes: por que tomar como

referência comparativa e justificante das excelências liberais o Socialismo real

– cujas diferenças com um Capitalismo de Estado é um tema ainda digno de

muita polêmica? Por que confiar na "natural" afinidade entre Capitalismo e

Democracia Nominal, sendo que vários dos mencionados "desenvolvimentos"

capitalistas realiza ram-se duran te regimes cripto ou ostensivamente

despóticos – veja-se em outro contexto geopolítico a trajetória do Chile e do

Peru. Quanto custará ao povo desses países "novos ricos" quebrados a

hipoteca dos anos vindouros, que é o preço de sua futura "recuperação"? Se

os experts e seus organismos têm sido incapazes de conhecer as cifras

necessárias ou de elaborar os modelos e as simulações que lhes perm.itiriam

predizer essa "quebradeira", por que devemos acreditar que são ou serão

aptos a quantificar, de forma convincente, tanto as vantagens do caminho

capitalista "eleito" quanto o montante exigido para sua recuperação? Pelo visto,

não é somente a tendência para a queda da taxa de extração da mais-valia o

que não se pode mensurar!!!

Como já advertiram Deleuze e Guattari, tanto as empresas nacionais e

transnacionais quanto os organismos estatais e supra-estatais

operacionalizaram seus "modelos" predominantemente com base em

movimentos táticos de "invenções" e "sangrias". Movimentos esses

invariavelmente improvisados e incidentais, cuja previsibilidade e precisão

216

brilham pela ausência e são decididamente contrárias à imagem de onipotência

e sapiência das quais essas entidades fazem propaganda.

Como último argumento, existe o hábito de invocar o sereno bem estar

da Suécia, Noruega, Holanda, Dinamarca, Finlândia e alguns outros países

com fabulosos índices de saúde e educação, sem considerar com profundidade

que a tal prosperidade é fruto da participação dessas nações na espoliação

colonial e neocolonial e da inexistência de bloqueios sobre suas economias.

Que Cuba, com o embargo que dura mais de três décadas e oprimida por uma

"Ditadura do Proletariado", obteve índices parecidos, ajuda a demonstrar que,

por bem ou por mal, não tem muita diferença entre as variedades de

Capitalismo e de Socialismo real. O ceme do problema – por mais pobres e

óbvias em que essas observações resultem – reside no seguinte:

– Não se deve confundir a lógica dos processos que Deleuze e Guattari

chamam" Produtivos, Desejantes, Revolucionários" – que são o "motor" da

Produção ou a Produção em si – com aquela dos reprodu ti vos e

antiprodutivos. Não se pode dizer que os dois segundos sejam absolutamente

contraproducentes e elimináveis, mas devem estar, porém, rigorosamente

subordinados ao primeiro.

– Não se deve confundir a morfologia e a dinâmica das instituições,

organizações, estabelecimentos, equipamentos, semióticas, sujeitos, agentes e

práticas, isto é, os componentes territorializados, estratificados, hierarquizados,

e assim por diante, que constituem os domínios do real, do possível e do

impossível, com o âmbito do virtual atualizável.

– Não se deve confundir a democracia indireta e representativa liberal,

neoliberal, social-democrata ou socialista "soft", ou ainda a "popular", nem o

saber e o poder de seus políticos profissionais e tecno burocratas, nem

tampouco a "participação" na democracia direta, com a auto-análise e a auto-

gestão, quaisquer que sejam as modalidades históricas que os dois termos

dessa diferenciação adotem.

– Não se deve confundir – mesmo levando-se em conta as singulari

dades históricas das citadas modalidades – a separação entre meios e fins que

é própria da ética dos modos e sistemas capitalistas com a imanência entre

meios e fins que é consubstancial à ética das Utopias Ativas do Movimento

Instituinte.

217

– Não se pode esquecer jamais, quaisquer que sejam as limitações,

mimetizações e vacilações estratégicas, logísticas, táticas ou técnicas

históricas de cada iniciativa produtiva-desejante-revolucionária, que nunca o

"espírito" das mesmas esteve melhor resumido que na deslumbrante fórmula –

" A cada um segundo suas capacidades e a todos segundo suas

necessidades" .

Folgo em dizer que o incremento das forças produtivas de todos os tipos

– incluídas as forças teóricas e expressivas – mostra que este enunciado pode

e poderá ser formulado de infinitas novas maneiras, e que isso exige aplicar às

definições de capacidades e de necessidades uma coerência com os valores

supremos aqui repetidamente postulados.

Para terminar, uma variação que me ocorre para a palavra-de-ordem da

citada consigna libertá ria é a seguinte:

''A cada qual segundo suas capacidades de lograr que – a todos

segundo suas necessidades – seja uma necessidade para todos e um desafio

para cada um."

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

Organizada em progressão crescente de possíveis dificuldades de leitura:

"Apresentação do Movimento Institucionalista", G. Baremblitt, in:

"Saude loucura" nOl, coord. A. Lancetti. Ed. Hucitec, São Paulo, 1989.

"O Inconsciente Institucional", coord. G. Baremblitt, apresentação e introdução.

Ed. Vozes, Petrópolis, 1984.

''Análise Institucional: Teoria e Prática", vários autores, in: Revista Vozes n° 4.

Ed. Vozes, Petrópolis, 1973.

''Análise Institucional no Brasil", V R. Kankhagi e O. Saidon (org.). Ed. Espaço e

Tempo, Rio de Janeiro, 1987.

''Alguns elementos teoricos para pensar Ia cuestion de Ias derechos humanos y

Ia violencia institucional", in: "Saber, Poder, Quehacer y Deseo", G. Baremblitt.

Ed. Nueva Vision, Buenos Aires, 1988.

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"[Analyse Institu tionnelle", M. Autlúer e R. Hess. Ed. Presses Universitaires de

France, Paris, 1981.

"Grupos, Organizações e Instituições", G. Lapassade. Ed. Francisco Alves, Rio

de Janeiro, 1977.

"EI Sociopsicoanalisis Institucional", G. Mendel, in: "La Intervencion

Institucional", J. Ardoino (org). Ed. Falias, México, 1979.

"Sociopsicoanalisis lnstitucional", tomos 1 e 2, G. Mendel. Ed. Amorrortu,

BuenosAires, 1973.

'A Análise lnstitucional", R. Lourau. Ed Vozes, Petrópolis, 1975.

"EI Analisis lnstitucional". G. Lapassade, R. Lourau et aI. Ed. Campo Abierto,

Madri, 1977.

"EI Analizador y el Analista", C. Lapassade. Ed. Cedisa, Barcelona, 1971.

'Analisis Institucional y Socioanalisis", R. Lourau et ill. Ed Nuevillmagen,

México, 1973.

"LAnalyses InstitucionnelJe en Crise?", J. Cuigon (coord.), in: Rev. Pour, n° 62-

63, Paris, 1978.

'Autogestão: Uma Mudança Radical", A. Cuillerm e Y. Bourdet. Ed. Zahar, Rio

de Janeiro, 1976.

"Participacion y Autogestion", L. Tomasetta. Ed. Amorrortu, Buenos Aires,

1975.

"Psicoanalisis y TransversaJidad", F Cuattari. Ed. Sigla XXI, Buenos Aires,

1976.

'A Revolução Molecular", F Cuattilri. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1981.

"O Inconsciente Maquínico", F Cuattari. Ed. Papirus, Campinas, 1988.

"Micropolítica – Cartografias do Desejo", F Cuattari e S. Rolnik. Ed. Vozes,

Petrópolis, 1986.

'As Três Ecologias", F Cua ttari. Ed. Papirus, Campinas, 1988.

"O Anti-Édipo", G. Deleuze e F Cuattari. Ed.lmago, Rio de Janeiro, 1976.

"Mil Platôs", G. Deleuze e F Cuattari. Ed. Pre-Textos, Valência, 1988.

BIBLIOGRAFIA DE CONSULTA

A bibliografia de consulta é vastíssima e pode ser classificada de acordo

com a maior ou menor proximidade que tenha com a linha teórico-prática

219

adotada neste livro. Os textos aqui classificados são apenas os mais

próximos, e não pretendem, em absoluto, esgotar a lista dos possíveis.

Por motivo de focalização, excluímos da literatura concernente à

antipsiquiatria, à psicologia organizacional e à psicologia grupal.

Obras de Georges Lapassade:

"Chaves da Sociologia", em colaboração com R. Lourau. Ed. Civilização

Brasileira, Rio de Janeiro, 1972.

"La Entrada en Ia Vida". Ed. Fundamentos, Madri, 1973. 'Au togestion

Pedagógica". Ed. Cranica, Barcelona, 1977. "La Bio-Energia". Ed. Cedisa,

Barcelona, 1978.

"Socioanalisis y Potencial Hun'1ano". Ed. Cedisa, Barcelona, 19~O.

Obras de Gérard Mendel:

"La Rebelion contra el Padre". Ed. Península, Barcelona, 1975, 2ª ed. "La Crisis

e Ias Ceneraciones". Ed. Península, Barcelona, 1972. "La Descolonizacion dei

Niíi.o". Ed. Ariel, Barcelona, 1974.

"EI Manifesto de Ia Educación". Ed. Siglo XXI, Madri, 1975. 'Anthropologie

Diffierentielle", Ed. Payot, Paris, 1972.

"l.:Angoise Atomique et les Centrales Nucléaires". Ed. Payot,1975. "Pour une

autre Societé". Ed. Payot, Paris, 1975.

"La Classe lnstitu tionnelle". Ed. Payot, Paris, 1977.

"Quand plus rien ne va de soi". Ed. R. Lafont, Paris, 1981. "Enquete par un

Psychanalyste sur Lui-Même". Ed. Stock, Paris, 1981.

207 "54 Millions d'Inclivid us sans Appartenance" . Ed. R. Lafon t, Paris, 1983.

"La Crise est Poli tique, Ia Poli tique est en Crise". Ed Payot, Paris, 1985. "On

est Toujours l'Enfant de son Siecle". Ed. R. Lafont, Paris, 1986.

Obras de Gilles Deleuze:

"Para Ler Kant". Ed. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1976. "Empirismo y

Subjetividad". Ed. Granica, Barcelona, 1977. "Diferença e Repetição". Ed.

Graal, Rio de Janeiro, 1988. 'Apresentação de Sacher Masoch". Livraria Taurus

Editora, Rio de Janeiro, 1983.

"Proust e os Signos". Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1987.

"Nietzsche". Edições 70, Lisboa/1981.

220

"Nietzsche y Ia Filosofia". Ed. Anagrama, Barcelona, 1971. "Lót,rica do

Sentido". Ed. Perspectiva, São Paulo, 1974.

"Kafka/ por uma Literatura Menor", em colaboração com F. Guattari. Ed. Imago,

Rio de Janeiro, 1977.

"Diálogos", em colaboração com C. Parnet. Ed. Pre-Textos, Valência,19bO.

"EI Bergsonismo". Ed. Catedra, Madri, 1987.

"Spinoza: Filosofia PréÍctica". Ed. Tusquets, Barcelona, 1984.

"La Imagen-Movim.iento", Estuclios 1 y 2. Ed. Pa.idos, Barcelona, 1984.

"Foucault". Ed. Paidos, BuenosAires, 1987.

"Pericles y Verdi". Ed. Pre-Textos, Valência, 1989.

"EI Pliegue". Ed. Paidos, Buenos Aires, 1989.

"Espinosa e os Signos". Ed. Res, Porto, 1975.

"Spinoza y el Problema de Ia Expresión". Ed. Muchik, Barcelona, 1975.

"Politique et Psychanalyse", com F. Gua ttari. Ed. Des Mots Perdus,

Alençon,1977.

"Los Equipamentos de Poder", F Fourquet e L. Murad. Ed. G. Gill, Barcelona,

1976.

"Deleuze e a Filosofia", R. Machado. Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1990.

Obras de René Lourau:

"LInstituant Centre I..:Institué". Ed. Antrophos, Paris, 1969. "I..:Illusion

Pédagogique". Ed. I..:epi, Paris, 1969.

'Analyse Institutionnelle ei Pédagogie". Ed. I..:epi, Paris, 1971. "Les Analyseurs

de l'Église". Ed. Antrophos, Paris, 1972.

"Le Analyseur'Lip"'. Ed. UGE 10/18, 1974.

"Sociologue a Plein Temps". Ed. I..:épi, Paris, 1976.

"Le Gai Savoir des Sociologues". Ed. UGE 10/18,1977. "EI Estado y ei

Inconciente". Ed. Kairos, Barcelona, 1979. 'Autodissolusion des Avant-Gardes".

Ed. Galilée, 1980. "Les Lapsus des Intellectuels". Ed. Privat, Toulouse, 1981.

208

Obras de outros autores

"Psychiatrie et Psychothérapie Institutionnelle", J. Oury. Ed. Payot,

Paris, 1976.

"Hacia una .Pedagogia dei Siglo XX". F. Oury e A. Vasquez. Ed. Siglo XXI,

México, 1974, 3ª ed.

221

"Introduccion a Ia Terapia Institucional", J. Chazaud. Ed. Paidos,

Barcelona, 1980.

"EI Psicoanalisis delas Organizaciones", R. de Board. Ed. Paidos,

Buenos Aires, 1980.

'A Reprodução", P. Bordieu e J. C. Passeron. Ed. F. Alves. Rio de

Janeiro, 1975.

"Organizações Modernas", A. Etzioni. Ed. Pioneira, São Paulo, 1976. "O

Adoecer Psíquico do Subproletariado", W C. Castilho Pereira. Ed. Segrac, Belo

Horizonte, 1990.

"Nuevos Escritos", L. A1thusser. Ed. Laia, Barcelona, 1978. "Ideologia y

Aparatos Ideologicos de Estado", L. A1thusser. Ficha de Ia Nueva Vision,

Buenos Aires, 1971.

"Instituição e Poder", J. A. Guilhon Albuquerque. Ed. Graal, Rio de Janeiro,

1980.

"Metáforas da Desordem", J. A. Guilhon Albuquerque. Ed. Paz e

Terra, Rio de Janeiro, 1978.

"Metáforas do Poder", J. A. Guilhon Albuquerque. Ed. Achiamé

Socii, Rio de Janeiro, 1980.

"Sexualidade na Instituição Asilar", J. Birman. Ed. Achiamé/Socii,

Rio de Janeiro, 1980.

"La Teoria de Ia Institucion y de Ia Fundación", M. Haurion. Ed. Abeledo-Perrot,

BuenosAires, 1968.

"Perspectives de l' Analyse Institutionnelle", coord. A. Savoye e R. Hess. Ed.

Meridiens Klinscksieck, Paris, 1988.

"Psicohigiene y Psicologia Institucional", J. Bleger. Ed. Paidos, Buenos Aires,

1966.

"Los Sistemas Sociales como Defensa contra Ia Ansiedad", L Menzies y E.

Jaques. Ed. Horme, Buenos Aires, 1969. "Contrainstitucion y Grupos", A.

Bauleo. Ed. Fundamentos, Madri, 1977.

"Psicologia de Ias Instituciones", F. Ulloa, in: Revista de Psicoanalisis, tomo

XXVI, nº 1, Buenos Aires, jan./mar. 1969. "Emergentes de una Psicologia

Social Sumergida", A. Scherzer. Ed. de Ia Banda Oriental, Montevidéu, 1987.

"Salud Mental y rrabajo", coord, M. Matrajt. UAM, Cuernavaca, 1986.

"Replanteo", M. Matrajt. Ed. Nevomar, México, 1985. "Subjetividad. Grupalidad.

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Identificaciones", J. C. De Brasi. Ed Busqueda Grupo Cero, Buenos Aires,

1990.

"Infâncias Perdidas – O Cotidiano nos Internatos", S. Altoé. Ed. Xenon, Rio de

Janeiro, 1990.

"m Proceso Grupal – Dei Psicoanalisis a Ia Psicologia Social", tomos 1 e 2, E.

Pichon-Riviére. Ed. Nueva Vision, BuenosAires, 4ª ed.1978. ''A Pesquisa-Ação

na Instituição Educativa", R. Barhier. Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1985."

Les Méres "Fol1es" de Ia Place de Mui", A. Martin. Ed. Renaudot, Paris, 1989.

Periódicos;

Bul1etin de Ia Societé D' Analyse Institutionnel1e. Ed. SAI, Paris, cerca de 20

números.

Revista Autogestions. Ed. Privat, Toulouse, cerca de 30 números. Revista

Connexions. Ed. Epi, Paris, cerca de 30 números.

Revista Sociopsychanalyse. Ed. Payot, Paris, cerca de 20 números. Revista Lo

Grupal. Ed. Busqueda, Buenos Aires, oito números. Revista Saudeloucura,

coord. A. Lancetti, quatro números. Fd. Hucitec, São Paulo.

''As Instituições e os Discursos". Revista Tempo Brasileiro n° 35. Ed. Tempo

Brasileiro, Rio de Janeiro, 1974.

"Sociopsicoanalisis e Institucion", Ed. Hogar deI Libro, Barcelona, 1984.

O AUTOR

Da formação em Psiquiatria à militância junto ao Movimento Instituinte

Internacional, Gregorio F. Baremblitt vem traçando um longo e fecundo

percurso como médico psiquiatra, psicoterapeuta, professor, pesquisador,

analista e interventor institucional, esquizoanalista, esquizodramatista e escritor

em diversos países da América Latina e Europa. Esse percurso teve início há

40 anos, na Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de Buenos Aires,

223

da qual é livre-docente, e foi-se tornando mais rico e complexo a cada

momento em que o médico buscou o cruzamento da Medicina com outras

áreas. Movido pela inquietação daqueles que não se contentam com o conforto

garantido pelo reconhecimento dado aos especialistas consagrados, Gregorio

Baremblitt buscou sempre expandir sua atuação até as fronteiras da Medicina

com a Política, a Sociologia, a Filosofia, a Arte e também os saberes

populares. Esse olhar generoso e ao mesmo tempo rigoroso sobre os saberes

e fazeres do mundo contemporâneo tem rendido não apenas uma ampla

produção intelectual, mas também diversas ações nos planos de coletivos

diversos: em 1970, Gregorio foi membro-fundador do grupo psicanalítico

argentino denominado Plataforma, primeira organização no mundo separada

da Associação Psicanalítica Internacional por motivos políticos. Ao se

estabelecer no Brasil em 1977, fundou, no Rio de Janeiro e em São Paulo, o

Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições (Ibrapsi), e o Instituto

Félix Guattari de Belo Horizonte, do qual é atualmente o coordenador-geral.

Sua atuação no campo da saúde mental inspirou outros profissionais a criarem

a Fundação Gregorio Baremblitt, em Uberaba (MG), uma das primeiras

entidades do país a instituir formas de tratamento mental em sintonia com os

ideais da Luta Antimanicomial. Gregorio é autor de numerosos livros e artigos

científicos e organizador de seis congressos internacionais em sua área de

atuação. Este Compêndio é fruto de um grande esforço para traduzir as

temáticas, correntes e questões do Movimento Instituinte para aqueles que

estão iniciando seus estudos e ações nesse campo, sempre ancorados em

duas palavras-chave: auto-análise e autogestão.

OUTRAS OBRAS DO AUTOR

"Introdução à Esquizoanálise". Ed. Instituto Félix Guattari, Belo Horizonte,

1998.

"Lacantroças". Ed. Hucitec, São Paulo. Traduzido para o espanhol. "Cinco

Lições sobre a Transferência". Ed. Hucitec, São Paulo, 1991. "Saber, Poder,

Quehacer yDeseo". Ed. Nueva Vision, Buenos Aires, 1988. ''Ato Psicanalítico,

Ato Político". Ed. Segrac, Belo Horizonte, 1987.

"O Inconsciente Institucional", em colaboração com outros autores. Ed. Vozes,

Petrópolis, 1984. Traduzido para o espanhol.

224

"Grupos, Teoria e Técnica", em colaboração com outros autores. Ed. Graal

Ibrapsi, Rio de Janeiro, 1982.

"La Cura". Ed. Universidade Autônoma do México, Cidade do México, 1980.

"Progressos e Retrocessos em Psiquiatria e Psicanálise". Ed. Global Ground,

Rio de Janeiro, 1978.

"La Interpretacion de los Suenos: Una Técnica Olvidada", em colaboração com

outros autores. Ed. Helguero, Buenos Aires, 1976.

"El Concepto de Realidad en Psicoanalisis", em colaboração com outros

autores. Ed. Socioanalisis, BuenosAires, 1974.

"Psicoanalisis: Teoria y Practica", em colaboração comM. Matrajt. Ed. Centro

Editor Latinoamericano, Buenos Aires, 1972.

"Cuestionamos", em colaboração com outros autores. Ed. Busqueda, Buenos

Aires,1971.

Há também numerosos prólogos e artigos publicados em revistas científicas,

culturais, livros e jornais da América Latina e Europa.

212

INSTITUTO FÉLIX GUATTARI DE BELO HORIZONTE

O Instituto Félix Guattari de Belo Horizonte (MG) é uma organização não-

governamental fundada no ano de 1996. Seu nome é uma homenagem ao

célebre intelectual e militante francês Félix Guattari, e suas atividades têm

como inspiração a Utopia Ativa que guia a obra de Gilles Deleuze e do

homenageado: a Esquizoanálise, que é também a do Movimento Instituinte

Internacional.

O Instituto foi criado pelo autor deste Compêndio – o professor de

Psiquiatria, terapeuta e institucionalista Gregorio Baremblitt, um dos

introdutores das idéias desses autores em vários países da América Latina e

Europa – em parceria com Margarete Amorim, psicóloga, analista institucional

e esquizodramatista, e junto a um grupo de colegas institucionalistas.

O Instituto é uma organização vinculada à Fundação Gregorio F.

Baremblitt de Uberaba (MG), estabelecimento este que já conta mais de uma

década de existência ancorada em uma orientação e atividades comuns com o

Instituto Félix Guattari de Belo Horizonte, mas com ênfase na prática clínica.

O Instituto desenvolve atividades de prestação de serviços em análise e

intervenção de organizações, movimentos e grupos públicos e privados,

225

governamentais e não-governamentais que atuam nas áreas de educação,

saúde, trabalho, justiça, arte, ecologia, políticas públicas etc.

O Instituto Félix Guattari de Belo Horizonte (IFG-BH) também promove

cursos e grupos de estudo, conduz pesquisas, organiza eventos, supervisiona

trabalhos técnicos e práticos, edita e distribui livros e gerencia programas

sociais, sendo todas as atividades pautadas em sua orientação.

O IFG-BH tem diversas parcerias com organizações nacionais e

estrangeiras afins, e está aberto a todos aqueles que compartilham de seus

ideais. Os interessados em entrar em contato com o Instituto Félix Guattari

podem fazê-lo através dos telefones (31) 3284.1083 e 3221.7352 (Fax), e-mail

[email protected] ou pelo site www.ifgorg.hpg.com.br . Sua sede fica na

Rua Herval, 267 – Serra, Belo Horizonte, MG. Cep 30240-010.