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IEDA MARIA CE BALDIN COMPARAR O COMPORTAMENTO DOS NARRADORES NOS CONTOS UM ESQUELETO E O CAPITÃO MENDONÇA, DE MACHADO DE ASSIS CANOAS, 2010

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IEDA MARIA CE BALDIN

COMPARAR O COMPORTAMENTO DOS NARRADORES NOS

CONTOS UM ESQUELETO E O CAPITÃO MENDONÇA, DE

MACHADO DE ASSIS

CANOAS, 2010

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IEDA MARIA CE BALDIN

COMPARAR O COMPORTAMENTO DOS NARRADORES NOS

CONTOS UM ESQUELETO E O CAPITÃO MENDONÇA, DE

MACHADO DE ASSIS

Trabalho de conclusão apresentado ao Curso de Letras do Centro Universitário La Salle - Unilasalle, como exigência parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Letras.

Orientação: Prof.ª M.ª Lúcia Regina Lucas da Rosa

CANOAS, 2010

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IEDA MARIA CE BALDIN

COMPARAR O COMPORTAMENTO DOS NARRADORES NOS

CONTOS UM ESQUELETO E O CAPITÃO MENDONÇA, DE

MACHADO DE ASSIS

Trabalho de conclusão aprovado como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Letras pelo Centro Universitário La Salle - Unilasalle.

Aprovado pelo avaliador em ____ de ______________ de 2010.

AVALIADOR:

___________________________________

Prof.ª M.ª Lúcia Regina Lucas da Rosa

Unilasalle

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Dedico em especial a minha filha Vanessa Cé

Bressan e ao meu esposo Léo Antônio Baldin,

os quais fizeram-se presente em cada passo

dessa minha caminhada.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pela bênção concedida e por nunca deixar-me desistir de meus

sonhos.

A minha filha Vanessa e meu esposo Léo por sempre se fazer presente,

apoiando-me incondicionalmente, demonstrando-me amor e compreensão nos

momentos de minha ausência, fruto de dedicação aos estudos.

A minha orientadora e coordenadora do curso de Letras Lúcia Regina Lucas da

Rosa pelo profissionalismo, dedicação, paciência e por ter acreditado em meu

desempenho.

Aos demais mestres do curso de Letras, por compartilhar de suas amizades,

sabedorias, estímulos e profissionalismo, exemplos que irão me acompanhar por

toda minha vida.

A todos os colegas de curso, amigos, vizinhos e familiares que de uma forma

ou outra estiveram presentes durante esta caminhada acadêmica.

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“Eu gosto de catar o mínimo e o escondido.

Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu,

com a curiosidade estreita e aguda que

descobre o encoberto.”

(Machado de Assis)

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RESUMO

O presente trabalho é um estudo sobre o comportamento dos narradores em dois

contos machadianos: “Um Esqueleto” e “O capitão Mendonça”, relacionando-os com

pressupostos estabelecidos pelo próprio Machado de Assis em seu ensaio “Instinto

de Nacionalidade”. O trabalho no primeiro momento faz uma breve apresentação da

vida de Machado de Assis e principais obras, sua visão crítica da literatura. A seguir,

conceitua e mostra os tipos de narradores, depois mostra os narradores das obras

em análise através de excertos relacionando-os com a teoria. A fundamentação

teórica foi realizada, principalmente em Oscar Tacca, com seu livro As vozes do

romance; Cândida Vilares Gancho, em Como analisar narrativas; Carlos Reis e Ana

Cristina M. Lopes com o Dicionário de narratologia, Ligia Chiappini Moraes Leite, O

foco narrativo; Donaldo Schüler, Teoria do romance e Machado de Assis em Instinto

de Nacionalidade.

Palavras-chave: Teoria. Narrador. Machado de Assis. Contos. Nacionalidade.

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ABSTRACT

This paper is a study about the behaviour of the narrator in two short stories by

Machado de Assis: “Um Esqueleto” (A Skeleton) and “Capitão Mendonça” (Captain

Mendonça) which were related to assumptions established by own Machado de Assis

himself in his essay “Instinto de Nacionalidade” (Instinct of Nationality). First, this

paper presents a brief summary about Machado’s life and his major works and his

critical view of literature. Then, it conceptualizes and shows the kinds of narrators

and, later, it shows the narrators of the short stories analyzed through some excerpts

which were related to theory. The theoretical approach used in this paper was based

mainly in Oscar Tacca’s book As vozes do romance (The Voices of Novels); Cândida

Vilares Gancho’s Como analisar narrativas (How to Analyse Narratives); Carlos Reis

and Ana Cristina M. Lopes’ Dicionário de narratologia (Dictionary of Narratology),

Ligia Chiappini Moraes Leite’s O foco narrativo (The Narrative Focus); Donaldo

Schüler’s Teoria do romance (Theory of novels) and Machado de Assis’ Instinto de

Nacionalidade (Instinct of Nationality).

Key words: Theory. Narrator. Machado de Assis. Stories. Nationality.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................9

2 MACHADO DE ASSIS .....................................................................................10

2.1 O autor – breve biografia ...............................................................................10

2.2 Visão crítica da literatura de Machado de Assis..........................................12

2.2.1 Instinto de nacionalidade..................................................................................12

2.2.2 Ideal do crítico ..................................................................................................16

3 NARRADOR ....................................................................................................18

4 DOIS CONTOS MACHADIANOS ....................................................................22

4.1 Um esqueleto..................................................................................................22

4.2 O capitão Mendonça ......................................................................................28

5 CONCLUSÃO ..................................................................................................36

REFERÊNCIAS................................................................................................40

OBRAS CONSULTADAS.................................................................................41

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho é um estudo sobre o comportamento dos narradores em

dois contos machadianos “Um Esqueleto”, publicado em Jornal das Famílias, em

1870 e “O capitão Mendonça”, publicado no livro Papel Avulso, em 1845,

relacionando-os com pressupostos estabelecidos pelo próprio Machado de Assis em

seu ensaio “Instinto de Nacionalidade” publicado em 1873, com objetivo de avaliar a

produção literária da época. O trabalho foi realizado a partir de pesquisas

bibliográficas em meio eletrônico e materiais utilizados em disciplinas de Teorias da

Literatura I, Literatura Brasileira e Universal. Os critérios utilizados para análise do

narrador nos contos foram os aspectos sociais e psicológicos. Para isso, levou-se

em consideração o discurso elaborado pelo narrador e seu olhar sobre os

personagens.

Na visão machadiana, uma criação literária não estaria em elementos

“exteriores” ao sujeito, mas sim, em algo “interior” naquele que Machado chama de

“sentimento íntimo”, em que tornaria o escritor homem de seu tempo e de seu país.

Machado de Assis contista e romancista, preocupava-se não só com a expressão e

com técnicas de composição, mas também com articulação aos temas, com análise

do caráter e do comportamento humano.

Os contos analisados fazem parte da primeira fase do Realismo no século

XVIII. São narrativas que contam uma história dentro de outra. O trabalho será

apresentado em capítulos em que, o primeiro capítulo tratará de um breve histórico

sobre o contista Machado de Assis e principais obras e sua visão crítica da literatura

em seu ensaio “Instinto de Nacionalidade”. O segundo capítulo destina-se ao estudo

sobre narradores e tipos de narradores, de acordo com pensamento de alguns

teóricos como Lúcia Pereira, Domício Proença Filho, Donaldo Schüler, Oscar Tacca,

D' Onofrio Salvatore, e Machado de Assis, que nos levará à reflexão e análise do

comportamento dos narradores presentes nos contos citados. No terceiro capítulo

serão analisados os dois contos, conceituado-os e mostrando os tipos de narradores

presentes em cada obra através de excertos, relacionado-os com a teoria. Por

último, será aprestando a conclusão dessa pesquisa e referências bibliográficas.

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2 MACHADO DE ASSIS

2.1 O autor – breve biografia

Segundo Pereira (1955, p. 22-29), é impossível estudar uma obra de Machado

sem estudar-lhe a vida, sem procurar entender-lhe o caráter. Joaquim Maria

Machado de Assis nasceu em 1839, no morro do fluminense, no Rio de Janeiro.

Mestiço, de origem humilde, filho de um mulato carioca, pintor de paredes, e de uma

imigrante açoriana, também mulata.

Machado de Assis passou a primeira infância numa casa velha, cheia de

tradições que vinha de tempo colonial, atravessara a do Rei e do Imperador, vararia

o da Regência e entraria pelo Segundo Reinado, sempre habitada por famílias

importantes, com fumaças e hábitos de grandeza. Ali brincou, molequinho tratado

com carinho, afilhado da viúva rica, onde recebeu sem dúvida as primeiras

impressões do ambiente tão brasileiramente senhorial que evocaria em seus livros.

Entre a casa pobre dos pais e a casa opulenta da madrinha, passavam-se seus dias; bem cedo terá aprendido a distinguir a diferença das sortes, talvez a achá-la injusta e incompreensível. Essa formação explica muita coisa no seu feitio-a sua estranha mescla de ambição pessoal e de aceitação da hierarquia social, de convencionalismo e de ceticismo, de conformismo e de relativismo. (PEREIRA, 1955, p. 30).

Morre a mãe e o pai de Joaquim casou-se novamente. Dessa vez com Maria

Inês. A madrasta foi a primeira mestra de Machado, ensinou-lhe o pouco que sabia,

as letras, as primeiras operações. Depois puseram-no numa escola pública.

Segundo Lúcia Miguel, depois do falecimento do pai de Machado, a vida

tornou-se bastante dura para o menino tímido e franzino, que para sobreviver,

passou a vender doce e caramelos na frente de colégios ricos. Ao renegar o

passado humilde e ascender à pequena burguesia, Machado de Assis acabou

misturando-se aos letrados da classe senhorial.

Apesar de ter frequentado apenas a escola primária e ter sido obrigado a

trabalhar desde a sua infância, alcançou alta posição como funcionário público e

gozou de consideração social numa época em que o Brasil ainda era uma

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monarquia escravocrata.

Aos 16 anos, publicou seu primeiro poema Ela na revista Marmota Fluminense

de Francisco de Paula de Brito. Aos 17 anos, conseguiu emprego como aprendiz de

tipógrafo na Imprensa Nacional, onde conheceu Manuel Antônio de Almeida, autor

de Memórias de um Sargento de Milícias, que reconheceu no jovem autor seu

talento.

Admitido à redação do Correio Mercantil, começou a publicar seus escritos em

vários jornais e revistas. Em 1858, prestes a completar dezenove anos, Machado

publicou, na Marmota, duas poesias, “A morte do Calvário” e “Monte Alverne”,

dedicadas a seu amigo, o padre mestre Silveira Sarmento. Na década de 1860, a

convite de seu amigo Quintino Bocaiuva, passou a fazer parte da redação do jornal

Diário do Rio de Janeiro, além de escrever para a revista Espelho (onde era crítico

teatral) e fazer contribuições para a Semana Ilustrada e o Jornal das Famílias.

Escreveu todas as suas comédias e os versos ainda românticos de Crisálidas.

Em 1861, teve sua estreia como tradutor em Quedas que as mulheres têm

pelos tolos e, no ano seguinte, Joaquim tornou-se censor teatral. Machado de Assis

foi jornalista, crítico literário, crítico teatral, teatrólogo, poeta, contista e romancista.

Machado de Assis, contista e romancista, preocupado não só com a expressão e

com a técnica de composição, mas também com articulação aos temas, com análise

do caráter e do comportamento humano.

Podemos identificar em sua produção dois grupos de obras, porém sem

prejuízo de sua perfeita unidade. Pertencem ao primeiro grupo Ressurreição,

Helena, A mão e a luva, Iaiá Garcia, obras que apresentam características mais

gerais do romance do século XIX do que propriamente da herança romântica. Em

1864, encerrou sua primeira fase e em 1878, deu início à segunda etapa de sua

produção considerada mais genial de sua carreira. Nessa época, Joaquim já era

oficial-de-gabinete do ministro da Agricultura. Publicou sob forma de folhetim, o

romance Memória Póstumas de Brás Cubas, marco de sua virada. A partir dessa

obra ele se revela um gênio da análise psicológica de personagens, tornando-se o

mais extraordinário contista brasileiro de interesse universal. Nesse grupo incluem-

se os romances Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires.

Em 1869, casou-se com uma senhora portuguesa de boa cultura, Carolina

Xavier de Novais, sua companheira até a morte em quem iria inspirar a personagem

Dona Carmo, de Memorial de Aires.

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Amparado por uma carreira burocrática, primeiro no Diário e depois na

secretaria da Agricultura, o escritor pode entregar-se a sua vocação de ficcionista.

Apesar de não terem filhos, viveram um casamento feliz por 35 anos. Joaquim,

além de desfrutar de uma vida amorosa, possuía um gargo político bom.

Machado de Assis escreveu por volta de duzentos contos estreados em pleno

Romantismo. De 1880 a 1900, suas obras continuam obtendo êxito, mesmo que os

contemporâneos não lhe percebessem todo seu teor corrosivo. Festejado, quase

idolatrado, Machado de Assis foi um dos fundadores da Academia Brasileira de

Letras, da qual foi aclamado presidente perpétuo.

Em 1904, com a morte da esposa Carolina, a vida do autor se tornou

melancólica e, em homenagem a sua amada, escreveu o soneto Carolina, em que a

celebrizou. A perda de sua esposa e a saúde abalada contribuíram para o seu

isolamento. Machado de Assis faleceu em 29 de setembro de 1908, na sua casa.

2.2 Visão crítica da literatura de Machado de Assis

2.2.1 Instinto de nacionalidade

Instinto de Nacionalidade é um texto crítico de Machado de Assis publicado em

1873 em O Novo Mundo, em Nova Iorque, com a intenção de avaliar a produção

literária da época.

Machado de Assis afirma que quem olhar para a produção da segunda metade

do século XVIII irá perceber certo “Instinto de Nacionalidade” e a presença de certa

cor local. Além disso, ele mostra uma preocupação que permeava as mentes e obras

dos autores brasileiros por uma literatura independente, própria de uma nação que

procurava se estabelecer culturalmente longe do peso de um passado colonial.

Porém, segundo ele, uma “Independência Literária”, não é obra de um dia, mas de

gerações. Machado ainda acrescenta que é necessário mais estudos sobre as obras

O Uruguai e Caramuru, de Basílio da Gama e Santa Rita Durão respectivamente,

por serem obras precursoras da poesia brasileira.

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A razão é que eles buscaram em roda de si os elementos de uma poesia nova, e deram os primeiros traços de nossa fisionomia literária, enquanto que outros, Gonzaga, por exemplo, respirando aliás os ares da pátria, não souberam desligar-se das faixas da Arcádia nem do tempo. Admira-se-lhes o talento, mas não se lhes perdoa o cajado e a pastora, e nisto há mais erro que acerto. Dado que as condições deste escrito o permitissem, não tomaria eu sobre mim a defesa de mau gosto dos poetas arcádicos nem o fatal estrago que essa escola produziu nas literaturas Portuguesas e Brasileiras. Não me perece, todavia, justa a censura aos nossos poetas coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente justa a de não haverem trabalhado para a independência literária jazia ainda no ventre do futuro, e mais que tudo, quando entre a metrópole e a colônia criara a História a homogeneidade das tradições, dos costumes e da educação. (ASSIS, 1999, p. 11-12).

Machado de Assis em “Instinto de Nacionalidade”, diz que depois de todo um

movimento indianista, entrou em vigor um pensamento que não acreditava que a

literatura brasileira pudesse ser fundamental apenas nos costumes semibárbaros e

por isso, podia alimentar-se dos assuntos que ofereciam à região, as matas, a

natureza e o local de forma mais ampla. Assim como a poesia, o romance também

se fundamenta nos costumes indígenas na busca de uma nacionalidade e de cor

local, tendo como maior nome segundo ele, no romance indianista o Sr. José de

Alencar, entretanto, para ser nacional, conforme Machado de Assis, é preciso ser

homem de seu tempo e de seu país, além de possuir “certo sentimento íntimo” que

nem todo escritor tem. Assim, descrever a natureza, as plantas, as aves e as tribos,

obrigatoriamente não quer dizer que haja nacionalidade, uma vez que os escritores

podem pecar na descrição das figuras e dos lugares.

Compreendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da Literatura Brasileira como universal, não se limitam os nossos escritores a essa só fonte de inspiração. […] Não há dúvida de que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que torne o homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. (ASSIS, 1870, p. 17-18).

Machado também lamenta a falta de uma crítica literária e de obras de filosofia

em linguística entre eles e a análise psicológica nos romances brasileiros,

reconhecendo não ser coisa simples mesmo nos romances franceses as descrições

de caracteres humanos.

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A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa literatura; é mister que a análise corrija ou anime a invenção, que os pontos de doutrina e de história se investiguem, que as belezas se estudem, que os senões se apontem, que o gosto se aprume e eduque, para que a literatura saia mais forte e viçosa e se desenvolva e caminhe aos altos destinos que a esperam. […] Isto não é desmerecer o romance, obra de arte como qualquer outra, e que exige da parte do escritor qualidades de boa nota. [...] A substância, não menos que acessórios, reproduz geralmente a vida brasileira em seus aspectos e situações. (ASSIS, 1870, p. 19-20).

Para Machado de Assis, a casta de obras conserva-se aqui no puro domínio de

imaginação, desinteressada dos problemas do dia e do século, alheia às crises

sociais e filosóficas. Seus principais elementos são a “pintura dos costumes, a luta

das paixões, algumas vezes o estudo dos sentimentos e dos caracteres, com esses

elementos, que são fecundíssimos, possuímos já uma galeria e há muitos anos”

(ASSIS, 1870, p. 24).

Machado diz também que no gênero dos contos, à maneira de Henri Murger,

ou à de Trueba, ou à de Ch.Dickens , que tão diversos são entre si, tem havido

tentativas mais ou menos felizes, porém raras. “É gênero difícil, a despeito da sua

aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, se não lhe dando, penso eu,

o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor” (ASSIS, 1870, p. 24).

Na poesia, Machado avalia os poetas do decênio de 1850 a 1860 e coloca

nesse patamar os nomes de Álvares de Azevedo, Junqueira Freire e Casimiro de

Abreu que mostram o entusiasmo desse movimento em busca da nacionalidade

literária, mas que ainda precisam melhorar em certos aspectos, pois a poesia

americana, na opinião de Machado exige imagens e expressões adequadas o que

nem sempre se consegue. Ainda na década de 1860 a 1870, ele aponta os nomes

de Crespo, Serra, Trajano, Gentil-Homem de Almeida Braga, Castro Alves, Luiz

Guimarães e outros que segundo ele, ainda que pertençam à eternidade, podem

servir de exemplo para poetas que desejam chegar à grandeza da literatura ainda

em fase de construção, essa que irá durar tempo e outras gerações. Porque esses

escritores têm inspiração poética e intrepidez para construir uma literatura com a cor

local.

A escola a que aludo não exprimiria a ideia com tão simples meios, e faria mal porque o sublime é simples. Fora para desejar que ela versasse e meditasse longamente estes e outros modelos que a Literatura Brasileira lhe oferece. Certo não lhe falta como disse, imaginação; mas tem suas regras, o estro leis, e se há casos em que se rompem as leis e as regras, é porque

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as fazem novas, é porque se chamam Shakespeare, Dante, Goethe, Camões. [...] Com as boas qualidades que cada um pode reconhecer na recente escola de que falo, basta a ação do tempo, e se entretanto aparecesse uma grande vocação poética, que fizesse reformadora, é fora de dúvida que bons elementos entrariam em melhor caminho, e a poesia nacional restariam as tradições do período romântico (ASSIS, 1870, p. 29-31).

Quanto ao teatro, Machado eleva os nomes de Martins Pena como talento

sincero e original, além da produção de Magalhães, Gonçalves Dias, Porto Alegre,

Agrário, José de Alencar com o Demônio Familiar e Mãe, além dos nomes de

Pinheiro Guimarães e Quintino Bocaiuva, mas apesar dos esforços destes

autores, o teatro parece não frutificar como deveria.

“A província ainda não foi de todo invadida pelos espetáculos de feira; ainda lá

se representa o drama e a comédia - mas não aparece, que me conste, nenhuma

obra nova e original. E com estas poucas linhas fica liquidado este ponto” (ASSIS,

1870, p. 33).

Machado observa a falta de pureza da linguagem, os solecismos e a excessiva

influência da Língua francesa, ponto de divergência entre os escritores.

A influência popular tem limite; e o escritor não está obrigado a receber e dar curso a tudo o que abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr. Pelo contrário, ele exerce também uma grande parte de influência a este respeito, depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a razão. (ASSIS, 1870, p. 34-35).

Além disso, Machado critica a falta de leitura dos clássicos no Brasil, o que é

considerado por ele um mal. Persuadiu sobre a mocidade e a precipitação de seus

escritos, a um certo prurido, o qual será caminho de aplausos. “Há intenção de

igualar as criações do espírito com a da matéria, como se elas não fossem

inconciliáveis”. E assim, Machado encerra esse ensaio fazendo uma retomada sobre

sua análise a respeito da necessidade por uma literatura independente.

Aqui termino essa notícia. Viva a imaginação, delicadeza e força de sentimentos, graças de estilo, dotes de observação e análise, ausência às vezes de gosto, carência às vezes de reflexão e pausa, língua nem sempre pura, nem sempre copiosa, muita cor local, eis aqui por alto os defeitos e as excelências da atual Literatura Brasileira, que há dado bastante e tem certíssimo futuro (ASSIS, 1870, p. 36).

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2.2.2 Ideal do crítico

Neste ensaio Machado não só explicita o seu conceito de crítica, como também

faz uma crítica aos valores indevidos ou abusivos da literatura de sua época, valores

esses que não provinham da imparcialidade do crítico literário. Interpela, pois, a

crítica corrente e o faz demonstrando o quão superficiais e por vezes livres estão de

uma análise precisa da obra de arte literária. Evidencia-se assim que é possível

analisar sem criticar, porém é infrutífero, quando não vergonhoso, querer criticar sem

antes analisar.

Para realizar tão multiplicadas obrigações, compreendo eu que não basta uma leitura superficial dos autores, nem a simples reprodução das impressões de um momento; pode-se, é verdade, fascinar o público, mediante uma fraseologia que se emprega sempre para louvar ou deprimir; mas no ânimo daqueles para quem uma frase nada vale, desde que não traz uma ideia, - esse meio é impotente, e essa crítica negativa (ASSIS, 1999, p. 39-40).

Machado propõe que as duas condições fundamentais da crítica sejam a

consciência e a ciência. Quando Machado cita consciência, quer dizer também

sinceridade, nula de interesses pessoais ou alheios. Ao mesmo tempo em que cita

ciência, ele explicita o papel de pesquisador que o crítico deve empenhar, dando

importância às mínimas nuances de sua análise para não se equivocar ou mesmo

cometer erros absurdos.

Não compreendo o crítico sem consciência. A ciência e a consciência, eis as duas condições principais para escrever a crítica. A crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da simpatia, procure produzir unicamente os juízos da sua consciência. Ela deve ser sincera, sob pena de ser nula (ASSIS, 1999, p. 40).

O autor chama a atenção para que o crítico não precipite seu julgamento por

impulsos que podem induzir sua crítica ao descrédito. O crítico não pode deixar

levar-se pelo censo comum, sua crítica tem de ser independente do que outros já

disseram, independente do amor próprio e das inviolabilidades literárias, livre de

cegas adorações. Machado descreve, portanto, como o crítico deve atuar no seu

juízo, sem se deixar valer por preferências de época ou estilo, de maneira a exprimir

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justiça à obra em que encerra o seu julgamento. O crítico tem de usar de sutileza

para encerrar seu julgamento e não direcionar sua crítica como um ataque, porém o

crítico não deve temer um embate de ideias, desde que o seu propósito seja voltado

para a verdade. “Com tais princípios, eu compreendo que é difícil viver; mas a crítica

não é uma profissão de rosas, e se o é, é o somente no que respeita à satisfação

íntima de dizer a verdade” (ASSIS, 1999, p. 41).

Machado faz um fechamento de toda a sua filosofia crítica, ou seja, reúne

todos os atributos que acha necessário ao bom crítico, nos quais ele se baseia; uma

análise conscienciosa, imparcial, porém, sutil, questionando-se sobre as leis do belo

e procurando encarnar o espírito de um livro (obra) encerrando assim uma análise

solícita e verdadeira. Destaca a importância do crítico incorporar a obra,

independente de seus sentimentos, aproximando-se assim de uma análise cada vez

mais conscienciosa e imparcial, sem perder a sutileza ou mesmo ser superficial.

O crítico deve ser independente - independente em tudo e de tudo - independente da vaidade dos autores e da vaidade própria. Não deve curar de inviolabilidades literárias, nem de cegas adorações; mas também deve ser uma luta constante contra todas essas dependências pessoais, que desautoram os seus juízos, sem deixar de perverter a opinião (ASSIS, 1999, p. 42).

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3 NARRADOR

Segundo Vitor Manoel e Silva (1974, p. 695), dentre as personagens possíveis

de um romance, há uma que se particulariza pelo seu estatuto e pelas suas funções

no processo narrativo e na estruturação do texto - o narrador. O narrador não se

identifica necessariamente com o autor textual e muito menos com o ser real, do

autor que o criou. D' Onofrio completa dizendo que o autor pertence ao mundo da

realidade histórica; o narrador, a um universo imaginário (1995, p. 54).

Além disso, D' Onofrio mostra que o processo de enunciação dentro do texto

literário, na maioria das narrativas, está camuflado, pois o narrador raras vezes se

apresenta como tal, identificando-se numa personagem.

A função do narrador é revelada por índices específicos e procedimentos acessórios. O que os estudiosos chamam de “aparelho formal da enunciação” é constituído por todos os elementos que estabelecem uma relação de mostração entre o emissor, o discurso e seu destinatário. (TACCA, 1983, p. 57).

Em toda obra, sempre há um narrador responsável pela ação do desenrolar

dos fatos.

Segundo Reis e Lopes (2000, p. 258), as funções do narrador não esgotam no

ato de enunciação que lhe é atribuído, pois o narrador é detentor de uma voz, que

revela um determinada instância de enunciação do discurso, a qual é traduzida pelo

acordo com dois tipos de narradores. Além disso, Reis e Lopes apresentam três

tipos de narrador: narrador autodiegético, aquele que refere-se ao narrador que

relata suas experiências como personagem principal da história; o narrador

heterodiegético, aquele que relata uma história à qual é estranho, uma vez que não

se integra como personagem, conhece tudo sobre o fato e geralmente se apresenta

em terceira pessoa, já o narrador homodiegético é a entidade que veicula

informações advindas de sua própria experiência diegética, vivido na história como

personagem, o narrador retira daí as informações necessárias para construir o seu

relato.

Schüler (1989, p. 26-28), afirma que, quanto à voz, o narrador pode eleger a

primeira ou terceira pessoa; quanto à perspectiva, o narrador pode ver os

acontecimentos de perto ou a distância, pode penetrar na psique das personagens

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ou restringir-se na observação, distanciar-se e aproximar-se do objeto. Embora lhe

seja vedada tanto a onipresença como a onisciência, o narrador, de sua capacidade

de retenção de memória e do fato de ter vivido a história, o faz a pessoa mais apta

para narrá-la.

Escrever em primeira pessoa poderia ser decisão orgulhosa; mostrou-se entretanto, nos casos de sucesso, gesto de humildade. O narrador que diz eu está limitado. Falta-lhe a mobilidade anônima. Não lhe é dado antecipar o futuro. Mais seguro lhe é falar de si mesmo, há limites. A memória falha. Recordar fatos não significa compreendê-los. (SCHÜLER, 1989, p. 28).

Para Gancho (1998, p. 28), o narrador em primeira pessoa ou narrador-

personagem é aquele que participa diretamente do enredo como qualquer

personagem, portanto tem seu campo de visão limitado, isto é, não é onipresente,

nem onisciente. O autor apresenta duas variantes para narrador personagem: A

primeira é o narrador testemunha: Geralmente não é o personagem principal, mas

narra acontecimentos dos quais participou, ainda que não seja de destaque. A

segunda variante é o narrador-protagonista: é o narrador que é também personagem

central.

Gancho explica também que o narrador em terceira pessoa pode apresentar

duas variantes. A primeira é o narrador intruso que fala ao leitor ou julga diretamente

o comportamento das personagens. A segunda variante é o narrador parcial, que,

por sua vez, se identifica com determinada personagem da história.

Segundo Oscar Tacca, a visão do narrador determina, pois, a perspectiva do

romance. Tacca distingue dois tipos fundamentais de narrador: narrador fora da

história narrado em terceira pessoa e narrador dentro da história em primeira pessoa

(1983, p. 62).

Uma mesma história pode ser contada de várias maneiras, bastando, para isso,

mudar o foco narrativo. Os fatos, as personagens e os cenários serão os mesmos, a

diferença estará na forma como o narrador utilizará esses elementos. Um dos

aspectos sobre os quais pode-se dar essa diferenciação é o nível de conhecimento

com o qual o narrador narra o que se passa. Categorizando essa abordagem, D'

Onofrio (1995, p. 59-62) relata que as formas de o narrador se fazer presente numa

narrativa literária são múltiplas e variam de texto para texto. D' Onofrio diz também

que a função precípua da teoria da literatura é encontrar os elementos comuns,

dentro da imensidade das espécies. D' Onofrio apresenta os principais modos de

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presença do narrador num texto literário.

a) narrador pressuposto: a essa categoria, segundo D' Onofrio narrativas que

não fazem referências explícitas ao narrador destinatário. Trata-se de

contos ou romances com registros da fala em terceira pessoa, onde

predomina a função referencial ou cognitiva. Essa categoria apresenta

várias modalidades de narrador: onisciente intruso, onisciente neutro,

câmara.

b) narrador onisciente neutro é dotado de poder de onipresença, ele sabe o

que se passa no céu e na terra, no presente e no passado, no íntimo de

cada personagem. Segundo D' Onofrio, tal perspectiva é chamada por

Jean Pouillon de visão por trás em que apresenta um narrador onisciente,

que sabe e conta tudo sobre as personagens, seu passado, presente e

futuro.

c) narrador onisciente intruso: o narrador volta e meia interrompe a narração

dos fatos ou a descrição das personagens e ambientes para tecer

considerações e emitir julgamento de valor.

d) narrador onisciente seletivo. Esta focalização dá-se quando o narrador,

mesmo sendo ele o sujeito do discurso, apresenta o ponto de vista de uma

ou de várias personagens. A diferença da onisciência neutra e seletiva está

na forma do discurso, chamado de discurso indireto livre.

e) narrador onisciente câmara. Segundo D' Onofrio, mostra que Pouillon

chama de visão de fora. O narrador exerce o papel de um observador

imparcial que analisa realisticamente a conduta e o meio enquanto

materialmente observáveis.

f) narrador personagem. A focalização nessa segunda teoria centra-se entre

o ficcional que, dentro do texto literário, assume o papel de narrador.

Segundo D' Onofrio, Jeans Pouillon fala da “Visão com”, porque é através

do ponto de vista da personagem-narrador que conhecemos o que se

passa no texto.

D' Onofrio ainda define que o narrador- protagonista trata-se de alguém que

acumula o papel de sujeito da enunciação (narrador) e de sujeito do enunciado

(história), ou seja, ele conta a história por ele vivida. Narrador secundária narra a

história, mas não exerce o papel de protagonista. Ele apresenta as personagens,

destacando-se ao nível de enunciação.

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Já Gancho define o narrador personagem em dois, sendo o narrador

testemunha e o protagonista. O primeiro é classificado não como personagem

principal, mas como alguém que narra os fatos dos quais participou como mero

espectador

Leite (2001) torna mais claros tais conceitos sobre narrador. A autora afirma

que, para tratar do narrador, é necessário saber se o narrador narra em primeira ou

terceira pessoa; o narrador se posiciona por cima, no centro, na periferia, de frente

ou mudando de posição em relação à história; utiliza de suas palavras, pensamentos

das personagens ou, ainda da combinação de todos esses elementos, o narrador

coloca o leitor próximo ou distante da história.

Segundo Leite, a tipologia do narrador se caracteriza em: narrador onisciente

intruso que conhece tudo a respeito da história e goza de plena liberdade para narrá-

la e comentá-la. Seus traços característicos é a intrusão, ou seja, seus comentários

sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral que podem ou não estar

entrosados com a história narrada. Narrador onisciente neutro, este narrador

desempenha as mesmas funções que o narrador intruso, o que o diferencia do

narrador neutro, é que o narrador não tece comentários a respeito dos pensamentos

e ações das personagens. Narrador testemunha narra em primeira pessoa os

acontecimentos dos quais ele participou como personagem secundário. Sua visão é

limitada, pois narra da periferia dos acontecimentos e não conhece os pensamentos

dos outros personagens. Narrador seletivo é o narrador que se utiliza dos

sentimentos, pensamentos e percepções de um único personagem, geralmente o

protagonista para narrar a história.

Leite (2001) fala também do “Eu” como testemunha. O narrador narra em

primeira pessoa, mas é um “eu” já interno à narrativa. No caso do “eu” testemunha,

o ângulo de visão é, necessariamente, mais limitado. Como personagem secundário,

ele narra da periferia dos acontecimentos, não consegue saber o que se passa na

cabeça dos outros, apenas pode inferir, lançar hipóteses, servindo-se também de

informações, de coisa que viu ou ouviu. O Narrador- protagonista narra de um centro

fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e

sentimentos (LEITE, 2001, p. 10-38).

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4 DOIS CONTOS MACHADIANOS

4.1 Um esqueleto

A análise dos contos tem por objetivo identificar o tipo de narrador presente em

cada narrativa. Para isso, será analisado, através das ações dos fatos, o papel

desempenhado pelo narrador no discurso da obra. Quais são os passos que ele

dará e como isso acontece.

De acordo com as teorias estudas no capítulo anterior, sabemos que em toda

obra, sempre há um narrador responsável pela ação do desenrolar dos fatos. A ele

cabe o papel de narrar, ou seja, de contar a história. O narrador pode eleger a

primeira ou terceira pessoa; quanto à perspectiva, o narrador pode ver os

acontecimentos de perto ou a distância. Neste trabalho, meu primeiro passo é

reconhecer como se apresenta o narrador dentro da narrativa.

No conto Um esqueleto, o narrador relata em sua maior parte, em forma de

diálogo, o encontro de dez ou doze rapazes que conversam sobre artes, letras e

políticas, temperando a sisudez do assunto com alguma anedota.

O narrador após apresentar os personagens presentes na narrativa, descreve o

comportamento e o ambiente em que os jovens dialogavam sobre diversos temas.

O mar batia perto na praia solitária... estilo de meditação em prosa. Mas nenhum dos doze convivas fazia caso do mar. Da noite também não, que era feia e ameaçava chuva. É provável se a chuva caísse ninguém desse por ela, tão entretidos estavam todos em discutir os diferentes sistemas políticos. (ASSIS, 1996, p. 5).

A função do narrador não se esgota no ato de enunciação que lhe é atribuída,

pois o narrador é detentor de uma voz que revela uma determinada instância de

enunciação do discurso. O narrador logo no início da narrativa, nos remete para uma

segunda história, em que é relatada por um dos jovens, Alberto, após um dos

convivas ter elogiado a língua alemã e Alberto ter concordado, dizendo que

aprendera com o Dr. Belém, um homem que escrevera um livro de teologia, um

romance e descobrira um planeta. Não encontrou editor para os livros, e a carta

enviada para atestar a descoberta do planeta perdera-se.

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Nesse momento, o narrador nos mostra como aconteceram o diálogo entre

Arnaldo e os demais rapazes do grupo.

- Não conhecem o Dr. Belém? Perguntou ele. - Não responderam todos. - Era um homem extremamente singular. No tempo em que me ensinou alemão, - usava duma casaca que lhe chegava quase aos tornozelos e trazia na cabeça um chapéu-de -chile de abas extremamente largas. - Devia ser pitoresco, observou um dos rapazes. Tinha instrução? - Variadíssima. Compusera um romance, e um livro de teologia e descobrira um planeta... - Mas este homem? - Esse homem vivia em Minas. Veio à corte para imprimir os dois livros, mas não achou editor e preferiu rasgar os manuscritos. (ASSIS, 1996, p. 5).

D' Onofrio diz que as formas de o narrador se fazer presente numa narrativa

literária são múltiplas e variam de texto para texto. Em Um esqueleto, o narrador

exerce o papel de um observador imparcial que analisa realisticamente a conduta e

o meio materialmente observáveis. O narrador de Um esqueleto está a par de todos

os detalhes e fatos existentes na obra e isso fica visível durante a citação a seguir,

em que um dos convivas sorriu maliciosamente para os outros, com ar de que era

muita desgraça junto e a atitude do narrador-Alberto da história do Dr. Belém, tirou-

lhes o gosto do riso.

Alberto, tinha os olhos no chão, olhos melancólicos de quem se rememora com saudades de uma felicidade extinta [...]. Desculpem - me este silêncio, não posso lembrar daquele homem sem que uma lágrima teime em rebentar-me dos olhos. Era excêntrico, talvez não fosse, não era decerto um homem completamente bom; mas era meu amigo; não direi o único mas o maior que jamais tive na minha vida. Como era natural, estas palavras de Alberto alteraram a disposição de espírito do auditório. O narrador ainda esteve silencioso alguns minutos. De repente sacudiu a cabeça como se expelisse lembranças importunas do passado, e disse: Para lhes mostrar a excentricidade do Dr. Belém basta contar-lhes a história do esqueleto. (ASSIS, 1996, p. 6-7).

O narrador do conto mostra as atitudes dos demais rapazes do grupo, quando

Alberto comenta sobre a história de um esqueleto: “A palavra 'esqueleto' atiçou a

curiosidade de todos e, conforme o texto, um romancista aplicou o ouvido para não

perder nada da narração, todos esperaram ansiosamente o esqueleto do Dr. Belém”

(ASSIS, 1996, p. 7), o que funciona no texto de Machado de Assis como indícios de

ironias do narrador.

O narrador direciona seu olhar para o horário, é mais um elemento que remete

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o leitor ao clima de uma narrativa em terceira pessoa: “Batia justamente meia-noite,

noite, como disse, era escura; o mar batia funebremente na praia. Estava-se em

pleno Hoffmann. Alberto começou a narração” (ASSIS, 1996, p. 7).

O narrador acompanha todo o desenrolar da história contada oralmente por

Alberto, narrador-personagem do relato sobre Dr. Belém, o qual foi professor de

alemão de Alberto. Tornaram-se íntimos. Até que Alberto lhe fez a pergunta que

culminou o centro gerador da ação narrativa. Alberto perguntou-lhe se fora casado. A

reação que provocara, no entanto, é inusitada. Dr. Belém hesita, mas acaba

confessando que sim.

Fui casado, disse ele, depois de algum tempo, e daqui a três meses posso dizer outra vez: sou casado. Vai casar? Vou. Com quem? Com D. Marcelina. [...] Vou casar, continuou o Doutor, unicamente porque o senhor me falou nisso. Até cinco minutos antes nenhuma intenção tinha semelhança ato. - Mas sua pergunta faz-me lembrar que eu efetivamente preciso de uma companheira. (ASSIS, 1996, p. 8-90).

O narrador neste momento nos descreve as características de D. Marcelina,

futura esposa do Dr. Belém: “D. Marcelina era viúva de Ouro Preto, senhora de vinte

e seis anos, não formosa, mas assaz simpatia, possuía alguma cousa, mas não

tanto como o doutor, cujos bens orçavam por uns sessenta contos” (ASSIS, 1996, p.

9).

O narrador em terceira pessoa é quem explicita as características do

personagem; em Um esqueleto, o narrador nos descreve as características físicas e

psicológicas da personagem central da narrativa, o Dr. Belém.

[…] O Dr. Belém era um alto e magro; tinha os cabelos grisalhos e caídos sobre os ombros; em repouso era reto como espingarda; quando andava curvava-se um pouco. Conquanto o seu o olhar fosse muitas vezes meigo e bom, tinha lampejos sinistros, e as vezes, quando ele meditava, ficava com olhar de defunto. Representava ter mais de sessenta mas não tinha efetivamente mais de cinqüenta (ASSIS, 1996, p. 8). [...] - Não lhes direi como obtive o esqueleto de minha mulher. Aqui o tenho e o conservarei até á minha morte. Agora naturalmente deseja saber por que motivo o trago para a mesa depois que me casei. […] - É simples, continuou ele; é para que minha segunda mulher esteja sempre ao pé de minha vítima, afim que não se esqueça nunca de seus deveres, porque, então como sempre, é mui provável que eu não procure apurar a verdade; farei justiça por minhas mãos.

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[…] Ainda não lhe contei a história deste esqueleto, quero dizer, a história de minha mulher? [...]. Foi um crime, continuou ele […] É verdade, um crime de que eu fui o autor. Minha mulher era muito amada de seu marido; não admira, eu sou todo coração. Um dia porém suspeitei que me houvesse traído; vieram me dizer-me que um moço da vizinhança era seu amante […]. Luísa caiu-me aos pés banhada em lágrimas protestando pela sua inocência. Eu estava cego; matei-a. (ASSIS, 1996, p. 25-26).

A excentricidade do Doutor, o que tornava o tipo diferente dos outros homens, é

reconhecida pelo narrador e pela reação popular dos que o conheciam. Fica

evidente que ele não o considera um homem comum, no seguinte diálogo do Doutor.

Minha ideia é que todos os homens deveriam casar com senhoras viúvas- Quem casaria então com as donzelas? Os que não fossem homens, respondeu o velho, como o senhor, a maioria do gênero humano; mas os homens, as criaturas da minha têmpera, mas... (ASSIS, 1996, p. 9).

Após um diálogo entre o Doutor e Alberto, o médico convida-o para conhecer

sua primeira esposa. Alberto fica aterrorizado com o que vê: “No fundo do gabinete

havia um móvel coberto por um pano verde; o doutor tirou o pano e eu dei um grito.

Era um armário de vidro tendo dentro um esqueleto” (ASSIS, 1996, p. 10-11). Alberto

controla o medo, que é superado pela curiosidade e mantém a conversa com o

doutor que lhe apresenta sua primeira mulher.

É minha mulher, disse o Dr. Belém sorrindo. É bonita, não parece? Está na espinha, como vê. De tanta beleza, de tanta graça, de tanta maravilha que me encantaram outrora, que a tantos mais encantaram, que lhe resta hoje? Veja meu amigo; tal é a última expressão do gênero humano. (ASSIS, 1996, p. 11).

No entanto, apesar de se notar que, ao longo do conto, predomina a

expressão de um narrador onisciente, pode-se observar também que, em

determinados momentos, esse narrador oculta o seu conhecimento, simulando uma

exposição restrita, que apresenta apenas o que é visível. Para isso, joga com o foco

da narração, passando a apresentar e descrever fatos e demais personagens

através das palavras e pensamentos de uma personagem específica. Cabe

esclarecer, no entanto, que, apesar de parecer não ser mais o narrador que conta,

tal recurso, na verdade, é apenas um artifício com o qual o narrador onisciente

aparenta uma focalização interna, ou uma “visão com”, com objetivo de aproximar

um pouco mais a história de quem a lê. Em Um esqueleto, Alberto é a personagem

mais utilizada para essa “falsa” mudança de foco, valendo-se do seu olhar e das

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suas palavras para descrever o Dr. Belém e seu comportamento como podemos

concluir, com a cena a seguir em que Alberto vai até à sala de jantar para despedir-

se do Dr. Belém e sua esposa, após lido o Fausto.

Caminhei por todo um corredor fora que ia para à sala do jantar. Ouvia mover os pratos, mas nenhuma palavra soltavam os dois casados. “O arrufo continua”, pensei eu. Fui andando... Mas qual não foi a minha surpresa ao chegar à porta? O doutor estava de costas, não podia me ver. A mulher tinha os olhos no prato. Entre ele e ela sentado numa cadeira vi o esqueleto. Estaquei aterrado e trêmulo. Que queria dizer aquilo? Perdia-me em conjunturas; cheguei a dar um passo para falar ao doutor, mas não me atrevi, voltei pelo mesmo caminho, peguei no chapéu, e deitei a correr. (ASSIS, 1996, p. 20).

Durante a narrativa, o narrador vai explicitando ao leitor um certo “medo”. Ele

vai espalhando pela narrativa afirmacões esparsas a respeito da singularidade do Dr.

Belém, do inusitado de seu caráter, suas atitudes. Tal “medo” podemos perceber

durante a narrativa quando Dr. Belém faz uma viagem e pede a Alberto que faça

companhia a D. Marcelina. Conhecendo a história do mestre, Alberto nega a isso,

oferecendo a casa de sua irmã. Tempo depois, D. Marcelina recebe um convite

estranho para encontrar-se com o marido num lugar estranho. Ela vai acompanhada

de Alberto e sua família. Ao chegar lá, passam dois dias com o erudito que os

convida para um passeio, em que culmina com a revelação de uma carta anônima, a

qual denunciava um suposto amor entre Alberto e D. Marcelina.

Alberto, disse ele, e tu, Marcelina. Outro crime deveria ser cometido nesta ocasião; mas tanto te amo, Alberto, tanto te amei Marcelina, que eu prefiro deixar de cumprir minha promessa... [...]. - Doutor, pense o que está dizendo... Ele encolheu os ombros, meteu a mão no bolso, e tirou um papel e deu-mo a ler. Era uma carta anônima; soube depois que fora escrita pelo Soares. Isto é indigno! Clamei […]. O doutor abraçou o esqueleto e afastou-se de nós. Corri atrás dele; gritei, tudo foi inútil; ele metera-se no mato rapidamente, e demais a mulher ficara desmaiada no chão. (ASSIS, 1996, p. 33).

O narrador cultiva durante todo o conto diversos artifícios que conferem ao

texto o caráter de uma narrativa condizente de um narrador em terceira pessoa, cria

passo a passo a transparência ilusionista sobre a história do Dr. Belém sobre a

atenção da palavra esqueleto e encerra a narrativa com índice de ironia quando

Alberto acabara a história e um dos convivas rompendo o silêncio de terror em que

ficara o auditório, diz que o Dr. Belém era um doudo, e ele replica:

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Ele doido? Disse Alberto. Um doido seria efetivamente se porventura esse homem tivesse existido. Mas o Dr. Belém não existiu nunca, eu quis apenas fazer apetite para tomar chá. Mandem vir o chá. É inútil dizer o efeito desta declaração. (ASSIS, 1996, p. 35).

Após várias pistas apresentadas pelo narrador durante a análise do conto, é

possível, afinal, identificar o tipo de focalização presente no conto Um esqueleto, de

Machado de Assis. Ao analisar a obra, pode-se facilmente observar que é narrada

com uma visão por trás, em que o narrador não toma parte na história, possui um

conhecimento amplo e irrestrito sobre todos os fatos, descrevendo não só o que é

visível, como também os pensamentos das personagens e fatos que irão acontecer

posteriormente ao que é apresentado na narrativa. Como exemplo da caracterização

desse narrador, pode-se separar o seguinte trecho da narrativa.

Eram dez ou doze rapazes. Falavam de artes, letras e políticas. Alguma anedota vinha de quando em quando temperar a serenidade da conversa [...]. O mar batia na praia solitária..., estilo de meditação em prosa. Mas nenhum dos doze convivas faziam caso do mar. Da noite também não, que era feia e ameaçava chuva. É provável se a chuva caísse ninguém desse por ela, tão entretidos estavam todos em discutir os diferentes sistemas políticos, os méritos de uma artista ou de um escritor, ou simplesmente em rir de uma pilhéria intercalada a tempo. (ASSIS, 1996, p. 5).

O narrador de Um esqueleto é um narrador em terceira pessoa, onisciente

heterodiegético neutro, tudo sabe e tudo vê, ele caracteriza, descreve e explicita os

personagens de qualquer ângulo ou distância, porém não tece comentários a

respeito dos pensamentos e ações das personagens como podemos confirmar no

decorrer das citações anteriores durante a análise do conto.

Um esqueleto, de Machado de Assis, tem como tema central o drama de

ciúmes, complicado com outros elementos macabros. Este conto foi baseado em

fato real, e o tal esqueleto seria o de uma cantora lírica francesa, a bela Eugênia

Mege, que ao chegar ao Brasil se apaixonara por um médico de grande clínica da

antiga capital do Império, o Dr. Antônio José Peixoto. Assassinada pelo marido

ciumento, seu corpo fora depois roubado da sepultura pelo amante, que lhe armara

o esqueleto e o colocara numa vitrine, em seu consultório, como um caçador ardente

que colecionasse os seus troféus

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4.2 O capitão Mendonça

O capitão Mendonça é um dos contos de Machado de Assis publicado em

Jornal das Famílias em, 1870. A narrativa inicia quando Amaral decide ir ao Teatro

São Pedro para distrair-se de uns “arrufos de amor”. No decorrer da representação

de um drama ultrarromântico, dorme e tem pesadelos, com lances tão verossímeis

quanto o da peça.

A análise do conto será com base nas teorias sobre narrador e as pistas que

este apresenta no decorrer da narrativa, através de suas ações, as quais nos levará

a identificar o tipo de narrador que está presente na obra.

Na arte da narrativa, o narrador nunca é o autor, mas o papel por este

inventado: é um personagem de ficção em que o autor se transforma. Com isso, a

função do narrador é revelada por índices específicos, ou seja, o que os estudiosos

chamam de “aparelho formal da enunciação” é constituído por todos os elementos

que estabelece uma relação de mostração entre o emissor, o discurso e seu

destinatário. A enunciação é manifestada no ato da fala ou escrita, exprimindo-se no

tempo presente (TACCA, 1983, p. 57).

Partindo desses pressupostos, a primeira tarefa é descobrir se o narrador de

“O capitão Mendonça” participa ativamente dos fatos narrados ou não. Para isso,

tomo como base o primeiro parágrafo do conto em análise em que o narrador nos

fornece as primeiras pistas demonstrando seu estado emocional naquele momento.

Achei-me eu uma noite sem destino nem vontade de preencher o tempo alegremente, como convém em tais situações. Não queria ir para casa porque seria entrar em luta com a solidão e reflexão, como duas senhoras que se encarregam de pôr em termo a todos os arrufos amorosos. (ASSIS, 1870).

Segundo D' Onofrio, existem várias formas de o narrador se fazer presente

numa narrativa e varia de texto para texto. Para ele, a função precípua da teoria da

literatura é encontrar esses elementos comuns dentro da imensidade das espécies.

O narrador utiliza de recursos para situar o leitor no tempo e no espaço em que os

fatos se sucederam como podemos ver no decorrer dessa análise.

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Estando um pouco arrufado com a dama dos meus pensamentos, achei-me eu na noite sem destino nem vontade de preencher o tempo alegremente, como convém em tais situações. Não queria ir para casa porque seria entrar em luta com a solidão e a reflexão, como duas senhoras que se encarregam de por termo os arrufos amorosos. Havia espetáculo no Teatro de São Pedro. Não quis saber que peça se representava, entrei comprei uma cadeira e fui tomar conta dela, justamente quando se levantava o pano para começar o primeiro ato. (ASSIS, 1870).

Além de mostrar ao leitor o espaço, o narrador relata o comportamento dos

espectadores ao findar o primeiro ato, que segundo ele é de costume ao intervalo de

cada representação. “O ato acabou com muitas palmas. Apenas caiu o pano ouve-se

a balbúrdia de costume; os espectadores marcavam as cadeiras e saiam para tomar

ar” (ASSIS, 1870).

Após descrever o comportamento dos espectadores, o narrador deixa de

relatar sobre a peça teatral e passa a contar sobre o sonho que tivera durante a

apresentação após o primeiro ato. Essa passagem de uma história para outra,

muitas vezes encontra-se camuflada no texto, podendo ser reconhecida através do

discurso da narrativa como percebe-se na citação a seguir em que o narrador mostra

essa transição dentro de uma mesma história.

Eu, que felizmente estava em lugar onde não podia ser incomodado, estendi as pernas e entrei a olhar para o pano da boca, no qual, sem esforço da minha parte, apareceu-me a minha arrufada senhora com os punhos fechados e ameaçando-me com os olhos furiosos. (ASSIS, 1870).

A partir da citação anterior, o narrador passa a narrar em forma de diálogo, uma

segunda história sobre “O capitão Mendonça”, sujeito que possui um Laboratório em

que é gerada Augusta com quem Amaral ficará enamorado.

Segundo Leite, o primeiro passo para uma análise, é saber se o narrador está

em primeira ou terceira pessoa; o narrador se posiciona por cima, no centro, na

periferia, de frente ou mudando de posição em relação à história, utiliza suas

palavras, pensamentos das personagens ou, ainda da combinação de todos esses

elementos, o narrador coloca o leitor próximo ou longe da história. Em O capitão

Mendonça, percebe-se que o narrador se posiciona no centro fixo da história

utilizando suas palavras para narrar os fatos, limitado quase exclusivamente as suas

percepções, pensamentos e sentimentos, como podemos acompanhar no decorrer

da análise em que o narrador inicia a segunda história, descrevendo o encontro e

características do capitão Mendonça, sujeito a quem Amaral conheceu em sonho,

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tornando-se para ele a companhia mais aceitável naquele momento, pois a vida que

ele levava era tão monótona que a companhia do capitão Mendonça iria encher-lhe

de matéria nova, preenchendo-lhe o vazio que sentia naquele momento.

Que lhe parece a peça, sr. Amaral? Voltei-me para o lado de onde ouvia proferir o meu nome. Estava a minha esquerda um sujeito, já velho, vestido com uma sobrecasaca militar, e sorrindo amavelmente para mim. – Admira de lhe saber o nome ? Perguntou o sujeito. – Com efeito respondi eu; não me lembro de o ter visto... – A mim nunca me viu; cheguei ontem do Rio Grande do sul. Também eu nunca o tinha visto, e no entanto conheci-o. -- Adivinho, respondi eu. […] a vida que eu levava era tão monótona que a diversão do capitão Mendonça devia encher boa página de matéria nova. Digo a diversão do capitão Mendonça, porque o meu companheiro tinha não sei do que no gesto e nos olhos que me parecia excêntrico e original. Encontrar um original ao meio de tantas cópias de que anda farta a vida humana, não é um fortuna? (ASSIS, 1870).

Amaral acompanhou o capitão Mendonça, que continuou a falar durante o

caminho todo, arrancando-lhes de longe algumas palavras. Depois de algum tempo,

parados defronte a uma casa velha e escura, o capitão Mendonça convida-o para

entrar.

O velho bateu três pancadas; daí a alguns segundos rangia a porta nos gozos e nós entrávamos num corredor escuro e úmido. - Então não trouxeste luz? Perguntou Mendonça a alguém que eu não via. - Vim com pressa. - Bem: feche a porta. Dê cá a mão, sr. Amaral; esta entrada é um pouco esquisita, mas lá em cima estaremos melhor. Dei-lhe a mão. - Está trêmula, observou o capitão Mendonça. - Eu tremia, com efeito; pela primeira vez surgiu-me no espírito a suspeita de que o pretendido amigo de meu pai não fosse mais que um ladrão, e aquilo uma ratoeira aramada aos néscios. Mas era tarde para retroceder; qualquer demonstração de medo seria pior. Por isso, respondi alegremente: Se lhe parecer que não há de tremer quem entre por um corredor como este, o qual, haja de perdoar, parece o corredor do inferno. (ASSIS, 1870).

A singularidade do capitão Mendonça, da casa, tudo ia explicitando um certo

“terror” em Amaral que suspeitava ser uma armadilha, e que era tarde para

retroceder. Amaral compara o lugar como o corredor do inferno. Mendonça, parece

ouvir os pensamento de Amaral e replica dizendo: “Sim; não é o inferno, mas é o

purgatório”, enquanto guiava Amaral escada acima, fazendo-o estremecer. Ao

chegar na parte superior da casa, Amaral sente um certo “alívio”, o narrador mostra

que a sala é iluminada a gás, e mobilhada como todas as casas do mundo, fazendo

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uma certa ironia: “Está feito, o purgatório tem boa cara; em vez de caldeiras tem

sofás” (ASSIS, 1870).

O narrador descreve a ceia servida em outro ambiente da casa, em uma sala

de jantar, que ficava aos fundos da casa do capitão Mendonça: “A ceia era farta e

apetitosa; no centro campeava um soberbo assado frio; pastelinhos, doces, velhas

botelhas de vinho, completavam a ceia do capitão” (ASSIS, 1870).

Amaral conhece Augusta, filha de Mendonça, durante o jantar. Com a presença

da moça, Amaral fica mais tranquilo a respeito do capitão a quem ele suspeitava que

era doido.

Confesso que a presença da moça me tranquilizou um pouco. Não só deixara de estar a sós com um homem tão singular como o capitão Mendonça, mas a presença da moça naquela casa indicava que o capitão, se era doido como eu suspeitava, era ao menos um doido manso. (ASSIS, 1870).

Segundo Tacca, a visão de narrador determina, pois romance. Ele define dois

tipos fundamentais de narrador: narrador fora da história em terceira pessoa e

narrador dentro da história em primeira pessoa isso podemos concluir com o trecho

a seguir, em que o narrador nos apresenta as características físicas de Augusta

durante um diálogo, sentados em torno da mesa de jantar, em que Amaral propõe a

Augusta para serem “amigos” porque seus pais também eram.’

Augusta levantou para mim dois belíssimos olhos verdes. Depois sorriu e baixou a cabeça com ar de casquilhice ou de modéstia, porque ambas as coisas podiam ser. Completei-a nessa posição; era uma formosa cabeça, perfeitamente modelada, um perfil correto, uma pele fina, cílios longos, e cabelos cor de ouro, áurea coma, como poetas dizem do sol. Durante esse tempo Mendonça tinha concluído a tarefa; e começava a servir-nos. Augusta brincava com a faca, talvez para mostrar-me a finura da mão e o torneado do braço. (ASSIS, 1870).

Schüller afirma que, quanto à voz, o narrador pode eleger a primeira ou terceira

pessoa, quanto à perspectiva, o narrador pode ver os acontecimentos de perto ou a

distância, podem penetrar na psique das personagens ou restringir-se. Em O

Capitão Mendonça, o narrador quanto à voz elege a primeira pessoa, narrando fatos

vividos por ele, quanto à perspectiva, o narrador vê de perto como mostra o excerto

a seguir em que o capitão Mendonça oferece os olhos de Augusta para Amaral que

fica atônico diante de tal situação. “Então achas esses olhos bonitos? Quer que lhes

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dê?” o narrador mostra certo tom de comicidade ao acompanhar a cena em que

Augusta deixa cair os olhos nas mãos do “pai” e este oferece a Amaral, que nem por

isso enlouquece, nem deixa de frequentar a casa do estranho cientista, nem desiste

da moça, mesmo sabendo tratar-se de um manequim animado, pois nas palavras do

narrador personagem, “prevendo o triunfo do capitão, lembrei-me logo de ir

agarrando às abas da imortalidade”.

Olhei para Augusta. Era horrível. Tinha no lugar dos olhos dois grandes buracos como uma caveira. Desisto de descrever o que senti; não pude dar um grito; fiquei gelado. A cabeça da moça era o que mais hediondo pode criar imaginação humana; imaginem uma caveira viva, falando, sorrindo, fitando em mim os dois buracos vazios, onde pouco antes contemplava o meu espanto com sorriso angélico. - Veja-os de perto, dizia o velho diante de mim; palpe-os; diga-me se já viu obra tão perfeita. […] Era horrível tudo aquilo. - Está pálido! Disse Augusta, obrigando-me a olhar para ela já restituída ao estado anterior. (ASSIS, 1870).

O narrador nos direciona para a verticalidade da obra considerado o que tem

de alto e baixo no decorrer da narrativa. Em O Capitão Mendonça, a verticalidade se

caracteriza no que concerne o espaço ao poder sobrenatural de Deus, e o que se

refere abaixo, ao poder do homem, da ciência. Considerando que o poder divino

está acima, superior à humanidade e ao poder do homem, da ciência pressupõe

inferioridade, deixando explícito, que sua condição está abaixo do poder celestial.

A obra saiu perfeita, como vê, depois de muitos ensaios. O penúltimo ensaio era completo, mas faltava uma coisa a obra; eu queria que ela saísse tão completa como a que o outro fez [...] . A penúltima Augusta que saiu do laboratório não tinha isso; vaidade […]. Mas eu não penso assim; o que eu quero é fazer uma obra igual a do outro. Nem sempre se encontra um homem como eu: um irmão de Deus, Deus na terra porque eu também posso criar como ele, e até melhor porque eu fiz Augusta e ele nem sempre faz criaturas como esta (ASSIS, 1870).

Na sequência, o narrador mostra o orgulho de Augusta por ser uma criatura

produzida em laboratório. “Porque eu não sou filha bastarda. Todas as outras

mulheres são filhas bastardas, eu só posso gabar-me de ser filha legítima, porque

sou filha da ciência e da vontade do homem” (ASSIS, 1870).

Além da verticalidade, o narrador, através de seu discurso, volta nosso olhar

para a simbologia presente na narrativa, que na voz de Alfredo Bosi, a compreensão

à medida que se debruça sobre o fenômeno simbólico, não se contenta com um

discurso monolítico. Postula o princípio de que forma verbal do signo é aparente,

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mas não transparente. E o símbolo ao mesmo tempo exprime e supõe, revela e

oculta, explicita, mas traz implícito um processo subjetivo e histórico que funda e

ultrapassa. Seguindo tais conceitos de Bosi, no conto O Capitão Mendonça, os

símbolos representam os enigmas, a obscuridade do texto em que o autor através

do uso de analogias permite ao leitor a conhecer a sua visão de mundo. No texto em

análise, Augusta é descrita pelo capitão Mendonça como racional e completa,

simbolizando a evolução humana. A coruja simboliza, pela mitologia grega,

sabedoria antiga. A ciência de Hermes, ciência vinda dos deuses. No conto

machadiano, Mendonça descobriu a ciência da vida. Ele não pretende que os outros

saibam ou descubram o seu segredo, comparando-se com Deus. O olhar, segundo

ele, o “segredo da vida é a química”.

Augusta é minha obra-prima. É produto químico; gastei três anos para dar ao mundo aquele milagre; mas a perseverança vence tudo, e eu dotado de um caráter tenaz. Os primeiros ensaios foram maus; três vezes saiu a pequena dos meus alambiques, sempre imperfeita. A quarta foi o esforço de ciência. Quando aquela perfeição apareceu caí-lhe aos pés. O criador admira a criatura. A mobília era antiga, não só no molde, mas também na idade. […] Numa das paredes havia pendurados alguns animais empalhados. Na parede fronteira a essa havia apenas uma coruja, também empalhada, e com os olhos de vidro verde, que apesar de fixos, pareciam acompanhar todos os movimentos que a gente fazia. Aqui voltaram meus sustos. Sabe que a química foi chamada pelos antigos, entre outros nomes, ciência de Hermes. Acho inútil lembrar-lhes que Hermes é o nome de Mercúrio, e Mercúrio é o nome de um corpo químico. […] O homem é um composto de molécula e corpos químico; quem os souber reunir tem alcançado tudo. […] Tens razão, tudo, não; porque o grande segredo consiste em uma descoberta que eu fiz e constitui por assim dizer o princípio da vida. Isso é que há de morrer comigo. (ASSIS, 1870).

Seguindo as pistas do narrador, podemos analisar o tempo da narrativa que

segundo Schüler, diz que o tempo da narração é provocado pela distância entre os

acontecimentos não narrados e a ocasião em que teriam ocorridos. Schüler diz, que,

segundo Saussure, o tempo pode ser sincrônico e diacrônico. A lei diacrônica do

romance é sua contínua transformação, o que o apresenta como representante

expressivo da modernidade, termo que surgiu na Idade Média no século XII, mas só

no século XVIII é que teve sua exaltação. Já o tempo sincrônico demora no estudo

de sua organização. Em O Capitão Mendonça, o conto apresenta como

representante expressivo a modernidade. O conto está repleto de carência e

plenitude. Isso percebe -se durante o primeiro ato em que Amaral vai ao Teatro de

São Pedro para distrair- se de alguns arrufos amorosos, assiste ao primeiro ato

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como podemos concluir através do enunciado do narrador personagem que nos

descreve a primeira parte da representação e no segundo momento da narrativa em

que Amaral dorme e tem pesadelos tão verossímeis quanto o da peça. O tempo é

marcado pela dualidade do conto acordado no primeiro momento e dormindo no

segundo momento. De acordo com as citações a seguir, o tempo cronológico deu-se

durante a apresentação de uma peça teatral e o psicológico, durante o sonho.

O ato prometia; começava por um homicídio e acabava por um embuçado que eu suspeitei ser a mãe ou pai da menina. Falava-se vagamente de um marquês incógnito, e aparecia a orelha de um segundo próximo assassinato na pessoa da condessa velha. O ato acabou com muitas palmas. Acorde quem tem sono dorme em casa, não vem ao teatro. […] Pois o espetáculo acabou. [...] - Eu dormi esse tempo todo? Como uma pedra. Que vergonha! Realmente, não fez grande figura; todos os que estavam perto riam de o ver dormir enquanto representava. Parece que o sono foi agitado (ASSIS, 1870).

No final da segunda narrativa, o narrador deixa clara essa fusão entre a parte

real e a em sonho, explicita no seguinte trecho da narrativa em que Amaral é

acordado pelo o porteiro do teatro. Aqui confirma-se mais um passo do narrador

diante dos fatos, onde tudo não passou de um sonho no qual Amaral mergulhou sob

efeito de um dramalhão soporífero que fora assistir no Teatro São Pedro e que ao

ser acordado, “sai protestando não recorrer, em casos de arrufos, aos dramas ultra-

românticos: são pesados demais”.

Quando dei acordo de mim o laboratório estava deserto; pai e filha tinham desaparecido. Pareceu-me ver em frente de mim uma cortina. Uma voz forte e áspera soou aos meus ouvidos: Olá! Acorde! Que é? Acordei! Que tem sono dorme em casa, não vem ao Teatro. Abri de todo os olhos; vi em frente de mim um sujeito desconhecido; eu achava-me sentado numa cadeira no Teatro S. Pedro. Ande disse o sujeito, quero fechar as portas. - Pois o espetáculo acabou? - Há dez minutos. - E eu dormi esse tempo todo? - Como uma pedra. - Que vergonha! - Realmente, não fez grande figura; todos que estavam perto riam de o ver dormir enquanto se representava. Parece que o sono foi agitado... Sim um pesadelo... Queira perdoar; vou-me (ASSIS, 1870).

Se por uma lado, a narrativa em primeira pessoa confere verossimilhança ao

relato, “supondo-se”, nas palavras de Alfredo Bosi, “que o narrador ao assumir-se

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como sujeito do enunciado, seja a testemunha mais idônea para contar a sua própria

história”, por outro lado, são conhecidas igualmente as armadilhas desse

procedimento retórico, dado o comportamento arbitrário desse narrador, que conta o

que bem entende, sob o respaldo de que abre mão da “presunção da certeza

universal suposta no historiador em terceira pessoa”. No conto machadiano, O

Capitão Mendonça, esse elemento complicador é explorado em todo seu potencial,

dado que aqui não há somente uma narrativa em primeira pessoa, mas duas

narrativas em primeira pessoa, uma dentro da outra como podemos concluir no

decorrer de toda a análise, seguindo as pistas apresentadas pelo narrador.

Segundo Gancho (1998), o narrador em primeira pessoa ou narrador

personagem é aquele que participa diretamente do enredo como qualquer

personagem, portanto tem seu campo de visão limitado, isto é, não é onipresente,

nem onisciente. Em O Capitão Mendonça, o narrador participa dos fatos, como

percebemos no decorrer da análise. Sendo assim, podemos definir que o narrador

de O Capitão Mendonça é Amaral, personagem narrador que relata com suas

palavras as duas história vivida por ele, uma no tempo real e outra em sonho, após

dormir durante uma peça teatral no Teatro de São Pedro.

Após várias pistas fornecidas pelo narrador, e de acordo com os conceitos

apresentados sobre ele, é possível, afinal, identificar o tipo de focalização presente

no conto O capitão Mendonça de, Machado que é narrada em primeira pessoa com

uma “visão com”, por ser definida como aquela na qual o narrador tem ciência

somente daquilo que a personagem sabe sobre si e os acontecimentos. Sendo

assim, o narrador de O Capitão Mendonça é um narrador-personagem em primeira

pessoa, onipresente, homodiegético por ser ele entidade que veicula informações

advindas de sua própria experiência diegética, vivido na história como personagem

que relata os fatos. Como caracterização desse narrador pode-se apresentar o

seguinte trecho.

[…] Olhei para Augusta, e esta olhou para mim. Aquela moça era o único laço que havia entre mim e o mundo, porque tudo naquela casa me parecia realmente fantástico; e eu já não duvidava do caráter purgatorial que me fora indicado pelo o capitão (ASSIS, 1870).

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5 CONCLUSÃO

No conto Um esqueleto, o narrador exerce o papel de um observador imparcial

que analisa realisticamente a conduta e o meio materialmente observáveis; está a

par de todos os detalhes e fatos existentes na obra. O narrador acompanha todo o

desenrolar da história contada oralmente por Alberto, narrador- personagem do

relato sobre Dr. Belém, o qual foi professor de alemão de Alberto. Em O capitão

Mendonça, o narrador se posiciona no centro fixo da história utilizando suas palavras

para narrar os fatos, limitado quase exclusivamente as suas percepções,

pensamentos e sentimentos. O narrador relata toda a história vivida por ele sobre O

capitão Mendonça, personagem central da narrativa que ele conheceu em sonho

tornando-se a companhia mais aceitável naquele momento, pois a vida que ele

levava era tão monótona que a companhia do capitão Mendonça iria encher-lhe de

matéria nova.

O exercício da critica era uma constante para Machado de Assis, tanto pelos

narradores quanto para as outras obras. Assim como o narrador de Um Esqueleto,

que é crítico ao acompanhar a trajetória das personagens.

Em “O ideal do crítico”, parâmetro inicial para linhas mestras de sua atuação na

crítica literária, Machado argumenta que, para mudar a “situação aflitiva” de então,

era preciso estabelecer “a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada”, pois

seria o meio de “re-erguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes,

corrigir os talentos feitos” dos escritores.

O ideal do crítico, trata-se portanto, de um ideal análogo a uma certa

intervenção pedagógica, que imagina o crítico como guia e conselheiro. Por isso, a

referência explicita à “moderação e a urbanização”: “moderação e urbanidade na

expressão, eis o melhor meio para convencer, não há outro que seja tão eficaz”.

Para Machado, o crítico deve ser educado, que não seja delicado nas observações e

restrições que faz ao autor que examina, dificilmente será levado em consideração

pelo criticado. “Uma crítica que, para expressão de suas ideias, só encontra fórmulas

ásperas, pode perder a esperança de influir e dirigir”, ou seja, a crítica pretende

influir e dirigir e só pode influenciar e dirigir os contemporâneos a ele invocada a

necessidade de independência em relação ao meio em que emerge a crítica.

Machado ainda diz que, para que uma crítica seja mestra, é preciso que seja

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imparcial, armada contra a insuficiência dos seus amigos, solícita pelo mérito dos

seus adversários. Segundo o autor, o crítico deveria “ter alguma coisa mais simples

desejo de falar à multidão” referindo-se ao ideal de não praticar deste gênero, que

tinha plateia garantida e interessada então, e que frequentemente não era praticado

com moderação e a urbanidade que Machado pregava.

Na visão de Machado, o autor criticado deveria ter a atitude de manter a

coerência com perspectiva de aconselhar e guiar. Para ele, no que diz respeito à

tolerância, primeiro deve-se tratar da questão de como abordar os textos de “escolas

literárias” diferentes. Precisa que o crítico seja tolerante, mesmo no seu terreno.

Ao analisar a obra, pode-se facilmente observar que é narrada com uma visão

por trás, em que o narrador não toma parte na história, possui um conhecimento

amplo e irrestrito sobre todos os fatos, descrevendo não só o que é visível, como

também os pensamentos das personagens e fatos que irão acontecer

posteriormente ao que é apresentado na narrativa. Ao analisar a obra, percebe-se

que é uma narrativa em primeira pessoa, narrada com uma “visão com”, por ser

definida como aquela na qual o narrador tem ciência somente daquilo que o

personagem sabe sobre si e os acontecimentos ou seja, possui uma visão limitada.

Sendo assim, segundo as teorias estudadas de Donaldo Schüler, Oscar Tacca,

D' Onofrio entre outros, pode-se dizer que o narrador de Um esqueleto, de Machado

de Assis é um narrador onisciente, heterodiegético, tudo sabe e tudo vê, ele

caracteriza, descreve e explicita as personagens de qualquer ângulo ou distância,

porém não tece comentários a respeito dos pensamentos e ações das personagens.

Já o narrador no conto O capitão Mendonça é um narrador -personagem em

primeira pessoa, onipresente, homodiegético por ser ele entidade que veicula

informações advindas de sua própria experiência diegética, vivido na história como

personagem que relata os fatos.

A preocupação do autor era analisar a sociedade e o país desde suas origens.

Em 1873, Machado acrescenta que não se deve buscar no indígena a nossa

personalidade literário-romântica, mas tudo isso com uma ressalva importantíssima

de que tudo pode ser matéria de poesia, o que inclui o índio, desde que evolva o

belo. O índio pode ser apropriado literariamente, desde que esteticamente seja

elaborado.

Machado estabelece, em termos de julgamento quanto de criação literária, pois

não se obriga a adotar nem a rejeitar necessariamente práticas literárias de sua

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época. Pode oferecer argumentos com viés diferente daqueles elaborados pelos que

dotaram mais irrestritamente os preceitos das escolas românticas ou realistas/

naturalista..

Em relação ao Romantismo, a tese de que os textos deveriam ter a “cor local”

era generalizada, porque o movimento do Brasil veio a bojo de um nacionalismo

pós-independência, no qual de certa forma se propunha que falar das coisas do

país, paisagem, flora, fauna, populações era uma espécie de dever patriótico.

Machado argumenta que, embora aceitem a tematização de cor local como

possibilidade, consideram não ser visto como brasileiro que ele tenha a tratar de

coisas do país, e muito menos que tenha obrigatoriamente de produzir descrições de

lugares, habitantes, natureza nacionais: “Um poeta não é nacional só porque

inscreve nos seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar

nacionalidade do vocabulário e nada mais”.

Uma criação literária não estaria em elementos “exteriores” ao sujeito, como a

paisagem, flora, fauna, populações, mas sim, em algo “interior” naquele que

Machado chama de “sentimento íntimo”, que tornaria o escritor homem do seu

tempo e do seu país, ainda quando se trate de assuntos que na superfície não

parecem ser nacionais.

As personagens urbanas dos contos e suas difíceis relações sociais e íntimas

exemplificam como cada narrador representa o social.

A existência de uma relação entre a produção dos contos e o desejo do autor

em manter e solidificar uma literatura nacional, descobrindo através deles, o caráter

não nacionalista, mas nacional, que traduz o “sentimento íntimo” de que fala no texto

Instinto de Nacionalidade, de 1873.

A vocação do leitor, nas narrativas, a partir da fala direta, visaria a uma melhor

exibição do quadro cultural brasileiro, que o escrito sonharia modificar.

Enquanto o único propósito admitido por ele para os contos seria interessar ao

leitor, à intenção verdadeira, oculta, mas possível se ser percebida, é fazê-lo

compartilhar, mesmo que lúdica e momentaneamente de uma determinada visão de

mundo em que se insere a transformação da realidade pela linguagem. O conto

revela-se assim, um instrumento de crítica social no projeto machadiano de

mudanças da sociedade brasileira.

Machado de Assis foi o maior crítico de seus próprios contos, selecionando

apenas setenta e seis, entre os mais de duzentos, para serem publicados em

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coletâneas.

As características dos contos de Machado de Assis, por sua peculiaridade,

sempre motivaram-no no cenário de sua crítica sobre o romance, destacando a

adequação do minucioso olhar machadiano a um gênero em que a brevidade exige

ênfase no episódio, a fim de obter coesão.

A brevidade e a concisão – exigências estruturais do conto, não possibilitam as intromissões do narrador. Assim, os textos fluem com intensidade, revelando a mesma temática das obras mais longas, apenas que concentrada numa escrita mais limpa e direta. (GONZAGA, 1991, p. 105).

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REFERÊNCIAS

ASSIS, Joaquim M. M. O Capitão Mendonça. Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1870. Disponível em: <www2.uol.com.br/machadodeassis>. Acesso em: 20 abr. 2010. ______. Um esqueleto & outras histórias. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1996. ______. Instinto de Nacionalidade & outros ensaios. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999. D' ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto: prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1995. GANCHO, Cândido Vilares. Como analisar narrativas. 5. ed. São Paulo: Ática, 1998. LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 2001. PEREIRA, Lúcia M. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1955. REIS, Carlos Antônio Alves dos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2000. SCHÜLER, Donaldo. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989. SILVA, Vítor M. de Aguiar. A estrutura do romance. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1974. TACCA, Oscar. As vozes do romance. Portugal: Coimbra, 1983.

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OBRAS CONSULTADAS

ASSIS, Joaquim M. M. Crítica e variedades. São Paulo: Globo, 1997. CASTELO, José Aderaldo. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Agir, 1959. CORONEL, Luiz. Dicionário Machado de Assis: ontem, hoje e sempre. Porto Alegre: Mecenas, 2007. COUTINHO, Afrânio. Machado de Assis na Literatura brasileira. Rio de Janeiro: São José, 1960. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. 3. ed. Lisboa: Veiga, 1995. SANTOS, Volnyr. Literatura. 3. ed. Porto Alegre: Sagra, 1988.