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Outubro de 2008 Obs.: Algumas notas de rodapé foram descartadas no momento da digitalização (pois só traziam informações de fontes de pesquisa do autor). Mas as que traziam informações adicionais ao conteúdo foram preservadas, e estão com a fonte de cor cinza. Boa leitura...

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SUMÁRIO

Capítulo I INTRODUÇÃO 1. Definição do trabalho e sua importância.....................................................................6 2. Estrutura adotada........................................................................................................6 3. Objetivos teóricos perseguidos....................................................................................6

Capítulo II HERMENÊUTICA E APLICAÇÃO DO DIREITO 4. Hermenêutica: conceito e aspectos gerais................................................................. 7 5. Lei como forma de comunicação humana.................................................................. 8 6. Hermenêutica, interpretação, aplicação e integração do Direito................................ 8 7. Evolução da hermenêutica em prol de um direito centrado no homem e no povo.................................................................................................................................10

Capítulo III MOMENTOS (OU PROCESSOS) DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA 8. Conceito e espécies.....................................................................................................11 9. Momento (ou processo) literal, gramatical ou filológico .............................................12 10. Momento (ou processo) lógico ou racional............................................................... 13 11. Momento (ou processo) sistemático ou orgânico..................................................... 14 12. Momento (ou processo) histórico ou histórico-evolutivo........................................... 15 13. Momento (ou processo) teieológico.......................................................................... 17 14. Momento (ou processo) sociológico......................................................................... 18

Capítulo IV ESCOLAS HERMENÊUTICAS 15. Conceito e divisão......................................................................................................20 16. Escolas de estrito legalismo ou dogmatismo.............................................................22 16.1. Escola da Exegese.................................................................................................22 16.2. Escola dos pandectistas.........................................................................................24 16.3. Escola Analítica de Jurisprudência.........................................................................24 17. Escolas de reação ao estrito legalismo ou dogmatismo............................................25 17.1. Escola Histórica do Direito......................................................................................25 17.1.1. Escola Histórico-dogmática.................................................................................26 17.1.2. Escola Histórico-evolutiva...................................................................................26 17.2. Escola Teleológica.................................................................................................27 18. Escolas que se abrem a uma interpretação mais livre............................................ 28 18.1. Escola da Livre Pesquisa Científica......................................................................29 18.2. Escola do Direito Livre......................................................................................... 30 18.3. Escola Sociológica Americana............................................................................. 34 18.4. Escola da Jurisprudência de Interesses...............................................................36 18.5. Escola Realista Americana.................................................................................. 37 18.6. Escola Egológica..................................................................................................39

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18.7. Escola Vitalista do Direito..................................................................................... 42 19. Direito Alternativo.................................................................................................... 44

Capítulo V A APLICAÇÃO DO DIREITO NUMA PERSPECTIVA AXIOLÓGICA, FENOMENOLÓGICA E SOCIOLÓGICO-POLÍTICA 20. Uma tríplice perspectiva na aplicação do Direito......................................................... 45 21. A aplicação do Direito numa perspectiva axiológica.................................................... 45 21.1. — Pertinência da perspectiva axiológica na aplicação do Direito ............................45 21.2. — Argumentos contrários à vertente axiológica na aplicação do Direito. Recusa preliminar desses argumentos........................................................................................... 46 21.3. A posição da doutrina em face do tema da valoração da lei pelo Juiz..................... 46 21.3.1. A valoração da lei pelo juiz na doutrina brasileira............................................. 47 21.3.2. A valoração da lei pelo juiz na doutrina estrangeira.............................................. 49 21.3.3. Valoração da lei pelo juiz: colocações complementares........................................49 21.4. A crítica valorativa da norma e o sistema jurídico brasileiro ....................................50 21.5. Fundamentação teórica para a aplicação axiológica do Direito................................50 21.5.1. Condições metodológicas que devem presidir à aplicação axiológica do Direito..................................................................................................................................50 21.5.2. Condições ideológicas que devem orientar a aplicação axiológica do Direito................................................................................................................................. 51 21.5.3. Condições éticas relativamente aos magistrados que têm de pressupor a aplicação axiológica do Direito.......................................................................................... 51 21.5.4. A hegemonia do juiz na vida do direito, observadas as condições que se colocam.............................................................................................................................. 52 22. A aplicação do Direito numa perspectiva fenomenológica...........................................52 23. A aplicação do Direito numa perspectiva soeiológico-política......................................55 23.1. A essencialidade da aplicação sociológico-política do Direito.................................. 55 23.2.0 agasalho ao Direito e à cultura popular como fundamento de uma postura sociológico-política.............................................................................................................55 23.3. Objeções à concepção extensiva da aplicação sociológico-política do Direito....... 58 23.4. Refutação das objeções............................................................................................58 23.4.1. A lei ante o caso singular e a mudança social........................................................58 23.4.2. O conteúdo subjetivo e político inerente a toda sentença..................................... 59 23.4.3. A supremacia do valor Justiça sobre o valor Segurança........................................61 23.4.4. Se o juiz falha, não é a lei que o salvará................................................................62 23.4.5. A representatividade popular dos juizes................................................................ 63 23.4.6. A Escola do Direito Justo, Magnaud e o posicionamento assumido neste livro.....................................................................................................................................65 23.4.7. Condições para a utilização dos recursos da Informática......................................66

Capítulo VI CONCLUSÃO 24. Os objetivos que este livro pretendeu alcançar............................................................67 25. Síntese das perspectivas propostas.............................................................................67 26. Considerações complementares..................................................................................68 26.1. A modernização e a democratização da Justiça como requisitos para o desempenho eficaz do papel intervencionista que cabe à magistratura................................................. 68

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26.1.1. A realidade da Justiça no Brasil e o imperativo de Mudança.................................68 26.1.2. Medidas em favor da modernização, melhoria e democratização do aparelho judiciário..............................................................................................................................69 26.1.3.0 poder das minorias como instrumento transformador..........................................72 26.2. A Justiça, o juiz e a libertação do oprimido...............................................................72 26.2.1. A Justiça como instrumento de libertação..............................................................72 26.2.2. A salvação do Direito pela arte do juiz....................................................................73 26.2.3. Em busca de um Direito da libertação....................................................................73

APÊNDICE - Entrevista concedida pelo Autor ao Jornal A Gazeta, de Vitória, por Ocasião do Lançamento da Ia Edição deste Livro............................................................................75

Bibliografia........................................................................................................................87

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Capítulo I INTRODUÇÃO 1. DEFINIÇÃO DO TRABALHO E SUA IMPORTÂNCIA

O presente trabalho é uma pesquisa teórica que trata de problemas relacionados com a Hermenêutica, a interpretação e a aplicação do Direito.

Sua importância resulta, quer da posição eminente do assunto nas perquirições da Teoria Geral do Direito,1 quer dos aspectos práticos ligados ao exercício das profissões jurídicas.

Não obstante outras obras, no Brasil e no Exterior, já tenham tratado longamente da matéria, o enfoque desta monografia é original, como originais são algumas de suas contribuições.

2. ESTRUTURA ADOTADA

Dividi o presente estudo em seis capítulos: - o primeiro — esta introdução -, para situar as questões que serão desenvolvidas; - o segundo, em que trato de questões genéricas ligadas à hermenêutica, à interpretação e à aplicação do Direito, e onde termino por apontar o salto que julgo deva ser dado pelo aplicador do Direito, fazendo do homem julgado e das aspirações sociais o centro inspirador da Hermenêutica, ponto que é retomado e desenvolvido no quinto capítulo; - o terceiro, que cuida dos momentos (ou processos) da interpretação jurídica; - o quarto, que versa, abreviadamente, sobre as escolas hermenêuticas. Estas são frutos da disputa entre concepções do Direito e posições em face do labor hermenêutico; - o quinto, através do qual procuro explicitar uma visão hermenêutica que nasceu da experiência pessoal, conjugada com a reflexão sobre doutrinas e autores, buscando resolver a angústia de distribuir Justiça, em choque com dogmas que era preciso deslindar e discutir; - o sexto, em que procuro concluir a visão teórica, elaborada no curso da dissertação, e explicitar os requisitos estruturais que podem tomar possível o papel que o livro destina ao juiz.

As considerações gerais sobre a Hermenêutica servem de preparação aos capítulos seguintes. Dos processos de interpretação, da posição dos juristas em face da aceitação exclusiva ou da primazia de uma ou outra técnica, ou critério hermenêutico, emergem as escolas hermenêuticas. O estudo destas permite aquilatar a evolução do pensamento jurídico no que se refere à interpretação e aplicação do Direito, bem como compreender o alcance e os limites da contribuição deste estudo ao tema de que cuida. 1 A teoria da interpretação é tema da Teoria Geral do Direito. Esta é um conhecimento epistemológico, portanto filosófico, que constitui o centro da Introdução à Ciência do Direito. Fernando Fueyo Laneri observa que a interpretação jurídica é estudada em variados ramos do Direito. Contudo, "su puesto preciso se encuentra en la Doctrina General dei Derecho". Cf. Fernando Laneri Fueyo. Interpretacióny Juez. Santiago de Chile, Universidad de Chile y Centro de Estúdios "Ratio Iuris", 1976, p. 161. 3. OBJETIVOS TEÓRICOS PERSEGUIDOS

Tento cooperar na elaboração de uma doutrina da aplicação do Direito, fundamentando uma percepção sedimentada no exercício da magistratura trabalhista e comum durante cerca de trinta anos. A expressão teórica dessa práxis seria um Direito

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aplicado, simultaneamente, sob a perspectiva axiológica, fenomenológica e sociológico-política.

A perspectiva axiológica afirma que o juiz é portador de valores de que impregna suas sentenças. Há de ser o varão digno que julgue o povo com retidão e veja sempre a Justiça a serviço do homem.

A perspectiva fenomenológica levará o julgador a descer ao homem julgado, buscar seu mundo, compreender suas circunstâncias.

A perspectiva sociológico-política possibilitará ao juiz a pesquisa dos valores do povo, a identificação do seu sentimento do justo, a consideração do homem comum, o desempenho de uma função renovadora e progressista, à frente da lei.

As três perspectivas vão afinal embasar uma visão humanística do ofício judicial. Essa visão humanística, a meu ver, é a única que pode possibilitar a libertação da lei.

De outra forma, o sacerdote e o levita continuarão a passar de largo, deixando sem socorro o ferido de Jerico - homem, mas desconhecido que não entra na fórmula, que não está compreendido no elenco das pessoas que se devem ajudar. Capítulo II 4. HERMENÊUTICA: CONCEITO E ASPECTOS GERAIS

Hermenêutica, na sua acepção mais geral, é a interpretação do sentido das palavras. Esse sentido das palavras, que cabe à Hermenêutica interpretar, restringe seu campo à linguagem verbal, excluído, assim, o conceito amplo de linguagem, aquele que abarca "todas as formas que servem a propósitos comunicativos".

A palavra hermenêutica provém do grego hermeneúein, interpretar, e deriva de Hermes, deus da mitologia grega, considerado o intérprete da vontade divina.

No Organon, de Aristóteles, encontramos o mais remoto emprego do vocábulo hermenêutica, tal como o traduziu Theodor Waitz, em 1844.

Grande prestígio ganhou a Hermenêutica quando se intensificou o interesse pela interpretação das Sagradas Escrituras. Isso ocorreu, especialmente, a partir do século XVI, com Mathias Flacius Illyricus.

A Hermenêutica afirma-se como disciplina filosófica em 1756, ano em que Georg Friedrich Maier escreve uma obra, defendendo sua importância no campo da especulação.

Segundo Heidegger, a Hermenêutica é o estudo do compreender. Compreender significa compreender a significação do mundo. O mundo consiste numa rede de relações, é a possibilidade de relações. Pode-se organizar o mundo matematicamente; pode-se conceber o mundo teologicamente; pode-se interpretar o mundo como linguagem, que é o que interessa ao hermeneuta. Então, o mundo se torna dizível, o mundo é convertido na linguagem que nós utilizamos.

A Hermenêutica é sempre uma compreensão de sentido: buscar o ser que me fala e o mundo a partir do qual ele me fala; descobrir atrás da linguagem o sentido radical, ou seja, o discurso.

Heidegger, Husserl e os demais filósofos da corrente fenome nológica entendem que só se possa compreender o homem e o mundo a partir de sua facticidade.

Dentro dessa concepção, toda hermenêutica é uma metafísica, uma ontologia fenomenológica.

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5. LEI COMO FORMA DE COMUNICAÇÃO HUMANA

A lei é uma forma de comunicação humana Forma imperativa de comunicação, destinada a regular a conduta de um grupo social e emanada de um homem, de um grupo de homens, de uma classe, ou da totalidade do grupo social, para traduzir os interesses absolutos da classe minoritária dominante, numa sociedade de opressão ilimitada, ou para expressar soluções de compromisso, numa sociedade onde os domina dos tenham possibilidade de fazer valer sua força, ou para estabelecer a igualdade e o direito de todos, numa sociedade que tenha superado, ou esteja em vias de superar, qualquer forma de dominação e exploração.

A hermenêutica jurídica é parte desse processo de comunicação. David Berlo assinala a presença de seis elementos no processo completo de

comunicação: a fonte, o codificador, a mensagem, o canal, o decodificador e o receptor. Creio adequado utilizar o esquema de David Berlo para dissecar o processo de

comunicação que se efetiva através da lei. Teremos, então: como fonte, o legislador; como codificador, a palavra escrita; como mensagem, o conteúdo da lei; como canal, o pergaminho, o jornal ou o livro no qual se faça o registro do texto legal; como decodificador, a leitura; como receptor, a pessoa a quem a lei é dirigida, a qual opera o processo de decodificação.

Embora a lei seja codificada, normalmente, através da palavra escrita, uma exceção à regra são os sinais de trânsito, que obrigam sob sanção, com características de lei, e que não se limitam ao uso da palavra escrita mas apelam também para o desenho.

A palavra sob a forma escrita (em oposição à forma oral) é, modernamente, o código obrigatório para o legislador.

No Brasil, a lei entra em vigor quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada, salvo disposição contrária.

Na prática, porém, a palavra escrita não é o único nem o principal veículo de comunicação entre o legislador e o receptor. O rádio e a televisão noticiam a promulgação das leis antes de sua publicação na imprensa oficial. E depois de ter sido a lei publicada o conhecimento de sua existência também chega ao receptor oralmente, pela circulação verbal da notícia.

A comunicação será tanto mais fiel quanto menor número de fatores, nas diversas etapas do processo, influírem na alteração da mensagem que a fonte pretenda transmitir ao receptor.

No caso da comunicação através da lei, a fonte deve cuidar da fidelidade à mensagem, no momento da codificação. Contudo, desprestigiada, modernamente, a idéia de que o intérprete deveria descobrir e revelar a vontade, a intenção do legislador, o processo hermenêutico parte da mensagem já codificada.

6. HERMENÊUTICA, INTERPRETAÇÃO, APLICAÇÃO E INTEGRAÇÃO DO DIREITO A expressão hermenêutica jurídica é usada com diferente extensão, ou acepção, pelos autores com freqüência, vê-se hermenêutica jurídica usada como sinônimo de interpretação da lei. Outras vezes, é dado aos vocábulos um sentido amplo, que abrange a interpretação e a aplicação.10 Carlos Maximiliano distingue Hermenêutica e Interpretação. A Hermenêutica é a teor ia científica da arte de interpretar. Tem por objeto "... o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito".' A interpretação é a aplicação da Hermenêutica.12

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Ainda Carlos Maximiliano observa que: "... interpretar uma expressão de Direito não é simplesmente tomar claro o respectivo dizer, abstratamente falando; é, sobretudo, revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta".

Sentidos mais amplos da expressão, afirma que, no sentido restrito, hermenêutica é sinônimo de interpretação, que o tema tradicionalmente arrolado como especifico da hermenêutica jurídica é o da interpretação, seus processos e sua técnica. Cf. Teoria Geral do Direito, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1966, pp. 233 e 234. Também Naylor Salles Gontijo identifica Hermenêutica Jurídica e Interpretação do Direito. Cf. Introdução à Ciência do Direito, Rio de Janeiro, Forense, 1969, p. 291. Da mesma forma, A. B. Alves da Silva. Cf. Introdução à Ciência do Direito, Rio de Janeiro, Agir, 1956, p. 270. 10 Paulo Dourado de Gusmão entende que a Hermenêutica Jurídica é a "parte da ciência do direito que trata da interpretação e aplicação do direito". Cf. Introdução ao Estudo^ do Direito, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 253. Machado Neto, numa primeira extensão do conceito, vê a hermenêutica abrangendo a interpretação, a integração e, quiçá, a própria aplicação. Num sentido ainda mais amplo, identifica Hermenêutica Jurídica como Teoria da Técnica Jurídica, ou seja, a parte da Teoria Geral do Direito cujo horizonte temático é a lógica jurídica material, em oposição à Teoria Geral do Direito stricto sensu, cujo horizonte temático é a lógica jurídica formal. Cf. A . L. Machado Neto, Teoria Geral do Direito, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1966, pp. 26 e 233. 12 Paulo Nader, que também distingue os conceitos, diz que a hermenêutica é teórica e visa a estabelecer princípios, critérios, métodos, orientação geral. Já a interpretação é de cunho prático, aplicando os ensinamentos da hermenêutica. Ver Paulo Nader, Introdução ao Estudo do Direito, Rio de Janeiro, Forense, 1982, p. 314. No mesmo sentido, cf. Orlando de Almeida Secco, Introdução ao Estudo do Direito, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1981, p. 185. 13 Carlos Maximiliano, ob. cie, p. 22. Ao termo "interpretação das leis" Carlos Maximiliano prefere "interpretação das expressões do Direito" porque não se interpretam apenas as leis, mas também o Direito Consuetudinário, os decretos, regulamentos em geral, avisos e portarias ministeriais, instruções e circulares de autoridades administrativas, usos e decisões judiciárias, contratos, testamentos e outros atos jurídicos, ajustes e contratos internacionais, convenções interestaduais e intermunicipais.

Interpretar é apreender ou compreender os sentidos implícitos nas normas jurídicas. E indagar a vontade atual da norma e determinar seu campo de incidência. É expressar seu sentido recorrendo a signos diferentes dos usados na formulação original.

A interpretação é tarefa prévia, indispensável à aplicação do Direito. A aplicação do Direito consiste em submeter o fato concreto à norma que o regule. A aplicação transforma a norma geral em norma individual, sob forma de sentença

ou decisão administrativa.16 Quando para o fato não há norma adequada, o aplicador preenche a lacuna; através da integração do Direito.

A integração é o processo de preenchimento das lacunas existentes na lei. Na interpretação, parte-se da lei, para precisar-lhe o sentido e o alcance. Na integração, parte-se da inexistência de lei.

Se existe a norma, o aplicador, grosso modo, enquadra o fato na norma. Na pesquisa da relação entre o caso concreto e o texto abstrato, entre a norma e o fato social, a tarefa do aplicador, 15 "Interpretar un enunciado quiere decir ordinariamente expresar su sentido recurriendo a signos diferentes de los usados para formulário originalmente." Roberto José VernengOi Curso de Teoria General dei Derecho, Buenos Aires, Cooperadora de Derecho y Ciências Sociales, 1976, p. 404. Adverte Sônia Maria S. Seganfreddo que o trabalho interpretaiivo não se limita a decifrar os sinais que os sentidos percebem mas, também, visa à criação c elaboração intelectual, que conduz o intérprete a novas situações quando desentranha o sentido de uma expressão. Cf. Sônia Maria S. Seganfreddo, Como Interpretar a Lei. Rio dc Janeiro, Ed. Rio, 1981, p. 14.

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16 Num sentido amplo, não haveria aplicação do Direito apenas nestas duas hipóteses Entendendo como Kelsen que a aplicação é a formulação da norma particular, a partir dn norma geral, haveria aplicação constitucional quando a Constituição é aplicada ao ia proceder a sua reforma, aplicação legislativa quando se aplicam as disposições da Constituição para elaborar as leis, aplicação jurisdicional ou administrativa quando t o jull ou o administrador quem aplica a Constituição, a lei ou o contrato ao caso particular, o mesmo uma aplicação voluntária quando as partes se adaptam ao disposto na ConstituiçAo • nas leis. O termo tem, neste trabalho, o sentido restrito de aplicação jurisdicional OU administrativa. Para o conceito de aplicação do Direito, segundo Hans Kelsen, cf. Trona Pura do Direito, Coimbra, Armênio Amado, 1974, pp. 324 a 327. sobretudo a do juiz, não se resume, contudo, a um mero silogismo, no qual fosse a lei a premissa maior, o caso, a premissa menor, e a sentença judicial, a conclusão.

A liberdade maior ou menor do juiz, no julgar, a irrestrita submissão à lei ou o abrandamento dessa submissão, em diferentes graus, marcam posturas ligadas às diversas escolas hermenêuticas.

7. EVOLUÇÃO DA HERMENÊUTICA EM PROL DE UM DIREITO CENTRADO NO HOMEM E NO POVO

Vejo a evolução da Hermenêutica, em geral, e da Hermenêutica Jurídica, em particular, refletindo a evolução das idéias sobre o homem e seu papel no mundo: de uma preocupação em investigar a vontade do legislador,17 entendido como ser onipotente, passou se para a posição, mais liberal, de pesquisa da própria lei, como produto social, fruto da consciência jurídica do povo, segundo seus pregoeiros.18 17 Paula Batista via como elementos da interpretação gramatical, o lógico e o científico. Este último é aquele que presta ao elemento lógico "as premissas e dados para, sob a dupla relação das palavras e dos pensamentos e por meio de legítimas conseqüências, não só atingir o sentido normal, e sem defeitos, como adotar, dentre os sentidos possíveis, o que exprimir, com maior segurança possível, a vontade do legislador". (Cf. Paula Batista, Compêndio de Hermenêutica Jurídica, São Paulo, São Paulo Saraiva, 1984, pp. 10 e II.) O Barão de Ramalho entendia que o estudo da hermenêutica jurídica devia preceder ao de todo direito positivo, "por isso que como todo o direito precisa ser entendido para ser bem aplicado quando reduzido a leis, segue-se que o primeiro estudo do jurisconsulto consiste em conhecer perfeitamente as regras segundo as quais se deve apoderar o pensamento do legislador para genuinamente aplicá-las". (Cf. Barão de Ramalho, Cinco Lições de Hermenêutica • Jurídica, São Paulo, Saraiva, 1984, p. 91.) 18 Afirma José Maria Martin Oviedo que a doutrina atual submete a revisão as teorias subjetivas (vontade do legislador) e objetiva (vontade da lei) que a doutrina clássica construiu, a respeito da interpretação. Inclina-se a doutrina atual por um sincretismo, tanto metódico quanto técnico, com um certo predomínio da interpretação objetiva e destacando-se, entre os elementos do processo interpretativo, a ratio legis, que postula a prevalência do resultado interpretativo mais adequado à finalidade da lei. Cf. Formación y Aplicación dei Derecho, Madrid, Instituto de Estúdios Políticos, 1972, p. 149. José Maria Rodrigues Paniagua entende que, entre as posturas polêmicas (teoria da interpretação subjetiva e da interpretação objetiva), o melhor caminho para o esclarecimento científico é a aceitação do que uma e outra teoria possam ter de verdadeiro. Cf. Ley e Derecho, Madrid, Editorial Tecnos, 1976, pp. 90 e 91.

O novo salto que penso deva ser dado, corajosamente, pelo aplicador do Direito, sobretudo pelo juiz,19 impõe que este não se enclausure na sua ciência, causadora de rigidez perceptiva, mas que se abra às outras ciências, à economia, à Política, à Sociologia, à Psicologia, e que se deixe tocar pela influência das correntes fenomenológica e existencialista, bem como das escolas sociológicas.

Manuel de Andrade diz que para a escola tradicional, subjetivista, psicológica ou histórico-filológica a lei deve ser entendida e aplicada conforme o pensamento e a vontade do legislador.

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Opondo-se a essa, a nova concepção "abstraindo do legislador, encara a lei apenas, em si mesma a querendo interpretar, por maneira que o sentido legal prevalente terá de ser um sentido objetivo, como que radicado na própria lei." (Manuel A. Domingues de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da interpretação das Leis, Coimbra, Armênio Amado — Editor, Sucessor, 1978, pp. 14e 15.) 19 As mudanças de 1993 e 1994 pouco alteraram as disposições do Código de Processo Civil relacionadas com o juiz. Apenas deu-se mais ênfase à tarefa conciliatória que já era atribuída aos juizes e abrandou-se ainda mais o princípio da vinculação do juiz ao processo sob o fundamento da identidade física. Disciplina o art. 132 do Código de Processo Civil, com a redação que lhe foi dada pela Lei n° 8.637, de 31 de março de 1993: "O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos .em que passará os autos ao seu sucessor". O art. 132, na redação expressa pelo Código de Processo Civil, quando foi promulgado em 1973, estabelecia: "O juiz, titular ou substituto, que iniciar a audiência, concluirá a instrução, julgando a lide salvo se for transferido, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor. Ao recebê-los, o sucessor prosseguirá na audiência, mandando repetir, se entender necessário, as provas já produzidas". A mudança operada pela Lei n° 8.637 abrandou ainda mais o princípio da identidade física do juiz. O princípio geral de vinculação ao processo passou a alcançar somente o juiz que concluir a audiência de instrução, e não aquele que apenas tiver dado início a ela. Por outro lado, foram alargadas as hipóteses em que o princípio da identidade física deve ceder. Desaparece a norma de vinculação ao processo se o juiz é convocado para atuar em tribunal, ou se é promovido, aposentado, licenciado ou afastado por qualquer motivo. Entretanto, o fato de entrar em gozo de férias não desvincula o juiz do feito, conforme a jurisprudência tem entendido. (Cf. Theotonio, Negrão. Código de Processo Civil de Legislação Processual em Vigor, São Paulo, Saraiva, 1995, p. 164.) Capítulo III MOMENTOS (OU PROCESSOS) DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA 8. CONCEITO E ESPÉCIES

Processos de interpretação são os recursos de que se vale o hermeneuta para descobrir o sentido e o alcance das expressões do Direito.

A interpretação incide sobre a lei e as demais expressões do Direito, e não sobre o próprio Direito.

Alei é a forma, o Direito é o conteúdo: a interpretação recai sobre a forma, buscando o conteúdo. Já a aplicação é do Direito'. ante o fato concreto a tarefa do aplicador, revelado o conteúdo da lei, sua substância, é fazer prevalecer esse conteúdo.

A lei não evolui. Segue com passo tardo a mudança social. O Direito, entretanto, pode acompanhar as transformações econômicas, políticas e sociais. Ao intérprete e ao aplicador cabe responder ao desafio de dinamizar a lei, para que não seja força retrógrada dentro da sociedade.

Como observou Emmanoel Augusto Perillo, o conteúdo da lei é inteiramente vago, dentro de sua esquematização lógica; sem a intervenção do hermeneuta, a lei morre no tempo.

Os processos de interpretação são também chamados elemen tos de interpretação, métodos ou modos de interpretação, fases ou momentos da interpretação ou critérios hermenêuticos.

Os processos de interpretação não ocorrem ao intérprete numa ordem sistemática, mas numa síntese imediata.

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Esse caráter unitário da atividade hermenêutica aconselha que se encarem os processos de interpretação como momentos do processo global interpretativo, de preferência a conceituá-los como métodos.

Por reconhecer que o processo interpretativo não obedece a uma ascensão mecânica das partes ao todo, mas "... representa antes uma forma de captação do valor das partes, inserido na estrutura da lei, por sua vez inseparável da estrutura do sistema e do ordenamento".

Miguel Reale propugna por uma hermenêutica estrutural. C. H. Porto Carreiro define-se por um método hermenêutico dialético, que "...

abrange a realidade como um todo e, como um todo, a examina, procurando tudo quanto existe na letra e no espírito da lei".3 Embora haja variações terminológicas, de um autor para outro,4 se queremos buscar o máximo de abrangência e pormenorização podemos enumerar como momentos (ou processos) de interpretação os seguintes: - momento (ou processo) literal, gramatical ou filológico; - momento (ou processo) lógico ou racional; - momento (ou processo) sistemático ou orgânico; - momento (ou processo) histórico ou histórico-evolutivo; - momento (ou processo) teleológico; - momento (ou processo) sociológico. 3 Cf. Carreiro, C. H. Porto. Introdução à Ciência do Direito, Rio de Janeiro, Ed. Rio, 1976, p. 250: "Consideramos que o único método hermenêutico verdadeiramente válido e eficaz é o dialético, que abrange a realidade como um todo e, como um todo, a examina, procurando desvendar tudo quanto existe na letra e no espírito da lei. E nisso estão incluídos: 1. O conteúdo semântico dos vocábulos, naquilo que há de histórico nas variações ideológicas, compreendendo o que significam as palavras para a classe que ditou a norma jurídica; 2. O conteúdo lógico da inserção da regra nesta (e não em outra) lei considerando que seus artigos devem exprimir um todo, que repele matéria estranha à versada pelo legislador, 3.0 exame das condições históricas que ditaram, naquele (e não em outro) momento, sua feitura, ou seja, o estudo da oportunidade histórica da lei, para que se vislumbrem os fatos geradores da norma criada, sua extensão e sua finalidade; 4. O estudo das condições sociológicas que ressaltaram os interesses de classe a serem protegidos, orientando o aplicador da lei no conhecimento do tipo de conflito que se deseja evitar, solucionar ou minorar". 4 Naylor Salles Gontijo classifica os métodos de interpretação em dois grupos. Seriam métodos maiores, o axiológico (que se utiliza dos juízos de valor para a interpretação do Direito), o lógico (que se serve do fato para subir até a norma, porque entende o Direito como completivo da conduta social) e o de integração dialética (que consiste na atualização normativa dos valores em uma condicionalidade fática). Seriam métodos menores o gramatical, o sistemático, o histórico, o declaratório, o extensivo, o restritivo, o evolutivo e o ab-rogante. Cf. Naylor Salles Gontijo, Introdução à Ciência do Direito. Rio de Janeiro, Forense, 1969, pp. 308 e segs. Luís Alberto Warat alinha como métodos de interpretação: o gramatical, o exegético (Bonnecase e Proudhon), o comparativo (lhering, na segunda fase), o científico (Geny e Planiol), o da Escola do Positivismo Sociológico (Duguit), o da Escola de Direito livre (Erlich, Kantorowicz), o teleológico (Heck), que se desdobra no teleológico em sentido estrito e no da jurisprudência de interesses, o da Escola do Positivismo Eáctico (Cohen e Alf Ross), o da Escola Egológica (Cossio) e o tópico-retórico (Viehweg). Cf. Luís Alberto Warat, Mitos e Teorias na Interpretação das Leis, Porto Alegre, Ed. Síntese, 1979, pp. 75 e segs. 9. MOMENTO (OU PROCESSO) LITERAL, GRAMATICAL OU FÍLOLÓGICO

O momento (ou processo) fílológico estabelece o sentido objetivo da lei com base em sua letra, no valor das palavras, no exame da linguagem dos textos, na consideração do significado técnico dos termos.

Forma de comunicação humana que se utiliza da linguagem verbal, a lei é uma realidade morfológica e sintática. Essa circunstância torna inafastável a utilização do processo gramatical de interpretação. A interpretação exclusivamente filológica, ou a preferência pela exegese verbal, ou mesmo a idéia de que se deva partir,

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progressivamente, do processo gramatical para atingir depois a compreensão sistemática, lógica, teleológica ou axiológica dos textos é que constituem posições doutrinárias ultrapassadas. Certamente, foi com vistas a esses desvios hermenêuticos que Recaséns Siches qualificou a interpretação literal como irracional e inútil.5 5 "Espantosa tontería", segundo suas palavras. Cf. Luís Recaséns Siches, Nueva Filosofia de la Interpretación dei Derecho, México, Editorial Porrúa, 1973, p. 182. Gustav Radbruch coloca a questão nestes termos: "A interpretação jurídica não é pura e simplesmente um pensar de novo aquilo que já foi pensado, mas, pelo contrário, um saber pensar até o fim aquilo que já começou a ser pensado por um outro. Sem dúvida, ela parte da interpretação filológica da lei; mas para ir mais além dela". Gustav Radbruch, Filosofia do Direito. Coimbra, Armênio Amado, 1974, p. 231.

A interpretação filológica deve perseguir o conteúdo ideológico dos vocábulos, descobrir o que de subjacente existe neles, com vistas a uma compreensão semântica das palavras usadas na lei.6

No uso do processo filológico, deve o intérprete estar advertido de que nem sempre a palavra é fiel ao pensamento, afora as impropriedades de redação, freqüentes nas leis. Sempre é preciso encontrar o que se acha implícito por trás das palavras.

As palavras empregadas pelo legislador devem ser interpretadas em conexão com as demais que constituem o texto. Deve-se atentar para o uso da palavra no local em que foi redigida a lei ou a matéria a ser interpretada.

A pesquisa filológica há de interligar-se e harmonizar-se com os demais processos, pois, "desde Saussure, não se tem mais uma compreensão analítica ou associativa da linguagem, a qual também só pode ser entendida de maneira estrutural, em correlação com as estruturas e mutações sociais."

Essa visão estrutural da linguagem desautoriza o entendimento dogmático das palavras da lei e impõe o entendimento histórico.

A língua é um patrimônio comum, arsenal coletivo, instituição. A fala é a escolha individual, a opção entre as possibilidades de expressão que se apresentam na língua.

A lei é a fala do legislador, revelando a percepção da pessoa ou do grupo de pessoas que elaborou a lei, mas, também, sem dúvida, a visão da época.

Cada época tem uma visão da realidade. A consideração desses aspectos não pode ser ignorada pelo hermeneuta.

Se o intérprete possuir conhecimentos de filologia, lingüística e filosofia da linguagem,'0 poderá utilizar-se, com proveito, do auxílio desse processo. 6 Carlos Santiago Nino assinala como tendência da nova Ciência do Direito o desprender-se, na interpretação, dos mitos derivados do "realismo verbal" para atender às modernas técnicas de análise semântica e sintática. Cf. Carlos Santiago Nino, Notas de Introducción al Derecho, Buenos Aires, Editorial Astrea, 197S, vol. 4, p. 151. 10. MOMENTO (OU PROCESSO) LÓGICO OU RACIONAL

O momento (ou processo) lógico baseia-se na investigação da ratio legis. Busca descobrir o sentido e o alcance da lei, sem o auxílio de qualquer elemento exterior, aplicando ao dispositivo um conjunto de regras tradicionais e precisas, tomadas de empréstimo à lógica geral. Funda-se no brocardo - Ubieadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou seja, ali onde está o racional, ali está a correta disposição legislativa. ‘’’’’’’’’’’’Procura a idéia legal que se encontra sub litteris, partindo do pressuposto de que a razão da lei pode fornecer elementos para a compreensão de seu conteúdo; de seu sentido e de sua finalidade. Numa lei, o que interessa não é o seu texto, mas o alvo fixado pelo legislador.

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O elemento lógico empregado nesse processo de interpretação é o fornecido pela lógica formal."

A ratio legis consagra, necessariamente, os valores jurídicos dominantes e deve prevalecer sobre o sentido literal da lei, quando em oposição a este.

O processo lógico permite que a interpretação alcance elevado padrão de rigor e segurança. Contudo, como sublinha Flóscolo da Nóbrega: "... o processo tem o grave inconveniente de esvaziar a lei de todo o conteúdo humano, de tratá-la em termos de precisão matemática, como se fosse um teorema de geometria".

Também Carlos Maximiliano censura o processo afirmando que, da preocupação de reduzir toda a Hermenêutica a brocardos, a conseqüência é multiplicarem-se as regras de interpretação, gerando a sutileza, incompatível com a segurança jurídica pretendida.

Recaséns Siches considera o processo lógico imprestável na aplicação do Direito. ‘’’’’’’’’’’’’A lógica formal, de tipo puro, a priori, só é adequada na análise dos conceitos jurídicos essenciais. Para tudo que pertence à existência humana - a prática do Direito, inclusive - impõe-se o uso da lógica do humano e do razoável (lógica material).

Carlos Coelho de Miranda Freire adverte que o raciocínio jurídico não se regula por uma lógica do necessário. Nele domina um procedimento fundamentado em silogismos retóricos, que são concluídos a partir de premissas prováveis.

André Franco Montoro pensa que o jurista usa habitual mente a lógica em suas sentenças, petições, pareceres etc, se bem que nem sempre o faça de forma consciente. ‘’’’’’’’’’’’Todas as vertentes da Lógica, segundo sua opinião, desde a lógica clás sica até a lógica simbólica, a lógica da linguagem, a lógica deôntica e a lógica do concreto (incluindo-se, nesta última designação, a lógica do razoável, da argumentação, da contro vérsia, nova retórica e tópica) têm aplicação na tarefa herme nêutica.

Wilson de Souza Campos Batalha observa que o rigor lógico, na interpretação e aplicação das normas jurídicas, é simples apa rência. Há em toda interpretação e aplicação ingredientes estima tivos, emocionais e irracionais.

Embora a sentença - prossegue - revista-se de forma silogís-tica, a conclusão, freqüentemente, precede as premissas.

C. H. Porto Carreiro acha que, modernamente, a exegese racional voltou a merecer atenção, uma vez que pode fornecer informações sobre as razões sociais da lei, isto é, sobre o Direito que, em dado momento, se cristalizou em regra jurídica.

Por isso, ao lado da ratio legis, aprofundou-se o exame da occasio legis, como elemento histórico capaz de revelar ao intérprete as condições sociais que deveriam ter influenciado na redação da lei.

O processo lógico, ou racional, reformulado, poderá penetrar no espírito histórico da lei, retirando daí as razões que a ditaram, sua finalidade imediata e os motivos do momento que presidiram à sua feitura. Observada essa advertência, creio que o processo lógico pode ser empregado com utilidade. 11. MOMENTO (OU PROCESSO) SISTEMÁTICO OU ORGÂNICO

O momento ou processo sistemático considera o caráter estrutural do Direito, pelo que não interpreta isoladamente as normas. Vê cada regra legislativa como "... parte do inteiro organismo dos princípios de determinado regime ou sistema de direito positivo".19 Consiste na “... adaptação do sentido de uma norma ao espírito do sistema". Carlos Maximiliano fixa diretriz para o uso do processo: "Examine-se a norma na íntegra, e mais ainda: o Direito todo, referente ao assunto. Além de comparar o dispositivo com outros afins, que formam o mesmo instituto jurídico, e com os referentes a institutos análogos; força é, também, afinal pôr tudo em relação com os princípios gerais, o conjunto do sistema em vigor".

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Nos países de Constituição rígida, importante é ter presente a supremacia dos dispositivos constitucionais, em comparação com os dispositivos da legislação ordinária.

Quando se adota, como se faz, por longa tradição, no Brasil, o sistema de constituições pormenorizadas, exaustivas, regulando matérias atinentes aos mais diversos campos do Direito, indispensável é o cotejo de qualquer dispositivo que se queira interpretar com o que, a respeito, disponha, específica ou genericamente, a Constituição Federal.

O processo sistemático tem a função de preservar a harmonia do sistema legal, zelar por sua coerência.

Esse objetivo deve ser perseguido não apenas pelo controle constitucional das leis: também entre normas de igual hierarquia o princípio deve ser invocado.

A meu ver, assiste razão a Cavalcanti Lana, em voto vencido que proferiu no Io Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro:

"Tem a jurisprudência um papel que não está suficientemente esclarecido e estudado: o de preservar a harmonia do sistema legal. Não é ela mera intérprete da lei e nem se unifica, em homenagem aos casos análogos, a fim de garantir a isonomia das decisões. Sua função mais importante é a de zelar pela coerência do sistema. Argumenta-se que esta coerência é dada pelo controle constitucional das leis, não havendo como invocá-lo entre normas de igual magnitude hierárquica. Mas o argumento deixa ao juiz uma pobre função - transforma-o em computador destinado a processar os dados que o legislador, em desavisada hora, entendeu de lhe propiciar".22

22 "Isto vera ocorrendo" - prossegue o voto - "com a malsinada denunciação vazia (...) Para chegar a ela, partiu o legislador da falsa premissa de que o Sistema Nacional de Habitação constituiu-se em um êxito tão grande que somente excêntricos e pouco numerosos milionários se dão ao luxo do aluguel, quando todos, por menor que lhes seja a renda familiar, têm acesso à casa própria. O engano é ledo, a realidade é outra. (...) Por tais razões, a partir de agora, embora aparentemente contra legem, mas afeiçoando ao espirito maior do sistema que se tomou tradicional do intervencionismo contratual por inspiração do bem comum, voto no sentido de negar, peremptoriamente, reprise que imotivada seja." (Voto vencido do juiz Cavalcanti Lana, na Apelação Cível n° 68.408, julgada pela 3* Câmara do 1° Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro. In Litis, Rio de Janeiro, ano I, vol. IV, dez. 1976, pp. 155-157.)

Integra o processo sistemático o recurso ao Direito Comparado, ou seja, a confrontação do texto, sujeito a exegese, com leis congêneres de outros países, especialmente daqueles que exerceram influência na construção do instituto jurídico que se investiga. ’’’’’’’’’’’’’Nas matérias alcançadas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, é necessário ter presente esse documento supranacional, quer quando se acolhe a doutrina que sustenta sua auto-aplicação ao Direito interno23 - posição que julgo acertada -, quer, pelo menos, como fonte subsidiária.

O processo (ou momento) sistemático possibilita uma compreensão larga da lei. A mens legis - que parecia muito precisa -, após a confrontação do texto interpretado com outras normas de igual ou superior hierarquia, com os princípios gerais do Direito, com o Direito Comparado, pode restringir-se, ampliar-se, ser, enfim, iluminada por uma visão enriquecedora, que uma interpretação meramente lógica tornaria impossível. 12. MOMENTO (OU PROCESSO) HISTÓRICO OU HISTÓRICO-EVOLUTIVO

O momento (ou processo) histórico leva em conta as idéias, os sentimentos e os interesses dominantes, ao tempo da elaboração da lei. A lei representa uma realidade cultural que se situa na progressão do tempo. Uma lei nasce, obedecendo a determinadas aspirações da sociedade ou da classe dominante da sociedade, traduzidas pelos que a elaboram, mas o seu significado não é imutável. E necessário verificar como a lei disporia

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se, no tempo de sua feitura, houvesse os fenômenos que se encontram presentes, no momento em que se interpreta ou aplica a lei.

A lei, observa Paulo Dourado de Gusmão, "não é elaborada para um corpo social moribundo, mas para um corpo social vivo, em desenvolvimento, com épocas de crise e com épocas de estabilidade".

Fundamenta esse processo hermenêutico a convicção de que o Direito é produto histórico, herança cultural, criação da vida social, capaz de adaptar-se a todas as condições e exigências novas, fruto da comunidade, e não resultado da vontade do legislador. Daí o realce que seus corifeus deram à tradição e ao costume imemorial.

O processo histórico-evolutivo considera que a lei não tem "conteúdo fixo, invariável, não pode viver para sempre imobilizada dentro de sua fórmula verbal, de todo impermeável às reações do meio, às mutações da vida. Tem de ceder às imposições do progresso, de entregar-se ao fluxo existencial, de ir evoluindo paralela à sociedade e adquirindo significação nova, à base das novas valorações".

O intérprete busca descobrir a vontade.atual da lei (voluntas legis), e não a vontade pretérita do legislador (voluntas legislato-ris), vontade que deve sempre corresponder às necessidades e condições sociais.

O elemento histórico permite apreender as linhas gerais da evolução jurídica, as transformações que sofreram os institutos no decurso do tempo, os traços comuns na sucessão das leis, traços] que estão a indicar o que existe de permanente, em meio à multiplicidade e variedade dos dispositivos.

No processo (ou momento) histórico-evolutivo, socorre-se o intérprete da pesquisados documentos históricos do Direito, quais sejam, dentre outros, os projetos e anteprojetos de lei, mensagens e exposições de motivos, debates parlamentares, pareceres, relatórios, votos, emendas e justificações. Esses documentos não têm força vinculativa, pois a lei, uma vez sancionada, desgarra-se do autor ou autores, porém, de qualquer forma, constituem subsídio apreciável para o estudo das razões históricas da lei.

Consideram-se aqui também a história do direito anterior, especialmente a história do instituto de que faz parte a lei, a história do dispositivo ou norma submetida a exegese, bem como os fatos e circunstâncias que deram causa à lei.

No processo histórico-evolutivo, como no processo lógico e no sistemático, o intérprete mantém-se dentro das balizas da lei, não se admitindo aí a interpretação criadora, a despeito ou à margem da lei. Justamente por isso, os apologistas deste processo reputam-no valioso, porque, sem colocar o intérprete contra os códigos, permite a evolução jurídica: concilia o princípio da legalidade com as transformações sociais.

A utilização, na França, do processo histórico-evolutivo possibilitou atualizar o Código de Napoleão (Código Civil), com a adoção, pela jurisprudência, de institutos da maior relevância como a teoria da responsabilidade civil por riscos criados, a teoria da imprevisão (que permitiu a revisão judicial dos contratos) e a teoria do abuso dos direitos.

Sem negar o valor da História, no conhecimento das instituições sociais, C. H. Porto Carreiro entende, contudo, que é fundamental dar-lhe tratamento dialético, abandonando a simples relação cronológica dos fatos, para submetê-los a uma análise infra-estrutural que conduza à real apreensão de uma realidade em movimento. Só se refazendo a História, nas suas bases e nos seus conflitos, é possível chegar-se a esse resultado.26

A ênfase dada pelo processo histórico de interpretação ao exame dos materiais legislativos merece a crítica desse mesmo autor. Essas peças têm a finalidade de mistificar a opinião pública, pois o verdadeiro objetivo da lei - a garantia dos privilégios de classe - nunca é confessado.

26 Cf, C. H. Porto Carreiro, Introdução à Ciência do Direito, Rio de Janeiro, Ed. Rio, 1976, p. 240: "quando sabemos que a superestrutura social está indissoluvelmente ligada a uma base econômica dada, que lhe fornece a forma específica para seu conteúdo próprio, temos de concluir que essa base infra-estrutural

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origina a superestrutura que lhe deve corresponder. A aparente autonomia da superestrutura tem levado aqueles que examinam as coisas pela aparência e não pela essência a erros paimares. Assim, quando a Escola Histórica exalta o valor do costume, como fonte precípua da lei, não se preocupa em indagar as causas geradoras do consuetudinário. Toma o costume como está e sobre ele levanta o edifício histórico de uma instituição jurídica".

Georges Ripert também produziu veemente libelo contra a insinceridade das

exposições de motivos. Aliás, já os Estatutos de Coimbra preveniam que "... se não devem seguir, e

abraçar cegamente as razões indicadas na lei; antes pelo contrário se deve sempre trabalhar por descobrir a verdadeira razão dela".

Desprezada a postura estática, meramente descritiva, e assumida a postura crítica, de aprofundamento da realidade, dialética, o momento histórico é de grande valia no trabalho hermenêutico.

13. MOMENTO (OU PROCESSO) TELEOLÓGICO

O processo ou momento teleológico busca a finalidade da lei. O fim da lei, numa primeira abordagem, é garantir interesses, com base em valorações econômicas, políticas, sociais e morais dominantes.

A lei não explicita os interesses que defende, nem as valorações que a fundamentam. Cabe ao hermeneuta pesquisá-los, com vistas a descobrir o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática, assegurando a tutela do interesse, para a qual foi estabelecida, ou de outro que deva substituí-lo.

A interpretação teleológica visa, em princípio, à descoberta dos valores a que a lei tenciona servir.30

A pesquisa teleológica deve buscar o objetivo atual das disposições, à medida que interesses emergentes possam ser enquadrados no texto primitivo.

Dentro da perspectiva oferecida pela teoria do valor e da cultura, Miguel Reale diz que "... fim da lei é sempre um valor, cuja preservação ou atualização o legislador teve em vista garantir, armando-o de sanções, assim como também pode ser fim da lei impedir que ocorra um desvalor. Ora, os valores não se explicam segundo nexos de causalidade, mas só podem ser objeto de um processo compreensivo que se realiza através do confronto das partes com o todo e vice-versa, iluminando-se e esclarecendo-se reciprocamente, como é próprio do estudo de qualquer estrutura social".

Assim, na concepção de Reale, toda interpretação jurídica é teleológica: funda-se na consistência axiológica do Direito.

O Direito brasileiro sufragou, amplamente, a interpretação teleológica ao estatuir o art. 5o da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e às exigências do bem comum".

Embora colocado na Lei de Introdução ao Código Civil, esse dispositivo não se aplica apenas à interpretação do Código Civil: c uma diretriz básica do ordenamento jurídico. Divergem os autores no entendimento do alcance que deve ter o artigo 5o da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.

Entendem alguns que o bem comum a que a lei se destina, 6 aquele que a norma, objeto da interpretação, está orientada a satisfazer. Outros pensam que deve o juiz atender às exigências últimas e gerais do bem comum, afastando a incidência da lei ao caso concreto, quando dessa incidência resulte obstrução àquele desiderato. 30 Hans Reichel coloca a questão assim: "Se em um caso particular, a lei opõe-se ao pensamento e ao fim do Direito, pode ser ordenado que ao postulado do pensamento jurídico, que se acha sobre a lei, se outorgue maior força que à existência sem vontade da lei apóstata." Hans Reichel, La Leyyla Sentencia, Madrid, Editorial Reus, 1921, p. 146.

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Comentando esse artigo escreveu Oscar Tenório: "O direito positivo brasileiro preferiu caminho mais seguro e menos difícil. Deu ao juiz a missão de, na aplicação da lei, apreciar a sua finalidade social e as exigências do bem comum. Confiou ao juiz a missão de vencer os óbices criados por leis prenhes de individualismo. Instaurou-se o governo dos juizes sem que possamos falar, entretanto, em oligarquia ou ditadura judiciária".

C. H. Porto Carreiro não vê, com otimismo, a efetiva aplicação do artigo 5o da Lei de Introdução ao Código Civil, encontrando um conflito entre o artigo e o sistema jurídico-político-econômico em que está inserido: "Não especificando as fronteiras dos 'fins sociais' a que se destina a lei, deixa a critério do juiz o exame da questão. Mas, qual espada de Dâmocles, pendente sobre a cabeça do julgador, estão os princípios gerais do Direito, garantidores do status quo e das vigas mestras do regime. Teoricamente, o juiz tem liberdade de pesquisar os 'fins sociais' da lei, perquirindo, como filósofo e como sociólogo, a verdadeira ratio legis. No entanto, ao fazê-lo, há ele de esbarrar, fatalmente, com os institutos jurídicos preestabeleci-dos (e que não podem ser por ele mudados), que têm de ser seguidos e mantidos, sob pena de ser apontado como uma ameaça à segurança nacional".35

Penso que, realmente, a interpretação teleológica - sufragada, sem restrições, pelo Direito Brasileiro - arma o Judiciário de grandes poderes e de inarredável missão política.

De independência e coragem os juizes sempre precisarão, caso queiram ser úteis ao povo, e não dóceis instrumentos da dominação de poucos. Independentes e corajosos, ao aplicarem teleologicamente o Direito, tendo em vista as exigências da finalidade social e do bem comum, os juizes não poderão obscurecer que o bem comum é, até etimologicamente, felicidade coletiva, bem geral, e nunca o individualismo, a opressão, que uma lei particular ou artigo de lei consagrar. 35 Prossegue: "E segurança nacional é preceito que visa à manutenção de uma situação vigente, mesmo que esteja ela panda de conflitos sociais. Qualquer reforma deve partir de cima para baixo, de governantes para governados, como uma espécie de outorga de direitos. As reivindicações, que têm sentido inverso, podem ser interpretadas como perigosas ao sistema jurídico e ao regime político. O mesmo ocorrerá ao aplicador, que der interpretação diversa às leis vigentes, ainda que fundamente sua decisão com base nos 'fins sociais' a que elas se destinam. Afinal, a que se destinam elas? À mudança social? A ampliação de direitos? Não cremos". C. H. Porto Carreiro, Introdução à Ciência do Direito, Rio de Janeiro, Ed. Rio, 1976, pp. 266-267. 14. MOMENTO (OU PROCESSO) SOCIOLÓGICO

O momento (ou processo) sociológico conduz à investigação dos motivos e dos efeitos sociais da lei.36 Leva a aplicar os textos de acordo com as necessidades contemporâneas, com olhos postos no futuro, e não no passado. Considera a consciência jurídica da coletividade,37 as aspirações do meio. Atende às conseqüências econômicas, políticas e sociais da exegese. Vê o sistema jurídico como subsistema do sistema social, e não como sistema autônomo.38

36 Na opinião de Carlos Santiago Nino, "requer-se, cada vez mais energicamente, que os juristas justifiquem as soluções que propõem, mostrando que suas conseqüências são preferíveis às demais soluções possíveis, em vez de manter num plano secundário a ponderação axiológica das soluções propostas, detrás dos argumentos supostamente lógicos tendentes a mostrar que a interpretação escolhida se infere das normas legais". Carlos Santiago Nino, Notas de Introducción al Derecho, Buenos Aires, Editorial Astrea, 1975, vol. 4, p. 147. 37 Diz Karl Engisch: "O jurista, se quer dar incidência prática à idéia do Direito (fazê-la vingar), há de prestar ouvido atento à voz do 'espírito objetivo'. Ele precisa de saber o que as 'necessidades atuais' imperiosamente exigem, quais as idéias supralegais que reclamam consideração e estão suficientemente amadurecidas para serem juridicamente aplicadas". Engisch Karl, Introdução ao Pensamento Jurídico, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, p. 324.

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38 Carlos Maximiliano afirma que "o bom intérprete foi sempre o renovador insinuante, cauteloso, às vezes até inconsciente, do sentido das disposições escritas - o sociólogo do Direito". Contudo, coloca-se numa posição defensiva ante a interpretação sociológica, afirmando ' 'dever-se apelar para os fins sociais com reserva e circunspecção, a fim de evitar o risco de fazer prevalecerem as tendências intelectuais do juiz sobre as decorrentes dos textos, e até sobre as dominantes no meio em que ele tem jurisdição, como sucedeu em França, com o magistrado Magnaud". Cf. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1965, pp. 171-172. Não aconteceu isso na França. As sentenças de Magnaud mereceram o apoio popular, conforme documentadamente se comprova no livro de Henry Leyret. Cf. Henry Leyret Los Sentencias dei Buen Juez Magnaud, Bogotá, Editorial Temis, 1976. Ver, também, na mesma obra, o prólogo escrito por D. Diez Enriquez, especialmente a p. X.

Segundo Machado Neto, são objetivos pragmáticos do processo sociológico de interpretação: a) conferir a aplicabilidade da norma às relações sociais que lhe deram origem; b) estender o sentido da norma a relações novas, inexistentes ao tempo de sua criação; c) temperar o alcance do preceito normativo, a fim de fazê-lo corresponder às necessidades reais e atuais de caráter social.

O intérprete deverá conhecer a conexão do fenômeno jurídico com os demais fenômenos sociais, o que reclama a cooperação da Economia, da Sociologia, da Ciência Política, da Psicologia Social, da Antropologia etc. Para a declaração do sentido atual da norma, para a determinação da vontade genérica da lei, será importante o estudo sociológico do ambiente histórico, das condições de vida, dos ideais, valores e exigências sociais dominantes.

Para C. H. Porto Carreiro o processo sociológico visa a "... perscrutar a lei como um produto orgânico que tem capacidade de evoluir por si mesma, segundo a possibilidade de evolução da própria sociedade".

Conforme opinião desse autor, para que a interpretação sociológica alcance seus resultados deve indagar os motivos primários que ditaram a feitura da lei, os interesses protegidos pela norma, a forma que se deu a essa proteção e a maneira pela qual deve ela funcionar. O processo sociológico precisa ser reformulado, em termos de uma Sociologia integral e completa, à base de uma realidade dialética.

Homero Junger Mafra observa que pode alguém infringir a lei, sem infringir as regras de seu grupo.

Em face dessa situação - pergunta -, cabe ao jurista o papel dc, mecanicamente, aplicar o texto legal, ou é função sua, lançando a luz sobre o texto, decidir com os valores que traz o réu? Discutindo a questão, opta pela segunda alternativa, adotando a opinião da corrente finalista do Direito Penal, que juiga o dolo pela ação e entende que a culpabilidade é um juízo de valor, só tendo sentido a norma em termos de relevância social. Essa posição, que vai ao encontro do motivo social da lei, sufraga exegese tipicamente sociológica.

Theodor Sternberg afirma que o jurista não deve ser, ordinariamente, um repetidor escolar de sentenças, ao qual somente em ocasião especial fosse permitida uma livre criação; ao contrário, por sua profissão deve ser um pensador social e só excepcionalmente deve estar acorrentado à lei.

Renato José Costa Pacheco parte da averiguação de que, na situação de mudança social em que nos encontramos, a lei é inadequada à direção da vida social. No caso brasileiro, em que a taxa de mudança é desigual, diante da diferença entre meio urbano c meio rural, bem como entre as diversas regiões do país, mais que ilusória é a ficção jurídica da igualdade de todos perante a lei.

Em face desse quadro, reflete o autor sobre o papel do juiz frente à mudança social. Examina as posições de Mário Moacir Porto, que quer uma magistratura criadora, legiferante, finalística, intervencionista, e de Mário Guimarães, para quem à magistratura

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compete velar pela tradição jurídica. Entre os dois extremos fixa-se Renato Pacheco no que ele denomina mediania virtuosa. Diante da perplexidade que a mudança traz, pede que se dê ao magistrado independência, autoridade e responsabilidade, exigindo-se dele dignidade. Neste período de intensa mudança social, quando se verifica a inadequação da lei frente às modificações surgidas com velocidade e complexidade jamais observadas, o juiz deve procurar adequar a lei à nova situação social, atuando como sociólogo em ação, como pensador social.

E a conceituação do Direito como fato social, atinente à conduta humana em sociedade - diversamente das concepções de Direito como valor, ou Direito como norma —, que dá base teórica à interpretação e aplicação jurídico-sociológica. O processo sociológico, com teor político — como se tentará demonstrar nos dois últimos capítulos deste trabalho -, não é apenas importante como um processo de interpretação, mas, na verdade, deve ser o processo principal, na aplicação do Direito.

Ao lado de uma perspectiva fenomenológica, que permite harmonizar o Direito com o homem - um Direito para o homem -, a perspectiva sociológica poderá ensejar o reencontro do Direito com o povo. Capítulo IV ESCOLAS HERMENÊUTICAS 15. CONCEITO E DIVISÃO

A hermenêutica, num sentido amplo, é contemporânea do pensamento jurídico.1 1 Diversas escolas jurídicas da Antigüidade tocaram em problemas hermenêuticos: no mundo árabe, a Escola Hanifita, a Escola Malequita, a Escola Chafe/ta e a Escola Hambalita. A Escola Hanifita surgiu na Pérsia, foi adotada por vários povos árabes e teve longa influência no Império Otomano. Foi fundada por Abu Hanifa (699-767). Atribuía predominância à eqüidade, como fonte do Direito, e ampliava assim a atividade racional do juiz. A tradição devia passar a segundo plano, subordinada ao princípio da interpretação analógica. A Escola Malequita, que teve como fundador Malek ben Anas (713-795), desenvolveu-se na Espanha árabe, no norte da África (Tunísia, Argélia, Marrocos e Alto Egito) e na África interior muçulmana. Opondo-se aos hanifitas, procurou restringir a importância da eqüidade, como fonte do Direito, para considerar, como principal critério de interpretação, o consentimento unânime. Já que a maioria das tradições tinham surgido em Medina, o consenso das opiniões vigentes nessa cidade é que seria ponderado. A escola também realçava as decisões jurídicas e o conceito de utilidade pública, que introduziu. A Escola Chafe/ta, criada por Abu AbdaJah Mohamed ben Idris as Chafei (767-821), alcançou grande prestígio entre os povos árabes. Desenvolveu a idéia do consentimento geral, já introduzido pelos malequitas, entendendo, porém, que deveria ser o de toda a comunidade muçulmana, e não apenas o da cidade de Medina. Segundo a escola, a indagação mais importante no Direito seria a da causa, ou raiz, da norma jurídica, recurso que permitia resolver questões imprevistas. A Escola Hambalita, que se espraiou pela Síria, Mesopotâmia e Arábia, foi fundada por Ahmed ben Hanbal (780-855). Contrariando as outras escolas jurídicas muçulmanas, pregou o apego à tradição e à letra da lei, rejeitando o recurso à eqüidade. (Cf. Paulo Jorge de Lima, Dicionário de Filosofia do Direito, São Paulo, Sugestões Literárias, 1968, pp. 76,93,94,97 e98.)

Somente o ritualismo da vida primitiva - pondera Machado Neto - poderia prescindir de alguma indagação interpretativa, no momento de aplicar o costume imemorial.

Entre os romanos, questões de interpretação dividiram os juristas. E, contudo, depois da promulgação dos códigos de Napoleão, especialmente o

Código Civil, que a hermenêutica jurídica alcançará relevo. Surgem, então, as escolas hermenêuticas, como conseqüência teórica da disputa entre os diversos métodos ou técnicas de interpretação do Direito.3

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3 Escolas hermenêuticas, isto é, escolas jurídicas que se distinguem justamente pelo posicionamento, em face de questões interpretativas, só surgem a partir dos códigos de Napoleão. Antes do século XIX, diversas escolas cuidaram de problemas hermenêuticos, mas só o fizeram incidentalmente. Além das escolas já citadas na nota n° 66, podem ser lembradas: a) a Escola dos Glosadores, ou Escola de Bolonha (séculos XI a XIII), fundada por Irnério (aprox. 1055-1125), na Itália, e a que pertenceram Francesco Accursio (1182-1260), Porcio Azon (?-1230), Búlgaro, Martino Gosia, Ugo e Jacopo da Porta Ravenata. Fundava-se na interpretação gramatical, sem qualquer esforço crítico, do Corpus Júris Civilis de Justiniano, através de glosas (anotações marginais ou interlineares) acrescentadas aos textos estudados. A recepção do Direito Romano, nessa época, teve como causas o aparecimento da burguesia (gerando novas e mais complexas relações jurídicas, que o costume e os códigos bárbaros não estavam aptos a regular) e a necessidade de fortalecimento do poder real, princípio que encontrava apoio no direito romano-bizantino. O labor dos glosadores desenvolveu-se principalmente na Escola de Bolonha, estendendo-se depois para outros pontos da Itália e da Europa; b) a Escola dos Comentaristas, também chamada dos Pós-Glosadores, Tratadistas, Esco-lásticos ou Bartolistas (século XIII a XV). Consistiu na tentativa de adaptar o Direito Romano, que os glosadores restauraram, às novas relações econômicas e sociais da sociedade feudal. Os comentaristas acrescentaram apreciações próprias aos textos romanos, adotando o método lógico da dialética escolástica, além de procurarem aplicá-lo na prática. Pertenceram a esta escola Jacques de Révigny (7-1296), seu iniciador, e Pierre de Belleperche (?-1307), na França; Cino de Pistoia (1270-1336), Jacopo de Belviso (1270-1335X Bártolo de Sassoferrato (1313-1357), Pietro Baldo degli Ubaldi (1319 ou 1327-1400) e Giasone dei Maino (1435-1519), na Itália; c) a Escola da Culta Jurisprudência, ou Escola Culta, ou Escola dos Humanistas (séculos XVI a XVIII), fundada pelo italiano Andréa Alciato (1492-1550) e que teve como principais representantes: Guillaume Budé (1467-1540), Jacques Cujas (1522-1590), Hughes Doneau (1527-1591), François Hotman (1524-1590), François de Connan (1508-1551), Bernabé Brisson (1531-1591), François Baudouin (1520-1573), Antoine Favre (1557-1624), François Douaren (1509-1559) e Charles Annibal Fabrot (1580-1659), na França; Ulrich Zasio (1461-1536) e Gregor Meltzer (1501-1532), na Alemanha; Antônio Agustín (1516-1586), na Espanha; Denis Godefroy (1549-1622), na Suíça; e Gian Vincenzo Gravina (1664-1728), na Itália. Em contraposição à Escola dos Comentaristas, estudava o Direito Romano de forma erudita, transformando-o em direito histórico, cuja interpretação era feita à luz das fontes originais, com o auxílio da Filologia, da História, da Literatura e do estudo da organização social da Antigüidade; d) a Escola dos Feudistas (século XVI), surgida na França, sob a chefia de Charles Dumoulin (1500-1566) e integrada, dentre outros, por Guy Coquílle (1523-1603), Antoine Loisel (1536-1617) eEtienne Pasquier (1529-1615). Procurou unificar o direito comum, libertá-lo da desordem das instituições feudais e da incoerência dos costumes díspares. Assim rejeitou, quer o método de adaptação das instituições romanas (Escola dos Comentaristas), quer o estudo histórico-crítico do Direito Romano (Escola da Culta Jurisprudência); e) a Escola Holandesa (séculos XVII e XVIII), que apareceu nos Países Baixos, como extensão da Escola da Culta Jurisprudência. Também procurava estudar o Direito Romano como direito histórico, como critério crítico, dirigido, contudo, predominantemente, à prática jurídica, numa reação à postura excessivamente teórica da Escola da Culta Jurisprudência. Foram seus principais representantes: Arnold Vinnen (1588-1657), Jacobus Maestert (1610-1657), Ulrich Huber (1636-1694), Johann Voet (1647-1714), Gerhardt Noodt (1647-1725), Laurens Theodor Gronow (1659-1710), Antonie Schulting (1659-1734), Cornelius von Bynkershoeck (1673-1743), Johannes Jacobus Wissenbach (1607-1665) e Everhard Otto (1685-1756). (Paulo Jorge de Lima, ver Dicionário de Filosofia do Direito, São Paulo, Sugestões Literárias, 1968, pp. 76 e segs.)

Essas escolas - nota Eduardo Garcia Máynes - partem de concepções distintas da ordem jurídica e do sentido do labor hermenêutico. Refletem as doutrinas que seus defensores professam sobre o Direito em geral.

Nesta mesma linha de idéias, Tércio Sampaio Ferraz Jr., depois de observar que o desenvolvimento de técnicas de interpretação do direito é bastante antigo, sublinha que, só no século XLX, a interpretação passa a ser objeto de reflexão, tendo em vista a constituição de uma teoria.

Tomando como baliza o maior ou menor aprisionamento do intérprete ou aplicador do Direito à lei, parece-me que se podem dividir as escolas hermenêuticas em três grupos: a) escolas de estrito legalismo ou dogmatismo; b) escolas de reação ao estrito legalismo ou dogmatismo; c) escolas que se abrem a uma interpretação mais livre.6

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6 Carlos Maximiliano toma como referência a vontade do legislador e, em conseqüência, vê a existência: a) de um sistema tradicional de hermenêutica, cujo postulado é a aplicação do Direito hoje de acordo com a vontade do legislador de ontem; b) de um sistema evolutivo, que tem o Direito como elaboração espontânea da consciência jurídica nacional, um dos produtos espirituais da comunidade, e não obra do arbítrio de um; c) de um sistema misto que, na interpretação e aplicação do Direito, busca descobrir não só o que o legislador quis, mas também o que quereria, se vivesse no meio atual. Cf. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1965, especialmente pp. 56 e segs. Luís Fernando Coelho agrupa as escolas hermenêuticas segundo quatro orientações: a) a dogmática, que abrange: a Escola da Exegese; a Escola da Jurisprudência Conceituai, em suas versões, a germanista e a romanista (Escola dos Pandectistas); a Escola Analítica de Jurisprudência; b) a finalistica, que compreende: a Jurisprudência Teleológica, a Jurispru dênciade Interesses e a Escola de Livre Pesquisa Científica; c) a sociológica, que abarca a Escola de Direito Livre e a Escola de Jurisprudência Sociológica; d) a realista, que se desdobra no Realismo Jurídico norte-americano e no Realismo Jurídico escandinavo, com vertentes na Espanha, na Itália e na Inglaterra. Cf. L. Fernando Coelho, Lógica Jurídica e Interpretação das Leis, Rio de Janeiro, Forense, 1979, p. 67. R. Limongi França divide os sistemas interpretativos em três grupos: a) o dogmático exegético ou jurídico-tradicional, subdividido em duas orientações, a extremada e a moderada; b) o histórico-evolutivo; c) o da livre pesquisa ou livre criação do Direito, subdividido em duas orientações que entende que sejam a romântica e a científica. (Cf. França, R. Limongi, Elementos de Hermenêutica e Aplicação do Direito, São Paulo, Saraiva, 1984, pp. 33 e segs.) Carlos Campos vê duas tendências, na doutrina da interpretação - a hermenêutica tradicional e o movimento doutrinário de livre pesquisa. Inclina-se pela primeira: "A melhor apreciação, o melhor método de tradução de realidade do Direito é o que o subtrai ao arbítrio, à apreciação unilateral do seu conteúdo. Os sentimentos de segurança, de orientação no sentido dominante, que excluem essas apreciações unilaterais ou individuais, são essenciais ao Direito e constituem o seu aspecto mais importante de realidade. A Hermenêutica Tradicional, pelo seu próprio aspecto, pelo seu método de revestimento, de controle, de rigidez, de maior segurança, mais concordante ao Direito, parece, assim, o método de maior conjugação com a realidade jurídica e com o sentido dominante de realidade." (Cf. Carlos Campos, Hermenêutica Tradicional e Direito Científico, Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1970, p. 202.) 16. ESCOLAS DE ESTRITO LEGALISMO OU DOGMATISMO

São escolas presas a um estrito legalismo ou dogmatismo a Escola da Exegese, a Escola dos Pandectistas e a Escola Analítica de Jurisprudência, todas surgidas no século XIX, na França, Alemanha e Inglaterra, respectivamente.

As três encarnam a projeção, na hermenêutica, do positivismo jurídico que: a) na França, conduziu ao culto da vontade do legislador e ao culto dos códigos, considerados sem lacunas; b) na Alemanha, sob o influxo do historicismo jurídico, não subordinou o Direito ao legislador, mas construiu uma teoria do direito positivo que, partindo das normas singulares, tentou estabelecer as noções jurídicas fundamentais; c) na Inglaterra, reduzindo o Direito aos precedentes judiciais e à lei, independentemente de um juízo ético, caracterizou-se por ser uma análise e uma sistematização do direito positivo, com o objetivo de estabelecer os conceitos jurídicos. 16.1. Escola da Exegese

Era constituída pelos comentadores dos códigos de Napoleão, principalmente o Código Civil de 1804.

Fundava-se na concepção da perfeição do sistema normativo, na idéia de que a legislação era completa e de que, na generalidade da lei, encontrava-se solução para todas as situações jurídicas.

Conseqüência desse entendimento era afirmar Bugnet que não conhecia o Direito Civil, pois só ensinava o Código de Napoleão, enquanto Demolombe fixava como divisa, como profissão de fé: "les textes avant tout!"

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A Escola da Exegese via na lei escrita a única fonte do Direito, expressão mesmo do Direito Natural. Adotava, como método de interpretação, o literal, orientado para encontrar na pesquisa do texto a vontade ou intenção do legislador (mens legislatoris). Somente quando a linguagem fosse obscura ou incompleta, o intérprete lançaria mão do método lógico. A função do jurista consistia em extrair plenamente o sentido dos textos legais para apreender o significado deles. Negava valor aos costumes e repudiava a atividade criativa, mínima que fosse, da jurisprudência.

Os mais extremados representantes da escola entendiam, como Blondeau, que, em face de situações não previstas pelo legislador, deveria o juiz abster-se de julgar. Outros, porém, menos radicais, aceitavam, nessas hipóteses, o uso da analogia como mecanismo de integração do Direito.

Aftalión, Olano e Vilanova destacam, como característica da Escola da Exegese, um positivismo avalorativo, estatal e legalista. Esse positivismo avalorativo identifica todo o Direito com o direito positivo.

Razões históricas, políticas, econômicas e psicológicas explicam o positivismo legal acentuado a que chegou a Escola da Exegese: a) a legislação sobre a qual se ergueu foi produto da burguesia, classe recentemente chegada ao poder e ciosa de que seu direito explicitava o próprio direito natural;8 b) a legislação napoleônica vinha de ser editada e, como sempre ocorre, tendem os códigos a ser tidos, pela época em que surgem, como obra completa e acabada;9 c) o racionalismo do século XVIII, que alcançou o século seguinte, gerou o amor da simetria, da construção lógica que, no Direito, encontra sua expressão maior nos códigos; d) a doutrina da irrestrita separação dos poderes (o juiz é o porta-voz da lei - Montesquieu), fruto da desconfiança do homem burguês,10 tornava intolerável que penetrasse o Judiciário na esfera do Legislativo através de uma interpretação das leis que não fosse rígida, literal.

Foram representantes da Escola da Exegese, todos com. obras publicadas, dentre outros, os franceses Jean Charles Demolombe (1804-1887), Raymond Troplong (1795-1869), Victor Napoleón Marcadé (1810-1854), Charles Antoine Marie Barbe Aubry (1803-1883), Charles Fréderic Rau (1803-1877), Marie Pierre Gabriel Baudry-Lacantinerie (1837-1913), o belga François Laurent (1810-1887) e o alemão Karl Salomone Zachariae (1769-1843). Zachariae, não obstante alemão, ensinou o Código de Napoleão na Universidade de Heidelberg, quando as províncias à esquerda do Reno foram anexadas à França. ‘’’’’’’’’’’’Escreveu sobre o Código de Napoleão um tratado (1808) que veio a ser a primeira sistema-tização do Direito Civil francês.

A Escola da Exegese perdurou durante grande parte do século XLX. Baudry-Lacantinerie foi o último grande representante da Escola. Sua obra principal (Traité Théorique et Pratique de Droit Civil, 1900), escrita em colaboração com outros juristas, já reflete tendências inovadoras.

A influência da Escola da Exegese ainda hoje está presente nos setores reacionários do pensamento jurídico." 9 ' '£/ hecho histórico de la codificación conduce a la identificación dei derecho y la ley. La codiflcación es elsupuesto histórico de la Exégesis." Cf. Luis Eduardo Nieto Arteta,, ib. O próprio Napoleão tinha uma visão de eternidade, relativamente a seu código: "Minha verdadeira glória não está cm ter ganho quarenta batalhas; Waterloo apagará a lembrança de tantas vitórias. O que não se apagará, o que viverá, eternamente, é o meu Código Civil." Cf. Ralph Lopes Pinheiro, História Resumida do Direito, Rio de Janeiro, Ed. Rio, 1981, p. 88. 10 "El burguês es un hombre receloso y profundamente desconfiado. Por eso Ias competências de los órganos dei Estado burguês de Derecho son unas competências normadas. es decir, sujeitas a Ias regias jurídicas que sehalan su contenido y su alcance." Cf. Luis Fernando Nieto Arteta, ib., p. 56.

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16.2. Escola dos pandectistas

Como a Escola da Exegese, foi também manifestação do positivismo jurídico do século XLX.

Considerava o Direito como um corpo de normas positivas. Conferia primado à norma legal e às respectivas técnicas de interpretação. Negava qualquer fundamento absoluto ou abstrato à idéia do Direito.

A falta, na Alemanha, de códigos como os de Napoleão, os pandectistas construíram um sistema dogmático de normas, usando como modelo as instituições do Direito Romano, cuja recons-tituição histórica promoveram.

Dedicaram-se ao estudo do Corpus Júris Civilis, de Justinia-no, especialmente à segunda parte desse trabalho, as Pandectas, onde apareciam as normas de Direito Civil e as respostas dos jurisconsultos as questões que lhes haviam sido formuladas. O nome da Escola advém desse interesse pelas Pandectas.

A Escola dos Pandectistas rejeitava as doutrinas jusnaturalis-tas dos séculos XVII c XVIII e valorizava os costumes jurídicos formados pela tradição. Essa atenção aos usos e costumes levava os pandectistas a uma interpretação do texto legal mais elástica do que a preconizada pela Escola da Exegese.

Foi Windscheid quem colocou o problema da interpretação em termos de "intenção possível do legislador", não no seu tempo, mas na época em que se processasse o trabalho interpretativo. Se o texto da lei comportasse duas interpretações, seria lícito optar por aquela que realizasse um objetivo diverso do pretendido pelo legislador, levando em consideração fatos supervenientes.

Essa colocação representou, na época, um progresso. Dentre os principais representantes da Escola dos Pandectistas podem ser citados:

Bernhard Windscheid (1871-1892), Christian Friedrich Von Glück (1755-1831), Alõis "Von Brinz (1820-1887), Heinrich Dernburg (1829-1907) e Ernst Immanuel Von Bekker (1827-1916).

16.3. Escola Analítica de Jurisprudência

Também manifestação do positivismo jurídico, a Escola Analítica de Jurisprudência entendia que o Direito tinha por objeto apenas as leis positivas, não lhe interessando os valores ou conteúdo ético das normas legais. Afirmava John Austin, fundador da Escola: "A ciência da jurisprudência ocupa-se com leis positivas ou, simplesmente, com leis em sentido estrito, sem considerar a sua bondade ou maldade".

Segundo John Austin (1790-1859), os problemas relacionados com o Direito estão compreendidos em três campos distintos: a) a jurisprudência geral ou filosofia do direito positivo, que trata da exposição dos princípios gerais comuns aos diversos sistemas jurídicos positivos; b) a jurisprudência particular, que cuida do estudo das leis vigentes num determinado país; c) a ciência da legislação, situada nos domínios da Ética, que abrange os princípios que o legislador deve ter em conta para elaborar leis justas e adequadas.

O Direito está, dessa forma, completamente separado da Ética. O jurista ocupa-se das leis positivas, sejam as leis particulares de um Estado, sejam os princípios gerais comuns aos diversos sistemas jurídicos. Não considera se são justas ou injustas suas prescrições. Ao legislador ou ao filósofo é que interessam os aspectos morais das normas. Não há como confundir o "direito positivo", estudado pelos juristas, e o "direito justo ou ideal", objeto das reflexões do legislador ou filósofo.

A Escola Analítica de Jurisprudência colocou seu fundamento na análise conceituai. Entendia que o conceito nada mais era que a representação intelectual da

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realidade. Assim, a realidade poderia ser integralmente conhecida através da análise dos conceitos que a representavam.

A única fonte do Direito eram os costumes acolhidos e chancelados pelos tribunais. A escola tentou sistematizar e unificar o direito consuetudi-nário (essa foi sua contribuição, numa perspectiva histórica), com olhos postos na realidade inglesa, onde não se adotou uma constituição rígida e se fundou toda a estrutura jurídica no costume." 17. ESCOLAS DE REAÇÃO AO ESTRITO LEGALISMO OU DOGMATISMO

Parece-me que se possam considerar como escolas que rea- i giram ao estrito legalismo ou dogmatismo, abrindo novos horizontes à Ciência do Direito, a Escola Histórico-Dogmática, a Escola I Histórico-Evolutiva e a Escola Teleológica.

AEscola Histórico-Dogmática opôs-se à íiteralidade interpre-tativa chamando a atenção para o elemento sistemático, inerente 1 ao caráter orgânico do Direito. A Escola Histórico-Evolutiva avançou mais ainda, recusando o raciocínio formal adotado pelos seguidores da Escola Histórico-Dogmática e propugnando pela pesquisa a posteriori do sentido da lei. A Escola Teleológica combateu, quer o método dedutivo-silogístico, quer a jurisprudência conceituai dos pandectistas e dos adeptos da Escola Histórico-Dogmática, propugnando por uma interpretação que se inspirasse menos na lógica e mais no caráter finalístico do Direito.

17.1. Escola Histórica do Direito

Surgiu na Alemanha, em princípios do século XIX. Opôs-se às doutrinas jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII. Negava a existência de um Direito Natural com pressupostos racionais e universalmente válidos. Proclamava a historicidade do Direito, cuja origem e fundamento repousavam na consciência nacional e \ nos costumes jurídicos oriundos da tradição.

Podem ser resumidos, como postulados básicos da Escola Histórica do Direito, os seguintes:

1º) o Direito é um produto histórico, e não o resultado das circunstâncias, do acaso, ou da vontade arbitrária dos homens; 2º) o Direito surge da consciência nacional, do espírito do povo, das convicções da comunidade pela tradição; 3º) o Direito forma-se e desenvolve-se espontaneamente, como a linguagem; não pode ser imposto em nome de princípios racionais e abstratos; 4º) o Direito encontra sua expressão inconsciente no costume, que é sua fonte principal; 5º) é o povo que cria o seu Direito, entendido como povo não somente a geração presente, mas as gerações que se sucedem. O legislador deve ser o intérprete das regras consuetudinárias, com-pletando-as e garantindo-as através das leis.

A Escola Histórica surgiu no apogeu do neo-humanismo, quando o Direito era tido como pura criação racional. Foi contribuição sua ter retirado o Direito da perspectiva abstrata do racio-nalismo, fundada em exercícios de lógica e dialética, para uma perspectiva histórica, rente à vida real.

Pertenceram à escola os alemães Gustav von Hugo (1764-1844), seu iniciador, Friedrich Karl von Savigny (1779-1861), sua principal figura, Georg Friedrich Puchta

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(1798-1846), Johann Friedrich Gõschen (1778-1837), Karl Friedrich Eichhom (1781 -1854), Joseph Kõhler (1849-1919), o inglês Henry James Summer Maine (1822-1888) e o francês17 Raymond Saleilles (1855-1912).

Não obstante os princípios gerais que caracterizaram a I escola Histórica do Direito, ela pode ser subdividida em duas outras, cujas diretrizes hermenêuticas diversas são examinadas nos itens seguintes.

17.1.1. Escola Histórico-Dogmática

A Escola Histórico-Dogmática foi o primeiro desdobramento da Escola Histórica do Direito. Teve como principais representantes Savigny, Puchta, Hugo, Gõschen, Eichhorn e Henry Maine. Ficou também conhecida como Escola Histórica Alemã.

No terreno da Hermenêutica, a Escola Histórico-Dogmática representou um avanço, comparativamente às escolas anteriores. O intérprete não se devia ater à letra da lei para dela extrair soluções para os casos, usando o processo meramente lógico: também o elemento sistemático devia ser utilizado, de modo que se pudesse^ reconstruir o sistema orgânico do Direito, do qual a lei mostrava apenas uma face.

Afirmando que o povo era o criador do seu Direito, indicava ao intérprete, não obstante, pesquisar a intenção do legislador, representante da consciência coletiva. Quando o pensamento da lei aparecesse em contraste com o que o intérprete considerasse expressão da consciência coletiva do povo, no momento de ser aplicada a lei, deveria optar pela revelação direta dessa fonte mais profunda do Direito.

A Escola da Exegese supunha a plenitude e perfeição da lei escrita. A Escola Histórico-Dogmática entendeu que essa plenitude l só poderia ser encontrada no sistema do Direito Positivo. 17.1.2. Escola Histórico-Evolutiva

A Escola Histórico-Evolutiva, também conhecida como Escola Atualizadora do Direito, teve em Saleillese Kõhler seus vultos principais.

Contrapôs-se à estratificação da Escola Histórico-Dogmática, através da superação de seus métodos pela pesquisa a posteriori do sentido da lei. A rigidez do raciocínio formal adotado pela primeira corrente da Escola Histórica, os seguidores da Escola Histórico-Evolutiva acrescentaram - o que foi um passo adiante - certa medida de função criadora, de modo que o Direito pudesse acompanhar as transformações sociais. Não obstante, deveria o interprete ou aplicador manter-se no âmbito da lei.

Entendia a escola que alei deveria ser considerada como portadora de vida própria, de maneira que correspondesse não apenas às necessidades que lhe deram origem, mas também às necessidades supervenientes. Observasse o intérprete não apenas o que o legislador quis, porém também o que quereria se vivesse à época da aplicação da lei; adaptasse a velha lei aos tempos novos, dando vida aos códigos. Saleilles achava que as normas jurídicas estavam sujeitas à lei geral da evolução. 11111Caberia ao juiz conciliar a idéia de regra com a idéia de evolução, conservando a vida da lei através de sua adaptação à realidade e às mudanças sociais. Kõhler observou que o pensamento da lei é todo e qualquer pensamento que possa estar nas suas palavras, sendo possível retirar delas dois ou dez pensamentos. Os princípios da interpretação devem possibilitar, dentre os pensamentos possíveis, encontrar o verdadeiro.

Dentre os vários possíveis pensamentos da lei, deve ser preferido aquele mediante o qual a lei exteriorize o sentido mais razoável, mais salutar e que produza o efeito mais benéfico.

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Deve-se preferir a interpretação mercê da qual a lei apresente a estrutura mais conseqüente e organicamente correta, tomando em consideração o encadeamento das diversas leis do país.

Se ainda assim não se consegue um resultado seguro, deve-se recorrer às aspirações e preocupações da lei, aos fins que buscou atingir, às intenções e desejos que agitavam o meio no tempo em que loi a lei editada. 17.2. Escola Teleológica

O Teleologismo Jurídico, sendo uma teoria do Direito, é também uma escola hermenêutica.

Seu fundador foi o jurisconsulto alemão Rudolph Von Ihering (1818-1892). Adepto do positivismo jurídico do século XLX, Ihering acresceu aos postulados da

Escola Histórico-Dogmática as teorias or-gano-evolucionistas do seu tempo. Pregou Ihering que o Direito, como organismo vivo, é produto da luta, e não de um

processo natural, segundo pretendia Savigny. O paralelismo entre o Direito, de um lado, e a língua e a arte, de outro, devia ser recusado. Falso mas inofensivo, como concepção histórica, esse paralelismo, como máxima política,] encerrava uma heresia funesta, uma vez que, num terreno em que o homem deveria empenhar todas as suas forças, com plena consciência dos objetivos, ele o induziria a crer que as coisas se arranjam por si, "... que o melhor que se tem a fazer é permanecer inativo e aguardar confiante aquilo que o pretenso manancial do Direito, a consciência nacional do Direito, há de trazer paulatinamente à luz do dia".

Toda história do Direito é história de lutas; todo direito foi adquirido pela luta. O Direito supõe luta, quer para sua criação, quer para sua defesa: "O fim do direito é a paz, o meio de atingi-lo, a luta. Enquanto o direito tiver de contar com as agressões partidas dos arraiais da injustiça - e isso acontecerá enquanto o mundo for mundo - não poderá prescindir da luta. A vida do direito é a luta - uma luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos". Segundo Ihering, da mesma forma que todas as ações humanas têm uma finalidade, também no Direito tudo existe para um fim, sendo o mais geral a garantia de condições de existência da sociedade. O fim é o criador do Direito.

A luta e o fim são elementos decisivos na formação e transformação do Direito. O interesse é o motor do Direito. A finalidade do Direito é a proteção de interesses.

Sendo opostos os interesses, cabe ao Direito conciliá-los, com a predominância dos interesses sociais e altruís-tas. Para essa subordinação dos interesses individuais aos interesses sociais, é necessária a coação, exercida pelo Estado.

Os direitos não surgiram como corporificação de uma vontade jurídica abstrata, e sim para assegurar os interesses da vida, satisfazer suas necessidades, realizar seus fins.

No campo da hermenêutica, Ihering criticou o método dedu-tivo-silogístico. Combateu a jurisprudência conceptualista desenvolvida quer pelos pandectistas, quer pelos discípulos da Escola Histórico-Dogmática. Pretendeu sua substituição por uma jurisprudência que se guiasse pelos resultados, invocando o caráter finalístico do Direito: não é a vida que existe para os conceitos, mas os conceitos é que existem para a vida. Não é a lógica que tem direito à existência, mas o que a vida reclama, o que as relações sociais e o senso de justiça exigem, pouco importando que seja logicamente necessário ou logicamente impossível.

Ihering condenou o processo das construções a priori e das deduções geométricas. Verberou os que pretendiam, em nome da lógica, fazer da jurisprudência a matemática do direito. Investiu contra os processos dialéticos da Escola Histórico-Dogmática e o valor excessivo que atribuiu ao elemento lógico no Direito.

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Pregou que as regras jurídicas e as soluções que consagram silo determinadas pelo fim prático e pelo fim social das instituições. O método próprio do Direito é o teleológico, uma vez que a missão do Direito é adaptar os meios à concepção dos fins, na realização dos interesses sociais.

A construção jurídica deve respeitar o conteúdo das regras positivas, mas os conceitos do legislador não são obrigatórios para o intérprete. O legislador deve abster-se de construir, sob pena de Invadir os domínios do jurista e da ciência. Respeitado o conteúdo da lei, a liberdade da jurisprudência deve ser ampla.

A introdução da idéia de finalidade prática e social, na interpretação jurídica, foi o grande tributo que a escola ofereceu à evolução da hermenêutica. Fora da Alemanha, o maior representante da Escola Teleológica foi o jurisconsulto belga Van Der Eycken, que advogou pesquisasse o intérprete, inicialmente, o fim social da espécie sob exame, apreciado, em caso de dúvida, em confronto com uma hierarquia de fins secundários, que convergem para o fim supremo: a felicidade social realizada pelos equilíbrios. 18. ESCOLAS QUE SE ABREM A UMA INTERPRETAÇÃO MAIS LIVRE

Podem ser alinhadas, como escolas que se abrem a uma interpretação e aplicação mais livres do Direito: a Escola da Livre Pesquisa Científica, a Escola do Direito Livre, a Escola Sociológica Americana, a Escola da Jurisprudência de Interesses, a Escola Realista Americana, a Escola Egológica e a Escola Vitalista do Direito.23

A Escola da Livre Pesquisa Científica derrubou o mito da plenitude lógica da lei e demonstrou a supremacia da livre pesquisa científica do Direito sobre o método, então vigente, de rebuscar na abstração dos conceitos a resposta para os silêncios da lei. 23 "Ante la rigidez de algunos de los métodos tradicionales y ante Ias injusticias evidentes a que podían conducir, numerosos filósofos y juristas han destacado desde fines dei siglo pasado los inconvenientes que un uso dogmático cerrado en esos métodos podia suscitar. Han propugnado el reconocimiento de un mayor margen de libertad interpretativo en los órganos de aplicación. Entre esos escuelas, cuyos fundamentos metódicos suelen ser muy ecléticos, se cuentan Ias llamadas 'escuelas dei derecho libre', Ia 'escuela da la libre investigación científica', el 'realismo jurídico' y otros. Lo que interesa destacar en estas orientaciones es que en ellas se hace explícito el caracter político de los supuestos métodos interpretativos: no se trata de conocer el derecho, sino de hacer derecho." Roberto José Vernengo, Curso de Teoria General dei Derecho, Buenos Aires, Cooperadora de Derecho y Ciências Sociales, 1976, p. 415.

A Escola do Direito Livre abalou a certeza em que se imaginava estar alicerçada a ordem jurídica positiva, demonstrou que a aplicação do Direito é informada por uma pauta axiológica e realçou o papel criador e inovador da função judicial.

A Escola Sociológica Americana demonstrou que o Direito é mais produto da evolução dos fatos sociais, na precariedade do humano, do que amaterialização de arquétipos eternos, mais experiência que lógica, mais militarismo que racionalismo.

A Escola da Jurisprudência de Interesses sublinhou que a investigação dos interesses em jogo, e não a lógica, é que deve orientar a Hermenêutica.

A Escola Realista Americana contribuiu para demonstrar a existência de um abismo entre a concepção teórica de uma justiça impessoal e inflexível e a realidade de uma justiça feita de homens, na qual o juiz, com suas idéias e personalidade, é a figura decisiva.

A Escola Egológica pôs a descoberto a verdadeira essência da decisão judicial, que opera um conhecimento por compreensão, pelo qual o juiz e os litigantes compartem algo em comum e onde está presente a intuição emocional do julgador. Outrossim, desvendou o mecanismo dos julgamentos ao perceber que o juiz, ao aplicar a lei, põe o sentido axiológico, iniciado na lei, na conduta que interpreta, ao mesmo tempo em que extrai um sentido da conduta. O objeto da interpretação não é a norma, porém a conduta

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humana.

A Escola Vitalista do Direito - ao proclamar que a função jurisdicional escapa a qualquer criação legislativa, não pertence a ela, não pode ser colocada dentro dela — alforria o mister de juiz e confere-lhe imensa responsabilidade. Inova ao conceituar o método da aplicação do Direito, demonstrando que não se deve guiar pela lógica formal, apta à análise dos conceitos jurídicos fundamentais, porém desastrosa para o trato dos problemas humanos, tjue reclamam uma lógica própria, a lógica do humano e do razoável.

18.1. Escola da Livre Pesquisa Cientifica

A Escola da Livre Pesquisa Científica (Libre Récherche Scientifique) surgiu na França sob a inspiração da François Gény (1861-1959). E também conhecida pela denominação de "Escola Científica Francesa".

Foi em 1899 que Gény publicou Méthode d'ínterprétation et Sources en Droit Prive Positif, motivo pelo qual esse ano él apontado como marco de criação da escola. Gény combateu o espírito legalista do positivismo jurídico, o abuso das construções sistemáticas da hermenêutica tradicional, o fetichismo da lei e a concepção de sua plenitude lógica, demons-trando que a lei é insuficiente para cobrir todos os fatos sociais. A aplicação de métodos puramente racionais, no campo do direito, tinha conduzido à falsificação da realidade, cuja apreensão global só é possível através de uma operação complementar, de natureza intuitiva.

A Escola da Livre Pesquisa Científica surgiu para superar as deficiências da interpretação segundo os métodos da Escola Histórico-Evolutiva.

Não concordava Gény que devesse o intérprete procurar descobrir a intenção possível do legislador, como se este vivesse na época da aplicação da lei. Achava que a lei só tem uma intenção: aquela que motivou seu aparecimento. O intérprete devia manter-se fiel a essa intenção, reproduzi-la no momento de aplicar a lei, O significado da lei não deveria sofrer a influência do momento histórico em que fosse interpretada. Verificando, contudo, que a lei, na sua pureza originária, não correspondia aos fatos supervenientes, cumpria reconhecer a existência de lacunas na obra legislativa, lacunas que por outros meios deviam ser supridas.

O direito não estava contido todo na lei; esta, dispondo para o futuro, não poderia prever todas as situações. A lei era a mais importante fonte do Direito, mas não a única. Ante lacunas da lei, deveria o intérprete recorrer a outras fontes (o costume, a jurisprudência, a doutrina), e não forçar a lei para que desse soluções a casos não previstos. Se as fontes suplementares fossem insuficientes, caberia ao próprio aplicador do Direito criar a norma, como se fosse legislador. Nessa tarefa deveria proceder à "livre investigação científica do Direito". Não se tratava de procurar uma regra jurídica já escrita, que pudesse ser invocada por analogia, mas, sim, de descobrir, através da pesquisa científica dos fatos sociais, a regra jurídica adequada.

Como disse Gény: "A lei, não cobrindo todo o campo do Direito, é por vezes incuravelmente muda. Torna-se inútil (...) arrancar-lhe um sentido artificial. Nesses casos, só a livre pesquisa científica pode propiciar os elementos de solução, porque vai buscá-los, não na abstração tios conceitos, mas na noção de justo objetivo - vale dizer, na razão e na consciência - e nas realidades sociais. Assim, o sentido da lei deve ser pesquisado nela, mas também fora dela, se preciso for: Par le Code civil, mais (aussi) au dela du Code civil,y.2A

A "livre pesquisa científica" é assim denominada: a) porque o intérprete está liberto de toda influência exterior, não está submetido a nenhum texto legal ou fonte do Direito (pesquisa livre);

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b) porque se funda em critérios objetivos, não é arbitrária (pesquisa científica). A livre pesquisa científica visa a constituir "... uma espécie de direito comum, geral

por sua natureza, subsidiário por seu ofício, a fim de suprir as lacunas das fontes formais e dirigir todo o movimento da vida jurídica".

A teoria de Gény parte da consideração de que o Direito é constituído por duas séries de elementos: os "dados" e os "construídos".

O dado (le donne) compreende todos aqueles elementos não criados pelo legislador, mas elaborados pelo fluxo da existência humana, como resultantes da natureza e da experiência social: eles se impõem ao intérprete e também ao legislador.

O construído (le construit) é o arcabouço das normas que o jurista constrói a partir do dado. E produto da vontade humana. São elementos dados, dentre outros: o clima, o solo, as condições geográficas em geral; os fatores econômicos, culturais, demográficos, raciais; os sentimentos morais e religiosos; as condições históricas, as tradições do povo; as idéias do justo e do injusto; o direito natural, derivado da natureza mesma das coisas, revelado pela razão; e o ideal de direito, os princípios jurídicos que deveriam derivar da intuição à face de uma situação histórica determinada.

A "livre investigação científica do Direito" está compreen-dida na segunda série de elementos, isto é, os "construídos": com base nos dados, o juiz, em face das omissões da lei, estará investido da função de elaborar a norma jurídica, imbuído dos mesmos propósitos que orientariam o legislador se fosse chamado a regular a questão sob exame.

Deveriam orientar a "livre pesquisa" três critérios: o princípio da autonomia da vontade; a ordem e o interesse público; o justo equilíbrio dos interesses privados opostos.

A "livre pesquisa" deveria ter limites, conforme Gény entendeu: o juiz estaria autorizado a decidir praeter legem. A "livre investigação" só teria cabimento no caso de lacuna das fontes formais e não quando a norma fosse considerada injusta ou desastrosa sua atuação.

A "livre pesquisa científica" inova na medida em que completa ou integra o sistema existente, mas não lhe altera o significado fundamental.

As idéias de Gény exerceram influência e encontraram seguidores em todo o mundo. Até hoje suas teses são seguidas por inúmeros juristas. Na França de sua época, Percerou, Naquet, Lambert, Ballot-Beaupré, dentre outros, acolheram os postulados de sua escola.

A grande contribuição de Gény foi a de ter investido a função judicial de muito maior dinamismo e criatividade, através do exercício da missão de integrar o Direito, suprindo suas lacunas: superada ficava a imagem do juiz, mero intérprete da lei, pesqui-sador unicamente da vontade do legislador. I.8.2. Escola do Direito Livre

Sob a denominação de Escola do Direito Livre, ou Escola do Direito Justo, abrigam-se tendências mais moderadas, ou mais radicais, de insubmissão à idéia de que a lei, ou o próprio sistema jurídico, contém todo o Direito ou monopoliza as aspirações, valores e dados que devem ser sufragados pelos juizes, na aplicação do Direito.

A Escola do Direito Livre (Freirecht) surgiu na Alemanha, em 1906, com a publicação do livro Der Kampfum die Rechts-wissenschaft, A Luta pela Ciência do Direito, por Hermann Ulrich Kantorowicz (1877-1940), sob o pseudônimo de Gnaeus Flavius.

Os antecedentes teóricos da Escola do Direito Livre podem ser encontrados na Escola Histórica, no ponto em que proclamava surgir o Direito do espírito do povo, bem como na Escola da Livre Pesquisa Científica, cujo postulado de busca do Direito, fora das fontes formais, a Escola do Direito Livre levou às últimas conseqüências.

São também apontados como precursores da Escola: Adickes, por causa da crítica e revisão que realizou na teoria das fontes do Direito; Schlossmann, que colocou sob a

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dependência essencial do sentimento jurídico toda e qualquer solução de direito; e sobretudo Rudolf Stammler (1856-1938) e Paul Magnaud.

Stammler inspirou a Escola do Direito Livre, ao negar a possibilidade de existência de um direito natural, válido para todos os tempos e lugares, e ao afirmar que o Direito seria sempre uma tentativa de direito justo.

A tese de Stammler, quanto à existência de um "direito justo", ao lado do "direito legal", e de um direito natural com conteúdo variável, abalou o positivismo jurídico. O "direito justo", segundo Stammler, deveria ser perseguido pelo legislador e pelo juiz; por este, através da livre apreciação do direito, mediante regras, contudo, que deveriam ser observadas.

Entendia Stammler que a aplicação prática do Direito realiza-se por meio de deduções jurídicas, ou seja, derivando os juízos das premissas gerais. E via duas classes de deduções jurídicas: a) as deduções jurídicas mediatas, necessárias quando um problema jurídico especial há de ser julgado atendendo às normas especiais contidas nas regras jurídicas formuladas tecnicamente e que um determinado Direito estabelece como definitivas; b) as deduções jurídicas imediatas, que implicam juízos baseados num Direito fundamentalmente justo.

As normas a serem aplicadas nas sentenças são sempre nor-mas limitadas, que respondem a princípios do Direito justo e que 1 estão já dispostas para a atuação do juiz, o qual faz escolha dentre 1 diversas possibilidades.

As principais obras de Stammler foram publicadas entre 1896 e 1922. Paul Magnaud, presidente do modesto tribunal francês de Château-Thierry, chamado por seus compatriotas de **o bom Juiz" não será caracterizado com acerto como a expressão pragmática da Escola do Direito Livre, segundo pretendem alguns autores. Mais exato será considerá-lo como precursor da Escola, pois suas sentenças são anteriores à publicação da obra de Kantorowicz.

Magnaud orientou seus julgamentos por juízos de solidarie-dade e humanidade. Privilegiou o direito à vida como o mais Importante. Por isso absolveu Luísa Ménard, que furtou um pão pura matar a própria fome e a de sua mãe porque "... o juiz pode e deve interpretar humanamente os inflexíveis preceitos da lei".

Deu proteção social aos deserdados e aos fracos; procurou realizar na ordem jurídica a igualdade que a natureza e o individualismo subtraem à generalidade dos homens; atacou os privilé-gios e os abusos dos poderosos.

Segundo a opinião de Roberto Piragibe da Fonseca, embora A obra de Magnaud estivesse inspirada em intuições e pressentimentos muito corretos, carece de justificação teórica. Observou que se Magnaud afastava-se da lei, não o fazia por desobediência no Direito Positivo, mas para realizar uma melhor justiça.

Recaséns Siches assinala que Magnaud conseguiu tomar manifesta a injustiça de critério de certas leis, em considerandos modelares. Pensa que suas sentenças contribuíram não tanto para resolver o problema da interpretação e da função judicial, porém Como um testemunho detonador desse problema.

Machado Neto viu, no "bom juiz", um precursor da jurisprudência trabalhista.34 A leitura de suas sentenças, em matéria de direitos dos trabalhadores, convence da justeza da observação.

A Escola do Direito Livre reagiu contra o princípio da plenitude lógica ou orgânica do Direito Positivo, bem como combateu a "jurisprudência dos conceitos", aquela que, nas lacunas da lei, se perdia em conceitos abstratos.

Entendia que o Estado deformava em proveito próprio o direito social, advindo daí a tensão permanente entre a ordem estatal e a ordem social.

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A tese fundamental da Escola do Direito Livre é a de que oi Direito não é, nem deve ser, criação exclusiva do Estado. Por conseguinte, a lei não é aúnica fonte de Direito e o juiz não deve ser inteiramente submisso a ela.

A vida social é mais rica do que a norma, a realidade movi-j menta-se em contínua emergência.

A elaboração, interpretação e aplicação do Direito devem ser confiadas à investigação científica, à pesquisa sociológica.

Segundo observa Recaséns Siches, ainda que Kantorowicz não tenha desenvolvido sua concepção com claro rigor, parece que entende por Direito Livre as convicções predominantes, que têm as pessoas de certo lugar e em certo tempo, a respeito do que é justo, convicções que real e efetivamente regulam a conduta dessas pessoas.

Em matéria de hermenêutica, Kantorowicz fundamenta-se no método de Bártolo de Sassoferrato (1313-1357) que, em presença da espécie, aconselha que se busque a solução segundo a justiça, e só depois as fontes motivadoras da solução encontrada.3"

A Escola do Direito Livre apresentou duas tendências principais: a moderada, advogando a criação da norma jurídica, pelo juiz, somente quando este se encontrasse diante de uma lacuna nas fontes de Direito - eco, na Alemanha, da Libre Récherche Scien-tifique; a extremada, pretendendo essa criação, também quando a norma aplicável fosse considerada injusta. Acorrente radical ficou conhecida como Escola do Direito Justo.

Eugen Ehrlich (1862-1922), o representante máximo da corrente moderada, que deu embasamento sociológico às idéias centrais da Escola, viu a existência de um direito da sociedade, independente do direito legislado, constituído por instituições básicas (matrimônio, família, posse, contrato, sucessão), anteriores a toda e qualquer função legislativa. Esse direito da sociedade deveria prevalecer sobre o direito legislado, nas decisões judiciais.

Entendia Ehrlich ser facultado ao juiz estabelecer livremente uma solução própria, com base em estudos sociológicos, quando dos textos legais não fosse possível inferir uma solução que correspondesse ao fato sob exame, de maneira adequada e justa.

Percebeu Ehrlich, como assinala Recaséns Siches, que é ao juiz que compete decidir qual dos interesses em jogo, que se dão num litígio submetido a sua jurisdição, corresponde ao tipo de interesse previsto pela lei, em termos gerais, como digno de proteção, assim como decidir se o ataque é, ou não, da mesma espécie prevista na lei.

Sucede que a vida é incomparavelmente mais rica que os conceitos e tipos contidos nas normas jurídicas gerais: os interesses, na realidade, apresentam uma variedade de matizes diferentes entre si, em número tão grande e em variações tais, que nenhuma norma jurídica, ou conjunto de normas jurídicas, poderia jamais expressar. Isto suscita para a função judicial graves dificuldades lógicas.

A norma jurídica geral não pode produzir nada mais do que os comandos que contém, previamente, em termos abstratos. Por mais explícita e lógica que seja, não pode ir além disso.

Gustav Radbruch (1878-1949), outro adepto da Escola do Direito Livre, em sua ala moderada, afirmou que a interpretação não se dirige ao já pensado, não consiste em pensar, posteriormente, o já pensado em um momento anterior; diversamente, é pensar o sentido objetivamente válido do preceito jurídico.

Assim entendendo a tarefa hermenêutica, pensa que deva ser conferida ao intérprete certa margem de liberdade, a fim de que supra as lacunas da lei e reconcilie o povo com o direito prático.

Kantorowicz é o representante maior, ao lado de Ernst Fuchs, da corrente mais radical da Escola.

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Segundo sua visão hermenêutica, se o texto de lei é unívoco e se sua aplicação ao caso concreto não produz uma solução que fira os sentimentos da comunidade, vale dizer, se não viola o "Direito Livre", o juiz deve decidir com apego ànormalegislativa.

Mas o juiz pode e deve prescindir da lei, quando se encontre nas situações seguintes: a) se lhe parece que a lei não oferece uma solução carente de dúvidas; b) se lhe parece, segundo sua honrada convicção, que não é verossímil que o poder estatal existente, no momento do fato, haveria de ditar a resolução que se depreenderia da lei.

Em ambos os casos, o juiz deverá prolatar a sentença que, segundo sua convicção, teria sido decretada pelo atual poder do Estado, se esse poder tivesse pensado no caso concreto.

Se o juiz não for capaz de formar essa convicção, então se inspirará no "Direito Livre".

As decisões contra legem Kantorowicz via como um mal, contudo inevitável. Para Kantorowicz, não caberia à Ciência jurídica limitar sua atividade apenas ao

domínio do que já é conhecido. Também seria tarefa sua constituir-se em fonte produtora de regras, pesquisadora e criadora de direito.

Via Kantorowicz, como ideais do Direito Livre:

a) a popularidade da jurisprudência viva; b) sua especialização a cargo de profissionais; c) sua imparcialidade; d) a própria justiça, que reclama liberdade, personalidade e competência.

Para Kantorowicz, quer o legislador, quer o juiz não agem movidos apenas pela inteligência, mas também pela vontade: na sentença, o juiz escolhe o princípio que melhor embasa sua decisão.

Ernst Fuchs (1859-1929) profligou o fetichismo dalei escrita, o culto dos conceitos e das construções lógicas, assinalando que o ideal, que deve orientar o Direito, é a busca da justiça material, e não a construção exata.

Oscar Bülow observou que, não raramente, pela força das coisas e insuficiência das fórmulas, o juiz é obrigado a decidir contra a lei.

Os mais diversos autores da Escola do Direito Livre (Ernst Fuchs, Eugen Ehrlich, Hermann Kantorowicz, Rumpf) destacaram ser o juiz mais importante do que a lei, dependendo a boa administração da justiça, fundamentalmente, das condições de personalidade, competência e cultura dos magistrados.

Também a colaboração da Psicologia e das Ciências Sociais em geral, no trato dos problemas-do Direito, foi defendida pela Escola (Fuchs, Kantorowicz).

A Escola do Direito Livre teve o aplauso irrestrito, ou com reservas, de alguns, e a condenação, ou crítica desfavorável, de outros. Radbruch qualificou-a como o mais vigoroso sinal de vida da ciência jurídica depois de Ihering. Hellwig e Sternberg aprovaram a Escola, nas suas tendências moderadas. H. Lévy-Bruhl condenou-a, por privilegiar as convicções pessoais do juiz, gerando soluções diferentes para um mesmo litígio e enfraquecendo a confiança do povo no Poder Judiciário.

Em síntese, a Escola mereceu aplausos: a) enquanto valeu como protesto contra a jurisprudência conceituai; b) enquanto pretendeu encorajar a ação criativa do juiz à face das lacunas do sistema jurídico; c) pelo fato de ser rica de sugestões, abrindo perspectivas imprevistas para a vida do Direito;

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d) por ter contribuído para a evolução do Direito, ao justificar as decisões praeter legem, que vieram a ser consagradas pelo Código suíço e por outros, posteriormente; e) por ter valorizado o papel do juiz na aplicação do Direito; f) por ter colocado o caso concreto numa posição superior à condição de generalidade, que é inerente à norma jurídica; g) poter realçado a ponderação da realidade e dos valores sociais, na aplicação do Direito; h) por ter abalado a certeza em que se acreditava estar alicerçada a ordem jurídica positiva; í) por ter despertado o jurista para a preocupação com uma tabela axiológica informativa da interpretação e aplicação do Direito.

As censuras à Escola recaíram nos seguintes aspectos, em resumo: a) incentivaria o subjetivismo e o arbítrio judicial; b) poderia conduzir a uma ditadura togada; c) constituiria uma ameaça à ordem; d) invalidaria a segurança, a certeza, a estabilidade, a unidade e a objetividade, que deveriam constituir características do Direito; é) desmoronaria as garantias jurídicas.

Kantorowicz respondeu às críticas que foram endereçadas à Escola. Começou por negar a veracidade dos apregoados méritos da Justiça impessoal,

que a Escola do Direito Livre estaria ameaçando. Afirmou que são ideais irrealizáveis: a) ser toda decisão fundada na lei; b) ser o juiz o executor fiel da lei; c) serem todos os casos decididos exclusivamente pela lei; d) ser sempre motivada qualquer decisão; é) ser sempre objetiva, restritamente científica e isenta de paixão a sentença judiciária.

Quanto aos perigos de arbítrio judicial e incerteza do Direito, resultantes dos postulados do Direito Livre, acreditava que o hipotético mal é evitado pela pluralidade dos julgadores e pelo duplo grau de jurisdição.

A Escola do Direito Livre sacudiu verdades estabelecidas e representou um progresso no pensamento jurídico. Abriu perspectivas para a Ciência do Direito e investiu a função judicial de maior responsabilidade e importância, realçando o papel criativo inerente a ela.

18.3. Escola Sociológica Americana

Surgiu nos Estados Unidos, na primeira metade deste século, tendo, como corifeu, Roscoe Pound, e principais integrantes Oliver Wendel Holmes, seu precursor, BenjamimNathan Cardozo e Louis Brandeis.

Foi um movimento paralelo à Escola do Direito Livre, na Alemanha, e à Escola da Livre Pesquisa Científica, na França.

Partindo da consideração de que o Direito é essencialmente mutável, condicionado às variações da vida social, a Escola pretendeu substituir as concepções de caráter racionalista, no campo do jurídico, por procedimentos empíricos e utilitaristas.

Os conceitos fixos e imutáveis, os padrões eternos de justiça não são apropriados para compreender a realidade do Direito, submetida ao evolver dos fatos sociais e à relatividade do humano.

O Direito é um instrumento de civilização. Cabe-lhe servir à melhoria da ordem social e econômica. Reclama do jurista um trabalho consciente e criador.

Repercussão hermenêutica desse posicionamento é a compreensão de que o juiz deve interpretar as normas, procedendo a correta ponderação valorativa das realidades sociais. A lógica desempenha papel secundário. Ante um caso a decidir, o juiz formula juízos de valor e escolhe a solução, dentre as diversas possibilidades que a ordem jurídica oferece.44

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Por esse motivo, Roscoe Pound (1870-1964) diz que "A ciência do direito é uma ciência da engenharia social que tem de haver-se com a parte desse campo, suscetível de se realizar por meio da regulação das relações humanas através da ação da sociedade politicamente organizada".

Influência notável sobre a Escola Sociológica Americana exerceu a "lógica experimental", do filósofo pragmatista John, Dewey, que é, por esse motivo, considerado, de certa forma, como ligado a essa corrente.

Dewey afirmou que a lógica dedutiva deve ser abandonada, como instrumento principal e decisivo, para chegar à sentença judicial. Deve ser substituída por um tipo de lógica que, em vez de partir dos antecedentes, tenha seu centro de gravidade na consideração das conseqüências. Os princípios jurídicos gerais devem ser considerados somente como hipóteses de trabalho e, nessa condição, necessitam ser constantemente verificados sob o critério de exame dos efeitos que produzem, ao serem aplicados às situações concretas.

Defendendo as vantagens da Justiça judiciária, ou seja, da Justiça ministrada por especialistas judiciais, Roscoe Pourid traça os contornos da teoria hermenêutica de sua Escola. Diz que a Justiça judiciária "... combina as possibilidades de certeza e flexibilidade melhor do que qualquer outra forma de ministrar justiça. Proporciona a| certeza mediante o treinamento do juiz no desenvolvimento lógico e naexposição sistemática de materiais autorizados para decisão. 44 O posicionamento hermenêutico da escola choca-se com a visão da função judicial como função lógica: "Não se pode consentir à autoridade judicial que se preocupe com os efeitos que podem provir da aplicação exata da lei". (Pascuale Fiore, Interpretación de las Leyes, Madrid, Editorial Reus, 1927, pp. 550-551.)

Garante o desenvolvimento, permitindo o exame científico de pontos de partida recebidos para o raciocínio jurídico, com referência a casos concretos, e a correção de preceitos mediante extensão ou restrição, pela experiência de aplicação e do processo gradual de inclusão e exclusão, com fundamento em princípios racionais".

Objetivando uma justa elaboração e individualização de normas jurídicas, Roscoe Pound formulou um programa que considera adequado para a "jurisprudência sociológica", fundado nos seguintes pontos: 1o) investigação sobre os efeitos sociais das instituições e doutrinas jurídicas; 2o) prévio estudo sociológico das realidades atuais para a preparação da tarefa legislativa; 3o) estudo dos meios adequados para fazer com que os preceitos jurídicos tenham eficácia na realidade; 4o) história jurídica sociológica para averiguar a situação social na qual se produziu uma norma jurídica, com o fim de informar se essa norma jurídica é digna, ou não, de sobreviver; 5o) estudo do método jurídico, isto é, dos fatores psicológicos e de outra índole e dos ideais que atuam sobre a função judicial; 6o) reconhecimento da importância máxima de encontrar uma solução justa e razoável para os casos concretos, tanto no âmbito do Direito Privado, quando no do Direito Penal e Administrativo; 7o) estabelecimento de um Ministério de Justiça encarregado de redigir projetos de lei, com o fim de corrigir os anacronismos que persistem no campo do Direito Privado; 8o) esforço para tornar de fato mais eficaz a realização dos fins do Direito. Benjamin Cardozo (1870-1938) observou que, na conduta judicial, há processos mentais conscientes e subconscientes: os subconscientes exercem muitas vezes um papel decisivo.

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Analisando suas próprias experiências judiciais, Cardozo ob-servou que utilizava quatro métodos para proferir suas sentenças: o da progressão ou dedução lógica, o de buscar inspiração na linha de desenvolvimento histórico de uma instituição jurídica, o dei ater-se aos dados dos costumes e das convicções sociais vigentes e o de inspirar-se em considerações de justiça e bem-estar social.

O último consiste em tomar em consideração esses valores de justiça e bem-estar social, encadeados com um consciencioso estudo sociológico dos interesses que se contrapõem no pleito.

Para Cardozo, esse método não é apenas um último, que se acrescenta os anteriores. Muito mais que isto, deve ser o critério para decidir qual o método a empregar ante o caso concreto, pois afinal o objetivo do Direito é a justiça e o bem-estar social. Nenhuma norma que, em seu resultado prático, se afaste dessa finalidade pode ter justificada sua existência.

Cardozo não prega, entretanto, a desobediência do juiz ao Direito Positivo. Os ideais de Justiça e bem-estar social, a que se| refere, orientarão o julgador na sua tarefa de resolver até que ponto as normas existentes serão interpretadas extensiva ou restritamente.

Oliver Holmes (1841-1936) observou que a vida real do Direito não tem consistido em lógica, mas sim em experiência. As necessidades sentidas em cada época, as teorias morais e políticas dominantes, as instituições em que a ação política se tem inspirado (quer as confessadas explicitamente, quer as inconscientes), os preconceitos que os juizes, como a generalidade das pessoas, alimentam — têm tido maior importância do que os silogismos, na determinação das normas jurídicas.

Algumas idéias básicas resumem a contribuição da Escola Sociológica Americana para a evolução do pensamento jurídico: o realce ao sentido de mutabilidade do Direito, a consideração da relatividade do humano, a importância da ponderação das realidades sociais nos julgamentos, a revelação de que a prática do Direito é mais experiência e menos lógica e, finalmente, a constatação da presença de processos subconscientes na tarefa judicial.

18.4. Escola da jurisprudência de Interesses

Surgiu na Alemanha, no primeiro quartel do século XX, tendo sua figura máxima na pessoa de Phílipp Heck (1858-1943) e outros representantes ilustres em Max Rümelin (1861-1931), Paulo Oert-man e Stampe.

E princípio básico da escola que a investigação dos interesses, e não a lógica, é que deve presidir ao trabalho hermenêutico. Disse Philipp Heck que toda decisão deve ser entendida como uma delimitação de interesses contrapostos e como uma estimativa desses interesses, conseguida através de juízos e idéias de valor.

Áo editar uma lei, o legislador colima proteger os interesses de um determinado grupo social. As normas jurídicas constituem assim juízos de valor a respeito desses interesses. O juiz, quando profere sentença, deve, ante o caso concreto, descobrir o interesse que o legislador quis proteger, isto é, que interesse dos grupos sociais antagônicos deve prevalecer, ou mesmo, se esses interesses devem ser sobrepostos pelos da comunidade como um todo.

A solução de um litígio deve ser enfrentada como a diagonal de um paraíelogramo de forças, cujos lados são os interesses cm disputa. A missão do juiz é procederão cálculo dos interesses em conflito: indagar os "interesses causais da lei" e privilegiar o direito socialmente mais adequado ao caso. Ao contrário da orientação tradicional, que se atinha sobretudo aos conceitos jurídicos, a Escola da Jurisprudência de Interesses

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prepondera, na aplicação do Direito, os interesses em jogo: o objetivo deve ser a solução justa, aquela que melhor se adapta às peculiaridades do caso.

Não aceita a escola que o juiz possa criar uma nova ordem jurídica, como pretendiam, segundo Heck, os partidários de Kan- torowicz: compete-lhe colaborar com a ordem jurídica vigente, no] sentido de efetivar os ideais e valores que a inspiraram."

A Escola da Jurisprudência de Interesses parte de duas idéias fundamentais: 1a) o juiz está obrigado a obedecer ao Direito Positivo. A função do juiz consiste em proceder ao ajuste de interesses, em resolver conflitos de interesses, do mesmo modo que o legislador. A disputa entre as partes apresenta-lhe um conflito de interesses. A valoração dos interesses levada a cabo pelo legislador deve prevalecer sobre a valoração que o juiz pudesse fazer segundo seu critério pessoal; 2a) as leis apresentam-se incompletas, inadequadas e até contraditórias, quando confrontadas com a riquíssima variedadej de problemas que os fatos sociais vão suscitando, no decorrer dos dias. O legislador deveria esperar do juiz não que obedecesse literal e cegamente às palavras da lei, mas, pelo contrário, que expandisse os critérios axiológicos nos quais a lei se inspira, conjugando-os com os interesses em conflito. A função do juiz não se deve limitar a subsumir os fatos às normas: compete-lhe também construir novas regras para as situações que a lei não regulou e, ainda, corrigir as normas deficientes. Em suma, o juiz deve proteger a totalidade dos interesses que o legislador considerou dignos de proteção; e protegê-los, em grau e hierarquia, segundo a estimativa do legislador.

Max Rümelin chama a atenção para o fato de que o fim último de toda legislação consiste em regular de modo apropriado as relações inter-humanas. O legislador procura realizar esse propósito por meio da delimitação das várias esferas de interesses protegidos, valorando os diferentes interesses opostos à luz da idéia do bem comum. O juiz deve guiar-se menos pelas palavras e mais pelas estimativas do legislador. Nos casos em que surgem conflitos de interesses que não foram previstos pelo legislador, nem em termos gerais, deve o juiz basear-se em suas próprias estimativas, guiando-se, quanto possível, pela pauta das convicções sociais vigentes em sua época.

A Escola da Jurisprudência de Interesses contribuiu para proporcionar uma compreensão melhor da tarefa hermenêutica sobrelevando o interesse, na aplicação do Direito, e mostrando a supremacia desse valor sobre os conceitos jurídicos.

Demonstrou que bem mais importante do que obter uma suposta interpretação autêntica da lei é preocupar-se com as conseqüências sociais das interpretações possíveis, optando por aquela interpretação cujos efeitos são melhores.54 18.5. Escola Realista Americana

Ala extremada da Escola Sociológica Americana, a Escola Realista Americana eclodiu também na primeira metade deste século e teve suas principais figuras em Jerome New Frank (1889-1957), Karl Nickerson Llewellyn (1893-1962), John Chipman Gray, Underhill Moore, Herman Oliphant, Walter W. Cook e Charles E. Clark.

Partindo de um extremo realismo, a Escola desenvolve uma desmistificadora análise psicológica da função judiciária com a finalidade de comprovar a presença de fatores irracionais, de natureza efetiva, que em vão a teoria da aplicação silogística, lógica, impessoal da lei procura encobrir.

Na verdade, a sentença judicial não seguiria o processo lógico (das premissas à conclusão), mas o processo psicológico (da conclusão à procura de premissas convenientes).

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Razões emocionais é que orientariam os julgamentos. Em, conseqüência, a ciência do Direito seria uma aposta sobre o que decidirão juizes e tribunais, mera suposição do que virá a ser a sentença.

Centrando seu interesse nas decisões judiciais, seus procedimentos e processos, na atividade dos juizes, a Escola Realista Americana obscurece a visão do Direito como sistema de normas jurídicas.

O que dizem as leis e os regulamentos, os precedentes juris-prudenciais e os costumes efetivos poderão constituir fontes de presunção para vaticínios prováveis, contudo não subministram uma resposta absolutamente segura, porque o Direito real e efetivo será aquele que sobre o caso proposto resolva o órgão jurisdicional. As normas muito pouca influência exercem sobre o direito criado pelos tribunais. Daí a importância de estudar o comportamento dos magistrados, onde estaria o cerne do verdadeiro Direito. aaaaaO Direito seria sobretudo reflexo da realidade social, resultado da conduta dos povos e dos homens, especialmente os juizes.

O que interessa aos realistas é averiguar o Direito efetivamente real. Este não é nem o que aparece declarado nas regras legislativas nem o que os juizes declaram como base de suas sentenças, mas de fato aquele que os juizes criam, independentemente do que exponham nas suas decisões.

Observou Frank que, segundo a idéia predominante, o Direito seria geral, uniforme, contínuo, igual e puro. Mas isto, segundo ele, não é verdadeiro: a experiência mostra o contrário. Para qualquer pessoa, o Direito certo sobre uma determinada situação é somente a sentença que um tribunal pronuncia sobre aquela situação, afetando exclusivamente aquele caso particular.

O Direito é mutável e tem uma dimensão essencialmente plástica, de adaptação a novas situações e circunstâncias.

Daí ter o juiz que formular a norma, ainda que comumente o faça sob a aparência de interpretar velhas normas. Noutro trecho, sublinha Frank que a personalidade do juiz constitui fator decisivo na sentença.

Para que o Direito tivesse plena uniformidade, continuidade e certeza, seria necessário que todos os juizes fossem iguais, com idênticos hábitos e mente estereotipada. Mas isso seria aconselhável? - indaga Frank. E responde negativamente, afirmando que, para servir melhor à Justiça, convém sejam os juizes inteligentes, sensíveis e ilustrados, o que gera menos certeza, segurança e uniformidade.

A dimensão de incerteza, no Direito, prossegue Frank, não é um mal catastrófico, mas constitui uma das dimensões que torna possível o alcance de uma maior Justiça e também o progresso do Direito.

Frank reconhece que existem normas jurídicas gerais e vê nas mesmas uma função importante. Nega, contudo, que o direito efetivo, produzido pelos tribunais, consista exclusivamente em conclusões extraídas das normas gerais.

Pensa Frank que sobre o juiz influem, dentre outros, os seguintes fatores: a educação geral e jurídica, os vínculos familiares e pessoais, aposição econômica e social, a experiência política e jurídica, a filiação e opinião política, os traços intelectuais e temperamentais.

O juiz cria sempre o Direito efetivo, ainda que haja normas gerais preexistentes. Tem de revisar e reajustar as regras preexistentes para que o caso proposto se encaixe nelas.

Tem sido muito exagerado o grau de segurança que o Direito pode proporcionar. Têm sido também exagerados os benefícios da certeza, assim como os males da incerteza.

Não é verdade que exista plena certeza, nem sequer nos. sistemas legislados rígidos.

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Há uma miopia em querer dissimular o caráter essencialmente] plástico e mutável do Direito.

O realce de nossa época - pondera Frank - recai sobre a mudança, sobre o encaminhamento da mudança num sentido progressivo, mais do que sobre a segurança. Llewellyn distinguiu as "regras no papel" e as "regras efetivas".

Há regras que ficam apenas no papel, que de fato não são tomadas em conta pelos juizes.

Há outras normas formuladas em leis, regulamentos e precedentes que o juiz pretende tomar em consideração, que o juiz menciona como fundamento para sua sentença, mas que na realidade não segue, ou segue apenas de modo parcial. Gray notou que o legislador só emite palavras, as quais entram em ação efetiva unicamente através das sentenças dos tribunais. Claro - disse ele - que há limites para a faculdade judicial de interpretação; mas esses limites são vagos e não estão definidos com precisão.

Frank, na posição mais extremada, via a livre interpretação judicial como o verdadeiro canal da criação do Direito, reconhecendo nesse processo criativo um grande valor social, não obstante a insegurança e incerteza conseqüentes.

O desejo de um direito estável, de uma ilusória certeza jurídica representaria, segundo Frank, um complexo de origem infantil, qual seja, o de não ter superado a necessidade de um pai autoritário: buscavam as pessoas, no Direito, inconscientemente, um sucedâneo à infalibilidade e firmeza que, quando crianças, atribuíam ao pai. Llewellyn, mais moderado, reconhecia que as regras jurídicas influenciavam na formação das sentenças, mas nem de longe tinham a importância que lhes atribuíam as correntes tradicionais.

A nota comum aos autores da Escola é uma atitude cética a respeito da descrição tradicional da conduta real e efetiva dos tribunais.

A Escola Realista Americana contribuiu para dar uma visão mais autêntica da vida jurídica, derrubando padrões como os de uniformidade e generalidade do Direito, impessoalidade do juiz etc. Em seu lugar, mostrou que o Direito tem, na plasticidade, uma característica essencial, que a sentença é menos a norma e o precedente e é mais o juiz com toda a sua humanidade, que a segurança jurídica é precária, mas que a insegurança é o preço do progresso.

18.6. Escola Egológica

A Teoria Egológica do Direito, do jurista argentino Carlos Cossio, considera que o objeto a ser conhecido pelo jurista não são as normas, porém a conduta humana focalizada a partir de certo ângulo particular. Da mesma maneira que o objeto do conhecimento do astrônomo são os astros, e não as leis de Kepler e Newton, porque estas são apenas conceitos com os quais os astros são conhecidos, assim também, na Ciência Dogmática, o objeto do conhecimento do jurista não são as normas, mas a conduta humana em sua interferência intersubjetiva, porque as normas jurídicas são somente conceitos com os quais aquela conduta é conhecida como conduta.

Como esclarece Cossio, para entender a Teoria Egológica do Direito, é preciso partir das classificações dos objetos, elaborada pela filosofia contemporânea - objetos ideais, naturais, metafísicos e culturais.

Os objetos culturais são reais e têm existência (o que não ocorre com os objetos ideais), encontram-se na experiência (diversamente dos objetos ideais e metafísicos) e sobre eles podem ser proferidos juízos de valor (em contraposição aos objetos ideais e naturais).

Nos objetos culturais há sempre um substrato e um sentido. O substrato é empírico. O sentido só existe intelectualmente, como-vivência psicológica de alguém.

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O objeto cultural exige um conhecimento por compreensâo, no qual o sujeito toma partido no problema, estando dentro do dado que se quer conhecer. Esse conhecimento é circular, uma vez que parte do substrato para o sentido, retornando ao substrato, para voltar ao sentido e, assim, indefinidamente, em forma circular, até que o espírito queira deter-se, sentindo-se satisfeito com o resulta-do obtido.

A esse método de conhecimento deu Cossio a denominação de empírico-dialético: empírico, porque corresponde ao modo de ser do substrato e do sentido enquanto dados reais, pertencentes ao mundo da experiência; dialético, pela forma circular do conheci-mento que vai e vem, do substrato ao sentido.

Em função da natureza do substrato, os objetos culturais, segundo Cossio, podem ser mundanos (quando o substrato é material) e egológico (quando no substrato há uma conduta humana).

O Direito é um objeto natural egológico por ter sempre, em seu substrato, uma conduta.

Deve ser estudado com o método das ciências culturais, o método empírico-dialético, fundado em um ato de compreensão.

Quando o juiz profere uma sentença, exercita um conhecimento por compreensão. Parte das circunstâncias do caso (substrato) para vivenciar o seu sentido expresso na lei, como se tivesse a esboçar a sentença. Volta depois e reconsidera o caso a fim de verificar se a primeira conclusão corresponde ao sentido, ou se escapou alguma coisa. Depois regressa ao substrato, com uma idéia mais clara do sentido do caso. E assim procede, indefinidamente, até satisfazer-se com a compreensão que alcançou do caso.

A ciência jurídica é normativa não porque tenha por objeto normas, mas sim porque o jurista pensa através de normas.

A norma estabelece o sentido jurídico da conduta: é necessária para distinguir uma conduta lícita da ilícita. Atua a intuição quando se trata de apreender imediatamente a essência do jurídico na conduta, enquadrando-a na categoria das condutas jurídicas.61

Discorrendo sobre a posição do juiz em face do Direito, Carlos Cossio coloca alguns pontos que ele considera capitais,

A criação judicial da sentença exige do juiz um comportamento com sentido. Há, pois, na raiz de sua atuação uma tomada de posição, uma intuição emocional, um ato de compreensão sem o qual aquele sentido não poderia constituir-se. Esse sentido é a justiça ou injustiça, percebida pelo juiz, no ato mesmo de sentenciar, no qual o juiz e as pessoas interessadas na sua decisão compartem algo vital em comum.

A criação judicial da sentença mostra, com evidência, que o juiz não é um ente estranho ao Direito e separado dele, de modo que pudesse mirá-lo à distância.

O Direito hão é algo terminado e fixo para ser aplicado quando chega o caso, assim como se assenta o selo sobre o lacre. Da própria estrutura conceptual que impõe a lógica do dever-ser resulta que - se as sentenças integram a criação normativa em que consiste o ordenamento jurídico - o juiz, como criador da sentença, está dentro, e não fora, do ordenamento.

Em conseqüência, o juiz não vê o Direito como concluído e feito, porém como algo que se está fazendo constantemente.

E mais: o juiz não apenas vê o Direito como algo que se está fazendo constantemente, mas como algo que o próprio juiz contribuiu para que se faça."

E inútil toda tentativa de querer extrair da norma legal, por dedução, a razão de ser jurídica da sentença. A razão de ser jurídica está em que o juiz trata de compreeender o sentido de justiça, solidariedade, ordem etc, que a lei indica.

Noutro passo, assinala Cossio que aplicar a lei é enfocar uma conduta a partir do ângulo da lei, ou seja, pôr um sentido - o sentido axiológíco iniciado na lei - na conduta que se considera. Mas, de forma paradoxal, é também o contrário, é também extrair um sentido da conduta que se considera.

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Não é a lei o que se interpreta, mas a conduta humana mediante a lei. Essa afirmação de Carlos Cossio revoluciona a hermenêutica,65 uma vez que sempre se entendeu que a interpretação jurídica incidiria sobre a norma. 65 "Entendendo o Direito como conduta, Carlos Cossio como que vira pelo avesso a hermenêutica, ao considerar que a interpretação é da conduta e não da lei ou da norma, que esta é apenas o estilo de pensamento do jurista, regulado por uma lógica do dever-ser. A norma é, aqui, o com o que, o instrumento lógico mediante o qual é interpretada a conduta. Se a conduta é objeto da Ciência do Direito, é esta que tem de ser interpretada mediante a norma. Essa interpretação da conduta se há de fazer mediante a norma. Somente a norma, como fonte do direito, poderá transformar a interpretação jurídica da conduta, a valoração jurídica, pois, em uma valoração conceituai mente emocional. Se o juiz procedesse a essa valoração de modo livremente emocional, isto é, sem atendimento às fontes do direito, teríamos o império da subjetividade e, pois, da insegurança. Isso ocorreria se o juiz julgasse apenas segundo sua consciência. Há, todavia, um velho brocardp jurídico - do qual a concepção egológica vai buscar o sentido profundo - segundo o qual o juiz deve julgar de acordo com sua ciência e consciência. O termo consciência refere, aí, o imprescindível elemento emocional ou valorativo, enquanto que a ciência aí referida é o conhecimento das fontes do direito (conceituai), ou seja, daquelas instâncias de intersubjetividade (a objetividade que nessa matéria estimativa é comunitariamente possível), mediante as quais a interpretação jurídica da conduta logra força de convicção." A. L. Machado Neto, Teoria da Ciência Jurídica, citada, pp. 95,157 e 158. 66 Comentando o pensamento de Cossio, adverte Machado Neto que, ao dizer que o sentido está na norma, "não se suponha que está nos textos legais, ou em outra qualquer instância normativa ou fonte de Direito, e, pois, apartado da realidade do fato da conduta que se pretende conceituar, pois sendo norma o juízo que pensa a conduta em sua liberdade, ela se integra com a conduta, por ser a conduta humana, racional e, como tal, pensada. Se o estilo lógico de pensar a conduta, se o juízo capaz de pensá-la é a norma, e se a conduta por ser humana é racional - razão vital - a conduta se integra da sua própria representação - a norma. Porque o Direito é conduta compartida, o sentido jurídico de um especial fato de conduta é co-posto pelo agente, pelo legislador, pela comunidade e pelo intérprete". Quanto ao intérprete, "Atuará como porta-voz do entendimento comunitário na medida em que logra a necessária força de convicção para que sua valoração não seja subjetiva, mas objetiva, não seja livremente emocional, mas conceitualmente emocional." A. L. Machado Neto, Teoria Geral do Direito, citada, pp. 246 e 248.

Há o juiz de interpretar a conduta, e não a norma, interpretar a conduta mediante a norma. Não se trata de uma interpretação livremente valorativa, pois que conduziria ao domínio da subjetividade do julgador, porém de uma interpretação conceitualmente valorativa: o elemento valorativo ou emocional decorre de julgar de acordo com a consciência; o elemento conceituai refere o conhecimento das fontes do direito, mediante as quais a interpretação logra força de convicção.

O juiz, segundo Cossio, há de interpretar a lei segundo sua ciência e consciência. Não obstante, a teoria dos métodos interpretativos pretende suprimir a consciência do juiz, substituindo-a por uma receita que, sobreposta à lei, tornaria esta pronta para resolver todos os casos concretos.

Essa pretensão fundamenta-se em dois pressupostos falsos: a) o de crer que a lei é o Direito, de que há lei fora do objeto do conhecimento, quando, na verdade, a lei é um conselho, não é o Direito; b) o de acreditar que o juiz é um ente externo ao Direito, quando, pelo contrário, é imanente ao ordenamento jurídico, ao ponto de ser indubitável que o Direito, em parte, é a própria obra do juiz.

O juiz deve escolher, dentro do gênero legal, a espécie com que sentenciará ao realizar dialeticamente sua eleição das circunstâncias do caso.

A teoria egológica - acentua Carlos Cossio - não dá ao juiz nenhum novo poder, mas limita-se a, teoricamente, pôr a descoberto um poder que o juiz sempre teve, como bem o sabem todos que conhecem a prática do Direito. O intelectualismo dominante, em sua forma de empirismo e racionalismo, sustentado por uma ideologia de segurança capitalista, é que tem ocultado a existência e a natureza desse imenso poder que o juiz possui, ao

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apresentar os magistrados como autômatos silogísticos dos preceitos legais. Sobre as qualidades pessoais do juiz, cuja exigência decorre de seu relevante

papel, assinala Carlos Cossio que o Direito reclama que se dediquem à magistratura somente aqueles que se consomem no estudo do Direito, movidos por uma superior vocação para os valores jurídicos. Se o Direito é uma realidade humana da qual o juiz participa e para cuja criação o juiz contribui com suas vivências, compreende-se que não é indiferente para a realidade dessa realidade, nem o saber do juiz, nem sua sensibilidade para a valoração jurídica.

Podem ser citados como seguidores da Escola Egológica, dentre outros, Enrique Aftalión, Fernando Garcia Olano, Luís Eduardo Nieto Arteta, José Vilanova e A. L. Machado Neto.

A visão hermenêutica de Carlos Cossio - e aí estará talvez o seu principal mérito - pôs a nu o mergulho do juiz no Direito, realidade humana de que participa e para cuja criação contribui com suas vivências. O Direito é a propria obra do juiz, no seu ofício de ciência e consciência. E o juiz, no julgar, interpreta não a norma, porém a conduta humana, porque as normas jurídicas são apenas conceitos com os quais a conduta é conhecida como conduta.

18.7. Escola Vitalista do Direito

Luis Recaséns Siches (1903-1977), pensador espanhol, nascido na Guatemala, que viveu grande parte de sua vida e morreu no México, é criador de recente escola hermenêutica, que decorre de sua própria visão do mundo jurídico, exposta na "Teoria Vitalista do Direito".

Para Recaséns Siches, o Direito não é o fenômeno da natureza física ou psíquica, nem puro valor, mas fato histórico.

O Direito é forma de vida humana objetivada. A vida não é uma obra acabada, mas tarefa que se constitui momento a momento.

Nesse processo criativo, cuja essência é o ato de decisão, o homem lança mão de mecanismos psíquicos e fisiológicos, tendo em vista motivos e fins. Essa é a "vida autêntica", individual, que transforma o mundo.

A "vida autêntica" objetiva-se em atos, obras, objetos - a "vida humana objetivada". Os instrumentos de trabalho, as obras de arte, as teorias científicas, as regras

morais, os códigos - criados pela "vida autêntica" - são a "vida humana objetivada". Fruto dos atos humanos, as "obras" (vidahumana objetivada) são formas abstratas

de vida, estruturas cristalizadas da vida humana, despersonalizadas, à disposição de todos, independentes da "vida autêntica" (vida individual) que as objetivou. Como criação da "vida autêntica" e sinal de sua passagem no mundo, as "obras" têm sentido e finalidade.

Siches aplicou ao Direito a lógica da razão vital, de Ortega y Gasset, segundo a qual a razão físico-matemática é incapaz de apreender a realidade radical da vida humana, só compreensível através da razão vital, que é a razão da própria vida.

Pensa Recaséns Siches que a norma deve ser interpretada e aplicada circunstancialmente, ou seja, considerando a variação da circunstância (razão histórica), desde quando a norma foi criada até quando venha a ser aplicada. Uma norma jurídica é um pedaço da vida humana objetivada que, na medida em que esteja vigente, é revivida de modo atual pelas pessoas que a cumprem e pelas pessoas que a aplicam, e que ao ser revivida deve experimentar modificação para ajustar-se às novas realidades em que é revivida e para as quais é revivida.

Para Recaséns Siches a função jurisdicional escapa a qualquer criação legislativa, não pertence a ela, não pode ser colocada dentro dela. Assim, quando o legislador

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pretende dizer aos juizes como interpretar a lei, suas palavras, nesta matéria, resultarão necessariamente inoperantes.

O legislador, dentro do âmbito de sua competência, tem plenos poderes para ditar normas gerais; mas a função jurisdicional é uma coisa diferente, e só pode ser da competência do órgão que a exerça autorizadarnente.

Quando o legislador se pronuncia sobre matéria que não compete à legislação, quando ordena um método de interpretação, quando invade o campo hermenêutico, esses ensaios científicos estão colocados no mesmo plano das opiniões de qualquer teórico, não têm força de mando.73

Na aplicação do Direito, não há a uniformidade lógica do raciocínio matemático, porém flexibilidade há para o entendimento razoável do preceito.74 A lógica formal, de tipo puro, a priori, que é adequada na análise dos conceitos jurídicos essenciais (direito subjetivo, dever jurídico, pessoa jurídica, relação jurídica), é imprestável na aplicação do Direito.

Tudo que pertence à existência humana (a prática do Direito, inclusive) reclama a lógica do humano e do razoável, impregnada de critérios valorativos (lógica material). 73 Cf. Luis Recaséns Siches, ob. cit., pp. 181-183. Em contrário é a opinião de Alessandra Groppali: "As normas de interpretação da lei, mais do que simples critérios lógicos dirigidos ao prudente arbítrio dos magistrados, representam verdadeiras normas jurídicas, que, por isso, vinculam a sua atividade lógica e a vontade, indicando-lhes os meios a dotar e os fins a conseguir". (Alessandra Groppali, Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, Coimbra Ed., 1978, p. 230.) 74 ' 'No hay posibilidad efectiva de gobernar al juez com regias rigurosas. La natura/eza de su funcción, la personalidad dei juez, la realidad social, la justicia dei caso concreto, y otros factores, de larga enumeración, lo desatarán siempre de las fuentes oficialmente proclamadas y de las mentadas regias sagradas de interpretación (...) La fuerza de convicciôn de la sentencia, que es alpropio tiempo necesidad en la perspectiva de las partes en el litígio, dei orden social y aun de la moral, se logrará matormente cuando un buen juez haya conjugado equilibradamente, y razonablemente, las fuerzas (de producción) dei Derecho dei modo aqui entendido, la seguridad jurídica y la justicia dei caso concreto. (...) La lógica judicial importa una razonable creación judicial dei Derecho, y en esto se involucran circunstancias sociológicas pertenecientes al total âmbito de ala cultura: políticas, econômicas, psicológicas, etc" (Fernando Fueyo Lanneri, Interpretación y Juez, Santiago de Chile, Universidad de Chile y Centro de Estúdios Ratio Júris, 1976, p. 163.)

A valoração do juiz é a soma dos valores da legalidade positiva, mais as valorações sociais, mais as estimativas pessoais. Inspirado no "logos de lo humano", o juiz não se preocupará em alcançar uma decisão matematicamente certa, porém razoável, vale dizer, justa.76 A solução "razoável", contudo, não é contrária à ordem jurídica, porém fiel a ela, uma vez que busca, no âmbito da ordem jurídica, dar ao caso concreto a solução mais justa possível. Re-caséns Siches, como ele próprio adverte, não propõe a substituição de critérios objetivos pela opinião pessoal ou subjetiva do juiz. Sustenta que o juiz -, ao determinar qual seja a norma aplicável ao caso singular, ao decidir se uma norma em aparência aplicável deve ser, todavia, rejeitada porque produziria efeitos contrários às valorações em que está inspirada a ordem jurídica positiva -, deve ater-se a critérios objetivos. Estes critérios são sobretudo as valorações que inspiram a ordem jurídica positiva, considerada em sua totalidade, ou seja, tomando em conta não somente os textos legais e regulamentares, nem sequer tomando-os em conta, em primeiro lugar, mas atendendo principalmente às valorações em que a ordem jurídica se baseia, num determinado momento, e aos efeitos práticos que ditas valorações devem produzir sobre o caso concreto. Estes critérios são, além disso, as convicções sociais vigentes no momento, as quais condicionam, circunscrevem e impregnam a ordem jurídica positiva. Entre esses critérios figura também a interpretação razoável (portanto, não arbitrária) para

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o caso singular e a idéia das exigências de justiça vigente na sociedade, na época concreta em que se vive. 76 "Cuando experimento que los métodos de la lógica formal tradicional son incapaces de darme la solución correcta de un problema jurídico, o que me llevan a un resultado inadmisible, frente a esos métodos no opongo un acto de arbitrariedad, un capricho, sino que opongo un razonamiento de un tipo diferente, que es precisamente el que nos pone en contacto con la solución conecta. Ese razonamiento que nos hace encontrar lo que buscamos, la solución conecta, la solución justa, es Ia razón aplicoble al caso; es la razón que nos permite dominar el problema. En cambio, la otra lógica, la físico-matemática, se muestra incapaz de dar la solución conecta al caso planleado."(Luis Recaséns Siches, ob. cit., p. 133.)

Siches afirma que sua doutrina procurou dar uma justificação teórica ao que os juizes vêm fazendo com consciência turva, para que continuem a fazê-lo, mas agora com consciência clara.

As objeções de que sua teoria hermenêutica pudesse derrubar a segurança jurídica, responde Recaséns Siches que, se a segurança é um dos mais fortes móveis da vida social, não é o único dos móveis que operam nela.

Uma das antinomias do Direito consiste precisamente em que deve servir, de um lado, aos propósitos de certeza e segurança, e, de outro, às necessidades suscitadas pela mudança social e pelos desejos de progresso.

O Direito deveria ser sempre um ensaio de direito justo. Mais flexível, o Direito seria também mais compatível com a vida humana e seu ineditismo.

Outrossim, também pondera Recaséns Siches que segurança absoluta não há na vida humana, pelo que não tem sentido pedir; tal segurança ao Direito.80

A doutrina de Recaséns Siches traz grandes aclaramentos aos problemas hermenêuticos. Principia por afirmar a autonomia da função jurisdicional, que escapa a qualquer discipíinamento legislativo. Coloca depois que, na aplicação do Direito, não tem vali-mento a lógica formal, uma vez que tudo que pertence à existência humana impõe a lógica do humano e do razoável, impregnada de critérios valorativos, apta a considerações circunstanciais. Toca finalmente no problema da segurança jurídica, trincheira dos que pugnam por um direito matemático, afirmando que não há segurança absolutana vida humana, pelo que não tem procedênciapedir tal segurança ao Direito. 19. DIREITO ALTERNATIVO

Desde a primeira edição deste livro (1979), deixamos de incluir o Direito Alternativo como uma das "escolas hermenêuticas".

O Direito Alternativo tem, sem dúvida, importantes propostas no campo da Hermenêutica, embora sua abrangência não se resuma a este setor do pensamento jurídico.

Não incluímos o Direito Alternativo como "Escola Hermenêutica" porque, a nosso ver, o Direito Alternativo não é uma escola. É bem melhor designado como "Movimento do Direito Alternativo".

O Direito Alternativo adota uma posição dialética. Não "é" uma visão do Direito, no sentido estático. E, sendo. Ou seja, é (presente do indicativo, detonador de permanência), sendo (gerún-dio, indicador de continuação).

No dia em que se tornasse uma escola, o "Direito Alternativo" perderia sua própria razão de ser. Virar escola significa "estabilizar-se", perder o conteúdo dialético. Como Escola, o Direito Alternativo veria esvaziada sua dinâmica de contestação, crítica, questionamento, tudo isso que dá vigor ao "Movimento".

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Capítulo V A APLICAÇÃO DO DIREITO NUMA PERSPECTIVA AXIOLÓGICA, FENOMENOLÓGICA E SOCIOLÓGICO-POLÍTICA 20. UMA TRÍPLICE PERSPECTIVA NA APLICAÇÃO DO DIREITO

O presente capítulo - que pretende trazer ao tema da monografia a síntese da contribuição pessoal do autor - defende a tese de que o juiz, ao aplicar o Direito, deve fazê-lo, simultaneamente, sob três perspectivas: axiológica, fenomenológica e sociológico-política: a) na perspectiva axiológica, o juiz ajusta a lei a seus valores, a sua consciência, a seu mundo; b) na perspectiva fenomenológica, ajusta a lei à percepção da pessoa julgada; c) na perspectiva sociológico-política, promove a abertura da lei ao fato social; deixa de perceber apenas o subsistema jurídico e nele situar-se, para apreender, mais amplamente, todo o sistema social e neste atuar. Assume o caráter político inerente a toda sentença.

Essa nossa proposta mereceu o aplauso e o enriquecimento de ilustres doutrinadores brasileiros, em obras recentemente publicadas.

Plauto Faraco de Azevedo percebe como aceitada a perspectiva de nossa análise e vê a superação do positivismo jurídico como indispensável à construção de uma hermenêutica material no Direito. Só esta permite que se evidenciem os interesses em questão, em face dos quais impôem-se juízos valorativos sobre os dados de fato e de direito das situações em que se manifestam.

Rui Portanova nota, com acerto, que nossa realidade não é aquela que embasou grandes teorias do passado, embora os efeitos de tais saberes ainda se reflitam sobre nós. Daí ser necessário corrigir e atualizar os grandes pensamentos, quando não se adaptam aos desafios do tempo presente. Dentro desta linha, subscreve explicitamente a proposta de aplicação axiológica, fenomenológica e sociológico-jurídica do Direito que examina, exaustivamente, e acresce com novas percepções.

21. A APLICAÇÃO DO DIREITO NUMA PERSPECTIVA AXIOLÓGICA 21.1. Pertinência da perspectiva axiológica na aplicação do Direito

Vejo a pertinência da perspectiva axiológica fundamentando a aplicação do Direito, a partir das seguintes constatações: a) o juiz é portador de valores, de que sempre impregna suas sentenças; b) os critérios axiológicos acompanham o ofício do juiz: não apenas naqueles casos em que, expressamente, a lei defere a solução à discrição judicial, como naqueles outros em que, dentro de dispositivos expressos, a margem de discrição é ampla ou, naquelas outras hipóteses, em que a escolha do dispositivo a aplicar é também axiológica;3 c) a sentença do juiz, em qualquer situação, tem conteúdo, axiológico, subjetivo, político; d) poderia parecer que, quanto mais buscasse penetrar na inteligência da norma, como editada, estaria o juiz fugindo de um julgamento subjetivo. Mas esta fixação na norma também é um posicionamento ideológico, político, nitidamente conservador; é) o juiz, aprisionado à lei, serve às forças da conservação, tanto quanto serve às forças do progresso e da renovação o juiz que assuma, com honestidade, uma pauta axiológica e uma visão sócio-política de compromisso do Direito com o povo, não com os privilégios.

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21.2. Argumentos contrários à vertente axiológica na aplicação do Direito. Recusa preliminar desses argumentos

Colocam-se argumentos contrários a valorações fundadas na pauta axiológica do juiz.

Afirma-se que ele não pode transcender a norma. Como homem, pode discordar da justiça da norma. Não obstante, deverá aplicá-la ao caso que lhe incumbe julgar.

Vê-se uma incompatibilidade entre o mister de filósofo e o mister de juiz: estaria instaurada a arbitrariedade se as sentenças ficassem subordinadas às valorações decorrentes da consciência do juiz.

Visualiza-se o direito como sendo composto de duas partes estanques, uma lógica - ciência das normas -, outra axiológica -ornamento do Direito -, matéria a ser cultivada pelos que gostam da especulação, mas fora da seara propriamente jurídica.

Conclui-se, então, que o juiz deve subordinar-se à norma, ainda que sob o peso de dramas íntimos.

Não me parece que o império da norma possa ser levado tão longe. Nunca deverá o juiz decidir com a norma contra o que, em consciência, acredite

ser a justiça.6

Alguns autores distinguem, radicalmente, os sistemas de criação judicial do Direito e os sistemas de Direito legislado para afirmar que, somente nos países que integram o primeiro grupo, seria admissível uma maior liberdade criativa do juiz.

Não me parece que a restrição proceda. 5 Expressiva, dentro desta concepção, a posição de Ferrara: "Decerto o juiz nem sempre pode dar satisfação às necessidades práticas, Iimítando-se a aplicar a lei; alguma vez se encontrará em momentos trágicos de ter de sentenciar em oposição ao seu sentimento pessoal de justiça e de eqüidade, e de aplicar leis más. Tal é, porém, o seu dever de ofício." (Cf. Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, Armênio Amado-Editor, Sucessor, 1978,p. 174.) 6 Em posição oposta, coloca-se Maury R. de Macedo que entende deva o juiz aplicar sempre a lei, mesmo que injusta: "Paradoxalmente, seria até conveniente que se elevasse o número de absurdos oriundos do fiel cumprimento da lei, exatamente para provocar reações inevitáveis, justas e capazes de ensejarem mais pronto atendimento do legislativo às aspirações do povo." (Cf. Maury R. de Macedo, A Lei e o Arbítrio à Luz da Hermenêutica, Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 228.)

21.3. A posição da doutrina em face do tema da valoração da lei pelo juiz

Muitos autores, na doutrina brasileira e estrangeira, admitem, em grau maior ou menor, a valoração da lei pelo juiz.

No Brasil, podemos arrolar as opiniões de Roberto Piragibe da Fonseca, Eliézer Rosa, Homero Freire, Oscar Tenório, Osny Duarte Pereira, José Geraldo de Sousa Júnior, Plauto Faraco de Azevedo, Tristão de Athayde, Cláudioe Solange Souto, Cavalcanti Lana, José Aloysio Ribeiro de Souza! Roberto Lyra Filho, Luiz Fernando Coelho, Pontes de Miranda, Luís Alberto Warat, Heleno Cláudio Fragoso e C. H. Porto Carreiro.

Na doutrina estrangeira, podemos citar Giuseppe Maggioie, Helmut Coing, Triepel, Eduardo Couture, Jean Gaudemet, Theodor Sternberg, Paul Vinogradoff, Francesco Carnelutti e Karl Larenz.

Advirta-se que, em alguns casos, são muito diferentes as perspectivas em que se colocam os pensamentos aqui agrupados.

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21.3.1. A valoração da lei pelo juiz na doutrina brasileira

Roberto Piragibe da Fonseca distinguiu, com rigor, o extra-legal e o antijurídico: "Uma solução extralegal pode ser antijurídica e pode não ser. Será, quando a lei vigente coincidir com o bem comum, mas não será quando tal coincidência não se verificar. Ora, neste último caso, é ser realmente vítima do 'fetichismo da lei' supor que não existe nuança entre submissão à lei, de um lado, e v. g.y um despotismo aluidor de direitos, de outro lado, porque, na realidade, entre uma coisa e outra situa-se uma imperiosa ordem metajurídica, reclamada pêlo bonum commune, que por ser derrogadora da lei vigente, nem por isso pode ser tachada de despótica. Ordem jurídica é categoria, mas lei vigente é acidente. Assim, momento há, de fato, em que no apelo paradoxal a uma solução extralegal poderia residir a melhor e mais eficiente defesa da ordem jurídica, bem mais precioso, não cabe dúvida, que um 'legalismo' impotente e desmoralizador capaz de conduzir dada sociedade ao pior dos piores, isto é, à anarquia, a uma desordem não apenas derruidora da lei corrompida, em que tantos pensam, mas denegadora do próprio Direito, em que entretanto poucos parecem pensar".

Eliézer Rosa adverte: "Não é o legal que importa, mas o jurídico" E assim entendendo, com o lastro de sua obra em favor da humanização do ofício de juiz, convida os magistrados a: "... realizar o Direito, apesar da lei". Observou Homero Freire: "A lei revela o Direito; mas nem sempre o faz bem; padece da imperfectibilidade humana*'.

Oscar Tenório vê o juiz com a missão de superar o individual lismo consagrado pela lei, no cotejo crítico dos textos à face do bem comum, cotejo que exige, necessariamente, valoração, axio-logia."

Orienta Osny Duarte Pereira: "O papel de juiz inteligente, íntegro e humano é desvendar os caminhos, para que a lei injusta se tome justa, armando racio-cínios lógicos e suscetíveis de ganhar, pela cultura e pela autoridade moral, o apoio do juiz conservador e equivocado dos escalões superiores".

José Geraldo de Sousa Júnior vê a presença do jurista na estratégia do projeto de poder popular, aproveitando as contradições dos sistemas normativos estabelecidos, para obrigar o reco-nhecimento, através de sua própria legalidade, de alguns interesses das classes populares.

Plauto Faraco de Azevedo defende a subordinação do juiz ao Direito, e não à lei. Pede que a eqüidade mitigue o direito positivo, com veemente presença, em face da mobilidade do processo histórico. Afirma que a retificação do justo rigorosamente legal é um poder inseparável da função judicante. Observa que a solução dos pleitos judiciais freqüentemente põe o juiz diante de escolhas tipicamente filosóficas. Demonstra que a pretendida neutralidade do juiz é impossível e que a sentença sempre serve a determinados valores.

Comentando sentença do juiz Eduardo Mair, que se negou a decretar a prisão de um septuagenário, como depositário infiel escreveu Tristão de Athayde: "Quando o juiz deixa de aplicar o rigor literal da lei devido as circunstâncias dos fatos, não está ofendendo a lei mas cumprindo-a em seu espírito e em sua eqüidade, e, portanto, na relação justa entre os meios e os fins" ,

Cláudio e Solange Souto defendem a tese de que, na prática forense, busque o juiz explicitar, como regra de direito, aquela que esteja em consonância com o sentimento humano universal de justiça (algo intrinsecamente justo) e com dados de ciência empírica (algo de racionalidade comprovável).

Essa postura requererá, forçosamente, a apreciação da lei em face de uma pauta axiológica que configure o sentimento humano universal de justiça, a que se referem os autores.

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Cavalcanti Lana entende que o juiz não pode ficar a reboque do legislador desavisado e insensível.

José Aloysio Ribeiro de Souza pensa que o juiz deve ter meios de solucionar casos submetidos a julgamento, sem aprisionamento a dispositivo legal iníquo.

Roberto Lyra Filho propõe que o jurista explore as contradições do ordenamento jurídico estatal para desentranhar dele os elementos que favoreçam a práxis progressista. Luiz Fernando Coelho afirma que a resistência às leis injustas deve começar pelos juizes.20 20 "Nenhum segmento da sociedade tem maior poder de pressionar o Estado do que os magistrados, pois eles, encarregados do exercício da jurisdição, estão aptos a empregar os argumentos retóricos que o próprio Estado utiliza para impor os seus objetivos, só que em sentido inverso, recusando-se, por exemplo, a aplicar uma lei que repugna a consciência do magistrado, ou zelando para que os efeitos negativos de uma lei injusta não possam se concretizar." Cf. Luiz Fernando Coelho, Introdução à Crítica do Direito, Curitiba, Livros HDV, 1983, p. 76.

O mesmo autor observa que a ordem jurídica não resulta apenas da preservação da hierarquia das normas de direito (coerência formal) e da regulação não contraditória dos dados da vida social (coerência material), A ordem jurídica impõe ainda a coerência axiológica, isto é, a harmonização de valorações indepen-dentes que impeçam a prevalência de valorações normativas contrárias aos princípios gerais do direito.21

Ainda Luiz Fernando Coelho, numa revisão de seu itinerário intelectual, explica que sua caminhada endereça-se a um "... realismo crítico muito mais preocupado com a sociedade, com o homem comum que sofre, ri, chora, emociona-se e cuja primeira opção existencial é ser feliz".

Não obstante esse "homem comum" deva ser o centro do Direito, ele é, contraditoriamente, escondido pela Ciência e pela Filosofia do Direito, "sob as categorias, conceitos e classificações elaborados pelo senso comum teórico dos juristas".

Defende Luiz Fernando Coelho que o jurista assuma o conteúdo ideológico do direito, para conciliá-lo com o compromisso da reconstrução social. Dentro desse quadro realça "os movimentos de ascensão dos grupos oprimidos em sua luta contra a opressão e almejando a libertação", Pontes de Miranda afirma que a subordinação do juiz é ao Direito, não à lei, por ser possível a lei contra o direito.

Luís Alberto Warat diz que, no trabalho jurídico, os juizes e outros profissionais do Direito são fortemente influenciados pelo senso comum teórico. Esse senso comum teórico, diversamente da teoria científica, baseia-se em valores, fundamenta-se em critérios morais que orientam a compreensão dos dados com os quais laboram os juizes. No campo do Direito Penal, Heleno Cláudio Fragoso diz que é tendência dominante hoje substituir os conceitos meramente formais, por conceitos materiais e valorativos.28 21 Luiz Fernando Coelho, Lógica Jurídica e Interpretação das Leis, Ia ed., Rio de Janeiro, Forense, 1979, pp. 227 e 228 (Ia edição). Nesta mesma obra, p. 63, o autor advoga "exerça o jurista um papel transformador do direito vigente e da sociedade, por meio do direito". Nessa perspectiva o direito deixa de ser "o lugar da manutenção dos privilégios de uma classe ou estamento, ou outros grupos microssociais", para converter-se em "espaço de luta, o lugar da conquista dos direitos e da dignidade humana". 28 Mas adverte: "Em caso algum, porém, pode a idéia de antijuridicidade material servir para a incriminação de fatos não expressamente previstos, ou seja, não formalmente antijurídicos." Cf. Heleno Cláudio Fragoso, "Antijuridicidade", in Revista Forense, Rio de Janeiro, vol. 208, p. 26, out.-dez. de 1964.

C. H. Porto Carreiro reconhece que tem o juiz atribuição de proceder à valoração

da lei, eis que o art. 5o da Lei de Introdução ao Código Civil não especifica as fronteiras

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dos fins sociais que o juiz tutela. Contudo, não acredita que, na prática, esse dispositivo legal tenha meios de subsistir dentro do sistema jurídico conservador e excludente.

21.3.2. A valoração da lei pelo juiz na doutrina estrangeira

Giuseppe Maggiore sustenta que, quando o juiz tempera o rigor da lei, num caso particular, ou lhe nega aplicação, em hipótese de patente iniqüidade, não viola, mas segue a vontade do legislador: não se pode presumir que o legislador tenha querido a injustiça, mesmo num caso único; seria admitir a destruição do próprio fundamento da ordem jurídica.

Helmut Coing pensa que, na ética do ofício judicial, o dever de decidir conforme a justiça tem precedência sobre os demais deveres. Assim, deve o juiz decidir com Justiça inclusive contra o Direito Positivo.

Triepel coloca: "A lei não é sagrada; só o Direito é sagrado". Eduardo Couture ensina que, quando a lei e a Justiça entram em conflito, deve o

juiz ficar com a Justiça. Gaudemet diz que se afere o valor da norma jurídica pela sua aplicação prática,

pela possibilidade de responder às exigências fundamentais de justiça, auxiliando a socorrer os fracos e constrangendo os poderosos à obediência.

Theodor Sternberg disse que, no terreno do Direito estável da lei e do Direito Consuetudinário, uma decisão é justa porque é dê Direito. No terreno do Direito móvel, científico, uma decisão é Direito porque é justa.

Vinogradoff, na senda da doutrina aristotélica da epiquéia, nota existir um poder de adaptação capaz de assegurar flexibilidade ao processo jurídico, ditando, por vezes, decisões contrárias a todo direito formalmente elaborado e reconhecido, porém intrinseca- mente justas.

Carnelutti disse que se o legislador tem as insígnias da soberania, o juiz tem as suas chaves. No cotidiano forense, o ordinário c que os julgamentos contenham, em dose maior ou menor, a correção da lei. A luta do Direito acaba por ser uma luta entre o legislador e o juiz.

Partindo dessa constatação, advoga Carnelutti que se dê mais liberdade ao juiz, reclamando-se dele a correspondente dignidade.

Assim, poderá o juiz, em contato com o homem vivo (que não é o homem abstrato do legislador), alcançar a visão suprema que é a intuição da Justiça. Karl Larenz afirma que: "... o jurista, se não quer ser infiel à sua profissão, não pode entender o Direito positivo, no seu conjunto, senão como uma via (entre várias possíveis) de realizar a maior justiça possível". 213.3. Valoração da lei pelo juiz: colocações complementares

Carlos Santiago Nino pensa que já se vislumbra, na atualidade, uma ciência jurídica que recusa a aceitação acrítica da legislação e pretende converter-se em árbitro supremo da força obrigatória das leis.

Alberto Vicente Fernandez não está entre os autores que sufragam a tese da valoração expressa da lei pelo juiz. Contudo, pragmaticamente, observa que os juizes logram superar as disposições rígidas da lei ou sua evidente injustiça através da interpretação dos fatos: quando uma lei lhes repugna, recorrem a uma valoração severa das provas.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho não se filia à corrente que admite a possibilidade, dentro do Direito brasileiro vigente, do exercício, pela magistratura, de um papel crítico e corretivo da legalidade posta. Contudo, entende que representaria aperfeiçoa-mento das

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instituições vir a ser outorgada ao Judiciário a faculdade de julgar as normas vigentes, anulando-as, se injustas.

No Anteprojeto da Lei de Introdução ao Código Civil, de Haroldo Valladão, estabelece-se a interpretação da lei na base da bem comum, da justiça social e da eqüidade.

Numa visão mais ampla do tema, que transcende meramente o jurídico, diz Artur Paoli: "Alei é imobilizada; a história é criação contínua, é dinamis-mo renovador permanente e, portanto, rotura constante de esque mas, se os queremos medir através de um esquematismo moral. O relativismo é o medo terrível dos fariseus de todos os tempos. Mataram e matarão sempre os profetas, porque a profecia começa com a destruição de uma lei fixa, permanente, inteira em todas as suas partes, e até nas suas interpretações".

Não se perca de vista o ensino bíblico, onde se realça o compromisso do juiz com a Justiça: "Estabelecerás juizes e magistrados de todas as tuas portas para que julguem o povo com retidão de Justiça". 21.4. A crítica valorativa da norma e o sistema jurídico brasileiro

A crítica valorativa da norma encontra, a meu ver, respaldo no sistema jurídico brasileiro, em face do art. 5ª da Lei de Introdução ao Código Civil.

Desde que se entenda, como creio acertado, deva o juiz, na aplicação da lei, atender as exigências últimas e gerais do bem comum, abre-se, por essa porta, o caminho para a crítica valorativa das normas jurídicas pelo juiz, uma vez que a própria percepção do bem comum é uma percepção axiológica. 21.5. Fundamentação teórica para a aplicação axiológica do Direito

A aplicação axiológica do Direito, pelo juiz, é inevitável e pode ser humana e socialmente útil.

É inevitável porque o juiz, queira ou não queira, consciente ou inconscientemente, está, a todo instante, trabalhando com uma tabela axiológica, filosofando.44 Será humana e socialmente útil, se observadas certas condições metodológicas, ideológicas e éticas. 21.5.1. Condições metodológicas que devem presidir à aplicação axiológica do Direito

A aplicação axiológica do Direito não nega que o juiz deve manter-se dentro do sistema jurídico. Desapareceria aquele mínimo de segurança jurídica, sempre desejável, se cada juiz pudesse, sem justificativa, a seu talante, transformar-se em legislador. Estaria, sem dúvida, instaurado o regime da arbitrariedade judicial. O que se afirma é que o juiz tem uma grande cota de arbítrio, sem sair do sistema legal.

A norma é apenas a linha de referência, o núcleo central do ordenamento jurídico. Não se desprezará esse núcleo, como matéria-prima do labor sistematizador do cientista do Direito. Mantido esse núcleo central, são, entretanto, amplíssimas as possibilidades valorativas e criativas do juiz. 44 Em pesquisa socio-jurídica empírica que realizei, no Espírito Santo, verifiquei, entrevistando todos os juizes do interior, que o julgamento com preponderância de fatores exclusivamente legais tem presença inexpressiva nos resultados: 7,9% dos respondentes. Contudo, o julgamento em que preponderam os fatores legais junto com outros (psicológicos, sociológicos, humanos) tem a maior freqüência observada: 68,4% dos respondentes. As respostas em que foi declarada a preponderância de fatores sociológicos ou humanos, ou de ambos, aparecem com a freqüência de 21,0%. Prevalecem, assim, nos julgamentos dos respondentes, os fatores legais, unidos a outros fatores, sobretudo humanos. (Cf. João Baptista Herkenhoff, O Direito dos Códigos e o Direito da Vida, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris, 1993, pp. 147 e 148.)

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45 "A legislação estatal é apenas o núcleo estável, a linha de referência do ordenamento jurídico positivo do Estado. A legislação é estática; o ordenamento é dinâmico. A legislação é formal; o ordenamento é a legislação in acto e in concreto, a substância da vida social integrada na lei pela interpretação exigida segundo os fins éticos da convivência (...). Miguel Reale, Teoria do Direito e do Estado, São Paulo, Martins, 1972, p. 312.

Por isso, em nenhuma hipótese, estará o juiz obrigado a sentenciar conforme a norma, ainda que com drama íntimo. Haverá sempre recursos para que o juiz, sem sair do sistema jurídico, sentencie em paz deconsciênciausando, com criatividade, sua cota de arbítrio e seu poder jurisdicional em homenagem à primazia dos valores humanos, que lhe cabe preservar.

A aplicação axiológica que se defende não erige o subjetivismo como diretriz, mais do que seria subjetivo o julgamento, adotan-do-se outra orientação no julgar.46 215.2. Condições ideológicas que devem orientar a aplicação axiológica do Direito

Todo intérprete é, embora não o queira, um filósofo e um político da lei, como disse Eduardo Couture. Defendo uma ideologia progressista, como a melhor escolha axiológica que o juiz pode fazer.

A lei é estática; o Direito é dinâmico. Alei estabiliza relações sociais, garantindo o predomínio da classe e dos grupos que mais influíram na sua elaboração; o Direito é história.

Papel extremamente conservador, pobre papel, estará reservado a um corpo de magistrados, servos da lei.

Papel político e social progressista, atuação em favor dos! deserdados da lei, eco dos apelos de Justiça de um povo que se organiza e que busca ser agente de sua própria libertação: só uma Justiça que não fuja de afirmar valores poderá desempenhar esse papel, cumprir essa atuação, fazer ressoar esse eco. 46 Plauto Faraco de Azevedo adverte que não é admissível a preponderância da subjetividade do juiz em face do problema suscitado pela lei injusta. Deve o juiz consultar o seu sentimento ético, com o cuidado de não se afastar das concepções sociais dominantes. Aconselha esse autor que o juiz considere os dados objetivos emergentes da vida social, integrados, porém, pelos dados subjetivos, pelo critério e formação, pessoal do julgador. Plauto Faraco de Azevedo, ob. cit., pp. 124-127. 21.5.3. Condições éticas, relativamente aos magistrados, que têm de pressupor a aplicação axiológica do Direito

Uma tabela axiológica fundamenta-se, obviamente, na própria pessoa do juiz, no estofo humano e moral que possua.

Não apenas quando se defende a aplicação axiológica do Direito, mas, em qualquer hipótese, há de ser um grupo de escol o dos magistrados. Há de se fazer cuidadosa seleção dos postulantes à carreira Há de se exigir um estágio probatório antes de lhes conferir garantias. Há de se manter instrumentos permanentes de disciplina, (ornando possível colocar em disponibilidade, por provocação do Ministério Público, da OAB e de outros órgãos, e por decisão de um órgão especial credor de respeitabilidade e isenção, os juizes que não se mostrem portadores do padrão moral, que é de ser exigido de tais homens. Há de se lhes garantir a independência Há de se lhes subtrair a toga da influência das forças político-partidárias.47

47 O que não fez a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, cujo art. 81, § Io, subordina, na prática, a remoção de juizes, na Justiça dos Estados, aos donos do poder local, aos coronéis do interior.

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A Lei Orgânica da Magistratura Nacional dispõe, no art. 81, § Io: "A remoção far-se-á mediante escolha pelo Poder Executivo, sempre que possível, de nome constante de lista tríplice, organizada pelo Tribunal de Justiça e contendo os nomes dos candidatos com mais de dois anos de efetivo exercício na entrância." A lei federa] estendeu a todo o país um vício que havia em pouquíssimos Estados da Federação e que era amplamente criticado.

Na prática, o dispositivo esdrúxulo de algumas organizações judiciárias locais, agora federalizado, vinha obrigando magistrados, que quisessem remoção para determinadas comarcas, a obter do chefe político loca] uma carta de recomendação mediante a qual o governador assinava o respectivo ato. Lamentável desrespeito ao Poder Judiciário.

Pior do que isso só mesmo ressuscitar a Lei Constitucional n° 5, de 12 de agosto de 1903, do Estado de Minas Gerais, que instituiu o Tribunal de Remoções de Juizes, órgão fulminado pelo Supremo como inconstitucional. A propósito desse tribunal ver Lenine Nequete, O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência, Porto Alegre, Sulina, 1973, vol. II, pp. 17 a 28.

21.5.4. A hegemonia do juiz, na vida do Direito, observadas as condições que se colocam

Assegurados esses pressupostos, a hegemonia do juiz, na vida do Direito, já de si inafastável, passa a ser socialmente útil e desejável.

Por tudo isso, mal inspirada, retrógrada, ociosa e inútil é a disposição hermenêutica sufragada pelo art. 25, inc. I, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional dizendo que é dever do juiz cumprir e fazer cumprir com exatidão as disposições legais: mal inspirada e retrógrada porque recua à Escola da Exegese estabelecendo um paralelismo entre a ética do ofício judicial e o cumprimento exato das disposições legais; ociosa e inútil porque a tarefa jurisdicional, o modo de exercê-la, como disse Recaséns Siches, é da competência do órgão judicial. A disposição, no caso, tem simples força de conselho, mal-avisado conselho que deve ceder à diretriz bem mais sábia do art. 5o da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro: "na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum."48

22. APLICAÇÃO DO DIREITO NUMA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICA Conforme define M. Merleau-Ponty: "A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, tornam a definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que substitui as essências na existência e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra forma senão a partir de sua facticidade".49 A primeira tentativa de aplicação da fenomenologia ao Direito foi feita por Adolf Reinach (1883-1916), jurista e filósofo alemão. 48 O artigo encontra semelhança com dispositivo vigente em Portugal, antes da Revolução dos Cravos. Dentro da concepção ideológica do fascismo português, que a Revolução de 25 de abril dc 1974 derrubou, dispunha o Código Civil de 1966, no art. 8o, 2: "O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo." Igual determinação constava do Estatuto Judiciário. (Cf. Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos, Das Leis, sua Interpretação e Aplicação, Lisboa, impresso na Tipografia Guerra, 1967, p. 33.)

A doutrina de Adolf Reinach partia da proposição de que o Direito, como as demais

coisas, possui uma essência que permanece intata, não obstante as disposições do direito positivo, mesmo quando este se choca com aquela essência. Seria, pois, preciso,

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através da intuição, apreender essa essência para conceber uma teoria apriorística do Direito.50 Discípulos de Hans Kelsen tentaram uma aproximação entre a Teoria Pura do Direito e o método fenomenológico. Outrossim, as raízes ideológicas da Teoria Egológica do Direito, segundo o própria Carlos Cossio, estão na fenomenologia de Husserl, no existencialismo de Martin Heidegger e na Teoria Pura do Direito, de Kelsen.

Não é a essência do Direito o que pretendo aqui discutir. Nem é o enfoque desses autores que tenciono adotar, quando reclamo a aplicação do Direito dentro de uma perspectiva fenomenológica.

Compreender o homem a partir de sua facticidade, da condição humana, comprometida com uma situação não escolhida... Buscar a volta às "coisas mesmas'*... Tentar reencontrar a verdade, nos dados originários da experiência... Descer ao homem julgado, a sua pauta de valores, e fugir da violência de exigir que o homem julgado suba à pauta dos valores do juiz, ou dos que fizeram a lei, ou daqueles para os quais a lei foi feita...

Estes são os desafios e inquietações que me preocupam. Uma pessoa pratica um crime em determinada comarca do interior. O juiz da

respectiva jurisdição examina o caso e declara-se competente. Ao concluir pela própria competência, o juiz ingressa no campo geográfico da pessoa.

Se o indivíduo que vai ser julgado furtou o toca-fitas de um carro, quebrando o vidro do veículo, e o magistrado enquadra sua conduta como delituosa - tipificada pelo art. 155, § 4o, inc. I, do Código Penais (furto qualificado) —, estará vendo o indivíduo como a lei o descreve. Não ingressou ainda no campo fenomenal.

Mas se, ao interrogar o acusado, o juiz procura pesquisar sua vida, seu mundo, suas circunstâncias, se busca, a partir dele, compreender o ato que praticou, se desce a suas motivações, aí então, e só aí, estará entrando no campo fenomenal. O indivíduo que está sendo julgado é uma matriz de percepções e sentimentos: o julgador vê os motivos que operam nele. 49 M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, Rio, Freitas Bastos, 1971, p. 5. Acresce M. Merleau-Ponty: "O mundo fenomenológico é, não o ser puro, mas o sentido que transcende à interseção de minhas experiências e a interseção de minhas experiências com as do outro, pela engrenagem de umas sobre as outras, ele é pois inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que fazem sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha". (Ib., p. 17.) "Ainda uma vez, é evidente que nenhuma relação de causalidade é concebível entre o sujeito e seu corpo, seu mundo ou sua sociedade. Sob pena de perder o fundamento de todas as minhas certezas, não posso duvidar do que me ensina minha presença em mim mesmo. Ora, no momento em que me viro para mim mesmo para me descrever, entrevejo um fluxo anônimo, um projeto global onde não há ainda 'estados de consciência', nem, com mais razões, ainda, qualificações de nenhuma espécie. Não sou para mim mesmo 'ciumento', nem 'curioso', nem 'corcunda', nem 'funcionário'. É freqüente o ficar-se espantado que o enfermo ou o aleijado possam se suportar. É porque eles não são para eles aleijado ou moribundo. Até o momento do estado de coma, o moribundo é habitado por uma consciência, ele é tudo o que vê, ele tem esse meio de escape. A consciência nunca pode objetivar-se em consciência-de-aleijado ou consciência-de-enfermo, e, mesmo se o velho se lamenta de sua velhice ou o enfermo de sua enfermidade, eles só podem fazê-lo quando se comparam com outros ou quando se vêem pelos olhos dos outros, isto é, quando têm de si mesmos uma visão estatística e objetiva, e seus lamentos nunca são inteiramente de boa-fé: voltado ao centro de sua consciência, cada um se sente além de suas qualificações e com o golpe se resignam."(íb., p. 437.) 50 o ser fixo, apriorístico e essencial do Direito não se confunde com o Direito Natural da antiga doutrina, que se pretendeu ideal absoluto para padrão da lei positiva, com abstração da realidade. Outrossim, essa essêneia do Direito não intentava substituir o direito positivo mas apenas oferecer-lhe um fundamento conceptual. (Cf. Paulo Jorge de Lima, Dicionário de Filosofia do Direito, São Paulo, Sugestões Literárias, 1968, p. 217.)

Esse campo fenomenal revelará ao juiz um universo!

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Para o indivíduo que tem um braço amputado, o braço não existe geograficamente, mas existe fenomenologicamente.

O toca-fitas que, legalmente, foi furtado, fenomenologicamente pode pertencer ao menino rico, sem carinho, ou ao menino pobre, agredido pela publicidade comercial. Num caso ou no outro, a conduta praticada não encontra correspondência com aquela | friamente descrita pela lei.

Os comandos da lei nunca consideram o campo fenomenal. E nem poderiam fazê-lo, pois o campo fenomenal é individual. Mas uma Justiça que pretenda libertar, e não escravizar, que não se preste ao papel, de sustentar privilégios e exacerbar o abismo entre as classes sociais (enquanto não conquistarmos o mundo da igualdade), terá de penetrar no campo fenomenal.

Para a lei, todos são iguais.51 Ingênuo engano. Os homens são desiguais. Uma estrutura de opressão cria e alimenta as desigualdades. Dessa constatação há de partir toda tentativa de um Direito justo: apreciação desigual, ante a desigualdade social e a desigualdade humana.

Só uma pessoa, assumindo uma perspectiva fenomenológica, na arte e na ciência da aplicação do Direito, pode vencer a mudez e a insensibilidade da lei: o Juiz.52 Disse Calamandrei que: "O juiz é o direito tomado homem".

A visão fenomenológica permite que o Direito, de fato, se torne homem - Direito transmudado em homem: já não é Direito, que generaliza e uniformiza; mas homem, capaz de compreender, sentir, participar, comungar.

A perspectiva fenomenológica, ao lado de uma consideração axiológica, que veja a Justiça sempre a serviço do Homem, ajudando-o na conquista de novas formas de ser, em vista da realização cada vez mais plena de si mesmo, solidariamente com toda a coletividade humana,54 poderá dar fundamentação teórica ao humanismo que muitos juizes já possuem55 mas que, com pejo, não revelam, sob o temor de serem tidos, depreciativamente, como "bonzinhos". 51 O art. 5o da Constituição de 1988 estipula que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Garante-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito a vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Ainda a Constituição de 1988 reforça o preceito da igualdade quando estabelece, no inciso XLI(41)do art. 5o, que: "... a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;...". 52 "Os litígios submetidos ao juiz envolvem toda a sua pessoa, concitando sua coragem e responsabilidade. Para bem desempenhar suas funções, é preciso que nelas ponha toda sua experiência vivencial, que lhe há de permitir pôr-se na situação do outro, ao mesmo tempo que dela se destaca, através de aguçada percepção dos problemas individuais e sociais de seu tempo." (Cf. Plauto Faraco de Azevedo, Justiça Distributiva e Aplicação do Direito, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1983, p. 21.) 54 "A história, contra toda perspectiva essencialista e fixista, não é desenvolvimento de virtualidades preexistentes no homem, mas a conquista de novas formas, qualitativamente, distintas, de ser homem, em vista da realização cada vez mais plena e total de si mesmo solidariamente com toda a coletividade humana.-" (Gustavo Gutiérrez, Teologia da Libertação, Petrópolis, Vozes, 1976, p. 40.) 55 Na pesquisa sócio-jurídica empírica que realizei no Estado do Espírito Santo, perguntando! aos juizes que fatores preponderavam, nos julgamentos que proferiram, responderam: fatores humanos (7,9%); fatores legais e humanos (39,5%); fatores sociológicos e humanos (2,6%); fatores legais, sociológicos e humanos (10,5%); fatores legais, sociológicos, psicológicos c humanos (2,6%). Somente 34,2% dos juizes não declinaram os fatores humanos como motivadores de suas sentenças. (Cf. João Baptista Herkenhoff, O Direito dos Códigos e o\ Direito da Vida, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris, 1993,pp. 147 e 148).

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23. A APLICAÇÃO DO DIREITO NUMA PERSPECTIVA SOCIOLÓGICO-POLÍTICA 23.1. A essencialidade da aplicação sociológico-política do Direito

A aplicação sociológico-política do Direito pressupõe uma interpretação também sociológico-política da norma que regerá a espécie concreta. Mas é, justamente, em face do "caso concreto", do Direito como fato social, que se impõe a aplicação sociológi-co-política.

Uma coisa é a interpretação abstrata da norma, num artigo ou livro doutrinário. Outra coisa é o julgamento do caso, envolvendo o homem e a dramaticidade da vida, a luz da norma e das diretrizes do sistema legal.

Na primeira hipótese, também o sociológico e político estará presente, quando o intérprete serve de elo entre a linguagem da lei (de um legislador, às vezes, pretérito) e a linguagem das aspirações e necessidades sociais, emergentes do tempo e do espaço nos quais se processa a atividade doutrinária de interpretação.

Na segunda hipótese, contudo, é que não apenas se reclamará a ponderação do sociológico-político (como na interpretação genérica), mas a consciência de que, em face do caso concreto, a aplicação deve ser sobretudo sociológica e política, para fazer frente: a) ao ineditismo da vida, que extravasa a previsibilidade legal; b) ao desafio de ajustar a lei à Justiça do caso; c) à especificidade de certos fatos, que fogem ao enquadramento legal; d) à mutação social; e) à necessidade de humanizar e socializar a lei; j) ao atendimento das demandas sociais da Justiça, não ouvidas ou mal ouvidas pelo legislador; g) ao surgimento de novas necessidades humanas; h) à conveniência de adaptar a lei à realidade local e à sua pauta de valores; i) à consideração das conseqüências da decisão judicial, no sistema social como um todo; j) à ponderação do político dentro do jurídico.

A meu ver, a aplicação do Direito, pelo juiz, ou será uma aplicação sociológico-política, ou será uma aplicação extremamente nociva aos homens, sujeitos a julgamento, e à comunidade, regida por tal jurisdição. 23.2. O agasalho ao Direito e à cultura popular como fundamento de uma postura sociológico-política

A base teórica para a assunção de uma postura sociológico-política, na aplicação do Direito, é a visão do Direito como "fato social".

O sistema jurídico não é um sistema fechado, mas aberto, penetrado pelo conjunto do sistema social. A decisão judicial não se isola, não se ilha: é condicionada pelos diversos fenômenos sociais, a começar pelo econômico, e atua para além do sistema jurídico.

De outra parte, o Direito, visto como "fato social", não se esgota nas definições dogmáticas do monismo jurídico: Direito é o que, realmente, ocorre na sociedade. Conseqüência dessa percepção do jurídico é dar guarida ao Direito popular e à cultura que o informa.

O legislador não tem o monopólio do Direito. A lei nem sempre revela o Direito. Pelo contrário, muitas vezes consagra privilégios, geração sobre geração. Partindo de diferentes perspectivas, muitos autores verificaram a evidência da pluralidade de ordenamentos.

Pontes de Miranda viu a antinomia entre o "direito dos juristas" e o "direito do povo". Maria Sylvia de Carvalho Franco constatou, em pesquisa que realizou, a

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divergência entre os princípios impostos pela lei e os observados pela população em geral.

Miranda Rosa surpreendeu a existência de um folclore jurídico capaz de dar às manifestações do Direito algumas dimensões não expressas na lei.

Roberto Lyra Filho rebela-se contra a visão estreita do fenômeno jurídico, como aquele decorrente apenas do direito positivado, e alarga sua análise, na consideração dos ordenamentos plurais conflitantes, que advêm da sociedade classista. Daí normas jurídicas diversas, no direito estatal e no direito dos espoliados, formando conjuntos competitivos de normas.

Em pesquisa que realizou, numa favela do Rio de Janeiro, Boaventura de Sousa Santos verificou que a população favelada considerava-se fora do direito oficial, a partir da consciência que tinha da ilegalidade da própria moradia, pelos padrões do direito do asfalto. Contudo, essa população acreditava na existência de um outro direito, para além dos códigos e muito mais justo do que estes, à luz do qual a condição de pobreza seria avaliada e compreendida a luta dos habitantes pelo direito à habitação, com reconhecimento dos demais direitos dos favelados.

José Geraldo de Sousa Júnior chama a atenção para o avanço crescente do papel de organizações sociais que se formam no interior da sociedade civil e que criam o direito.

José Eduardo Faria observa que a simples edição de normas jurídicas pelo Estado não impede que determinados segmentos sociais criem uma espécie de legislação paralegal.

Robert Shirley, Florestan Fernandes, Fernando de Azevedo,6 Gilberto Freyre, Oliveira Viana constataram a existência, no Brasil, de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos.

Os próprios juizes, conforme pesquisa que realizei no Estado do Espírito Santo, acolhem e confessam que acolhem valores e costumes locais, mesmo contra legem: relevando o princípio da obrigatoriedade do conhecimento da lei diante de certas situações, quer no crime, quer no cível; usando a advertência, a ameaça e outras medidas preventivas, em vez da pena, diante de certos delitos; negando aplicação à lei quando contraria usos e costumes; privilegiando a realidade local até mesmo contra a lei; dando validade a contratos, mesmo sem estar revestidos das formalidades legais, em certas circunstâncias; recebendo recurso, em ação de despejo, com efeito suspensivo, quando o efeito da lei seria apenas devolutivo, em face do grau de cultura da parte e da deficiência de sua defesa; dando ampla proteção ao posseiro, realizando reforma agrária por via judicial, com olhos na situação local; dando flexibilidade ao Direito nacional, nas relações de família, nas relações agrárias e em outros casos, diversamente do que deve ocorrer nas relações comerciais, onde o apego ao Direito nacional é indispen-sável; utilizando meios de ação fora do processo; considerando público o caminho em que passa casamento ou enterro; relevando prazos, em certos casos etc.

Há um Direito latente na alma do povo.70 Há uma cultura popular que a chamada cultura universitária muitas vezes

despreza, em nome de um elitismo, que é apenas domínio de classe. O povo formula o seu Direito. O povo tem a consciência do que é justo e injusto,

consciência que a pressão ideológica sobre ele exercida não conseguiu destruir. Esse senso crítico remanescente, esse "núcleo de bom senso" é, aliás, a semente que pode permitir a libertação da dominação.

A lei seria tanto mais justa, quanto mais consagrasse esses valores populares, e é tanto mais injusta quanto reflete interesses e valores importados ou quanto, dentro do próprio país, privilegia a vontade de grupos e o domínio de classe.

Quando o homem do povo vê mercadorias compradas a prazo saírem de uma residência, removidas por oficiais de Justiça, sob o império de um mandado judicial,

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porque o comprador atrasou-se numa ou duas prestações, e o vendedor é amparado pela cláusula de "alienação fiduciária", não acha ele que aquela decisão judicial é justa. 70 Carlos Santiago Nino, vivendo noutro país, com base noutra realidade cultural, opina que é preciso deixar de lado certos preconceitos sobre as verdadeiras fontes do Direito para analisar, fundamentalmente, através das decisões judiciais, quais são as pautas que recebem efetiva aplicação. Este amplo critério mostraria que muitas das normas tomadas por válidas não são objeto de reconhecimento pelos órgãos de aplicação, enquanto outras, informais, têm recepção geral. (Carlos Santiago Nino, ob. cit., p. 150.) Da mesma forma, a resistência oposta a despejos em massa, por populações pobres, que proclamam o seu direito de morar, demonstra o senso de justiça do povo, colidindo com uma visão privativista e anti-social da propriedade, que está na mente de muitos juristas.71

Na Comissão Justiça e Paz, da Arquidiocese de Vitória, inúmeras vezes ouvi habitantes da periferia, ocupantes de terrenos popularmente conhecidos como de invasão, afirmarem que Deus deu a terra para todos e que morar, nesses terrenos, era justo, sendo injusto e contra a vontade de Deus a expulsão dos moradores.

A cultura popular preserva os valores nacionais de um povo. A cultura "acadêmica", sofrendo violência colonialista, esmaga a cultura popular, desnacionaliza o povo, anula sua identidade.

Não se quer negar aqui a existência de certos valores universais, nem também a utilidade de participar cada povo do patrimônio comum das civilizações, nem, outrossim, o inafastável fenômeno da influência das comunidades nacionais umas sobre as outras, quer no nível regional, quer no nível de globo terrestre.

Mas o que se contesta é a supressão dos valores autóctones, a submissão desses valores a uma pauta de dominação internacional, a abertura à influência externa sem a preservação daquilo que, por ser popular, é autenticamente nacional.

Os bispos latino-americanos, reunidos em Puebla (1979), denunciaram a marginalização e a destruição dos valores pertencentes à antiga e rica tradição do Continente, a agressão e a deformação das culturas locais por influências externas dominantes, ou por limitações alienantes de formas de vida ou valores importados.72

71 José Geraldo de Sousa Júnior informa: "Mais de uma vez", a tribuna da Comissão de Direitos Humanos, na OAB-DF, foi ocupada por setores populares da periferia do Distrito Federal, proclamando e reivindicando o direito de moradia. Mais de uma vez, na qualidade de membro da Comissão, rui incumbido de acompanhar reuniões, encontros e até situações de conflito, nos quais estes setores subalternos, caracterizados como grupos ou classes na estrutura de produção, permaneciam inarredáveis, na afirmação de direito de morar em face do Direito Positivo vigente, estatal, apresentando-o quase que como um contra direito do direito de propriedade". (Cf. José Geraldo de Sousa Júnior, "Fundamentação Teórica do Direito de Moradia", in Direito e Avesso, Brasília, ano 1, n° 2, jul.-dez. 1982, p. 14.)

Paulo Freire notou que: "Como manifestação de conquista, a invasão cultural conduz à inautenticidade do ser dos invadidos, O seu programa responde ao quadro valorativo de seus atores. A seus padrões, a suas finalidades".

Pode e deve o juiz tentar descobrir o Direito vivido pelo povo. Para o desempenho deste trabalho, há de ser um cientista e um artista. Cientista para, à luz dos dados da Economia, da Sociologia e da Política, entender que o Direito não é um departamento ilhado, dentro da estrutura social, razão pela qual a sentença judicial não se pode desligar do contexto social global. Artista, cheio de poder criador, com sensibilidade humana e antenas ligadas à alma do povo, para sentir e traduzir suas aspirações.

23.3. Objeções à concepção extensiva da aplicação sociológico-política do Direito

Enquanto o método sociológico é entendido em limites parcimoniosos, levando o juiz a aplicar o texto, de acordo com as necessidades contemporâneas, como obreiro do

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progresso, mas detendo-se num meio-termo discreto, para tirar todas as deduções exigidas pelo meio social, porém compatíveis com a letra da lei, como quer Carlos Maximiliano - essa posição é aceita sem reparos de maior autoridade.

A divergência doutrinária ocorre quando, em nome de uma aplicação sociológico-política, pretende-se dar ao juiz o poder de afastar a incidência da lei ao caso concreto, singular. Ante essa pretensão de extensão do poder judicial e dos limites da aplicação sociológico-política do Direito, opõem-se as seguintes objeções: a) ao legislador é que cabe o papel de compatibilizar o Direito com o fato social, através de reformas legislativas; b) a ampla aplicação sociológico-política do Direito pretende erigir o subjetivismo do juiz como princípio, rasgando-se todo um patrimônio de pensamento, que pretendeu fazer do Direito um instrumento de segurança; c) a extensão do poder judicial poderia ser socialmente útil, partindo do pré-requisito da existência de um corpo de juizes altamente qualificados, mas seria um desastre em face de juizes menos preparados; d) os juizes não são eleitos pelo povo, para poder invocar uma suposta capacidade de traduzir aspirações populares; é) a tese esconde a pretensão de reviver a Escola do Direito Justo, já ultrapassada pelo crivo do debate científico, e ressuscitar "o bom Juiz Magnaud", cujo posicionamento foi duramente criticado, combatido e vencido pelo bom senso; f) a tese tenciona um movimento contra a história, pois à face da multiplicação dos casos judiciais e da necessidade de distribuir Justiça rápida, já se impõe uma providência inversa à pretendida, qual seja, a uniformização dos casos e a sentença por meio de computação eletrônica. 23.4. Refutação das objeções Todas as objeções são, a meu ver, refutáveis, como se tentará demonstrar a seguir. 23.4.1. A lei ante o caso singular e a mudança social

É ao legislador, sem dúvida, que cabe a elaboração da lei. Mas a lei, por sua generalidade, fixa apenas a diretriz geral. Jamais terá a lei a possibilidade de apanhar a multiplicidade das situações da vida. A tarefa do legislador termina na edição da lei (Recaséns). Quando se trata de aplicar o Direito, não é o legislador que ensinará ao juiz como fazê-lo.75

75 Opõe-se a esta posição Jônatas Milhomens, que, com Ernest Zitelman, considera as normas de aplicação, inclusive as hermenêuticas, como um superdireito. (Cf. Jônatas Milhomens, Hermenêutica do Direito Processual Civil, Rio de Janeiro, Forense, s/data, p. 10.)

Essa missão cabe ao próprio juiz, pois que a função jurisdicional escapa a qualquer criação legislativa. Não cabe ao juiz revogar a lei, mas pode afastar a aplicação diante do caso concreto, quando a aplicação resultaria em injustiça, feriria a consciência jurídica do povo, o sentido de "justo" do julgador e da comunidade.

Na generalidade do comando, termina a lei sua função. Por mais que, pormenorizadamente, preveja exceções à regra geral, o legislador não esgotará, explicitamente, as exceções que devem ser admitidas. Outrossim, a lei acompanha sempre, com passo tardo, as mudanças sociais.

Caberá ao juiz, como cientista do Direito, como sociólogo, no desempenho de um poder político, fazer a justiça do caso individual, vencendo, quer a insensibilidade da lei

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para acudir situações particulares imprevistas, quer seu atraso para adaptar-se à emergência dos fatos novos.76

A missão de humanizar e atualizar a lei, de negar sua aplicação ao caso que foge da abstração do comando genérico cabe, especialmente, ao juiz da primeira instância, vizinho e testemunha da angústia e da dor que os processos refletem apenas palidamente. Se o juiz que vive o fato abdica desse papel, esvazia-se, em muito, sua função humana e social. 76 S. Bclaid demonstrou, amplamente, que o papel criador e normativo é inerente ao juiz, partindo da constatação de que a verdadeira natureza da função jurisdicional fundamenta seu poder criador: o poder jurisdicional é poder político. Examinou o autor os principais aspectos da função criadora e normativa do juiz: na salvaguarda e no acabamento da ordem jurídica; na adaptação da ordem jurídica à evolução dos fatos; no aperfeiçoamento jurídico, como agente que deve ser do Direito Natural: "Le juge apparail comme un Pouvoir social autonome, qui a pour mission, non pas seulement d'appliquer les règles de Droit émises par le Législateur mais plus généralement de régler les litiges qui naissent entre les sujeis de Droit. Dans 1'accomplissement de cette fonction indispensable et irréductible aux autres fone dons de VÊtat, le juge exerce nécessairement un Pouvoir créateur et ordannateur certain, qui atteint le différentes manifestations de la vie sociale et marque profondément tous les aspects de 1'ordonnancement juridique. Dans ce sens du mot, au même titre que Von parle de Pouvoir Législatif ou de Pouvoir gouvernemental". Cf. S. Belaid, Essai sur le Pouvoir Créateur et Normatif du Juge, Paris, Librairie Générale du Droit et de Jurisprudence, 1974, p. 339. José Puig Brutau prova, exaustivamente, que a jurisprudência exerce função criadora do direito, do direito que "a cada instante, a sociedade reclama para a normalidade de sua vida". (Cf. José Puig Brutau, A Jurisprudência como Fonte do Direito, trad. de Leníne Nequete, Porto Alegre, Ajuris, 1977; passim.) Na prática judiciária brasileira, a negação de ser a jurisprudência fonte formal do direito é meramente acadêmica, em face da evidência da criação do direito pelos tribunais. Fernando Pinto, colhendo casos aqui e ali, arrola inúmeros exemplos de criação do direito, pelos tribunais brasileiros. A jurisprudência precedeu o legislador, em reformas progressistas, especialmente em matéria de Direito de Família (Cf. Fernando Pinto, Jurisprudência, Fonte Formal do Direito Brasileiro, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1977, pp. 91 e segs.) 23.4.2. O conteúdo subjetivo e político inerente a toda sentença

A aplicação sociológico-política do Direito não pretende erigir o subjetivismo como regra, mais do que seria subjetivo o julgamento, adotando-se outra orientação no julgar.77

A sentença do juiz, em qualquer hipótese, tem conteúdo subjetivo e político. Já o disse Couture quando afirmou que interpretar é, ainda que inconscientemente, tomar partido por uma concepção do Direito, por uma concepção do mundo e da vida.78

Elias Diaz denuncia a falsa neutralidade ideológica e política da função judicial e propugna por uma intervenção do juiz na transformação democrática da legislação. 77 "En rigor, la única numera de conseguir una absoluta y perfecta intersubjètividad en la valoración consistiria en erigir en juez - intérprete, aplicador dei derecho a la coletividad toda, que acataria en cada caso de presencia, como ocurría con lis coros en la tragédia griega. (...) Pero aunque no sea posible demonstrar deduetivamente Ia objetividad de una valoración judicial y sea necesario reconocer, una vez más, que la valoración sólo puede expresarse a través de la subjetividad dei intérprete, esto no significa, en modo alguno, el triunfo de las posiciones subjetivistas, porque asi como la perfecta intersubjètividad de una valoración es una espécie de concepto limite, tambiém cabe decir lo mismo de una valoración que pretenda ser puramente subjetiva." Cf. Enrique R. Aftalión, Fernando Garcia Olano e José Vilanova, Introducción al Derecho, Buenos Aires, Cooperadora de Derecho y Ciências Sociales, 1975, pp. 505-506. 78 "Interpretar é, ainda que inconscientemente, tomar partido por uma concepção do Direito, 0 que significa dizer, por uma concepção do mundo e da vida. Interpretar é dar vida a uma norma. Esta é uma simples proposição hipotética de uma conduta futura. Assim sendo, é um objetivo ideal, invisível (já que o texto escrito é a representação da norma, mas não a própria norma) e suscetível de ser percebido pelo raciocínio e pela intuição. O raciocínio e a intuição, todavia, pertencem a um determinado homem, e por isso, estão prenhes de subjetivismo. Todo intérprete é, embora não o queira, um filósofo e um político da lei." Cf. Eduardo Couture, Interpretação das Leis Processuais, São Paulo, 1956, p. 23, apud Alipio Silveira, O Papel do Juiz na Aplicação da Lei, São Paulo, Ed. Universitária de Direito, 1977, p. 74.

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Plauto Faraco de Azevedo censura aqueles que, pretendendo rigor lógico, neutralidade científica, são, na realidade, fiéis servidores da ordem jurídica vigente.

Poderia parecer que, quanto mais buscasse penetrar na inteligência da norma, como editada, estaria o juiz fugindo de um julgamento subjetivo. Mas essa fixação na norma também é um posicionamento ideológico, político, nitidamente conservador, pois a lei não evolui, a lei garante o status quo, enquanto o Direito pode ajustar-se às transformações sociais, à emergência de novas forças, de novas classes que assumam um maior poder no choque dos interesses em disputa. O juiz, aprisionado à lei, sem sensibilidade para descobrir o Direito, serve às forças da conservação e da reação, tanto quanto pode servir às forças do progresso, da renovação, o juiz-sociólogo.

Ambos são políticos, porque não exige julgamento que não seja político. A aplicação sociológico-política, como preconizada neste livro, não erige o

subjetivismo como preceito, porque não determina que o juiz imponha seus valores pessoais, na sentença. Pelo contrário, alerta-o sobre a necessidade de procurar traduzir o sentimento de justiça da comunidade, obriga-o a fazer ciência, incentiva sua capacidade de captação da alma do povo, aponta, como repositório de julgamentos, não apenas os livros de doutrina e a catalogação da jurisprudência, mas a vida, o jornal, a crônica do dia, o rosto da rua, o perfil dos barracos, as filas de ônibus, os caminhões que conduzem operários, as crianças famintas.

Surpreendemos inúmeras contradições dentro do sistema normativo. De um lado, a lei legitima a opressão; de outro, proclama a igualdade de todos, os direitos humanos, a justiça social. O mesmo sistema legal, que proclama valores humanistas, instrumentaliza valores anti-humanos.

O papel do hermeneuta, o papel do jurista, à face das contradições da lei, implica uma opção política.

A meu ver, está aí um grande desafio a ser enfrentado pelos juristas progressistas: explorar essas contradições; selecionar os valores humanistas e dar força a esses valores; exigir que os valores humanistas, teoricamente proclamados, demagogicamente proclamados, sejam efetivados e cumpridos; colocar-se do lado do povo, ajudando-o no processo de autoconscientização; comprometer-se, de sua cátedra que nunca é neutra, com a luta popular.

Dois expedientes podem prevenir eventual subjetivismo arbitrário na aplicação do Direito: a) o sistema do duplo grau de jurisdição; b) a obrigatoriedade da motivação da sentença.

No sistema legal brasileiro, não existe a instância única. O poder criativo que se abre ao juiz, abre-se ao Judiciário, como poder do Estado. Se ojuiz decidisse sem recurso, sua pesquisa do Direito poderia ser "pessoal". Criar-se-ia o domínio do arbítrio. Em face do sistema de recursos, o poder do juiz é um poder do Estado, não de um homem apenas. Eventual deformação do Direito, em vez de busca do Direito, pode sempre ser revista pela instância recursal.

A dupla instância reforça as possibilidades de exercício eficaz de uma magistratura criativa, científica, sociológica, política.

Disse, a propósito, Angel Latorre: "Esta função criadora da jurisprudência, ao interpretar as leis, levanta a dificuldade duma possível diversidade de critérios, que não só prejudicaria a segurança jurídica, mas que, além disso, faria depender a solução do caso dos critérios pessoais do juiz. Na realidade, este risco está salvaguardado pela existência dum tribunal superior (...), cuja missão essencial é, precisamente, a de unificar a interpretação do Direito e evitar, ou ao menos diminuir, essas diferenças de critério".

A motivação da sentença também previne eventual arbítrio porque obriga o juiz a explicitar a fundamentação do seu convencimento.

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Será inerente a uma sentença, que busque traduzir o Direito, motivar sua conclusão.

23.4.3. A supremacia do valor Justiça sobre o valor Segurança

A segurança jurídica é sempre invocada, quando se fala em alargar a missão criativa do juiz. A lei traduziria essa segurança. O afastamento da lei poria em perigo tal valor. Sem dúvida, uma das funções do Direito é preservar a segurança. Contudo, a Justiça é um valor superior a este. Jamais se poderá, em nome da segurança, consagrar a injustiça ou justificar a sentença contrária ao bem comum.

Não se nega que as relações jurídicas precisam de gozar de um teor de segurança. Sobretudo as relações comerciais, nas hipóteses em que os contratantes sejam de igual poder econômico.

Contudo, a segurança não pode ser elevada à categoria de valor supremo, em detrimento da Justiça, valor maior.

Com razão, no ensino bíblico, a segurança não é um valor autônomo, mas tem uma base axiológica: "O produto da justiça será a paz, o fruto da eqüidade, perpétua segurança" (Isaías 32,17).

A segurança que a lei, fundamentalmente, garante é a segu-rança das classes que fizeram a lei, ou tiveram papel preponderante na sua feitura.

Se, num caso de despejo, o juiz dá guarida ao proprietário do imóvel, estará dando segurança aos que investiram em imóveis, por causa das leis de proteção à propriedade. Mas onde fica a segurança do inquilino, a segurança da família, instituição social que goza de proteção constitucional com muito maior amplitude do que a propriedade?

Bem observa Cláudio Souto que a educação jurídica convencional conduz o juiz a uma parcialidade real quanto aos efeitos da atuação do Poder Judiciário. Se a missão do juiz é aplicar regras, e não criá-las, terá de aplicar regras que beneficiam, sem imparcialidade, os detentores do poder econômico e do poder político, muito mais amparados pela lei do que os outros membros da sociedade.

Segundo Radbruch, o homem de Direito que vive a Justiça, que tem sua visão do mundo fundada na Justiça, é idealista e progressista; o que vive a segurança é positivista e conservador.

Os ideólogos da segurança têm da ordem estabelecida uma visão simétrica: a lei explicita valores inquestionáveis - família, propriedade, sucessão, contrato, ordem pública, bons costumes. (Família enquanto sustentáculo da propriedade.)

A lei organiza as divergências, cerceia o egoísmo, coíbe as condutas criminosas. Se a lei é, assim, tão sábia, outro papel não têm as autoridades, os juizes,

inclusive, do que fazer prevalecer a lei, repelindo os atos injurídicos dos recalcitrantes. Nesta visão de mundo, há uma única tensão - a ordem e a desordem, a lei e o

desrespeito à lei. Prevaleça a ordem e a lei e o mundo estará salvo. Quem identifica "Estado-Ordem-Lei-Justiça" não aceita o acolhimento de qualquer

Direito que não seja o estatal, nem a absorção, pelo jurista, dos reclamos de Justiça do povo, do clamor tias grandes massas, quando esses reclamos não têm o beneplácito expresso do legislador.

Esta é uma percepção míope da realidade social. Obscurece a tensão entre o Direito estatal e o Direito social. Faz tabula rasa da tensão entre a ordem estabelecida e a ordem desejada.86

Ignora o conflito entre o mundo dos direitos do homem e dos homens sem direitos, oprimidos por opressores. Desconhece a pluralidade de ordenamentos jurídicos, as peculiaridades regionais, a existência de um Direito não-formal, ao lado do Direito formal, fatos que derrubam o mito da unidade do Direito.

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Antônio Bento Betioli, ao citar este nosso Como Aplicar o Direito, na obra que escreveu, bem demonstra ter percebido o fio de nossa tese, que ele tem a oportunidade de enriquecer com suas reflexões. Destaca sua concordância com a nossa proposta de questionamento da ordem, "quando a ordem é tão-somente o que a classe dominante ordena, uma segurança em favor de alguns". A aplicação sociológico-política pode estabelecer uma maior aproximação entre o Direito e o fato social. Pode minimizar a tensão entre o Direito estatal e o Direito social, reduzir o abismo entre os símbolos do legislador e os do povo, contemplar a multiplicidade de culturas, dentro do Brasil. Tudo isso contribuirá para a segurança do Direito, segurança, contudo, em favor de todos, e não apenas em favor de alguns.

86 "Ancorado na positividade imediata da Ordem" - observa Marilena Chauí - "o positivista dissimula a significação social de seu conceito chave, isto é, que em sociedades divididas em classes a 'ordem' é apenas o que a classe dominante ordena." Cf. Marilena Chauí, "Roberto Lyra ou Da Dignidade Política do Direito", in Direito e Avesso, Brasília, ano I, n° 2, jul.-dez. 1982. Roberto A. R. de Aguiar coloca, com muita propriedade: "Não há como evitar a escolha de uma visão que respalda a permanência da ordem constituída, ou aquela que, movida pela esperança, pretende uma ordem melhor". (Cf. Roberto A. R. de Aguiar, O que é Justiça, São Paulo, Ed. Alfa-ômega, 1982, p. 68.) Na mesma linha dialética, situa-se Cid Silveira: "Em face da tendência, que todo ser humano tem, por sua perfeição, é natural que os pertencentes às camadas dominadas se constituam, em maior ou menor parte, de descontentes. São os que aspiram a um sistema social mais perfeito". (Cf. Cid Silveira, Direito e Estado, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1977, p. 102.) 23.4.4. Se o juiz falha, não é a lei que o salvará

A existência de um corpo de juizes, altamente qualificado, não é indispensável apenas quando se reconhece carregar o ofício de juiz, dentro de si, um poder criativo. Em qualquer situação, juizes não qualificados constituem um desastre.90 Não é a lei vara de condão que conduz o mau timoneiro a porto seguro. O mau juiz, mau pela ausência de cultura e tirocínio, mau pela carência de qualidades humanas e morais, estará sempre impossibilitado de administrar Justiça. Feliz a comunidade na qual a jurisdição está entregue a consciências limpas e límpidas. Infeliz o povo que não pode confiar nos seus juizes.91 Se o juiz falha, não é a lei que o salvará.

Disse-o lapidarmente Couture: "Da dignidade do juiz depende a dignidade do Direito. O Direito valerá, em um país e num momento histórico determinados, o que valham os juizes como homens". 90 Estabelece o art. 125 do atual Código de Processo Civil, com a alteração determinada pela Lei n" 8.952, de 13 de dezembro de 1994: "Ojuiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: I - assegurar às partes igualdade de tratamento; II - velar pela rápida solução do litígio; III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Justiça; IV - tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes". A determinação contida no inciso II constava do art. 112 do Código de 1939: "O juiz dirigirá o processo por forma que assegure à causa andamento rápido, sem prejuízo da defesa dos interessados". Os incisos I e III constituem inovações do Código de Processo Civil, estabelecidas já na data de sua promulgação em 1973. O inciso IV foi introduzido pela Lei n° 8.952, de 13 de dezembro de 1994, que alterou dispositivos do Código de Processo Civil relativos ao processo de conhecimento e ao processo cautelar. O inciso I é uma decorrência do princípio de igualdade perante a lei. 91 O Superior Tribunal de Justiça, em decisão publicada no Diário da Justiça da União, em 15 de março de 1993, entendeu que a suspeição, na sistemática do Código de Processo Civil em vigor, é matéria de direito estrito, só se configurando nas hipóteses expressamente definidas em lei. (Cf. Theotonio Negrão, Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor, São Paulo, Saraiva, 1995.)

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23.4.5. A representatividade popular dos juizes

Verdadeiramente, os juizes não são eleitos pelo povo. A qualificação exigível do postulante ao cargo parece-me que é mais bem apurada através de concurso público de títulos e provas. Não creio que se devesse optar pelo sistema de eleição de juizes, para assegurar tivessem eles uma representatividade popular. Contudo, penso que, mesmo não eleitos, os juizes possam traduzir aspirações populares.

Seriam, a meu ver, convenientes alterações na estrutura judiciária para facilitar o desempenho, pelos juizes, da missão de traduzir aspirações populares, dentro do princípio básico de que "... todo poder emana do povo e em seu nome é exercido".

Deveria ser constitucionalmente modificado o sistema de eleição dos Presidentes dos Tribunais, escolhidos, atualmente, apenas por seus pares. Ou se adota o sufrágio universal para a escolha dos Presidentes dos Tribunais, como defende Arruda Campos, ou, pelo menos, deve-se ampliar o colégio eleitoral para o provimento dessa função, a fim de que participem do processo seletivo representantes da Justiça de primeira instância e do corpo de advogados.

No caso dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Supremo Tribunal Federal, o respectivo Presidente não é apenas o Presidente da Corte, mas o chefe de um dos Poderes do Estado, o que justifica a ampliação dos colégios que elegem os titulares de tais funções, ou mesmo a escolha pelo sufrágio universal.

Um Presidente de Tribunal eleito por colégio mais amplo, ou pela generalidade dos cidadãos, estaria mais aberto às aspirações coletivas.

O sistema de rodízio, na presidência dos tribunais - que é o oposto da abertura aqui defendida institucionaliza a rotina e impede a descoberta das qualidades de liderança exigíveis de quem quer que dirige.

Para rejuvenescer os tribunais, aproximando-os também das aspirações modernas, a cada dia emergentes num grupo social, seria conveniente a presença temporária, nos mesmos, de juizes de primeira instância, a exemplo do que ocorre nos Tribunais Regionais Eleitorais. Fixar-se-ia a fração obrigatória dessa presença e proibir-se-ia a recondução.

Impõe-se que haja também a fixação de um período máximo de permanência do magistrado nos tribunais, para que neles não se eternizem pessoas e grupos. Deve ser democratizado o acesso à função judiciária, como condição de uma Justiça mais popular.94

Essa democratização exige: a) o. democratização do ensino universitário, que só será realmente alcançada dentro de uma sociedade que se democratize globalmente; b) a democratização dos cursos de preparação para ingresso na magistratura, com oferecimento de bolsas para candidatos pobres, e com o arejamento de tais cursos, através da ampla discussão de idéias e doutrinas, sem qualquer espécie de censura ou policiamento; c) a supressão dos preconceitos contra o ingresso da mulher e do negro em todos os escalões da magistratura; d) a realização de concursos transparentes, honestos, rigorosamente igualitários, na Justiça, de modo a eliminar toda e qualquer possibilidade de protencionismo, afilhadismo ou nepotismo nas seleções; e) a ampliação da participação popular na Justiça, com o aperfeiçoamento, a modernização e a dilatação de competência do júri, e com corajosas experiências de Justiça leiga - prática, rápida, gratuita - funcionando no local dos conflitos, para conciliar e julgar causas menos complexas, dentre outras medidas.

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Há o juiz de ser também um homem aberto ao mundo:95 aberto a interesses multíplices, informado sobre todas as coisas, estudioso não apenas do Direito, mas da Sociologia, da Economia, da Política, participante da vida da comunidade.96 Como adverte Plauto Faraco de Azevedo, o magistrado não se deve fechar no código e no exoterismo lógico-formal.

Ao contrário, deve abrir-se ao mundo. A época moderna a interpenetração do jurídico, do econômico, do político, do

social está a exigir juizes que sejam homens do mundo. Não se pretenderá o juiz que perca o conceito moral de que deve desfrutar. Mas esse conceito é alcançado e mantido através de uma vida correta, não exigindo uma postura exterior solene que dificulta o acesso do povo ao juiz e estabelece uma relação de dominação frente à comunidade. 94 "Pode-se, desde logo, tolher a expectativa de uma justiça imparcial, se os critérios de escolha dos juizes conduzirem a uma justiça de classe, da classe dominante, espelho do Executivo forte ou dominante. Neste caso, o Judiciário, não refletindo os anseios do povo, poderá se lhe impor, mas jamais granjeárá seu respeito." (Cf. Plauto Faraco de Azevedo, Justiça Distributiva e Aplicação do Direito, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1983, p. 64.) 95 A Lei Orgânica da Magistratura Nacional criou a injustificável vedação de o magistrado "exercer cargo de direção ou técnico de sociedade civil, associação ou fundação, de qualquer natureza ou finalidade, salvo de associação de classe e sem remuneração" (art. 36, inc. II). Na visão do incauto legislador, o juiz é um pária, um homem que não assume responsabilidades perante a vida comunitária. A que péssimo exemplo se obriga o juiz, sobretudo no interior, onde os juizes, por longa tradição, exercem liderança nas mais diversas atividades sociais e culturais! O dispositivo extravasava os limites balizados pelo art. 112, parágrafo único, da Constituição então vigente que, ao fixar diretrizes para a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, mandou que se respeitassem as garantias previstas na Constituição ou dela decorrentes. Uma dessas garantias era o direito de associação (art. 153, § 28) e o direito conseqüente de usufruir, nas associações, da elegibilidade. A disposição legal, além de discriminatória c anticívica, é flagrantemente inconstitucional. Também o ensino de 2° grau, no qual os juizes prestavam inestimável concurso, principalmente no interior, foi, lamentavelmente, proibido aos magistrados pela emenda constitucional n° 7, de 13 de abril de 1977. A Constituição de 1988, felizmente, abrandou a disposição restritiva. Hoje não vigora mais essa proibição. Cidades há no interior do Brasil, que têm até hoje seus ginásios, graças ao apoio de magistrados. E quanto isso elevou o prestígio da justiça aos olhos do povo! 96 "A magnitude do papel que deve desempenhar o juiz dificilmente poderia ser exagerada. Envolve todos os seus conhecimentos - do direito objetivo e das regras que norteiam sua interpretação e aplicação, e da vida, sob seus múltiplos aspectos: psicológicos, sociológicos, históricos, políticos, geográficos, filosóficos, importando estes últimos não somente em uma concepção da existência e do mundo como do próprio Direito, de sua função, fins e significado humano." (Cf. Plauto Faraco de Azevedo, Justiça Distributiva e Aplicação do Direito, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1983, p. 61.)

O juiz de Antares, retratado magistralmente por Érico Veríssimo, é uma figura anacrônica. Não é o juiz que merece, nos dias de hoje, o respeito e a estima das comunidades.

A possibilidade de traduzirem os juizes as aspirações populares está diretamente ligada à origem social dos magistrados e à classe que integram, bem como à ideologia e à formação cultural e profissional.

Quanto à origem social dos juizes, na pesquisa sócio-jurídica que realizei e a que já me referi, apurei que a grande maioria dos integrantes da magistratura analisada procede da classe média, provém do interior, de sedes de municípios e do próprio Estado.

Quanto à ideologia - entendida como sistema organizado de idéias cujo sentido político não está previamente determinado concluiu-se que é assinalada por moderado conservadorismo, zelo pela ordem, senso de legalidade, preferência pelo formal e solene.

Criou-se uma escola de conservadorismo e verificou-se que, tanto os juizes liberais e reformistas quanto os juizes muito conservadores constituem minoria, estando a grande maioria numa posição intermediária, indicadora de moderado conservadorismo.

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Lança-se como hipótese que a magistratura do Espírito Santo seja representativa do país.

As classes médias brasileiras - das quais os juizes fazem parte -, tradicionalmente conservadoras, estão emergindo, na atualidade, para posições progressistas.102 As atitudes assumidas pela OAB, através de seus órgãos nacionais e locais, dão a medida desse fato histórico.

É possível que parcela cada vez mais ampla de magistrados sofra a influência do conjunto dos bacharéis.

Além dos fatores assinalados - a vida austera e sem luxo que levam, a passagem de longos anos pelo interior sentindo a realidade do povo, a convivência diuturna com o drama humano tudo isso pode levar os juizes a traduzirem aspirações populares, ainda que pelo povo não sejam eleitos para a função que desempenham.

Membros da classe média, os juizes poderão ser uma classe para si e não apenas uma classe em si. Assumindo a consciência de classe, como outros segmentos da classe média estão fazendo, concluirão os magistrados que nenhum vínculo justifica o serviço às classes dominantes, a integração ideológica à mentalidade delas: impõe-se resistir à alienação.

Bem mais nobre é o desempenho do papel histórico de se pôr do lado do povo, fugindo do anátema bíblico: "Ai daqueles que fazem leis injustas, e dos escribas que redigem sentenças opressivas, para afastar os pobres dos tribunais, e dene-gar direitos aos fracos de meu povo".1

23.4.6. A Escola do Direito Justo, Magnaud e o posicionamento assumido neste livro

A aplicação sociológico-política do Direito, como aqui defendida, identifica-se com algumas linhas da Escola do Direito Justo, ramo extremado da Escola do Direito Livre: a) quando proclama que o povo conhece o Direito vivo, o Direito que reputa justo; b) quando afirma que cabe à Ciência Jurídica encontrar esse Direito; c) quando diz que esse Direito deve ser buscado não só nos textos, mas na vida. Os seguintes princípios pretendem afirmar uma peculiaridade à aplicação sociológico-política, como a entendo:

No caso dos magistrados de carreira da Justiça dos Estados. a) o de que a valorização da cultura popular decorre do reconhecimento do direito de auto-expressão do povo, da crença que deve ser ele agente de sua própria história;105 b) o de que a busca das raízes populares da cultura é a busca também da identificação nacional dessa mesma cultura; c) o de que têm os magistrados, no entrechoque das forças sociais, um papel político, que deve ser o de defesa das classes marginalizadas, e não o de sustentação do status quo, com serviço da magistratura às classes dominantes; d) o de que a busca do Direito justo, de origem popular, não deve ser arbitrária e subjetiva, mas científica, fazendo-se necessária a ajuda da pesquisa sócio-jurídica, dentro de critérios metodológicos rigorosos, para que se descubra a consciência de "justo" do povo e se confira a coincidência ou o desajuste entre os valores do povo e os valores da lei. Os valores do povo devem ser ponderados pelo juiz, quer para trabalhar dentro da escala de discrição que lhe abre a lei, quer mesmo para refugar os valores da lei, com a abertura concedida por um uso científico e adequado da Hermenêutica, quando em flagrante desacordo com os valores do povo;106

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é) o de que há de exercer o juiz uma atuação de mudança social, à frente da lei, uma vez que esta estabiliza as relações sociais e é força conservadora; f) o de que há de ter o juiz consciência da globalidade dos fenômenos sociais, para não cometer o equívoco de encarar o sistema jurídico como um sistema autônomo, que se pudesse isolar das estruturas econômicas, políticas, sociais. 105 "Dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra dos demais." (Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, cit., pp. 92-93.) 106 Na pesquisa "O Direito dos Códigos e o Direito da Vida" verifiquei que quanto à maneira de perceber os crimes mais graves, os juizes mostram-se mais tradicionalistas e conservadores do que as comunidades interioranas, uma vez que nestas, muito mais que entre juizes, são realçados como bens maiores, tutelados pelo Direito Penal, aqueles desvinculados de valores de tradição e conservação. Foram considerados como desvinculados dos valores de tradição e conservação os crimes: que são considerados graves em qualquer sistema político e econômico; cuja valoração não parece tão sujeita às mutações de tempo; que defendem bens cuja tutela, pelo Estado, é indelegável; que privilegiam a pessoa humana. Esses tipos de crimes são os que as pessoas do povo, diferentemente dos juizes, consideram como os de maior gravidade. Cf. João Baptista Herkenhoff, O Direito dos Códigos e o Direito da Vida, pp. 167 e segs.

É de se refutar estejam ultrapassadas as teses básicas da Escola do Direito Justo, bem como sua realização pragmática, através de Magnaud, o "bom juiz". Não obstante a Escola do Direito Justo e Magnaud tenham adversários ferrenhos, têm também defensores.

E parece que o mundo atual, sufocado pela técnica, pela uniformização, pela manipulação, mais do que nunca apela para o humanismo, só possível, na realização do Direito, através de uma procura apaixonada da Justiça, esteja, ou não, consagrada nos textos da lei.

A realização, em 1977, na Bélgica, de um Congresso Internacional do Direito Processual Civil, sob os auspícios da Universidade Nacional de Gante, tendo como tema central "Por uma Justiça com Aspecto Humano”, revela essa tendência bastante atual.

Dionísio Díez Enriquez, no prólogo da obra de Henry Leyret sobre as sentenças de Magnaud, observa que os compatriotas de Magnaud chamavam-no de bom juiz, porque teve a virtude de satisfazer os anelos de Justiça de um povo já desconfiado dela. E na defesa da orientação adotada por Magnaud, em suas sentenças, afirma Díez Enriquez:

"A criança, a mulher, o trabalhador, o deserdado, o indivíduo asilado são fundamentalmente vítimas de nosso estado social, e a Justiça exige que se tenham em conta essas inferioridades, para favorecer aos que as padecem, realizando, assim, na ordem jurídica, a igualdade que a natureza e o egoísmo dos homens negam". Também, entre nós, Edgard de Moura Bittencourt coloca-se na defesa de Magnaud, dizendo:

"Foi ele quem deu forma e sentido à humanização da lei. Foi quem chefiou a revolta contra as aplicações simétricas do texto. Foi ele quem criou o princípio, que não pode fugir do comportamento de todos os magistrados dignos desse nome, segundo o qual, para bem compreender o drama das partes, deve o juiz descer ou subir até o nível de suas condições".

Por tudo isso, pensa Moura Bittencourt que: "O fenômeno Magnaud não foi simples meteoro, senão perene lua a iluminar os magistrados de todos os tempos". 23.4.7. Condições para a utilização dos recursos da Informática

A aplicação do Direito, como defendida neste livro, não se opõe à possibilidade de utilização, pelo Poder Judiciário, dos recursos da Informática de modo que possa um juiz

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do Amazonas orientar seu julgamento pelo que decidiu, em caso perfeitamente análogo, um juiz do Rio Grande do Sul.

Esses subsídios da computação eletrônica são viáveis, enquanto sejam apenas subsídios. Parece-me que, ao fornecer subsídios para um julgamento, termina a máquina seu papel. Se o precedente ajusta-se, inclusive pela condição das partes, ao novo caso, pode iluminar o julgamento a ser proferido. Se a situação não é idêntica, se aspectos particulares devem ser ponderados, o juiz afasta o precedente e profere decisão que vai criar um novo precedente. Enquanto se encara o precedente, a jurisprudência, como adjutório, seu conhecimento é útil. Recursos tecnológicos que tornem os precedentes, a jurisprudência, de uso operacional mais eficaz, colaboram na boa aplicação da Justiça. qqqqqSe, entretanto, a jurisprudência passa a funcionar como força reacionária - por um vezo de a aplaudir sem critica, ou de a recepcionar sem atenção à emergência de situações sociais novas e à ponderação de casos que devem ser subtraídos à generalidade das situações seu papel é nocivo à boa Justiça: a tecnologia, então, amplia os malefícios de uma tal postura ideológica.

Computação eletrônica de sentenças e acórdãos, para socorrer o juiz, nas suas reflexões, é uma providência útil, e não se choca com o posicionamento que defendo, desde que se encare a possibilidade de levantar precedentes como um auxílio que não dispensa o estudo de cada caso, com liberdade, independência, inteligência e criatividade. Capítulo VI CONCLUSÃO 24. OS OBJETIVOS QUE ESTE LIVRO PRETENDEU ALCANÇAR

Este trabalho começou por conceituar a Hermenêutica Jurídica, bem como a interpretação, a aplicação e a integração do Direito.

Foram vistos os diversos processos de interpretação, com a prévia advertência de que devem ser considerados como momentos do processo global interpretativo, em face do caráter unitário da atividade hermenêutica.

Estudaram-se as escolas hermenêuticas, divididas em três grupos, tomando como baliza o maior ou menor aprisionamento do intérprete ou aplicador do Direito à lei: escolas de estrito legalismo ou dogmatismo; escolas de reação ao estrito legalismo ou dogmatismo; escolas que se abrem a uma interpretação mais livre da lei.

Tentei depois dar ao tema a contribuição maior de minhas reflexões, fruto simultâneo da vivência como juiz e do labor do pensamento como estudioso da Teoria Geral do Direito. Neste esforço, propus e defendi a conveniência de ser o Direito aplicado sob uma tríplice perspectiva: a axiológica, a fenomenológica e a sociológico-política. 25. SÍNTESE DAS PERSPECTIVAS PROPOSTAS

As três perspectivas propostas neste livro, como orientadoras da aplicação do Direito, fundem-se, afinal, numa perspectiva humanística.

Pretende-se uma visão axiológica que fundamente um juízo crítico da lei, conducente a decisões conformes com a Justiça.

Partindo-se dos pressupostos de que os juizes sejam pessoas dignas, selecionadas segundo princípios éticos aceitos pelo senso comum, e de que se lhes assegure a independência - é a egemonia dos critérios axiológicos, nos julgamentos, que permitirá seja o Direito "a arte do bom e do justo".

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Como arte do bom e do justo, o Direito não poderá ser instrumento de dominação, a acirrar a injustiça, a desigual ar ainda mais os homens, a oprimir os oprimidos. Será, pelo contrário, um Direito a serviço do homem e de sua libertação.

A perspectiva fenomenológica também contribuirá para a humanização da lei: é descendo ao homem julgado, à sua pauta de valores, é reconhecendo a desigualdade econômica e cultural vigente em nossa sociedade, é tentando compreender a individualidade de cada ser, seu mundo, suas percepções, seus condicionamentos, é penetrando no campo fenomenal - que o juiz vencerá a frieza da norma jurídica, para lhe transmitir o sopro da vida.

Finalmente, também a perspectiva sociológico-política desaguará numa visão humanística da lei.

Perscrutando o Direito e a cultura popular, buscando assimilar os valores da multidão, aceitando a existência de um Direito não-formal e lhe dando guarida, vendo o Direito como fato social, reconhecendo o caráter político inerente a toda sentença e optando pelo oprimido, na escolha inafastável - o juiz, mais perto do povo, estará mais perto do Homem.

Esta posição preserva a neutralidade do juiz ante as partes, como tais, porém, nega a possibilidade de neutralidade em face dos valores jurídicos, dos valores políticos e econômicos que os infomam e dos conflitos de classe subjacentes.

Dentro da concepção que defendo atuam: como estímulos propulsores da aplicação, os valores do julgador, as percepções do homem julgado e as estimativas sociais; como ponto de convergência, a pessoa humana.

A linha de raciocínio desenvolvida coloca no centro da vida do Direito: como operador, o juiz; como destinatário, o homem julgado, sua vida, sua liberdade, sua individualidade, seus motivos.

O homem, destinatário da justiça, é também seu agente: deve ele próprio tomar consciência de sua dignidade, de seus direitos, lutando por sua própria libertação. 26. CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES

Duas ordens de considerações complementares parecem-me necessárias a fim de concluir o que se colocou nesta monografia: 1a) aquelas considerações que se referem às relações entre o papel que este livro vê destinado ao juiz e a realidade da Justiça no Brasil; 2o) aquelas que se relacionam com a missão do juiz, dentro de uma perspectiva mais ampla que, em face de uma sociedade de opressão, vê a libertação do oprimido como processo histórico de luta e de conquista. 26.1. A modernização e a democratização da Justiça como requisitos para o desempenho eficaz do papel intervencionista que cabe à magistratura 26.1.1. A realidade da Justiça no Brasil e o imperativo de mudança

Em pesquisa sócio-jurídica que realizei, verifiquei que era mau o conceito da Justiça junto à opinião pública. Não viam os respondentes que ricos e pobres fossem tratados com igualdade pela Justiça, nem percebiam a Justiça ao alcance do povo.1

Melhor que o conceito da Justiça, como instituição, era o conceito dos juizes, como tais.2

A pesquisa não foi replicada e não tenho elementos para formar convicção a respeito da situação atual.

Minha hipótese é de que as pessoas do povo não emitem hoje julgamento mais favorável a respeito das instituições judiciárias.

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1 A pesquisa foi realizada no Espírito Santo em 1976. Na sua primeira versão mimeografada foi intitulada A Junção judiciária nas comunidades interioranas. Em 1977 foi publicada pela Editora Resenha Universitária com o título: A junção judiciária no interior. Em 1993, recebe à sua terceira versão e o seu terceiro título: O Direito dos Códigos e o Direito de Vida. Revelou que 40,4% dos entrevistados, no interior, e 68,4%, na Capital, viam ricos e pobres nunca, ou só raramente, sendo tratados com igualdade pela Justiça. Apenas 24,1% dos respondentes, no interior, e 5,3%, na Capital, disseram que ricos e pobres são tratados sempre, com igualdade, pela Justiça. No interior, 60,7% dos respondentes viam a Justiça ao alcance do povo, enquanto que, na Capital, essa cifra descia para 38,6%. (Cf. João Baptista Herkenhoff, O Direito dos Códigos e o Direio de Vida. Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris, 1993, pp. 67 e segs.)

Se este livro atribui, como se viu nos capítulos anteriores, um papel sumamente relevante ao juiz, para ser conseqüente deve defender mudanças substanciais e profundas na organização da Justiça dentro do país. Não pode o juiz desempenhar a contento a missão que lhe cabe, se persistirem as estruturas esclerosadas vigentes.

26.1.2. Medidas em favor da modernização, melhoria e democratização do aparelho judiciário

Uma série de medidas são necessárias para que se tenha uma Justiça melhor e mais popular.

A democratização do ensino universitário, o acesso cada vez maior de todas as camadas do povo às faculdades, o amplo e livre debate dos temas políticos nas universidades, a participação dos jovens na vida nacional, a supressão de todas as tutelas - indevidas e intoleráveis - são fatores para a formação de quadros acadêmicos sadios e populares, dos quais deverão ser retirados os futuros magistrados.3 2. 17,7% dos entrevistados, no interior, e 42,1%, na Capital, disseram que nunca, ou só raramente, ricos e pobres são tratados com igualdade pelos juizes. 37,8% dos respondentes no interior, e 22,8%, na Capital, afirmaram que ricos e pobres são tratados sempre com igualdade, pelos juizes. 65,3% dos entrevistados, no interior, e 50,9%, na Capital, viam os juizes ao alcance do povo. Cf. João Baptista Herkenhoff, ob. cit., pp. 66 e segs. 3. A primeira edição deste livro saiu em 1979, após a defesa pública da tese de docência-livre, precedida da entrega de seu texto à Universidade, em plena vigência do Ato Institucional n° 5. As tutelas indevidas e intoleráveis são aquelas que advinham da ditadura militar então vigente. A redação original é mantida, como advertência para o caso de outras tutelas que se queiram estabelecer, sempre indevidas e intoleráveis, com qualquer nome que venham, sob que pretexto venham, porque pretextos não faltam e nunca faltaram, nem mesmo na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini, no Chile de Pinochet, na África do Sul.

A seleção dos aspirantes à magistratura deve ser feita por meio de cuidadosos concursos, transparentes e limpos.4

Em todas as etapas da seleção, quer aquelas ligadas às provas intelectuais, quer as que se destinam a verificar as condições morais e de personalidade, deve haver participação da OAB, bem mais efetiva do que a vigente, que é apenas simbólica. Ninguém mais do que a classe de advogados, por meio de seus órgãos representativos (conselhos locais e conselho federal), tem condições de fazer ressoar nos tribunais as exigências do povo, quanto a juizes selecionados segundo critérios sábios e retos.

Critérios de procedência política dos postulantes, vetos de natureza ideológica, informes secretos de organismos secretos - não são procedimentos apropriados para a seleção de magistrados.

Os informes secretos de organismos de informação do regime estavam em plena vigência quando apresentei minha tese de docência-livre, primeira versão desta obra. Mantenho a redação original (1a edição, p. 94), como testemunho de que a palavra de repúdio foi dita no momento exato, perante minha universidade e a comunidade. Como as

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práticas ditatoriais sempre podem ameaçar qualquer povo, é preciso fortalecer a consciência democrática. Assim, os liberticidas não cometerão seus crimes sem a censura de, pelo menos, uma parte da opinião pública. Condenados pela História não tenho dúvida de que estes sempre serão.

4 De muita valia são os cursos de preparação para a carreira de magistrado, que deveriam ser sempre gratuitos, estipendiados pelo Poder Público pelo menos para os canditados pobres. O conhecimento da Deontologia Jurídica, especialmente dos princípios ligados à própria •ética da função judiciária, deveria integrar o elenco das matérias exigidas. Um inquérito sobre a vida do candidato, a exigência de assinaladas virtudes humanas e morais e de requisitos de personalidade são condições indispensáveis.

Realizados os concursos, as nomeações devem seguir a ordem rigorosa de

classificação. Depois que o juiz entra no quadro, é preciso desatrelar a carreira da influência da

pequena política. As promoções, no quadro, deveriam ser precedidas de concurso público de títulos

e de provas. Desses concursos deveria participar, com peso considerável, a OAB, pelas mesmas razões já assinaladas, que justificam a presença da classe de advogados no processo de recrutamento de juizes.

Os concursos buscariam apurar a operosidade do juiz, sua residência na Comarca, o cuidado de suas sentenças, sua dedicação aos estudos, seus escritos e publicações, cursos de aperfeiçoamento que tenha freqüentado, seu comportamento moral, social e humano etc, etc.

Para acesso aos tribunais, por merecimento, deveria ser exigido o requisito de atualização intelectual do juiz, nos últimos cinco ou dez anos anteriores à investidura (publicação de livros, ou concurso para o magistério universitário, ou curso na Escola Superior da Magistratura, ou cursos de pós-graduação, ou fatos semelhantes).

Adotados critérios predeterminados, eficientes, honestos, igualitários, democráticos, o sistema de promoções alternadas por "antigüidade e merecimento", deveria ser substituído por duas promoções por merecimento, seguindo-se a terceira por antigüidade.7 5 A Constituição de 1988 reforçou o princípio contido no inciso II do art. 125 do Código de Processo Civil. O inciso II do art. 125 do Código de Processo Civil diz que compete ao juiz velar pela rápida solução do litígio. O art. 93, inciso II, da Constituição torna obrigatório, na aferição do merecimento, para promoção dos juizes, dentre os critérios previstos, o da presteza no exercício da jurisdição. Tanto o Código de Processo Civil quanto a Constituição tornam-se letra morta se não se criam mecanismos capazes de controlar a operosidade e a presteza dos juizes. O preceito torna-se vazio quando se deixa essa aferição à pura subjetividade dos escalões com poder de efetuar as promoções. E mais ainda. É totalmente desestimulante para os juizes responsáveis e trabalhadores a substituição dos critérios de julgamento honesto do mérito por critérios de mero protecionismo, afilhadismo ou nepotismo. 7 Discutindo os critérios de promoção de juizes, nota Mário Guimarães que o critério de antigüidade preserva melhor a independência do magistrado, enquanto o critério de merecimento pode permitir a escolha dos melhores. Quanto ao inconveniente das promoções postuladas pelos próprios interessados, pensa o autor que o mal pode ser obviado pelos próprios desembargadores e conselhos disciplinares. Cf. Mário Guimarães, O Juiz e a Função Jurisdicional, Rio de Janeiro, Forense, 1958, pp. 117 e segs.

Quanto à remoção de juizes, deveria ser mero ato de rotina, por simples critério de antigüidade, através de resoluções baixadas pelos presidentes dos tribunais. Preceitos constitucionais devem impedir o nepotismo nos tribunais.

O contínuo aperfeiçoamento cultural e humano dos juizes é imperativo para que se alcance uma justiça melhor. Abertura ampla de oportunidades de crescimento cultural através de cursos e congressos, estímulo ao estado e à publicação de trabalhos, intercâmbio de experiências - são medidas e esforços para o objetivo aprimorador.

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A Justiça, como posta atualmente, está mal equipada, mal instalada, juizes com excesso de trabalho, processos acumulando.

A acumulação de serviço impede o juiz de realizar uma magistratura criativa, pois estimula a rotina. O juiz é transformado em máquina de emitir despachos e sentenças. Seria necessário simplificar as formas processuais, facilitar o encerramento liminar de processos criminais (a exemplo do que ocorre nos processos cíveis com o julgamento antecipado da lide), descriminalizar condutas, modernizar os serviços forenses, colocar a técnica e o progresso dentro do aparelho judiciário, ampliar o quadro de juizes e pessoal auxiliar segundo critérios científicos de administração. Suponho que o concurso, a partir de critérios preestabelecidos, em vez de escolhas arbitrárias, é o melhor remédio contra protecionismos e injustiças por parte do órgão que vá decidir sobre as promoções.

Seria desejável a ampliação da participação popular na Justiça. Com coragem e criatividade, muitas experiências de tribunais leigos poderiam ser

realizadas, no julgamento de matérias que não exijam a presença do juiz togado. O júri, aperfeiçoado e modernizado, deveria ter competência mais extensa.

Também seria preciso haver alguma forma de controle do povo sobre o Poder Judiciário.11

Impõe-se vencer os preconceitos contra a presença da mulher nos quadros da magistratura. As restrições contra a mulher diminuíram mas não acabaram. Há tribunais onde não há uma única mulher.

A ausência da mulher, nos diversos escalões da Justiça não apenas atenta contra o direito de possíveis postulantes. Atinge toda a população feminina, que se vê violentada sob o julgamento exclusivamente de homens.

Um processo contínuo de novas experiências, de autocrítica, de debate público deveria buscar o melhoramento permanente da Justiça, rechaçando-se o imobilismo, a rotina, o conservadorismo, a falta de criatividade que sufocam a máquina judiciária e impedem a Justiça de exercer qualquer papel progressista dentro da sociedade brasileira.12 O Código de Processo Civil tem remédio para pôr cobro, célere, à demanda temerária. O Código de Processo Penal, que tutela direitos humanos bem mais sagrados do que aqueles tutelados pelo Código de Processo Civil, não imaginou fórmulas legais com o mesmo objetivo. Mas não será por imprevidência do legislador que o juiz ficará de braços amarrados, condenado à máxima fulminante dos romanos: summum jus, summa injuria. (Cf. João Baptista Herkenhoff, Uma Porta para o Homem no Direito Criminal, Rio de Janeiro, Forense, 1980, pp. 135-136.) 11 "O juiz (...) não é eleito pelo povo e, uma vez instituído no cargo, fica imune a todo e qualquer controle por parte da sociedade. Seus abusos e desvios, só, por eles próprios, juizes, podem ser corrigidos, mas o que a experiência mostra é que se cria um sentimento de autoproteção institucional, que bloqueia, mesmo os melhores intencionados, no efetivo exercício do poder disciplinar que lhes é deferido. Daí ser indispensável, em benefício da própria credibilidade do Poder Judiciário e de sua legitimidade política, submetê-lo a controles similares aqueles previstos constitucionalmente para o Poder Legislativo e para o Executivo." Cf. J. J. Calmon de Passos, "Entrevista", inA Gazeta, Vitória, 21 nov. 1984, p. 12. 12 A Constituição de 1988 ampliou o campo de ação do Poder Judiciário, bem como as possibilidades de acesso dos cidadãos à prestação jurisdicional. Pressionada pela sociedade civil, sacudida pelas emendas populares, aturdida pelos reclamos das OABs, interpelada por congressos e seminários, a Constituinte votou um texto que abriu caminhos para o exercício coletivo dos direitos processuais. São exemplos de conquistas a criação do mandado de segurança coletivo, do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade. Deu-se também maior abertura à ação popular. Dentro do novo quadro constitucional, avulta em importância a prerrogativa e o dever instituídos pelo art. 125, inciso III, do Código de Processo Civil, como inerentes à competência dos juizes: "... prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Justiça". O atendimento do alcance deste comando legal e a sua equilibrada, mas firme aplicação,

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pelos juizes, propiciará instrumento eficaz na repressão de abusos que tanto têm comprometido a respeitabilidade do Poder Judiciário. 26.1.3. O poder das minorias como instrumento transformador

À margem das estruturas e das cúpulas, acredito na possibilidade de aglutinação, em nível nacional, de juizes e outros juristas que compartilhem de uma visão transformadora do mundo e que acreditem possam contribuir para aproximar o Direito do povo -um Direito a serviço das maiorias, a serviço das profundas mudanças que o país reclama.

Em todas as instituições, creio que possa haver uma missão, que se poderia chamar de profética, a ser assumida pelas minorias. Ainda que essas minorias não façam prevalecer seu credor e seus valores, a existência delas, como a voz de todas as vanguardas, tem um papel político da maior importância. As minorias abraâmicas, a que se refere Hélder Câmara, ou gedeônicas, como quer Pedro Casaldáliga, constituirão sempre uma provocação, às consciências; um questionamento ao secularmente estabelecido, um fermento revolucionário. Só essas minorias são capazes de entender as maiorias silenciadas, reduzidas à condição de minorias pela força que lhes cala o clamor da Justiça. 26.2. A Justiça, o juiz e a libertação do oprimido 26.2.1. A Justiça como instrumento de libertação

O oprimido deve ser agente de sua própria libertação. Uma Justiça paternalista não se ajusta a essa visão. Uma Justiça aberta ao oprimido viabiliza uma libertação parcial, ou seja, a superação das injustiças que possam ser vencidas com o instrumental legal existente. A busca da Justiça, pelo oprimido, implica conscientização de sua condição de oprimido. A Justiça posta pelo opressor não pode servir ao oprimido. A Justiça não pode estar vinculada ao opressor. Uma Justiça popular pode ser libertadora, na medida em que a libertação possa ser feita através do instrumental legal. Com mais freqüência, a lei sanciona a opressão. A proporção que o oprimido possa ter participação na feitura da lei, a lei pode viabilizar reivindicações dos oprimidos e representar uma superação das situações de opressão. Será o caminho da libertação pela pressão.

Como a lei, a Justiça pode ser veículo de libertação dos oprimidos, desde que os oprimidos possam ter acesso gratuito aos tribunais, voz perante a Justiça, advogados vinculados à causa da libertação,15 juizes não comprometidos com os opressores. Uma Justiça assim pode representar um importante papel de libertação do oprimido pelo caminho da não-violência. Será anão-violência dos oprimidos vencendo a violência institucionalizada dos opressores.

Para que a Justiça não seja a justiça dos opressores, é preciso que ela seja independente. Justiça sem garantias é Justiça subordinada ao mandonismo, aos poderosos do dia, ao capricho dos áulicos. Justiça independente é Justiça com possibilidade de ser Justiça do povo. 15 Para tornar efetiva a igualdade das partes, em juízo, a Constituição vigente manda que o Estado preste assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5°, inciso 74).Essa garantia socorre brasileiros e estrangeiros, como observa Pinto Ferreira, ao comentar a Constituição de 1988. (Ver: Pinto Ferreira. Comentários à Constituição Brasileira, São Paulo, Editora Saraiva, 1989, vol. I, p. 215.) Complementando esse princípio, a Constituição define a Defensoria Pública como órgão incumbido da orientação jurídica e da defesa dos necessitados, em todos os graus da engrenagem judiciária. Afirma que a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado (art. 134).

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26.2.2. A salvação do Direito pela arte do juiz

Não se defende a idéia de que o atual sistema jurídico, mesmo aperfeiçoado, seja satisfatório para que o juiz, por meio de uma interpretação humanística, realize a Justiça. Reconheça-se que toda uma legislação individualista, consagradora de privilégios, arcaica, antipovo, martiriza as grandes maio rias, acorrentando-as a um circulo vicioso de miséria insuportável, geração sobre geração.

Fique claro que para imperar a Justiça, elementos outros, mais profundos, são requeridos, a começar por uma nova formulação das relações econômicas, uma vez que a injustiça básica decorre das relações de exploração, tanto em nível nacional quanto em nível internacional e, às vezes, em ambos os níveis concomitantemente, por força de alianças espúrias.

Observou, com agudeza, Osny Duarte Pereira, comentando este livro, na sua 1ª edição: "Não pode o juiz, com paternalismo, gerar na comunidade a perigosa convicção de que as leis são boas e que seus intérpretes, por vezes, não prestam." Afirmamos, contudo, que o sistema legal vigente pode ser menos desumano, menos distante do povo, através da arte e da consciência do juiz.

Ou se terá um Direito mais justo, pela atuação do juiz, ou não se terá nada. Em outras palavras: se o juiz falhar na sua missão de humanizar a lei, de descê-la ao homem julgado, de fazer a leitura da lei a partir dos autênticos valores da cultura popular, de explorar as contradições do sistema legal em favor das maiorias deserdadas pela lei, nada restará de útil, socialmente útil, na lei. 26.2.3. Em busca de um Direito da libertação

Este livro, ao ser reescrito para a 3a edição, termina com reflexões que não concluo, reflexões que tiveram sua semente em outras reflexões, e que já foram expressas, na sua gestação e desenvolvimento, quer na 1a e 2a edições desta obra, quer em outras publicações, reflexões vivenciadas e sofridas, na prática do Direito, como juiz, e na prática da luta, ao lado do povo, como membro da Comissão Justiça e Paz, da Arquidiocese de Vitória.

Há um desafio para juizes e juristas em geral que se queiram colocar ao lado das maiorias oprimidas, como colaboradores do projeto histórico das classes populares. Como fruto desta aliança, delineia-se um novo papel no qual se verá: juizes e juristas aceitando a provocação de uma nova leitura da lei, de uma desmistificação de seu pretenso papel de harmonia social numa sociedade desarmônica e visceralmente opressora; juizes e juristas recusando a suposta neutralidade da lei e de seus agentes, neutralidade que cimenta e agrava as injustiças estabelecidas;20 20 ' 'Não existe terceiro neutro, só existe uma idéia de Justiça que se vai sedimentando na história e que está a serviço de uma ordem posta, e outra idéia de justiça que está a serviço da contestação, da mudança. Mais simplesmente, existe uma justiça do opressor e outra do oprimido." Cf. Roberto A. R. de Aguiar, Oqueé Justiça, São Paulo, Ed. Alfe-ômega, 1982, p. 72.

juizes e juristas comprometidos com o futuro, não com o passado, com a busca apaixonada da Justiça, não com as cômodas abdicações, com a construção de um mundo novo, não com a defesa de estruturas que devem ser sepultadas;

juízes e juristas atentos aos gemidos dos pobres, insones ante o sofrimento das multidões marginalizadas;

juízes e juristas que morram de dores que não são suas,21profetas da Esperança, bem-aventurados por terem fome e sede de Justiça;

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juízes e juristas que nunca lavem as mãos, em tributo à omissão, mas que desçam ao povo, que sejam povo;

juizes e juristas, operários do canto;22 crentes da utopia que a força do povo constrói;

juízes e juristas que se recusem a colocar amarras, impedir vôos, compactuar com maquinações opressivas;

juízes e juristas que abram as janelas ao Amanhã e construam, sem se deter ante martírios que lhes impuserem, o Direito da libertação. 21 "Esta sensibilidade, que é uma antena delicadíssima, captando pedaços de todas as dores do mundo, e que me fará morrer de dores que não são minhas" (Do poema "Fraternidade", de Newton Braga. Cf. Newton Braga, Poesia e Prosa, Rio de Janeiro, Ed. do Autor, s/ano, p. 29.) 22 "Operário do canto, me apresento Sem marca ou cicatriz, limpas as mãos, minha alma limpa, a face descoberta, aberto o peito, e - expresso documento -a palavra conforme o pensamento.'' Cf. Geir Campos, Operário do Canto, Rio de Janeiro, Antunes & Cia., 1959, p. 3.

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Apêndice

ENTREVISTA CONCEDIDA PELO AUTOR AO JORNAL A GAZETA, DE VITÓRIA, POR OCASIÃO DO LANÇAMENTO DA 1a EDIÇÃO DESTE LIVRO"

JOÃO BAPTISTA HERKENHOFF: JUIZ ACOMODADO ESTÁ SERVINDO ÀS FORÇAS

SOCIAIS DOMINANTES

O Juiz de Direito João Baptista Herkenhoff tornou-se conhecido da população da Grande Vitória no início de 1975, quando a imprensa divulgou a sentença pronunciada por ele no julgamento da empregada doméstica Neuza Fernandes, que ficou presa três meses por ter sido denunciada à polícia por sua patroa que acusara Neuza de ter furtado 150 cruzeiros. Eis a íntrega da sentença:

"Considerando o pequeno valor do furto; considerando o minúsculo prejuízo sofrido

pela vítima que, a rigor, se o Cristo não tivesse passado inutilmente por essa terra, em vez de procurar a polícia por causa de 150 cruzeiros, teria facilitado a ida da acusada para Governador Valadares, ainda mais porque ela havia revelado sua inadaptação a esta cidade, certamente inadaptação maior no próprio lar, por causa do padrasto; considerando que a acusada é quase uma menor, pois mal transpôs o limite cronológico da irresponsabilidade penal; considerando que o Estado processa uma empregada doméstica que lesa seu patrão em 150 cruzeiros, mas não processa os patrões que lesam seus empregados, que lhes negam salário, que lhes furtam os mais sagrados direitos; considerando que o cárcere é um fator criminogênico e que não se pode mais tolerar que autores de pequenos delitos sejam encarcerados para nessa universidade do crime adquirirem, aí sim, intensa pericu-íosidade social; relaxo a prisão de Neuza Fernandes, determinando que saia deste Palácio da Justiça em liberdade. Lamento que a Justiça não esteja equipada para que o caso seja entregue a uma assistente social. Se assistente social não tenho, tenho o verbo, e acredito no poder do verbo, porque 'o verbo se fez carne e habitou entre nós'".

João Baptista Herkenhoff é autor dos seguintes livros: Como Aplicar o Direito, A

Função Judiciária no Interior, O Ensino de Organização Social e Política do Brasil na Escola de Grau Médio, Na Tribuna do Ministério Público, Considerações sobre o Novo Código de Processo Civil (este premiado no Rio Grande do Sul com o prêmio André da Rocha). Publicações nas revistas: Encontros com a Civilização Brasileira, Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, Revista Forense, Revista Ajuris, Revista Litis, Revista de Informação Legislativa do Senado Federal.

Ele concedeu entrevista aos repórteres Amylton de Almeida, Júlio Fabris, Glecy Coutinho e Tinoco dos Santos.

TINOCO — Para começar, o senhor fale alguns aspectos da sua vida, do início de sua vida. HERKENHOFF — Eu nasci em Cachoeiro de Itapemirim, modéstia à parte. Estudei em Cachoeiro até o curso médio, depois, fiz o curso de Direito na Faculdade de Direito do Espírito Santo, casei-me etc. TINOCO — Depois, veio para Vitória? HERKENHOFF — Não. Vim para Vitória recentemente. Fiquei em Cachoeiro até meu ingresso na carreira de Juiz, em 1966.

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TINOCO — O Curso de Direito, o senhor fez lá ou em Vitória? HERKENHOFF — Direito eu fiz em Vitória, a faculdade de Cachoeiro é recente. Meu curso de Direito eu fiz aqui, ficava na casa de meu tio, Augusto Lins, irmão de minha mãe. TINOCO — O senhor não disse o ano em que nasceu. HERKENHOFF— 1936. AMYLTON — O Senhor foi professor, não? HERKENHOFF — Eu ainda sou professor. Desde muito tempo, desde os 17 anos de idade. Exerci o magistério ininterruptamente até hoje. Na carreira jurídica, eu fui advogado, depois fui promotor de justiça. TINOCO — Em Cachoeiro? HERKENHOFF — No Estado, fui promotor substituto, não cheguei a ter uma comarca minha porque logo saí da função de promotor. Vi que não era minha vocação. Fui Juiz do Trabalho e depois ingressei na justiça comum. Eu preferi esta. JÚLIO — Qual a razão de o senhor ter optado pela justiça comum? HERKENHOFF — A Justiça do Trabalho é uma justiça especializada. Na Justiça do Trabalho, resolvem-se as questões especificamente trabalhistas. Na justiça comum, eu achava que iria abarcar uma realidade humana e social bem mais ampla. Nisso não vai nenhum demérito à Justiça do Trabalho, mas achei que a justiça comum seria bem mais ampla, e me daria uma realização maior. Como juiz, em 1976, no dia em que meu filho fez 5 anos, passei a juiz de Vitória. Atualmente sou juiz da Ia Vara Criminal de Vila Velha, Então, na carreira de juiz, passei por 16 comarcas no interior do Espírito Santo. TINOCO — Além da parte profissional, fale sobre a família. HERKENHOFF — Somos 11 irmãos, uma irmã morreu antes do meu nascimento e um irmão morreu num acidente, Pedrinho, que iria ser Secretário de Educação. Morreu alguns anos atrás. Os outros estão em Cachoeiro, em Vitória tenho um irmão, e uma irmã no Estado do Rio. TINOCO — Tem alguém mais na Justiça? HERKENHOFF — Não. Além de mim, sé meu avô do lado materno, que também era juiz. Tenho um irmão que é advogado, e um tio também. TINOCO — Na família não existe assim uma espécie de tradição em ser juiz... HERKENHOFF — O precedente de profissão jurídica seria esse avô, pai de minha mãe, que foi juiz. E que exerceu influência sobre mim, porque eu tinha bastante estima e uma admiração muito grande por ele. TINOCO — O que o senhor apreendeu da atuação dele como juiz?

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HERKENHOFF — Eu já o conheci aposentado, mas era o secretário dele quando criança. Eleja não lia muito bem e eu lia para ele, e gostava muito de dar essa ajuda. TINOCO — Textos jurídicos? HERKENHOFF — Textos jurídicos e outros. No final da vida, na velhice, ele se entusiasmou muito pelos ideais pacifistas, e inclusive escreveu sobre isso um livro, O Sol do Pacifismo. E eu li muita matéria de Sociologia, Direito Internacional e me lembro de que a figura dele marcou muito minha infância. TINOCO — Como era o nome dele? HERKENHOFF — Pedro Estellita Carneiro Lins. Esse então foi o precedente de profissão jurídica. O meu irmão mais velho também é advogado, e eu sou o irmão mais novo. JÚLIO — Em Cachoeiro, os Herkenhoff são conhecidos assim como uma família de tradição cultural? HERKENHOFF — E... porque temos uma escola, e é a escola mais antiga de Cachoeiro, o mais antigo estabelecimento de ensi- no médio. Foi fundada em 1932. E meus irmãos, sobrinhos se dedicam muito a isso... AMYLTON — O senhor lançou agora um livro de Direito, baseado numa tese acho que inédita. Que não existe um julgamento sem axiologia, sem um posicionamento do juiz. Que o juiz deve se posicionar mais sobre o meio ambiente da pessoa julgada, suas condições sócio-econômicas. O senhor poderia explicar melhor esse posicionamento, como o senhor chegou a isso? HERKENHOFF — Deveria, primeiramente, a respeito desta observação, dizer, sem nenhuma modéstia, mas simplesmente com rigor científico, poderia dizer que não ofereço uma coisa absolutamente inédita. Eu acredito que talvez o que haja de contribuição minha, neste trabalho escrito, seja mais reunir muita coisa e encaixar minhas idéias, e, no final, o produto acabado é meu porque ele representou algum avanço. Mas é muito difícil você dizer assim, até que ponto, isso é quase que mais um trabalho para a crítica, do que para a gente mesmo proclamar, porque nas coisas que escrevemos, que pensamos, existe influência de muitas correntes, de muitas escolas, de muitos autores, então fica até um pouco difícil dizer até que ponto e em que medida houve contribuição pessoal. JÚLIO —Quais as... TINOCO — Ucença, olha, eu acho que é melhor ele falar sobre a tese que a gente colocou. HERKENHOFF — Exatamente, depois eu responderia ao Júlio Fabris. AMYLTON — Eu estou querendo dizer inédito porque o posicionamento do senhor como juiz, nessa época que a gente vive, é que é inédito. Nessa época de obscurantismo jurídico e científico. Então eu acho que o senhor adotando esse posicionamento ele é inédito nesse sentido. O senhor concorda? HERKENHOFF — Eu diria que entendi o seu conceito de inédito, e entendi porque você diz inédito. Mas a observação que eu queria fazer é a de rigor científico. A gente não está

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querendo dizer que descobriu a pólvora. Sofri muitas influências. O trabalho como um todo é uma criação. Mas não é uma criação do nada. É uma criação que vem de muitas coisas, para mim, é uma criação e até nesse ponto vira inédito, porque esse trabalho que acabo de escrever não foi resultado apenas de estudo. Ele foi mais resultado de vivência do que de estudo. Realmente esse trabalho, o fato de escrever esse trabalho resolveu para mim um problema existencial. Foi fruto de uma reflexão de longa data. Esses dogmas... de... aplicação do direito... discutidos... em obras clássicas por autores de nomeada, essas idéias não me satisfaziam como juiz... Sentia que era preciso... realizar uma justiça mais liberta... uma justiça não apenas ciência mas arte, e... queria encontrar uma explicação teórica para isso. E o direito é uma ciência, e como ciência ela tem de ter metodologia, de modo que... eu não posso ser um julgador arbitrário e dizer: eu julgo assim porque eu quero julgar assim, eu tenho de ter uma fundamentação teórica para o meu trabalho, como qualquer outro profissional tem de ter uma fundamentação teórica. Se eu não tenho uma fundamentação teórica para o trabalho que eu realizo, o meu trabalho é um trabalho empírico. Toda a fundamentação teórica que havia não me satisfazia. E não realizava a minha consciência de juiz; então eu proferi às vezes julgamentos, no início de minha carreira, e mesmo recentemente, que eram resultado de minha consciência, mas para os quais não tinha uma fundamentação completa. Então eu dava determinadas sentenças mas nem sempre tinha uma explicação e fundamentação acabada para essas sentenças. E o trabalho agora vindo à publicação resolveu o problema para essa angústia existencial. Eu acredito que esse trabalho, pelo menos hoje, responde teoricamente a essa visão de justiça. Esse trabalho hoje teoricamente justifica posicionamentos que eu venho adotando na minha prática judiciária. Esse trabalho, se não tiver nenhum mérito, a mim ele me satisfaz intelectualmente e existenci-almente. E foi a resposta teórica encontrada e aí é o cerne de sua pergunta. A resposta encontrada é de que... como o próprio subtítulo da tese diz, a aplicação do direito deve ser realizada con-comitantemente sob uma tríplice perspectiva: perspectiva axiológica, perspectiva fenomenológica, perspectiva sociológico-política. Então a perspectiva axiológica. Nós encontramos nas bibliotecas inúmeros livros que dizem o seguinte: O juiz não tem valores, os valores do juiz são os valores da lei, o juiz simplesmente explicita numa sentença os valores do legislador. O juiz é ideologicamente neutro. Então, dentro dessa posição muito cômoda, o juiz simplesmente não tem de fazer nenhuma espécie de opção. Os valores são da lei e ele não tem nada com isso. Então dentro dessa visão havia sentido para a seguinte confissão: Eu lamento dar essa sentença, essa sentença é injusta, mas eu tenho de me render à lei. Ora, eu sempre achei muito estranho que um juiz após dar uma sentença declarasse que cometeu uma injustiça. Que deu uma sentença injusta e apenas se defendia dessa conclusão dizendo que tinha de se render à lei. Então eu comecei a pensar nisso aí, pensei muito, e parece que a lei tranqüilamente, em qualquer sociedade, é o fruto das classes dominantes naquela sociedade. A lei é o produto acabado das forças... sociais imperantes. O sociólogo Georges Ripert desenvolveu o tema com absoluta autoridade. Então, quando o juiz diz que não tem valores, diz que o julgamento dele é neutro, ele está assumindo valores bastante nítidos, ele está assumindo valores de conservação, porque a lei estabiliza as relações sociais. A lei às vezes dificulta as relações sociais, porque as mudanças sociais se processam antes da lei. A mudança social está sempre adiante da lei em qualquer campo das relações humanas. Para citar apenas um exemplo, no Brasil, a condição da mulher: depois, muito depois que a mulher adquiriu o direito de reger sua vida, depois que se emancipou é que veio recentemente o estatuto da mulher casada. Então muito depois da mudança social é que vem a lei. E em inúmeros outros campos a lei está sempre a reboque da mudança social. Então o juiz, que se posicione caudatário da lei, ele exerce dentro da sociedade um papel conservador, um papel reacionário. Não seria somente conservador, seria reacionário, ele

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estaria sempre se opondo às mudanças sociais. E o juiz que subscrevesse essa tese de que os valores do juiz são os valores da lei, teria, ao agir assim, assumido uma posição profundamente conservadora. Então já estaria negada a idéia de que o juiz não tem valores. O juiz sempre tem valores. Ou de um jeito ou de outro ele sempre tem valores. Nós temos um grande jurista sul-americano, Eduardo Couture, que diz que "todo julgamento é político". Realmente, todo julgamento tem um teor político, e então refleti que o juiz sempre tem valores, toda sentença é marcada por valores, e acho que o juiz tem de ter simplesmente a sinceridade e estar na posição cientificamente verdadeira e reconhecer essa impossiblidade de sentença neutra, sem valores. A sentença será sempre marcada por valores e acho muito certo. Acho que o juiz tem de ter seus valores, na sentença... ele os afirma sempre, a novidade é reconhecer que afirma, e como pode afirmar valores de conservação pode também afirmar valores de mudança. Porque dizer que não tem valores é simplesmente bandear para os valores de conservação. TINOCO — Para complementar sua resposta a respeito de influência eu queria perguntar então até que ponto o juiz teria independência para assumir valores de mudança. HERKENHOFF — Evidentemente existem dificuldades, mas é um desafio à inteligência, à criatividade e à coragem do juiz. A objeção que você levanta é realmente uma dificuldade. Mas não me parece que seja uma dificuldade intransponível. O juiz pode assumir uma filosofia progressista e pode desempenhar, a meu ver, um papel progressista dentro de uma sociedade. Para exercer esse papel progressista, o desafio que lhe será apresentado aparecerá na medida de cada situação, na emergência de cada problema. Talvez não pudesse ser uma regra geral. E como o juiz responderia esse desafio de ser uma força progressista dentro da sociedade? A gente poderia talvez fixar umas balízas gerais. Um juiz para exercer uma força progressista dentro da sociedade tem de ser aberto ao mundo, tem de se esforçar por ampliar sempre uma cultura multidisciplinar. Jamais pode ser um homem de uma ciência só. Jamais poderá ser um jurista apenas, no sentido de especialista do direito. Tem de ser sociólogo, cientista político, economista, enfim ele tem de se abrir a interesses e a problemas os mais diversos a fim de que sua judicatura seja progressista. Essa poderia ser uma das balizas para que o juiz exercesse o papel progressista que entendo que ele deva adotar. JÚLIO — As próprias leis não teriam de ser mudadas, para que ojuiz pudesse ter mais liberdade na hora de aplicá-las? HERKENHOFF — Não me parece que exista necessidade de uma mudança nas leis para que o juiz tenha mais liberdade de aplicá-las. TINOCO — O senhor disse que obviamente as leis são um produto da classe dominante. Como é possível o juiz ser independente diante desse fato? Aí entraria a pergunta, não seria necessário modificar as leis? HERKENHOFF — Exatamente. O papel do juiz está em debate, ele está no meio de um embate de forças sociais. O juiz que está tranqüilo no seu canto, está servindo às forças sociais dominantes. Na medida em que ele assume a consciência da possibilidade e do dever de exercer um papel político dentro da sociedade... essa política no sentido rigoroso, técnico... no momento em que ele assume a consciência de que pode e deve exercer um papel político, fará mudanças sociais a despeito das leis. A medida que há a emergência de determinadas classes, à medida que o poder de determinadas classes se faz mais forte, isso terá de obviamente influir nas leis. Para citar um exemplo atual. No momento em que o operariado entra em greve e se acirram as lutas por melhoria de

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salários; no momento em que há uma emergência das forças trabalhistas deste país, esse fato terá de forçosamente influir no sistema global do País, então há mudanças nas leis. E uma conseqüência das mudanças sociais, e as mudanças sociais terão de afetar as leis. Mas acho que essa era a objeção da Glecy, se para desempenhar um papel progressista o juiz precisa depender das mudanças de leis, se um papel progressista exige o placet do legislador, ou se o juiz já poderia exercer um papel progressista sem o placet do legislador. Eu acredito que é uma posição hermenêutica, é uma posição do juiz diante da lei. Parece-me que o juiz pode exercer um papel progressista independente da lei. Ele não precisa do beneplácito da lei para exercer um papel progressista. O Judiciário é um poder do Estado. No próprio âmbito do direito brasileiro, há aberturas para que o judiciário exerça o papel progressista que às vezes vem exercendo. Afirmo isso sem prejuízo do reconhecimento da necessidade da ampliação dos direitos das maiorias espoliadas, no campo da lei. JÚLIO — As leis são suficientemente flexíveis para que o juiz tenha liberdade? HERKENHOFF — Eu acredito que pelo menos poderia haver um campo de atuação renovadora muito mais amplo do que o que é ocupado. Há pesquisas sociológicas feitas não só no Brasil mas em outros países mostrando a tendência do judiciário para uma aceitação, por exemplo, da jurisprudência. Há uma pesquisa, feita por um alemão chamado Ralf Dahrendorf, mostrando que lá na Alemanha os juizes tendem a julgar de acordo com a jurisprudência dominante. Há uma tendência da maioria dos juizes para acolher a jurisprudência dominante. Nada obriga os juizes a acolher a jurisprudência dominante. Nem mesmo a chamada súmula do Supremo Tribunal Federal obriga. O juiz não está obrigado a decidir de acordo com a súmula. Ojuiz pode exercer um papel critico da jurisprudência dominante. Vou citar um exemplo: já entrou na súmula da jurisprudência dominante que a identificação criminal é obrigatória. Qualquer um de vocês, se atropelar uma pessoa, mesmo que a pessoa entre debaixo do carro, e venha a ser ferida, será aberto um inquérito contra você. Vocês serão processados, as fichas de vocês irão para o computador e, conforme seja a catalogação das fichas, vocês po- derão ser vizinhos de fichas de um assaltante a mão armada com mais de 20 assaltos. Terão identificação criminal compulsória. O Supremo Tribunal acolheu isso por súmula. A tendência dos juizes é acolher não só a súmula mas também... GLECY — Quer dizer que alguém que atropela uma pessoa, casualmente, pode ser vizinho de ficha de Michel Frank? HERKENHOFF — Isso é a identificação criminal compulsória. De minha parte recuso-me a decidir de acordo com a súmula. Eu acho uma terrível violência obrigar o indivíduo a ser criminal-mente identificado porque está simplesmente respondendo a um inquérito, identificado criminalmente na fase de inquérito, nem é processo ainda. Ora, isso é apenas para citar um exemplo, para mostrar que até mesmo no âmbito da jurisprudência que tem maior solidez, julgamentos que foram incluídos numa coisa chamada súmula do Supremo, ou seja, síntese das decisões do Supremo - mesmo diante de uma súmula, o juiz não precisa se render, ele permanece em aberto para refletir sobre sua sentença e buscar com paixão a justiça. Aí está o choque entre o valor justiça e o valor segurança jurídica. Segurança e justiça são valores que se opõem. Se quiséssemos buscar mais segurança quereríamos mais uniformidade. Decisões mais previsíveis. Mas esse desejo de decisões mais previsíveis, mais uniformes, choca-se com os ideais de justiça. Porque a justiça tem de compreender o ine-ditismo da vida, a mudança contínua da vida. A vida é dinamismo, a vida é mudança, a vida é ineditismo, a vida é variedade. Para atingir esses valores e ter direito a esses valores terá de se sacrificar a segurança. Entre a justiça e a segurança,

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entre esses dois valores eu me inclino tranqüilamente pela justiça. Acho o valor justiça muito mais importante que o valor segurança. Então, retornando à pergunta do Fabris, eu acho que as leis serão conquistadas à medida que o povo participa do processo político... ele acertará, ele atuará na mudança das leis. A medida que uma sociedade se democratize, que as forças populares se organizem, essas forças populares terão poder para exercerem in- fluência na feitura das leis e isso é absolutamente benéfico... uma sociedade em que as leis sejam feitas por representantes do povo. Com a participação de toda a sociedade civil. E altamente benéfico que numa sociedade os mais diversos grupos se organizem e influam na feitura das leis. As leis não podem ser privilégio de umas poucas pessoas, as leis não podem ser de cima para baixo. Então, tanto mais sadia será uma sociedade quanto nela mais participa o povo na feitura das leis. Não somente através de seus representantes eleitos, mas também através de uma sociedade civil estruturada, organizada, associações de classes, associações de bairros, enfim todas as forças vivas na sociedade devem atuar na elaboração das leis. Mas por si só, mesmo sem essa mudança da lei, o juiz pode assumir um papel progressista. Dentro da abertura existente no Direito brasileiro, hoje, por exemplo, parece-me que o juiz possa exercer um papel muito mais criativo, muito mais progressista do que aquele que lhe seria imposto por uma estrutura conservadora. JÚLIO — Eu queria lembrar o caso Aézio, lá do Rio. Ojuiz Mé-lic Urdan suplantou as normas tradicionais e tomou posição... HERKENHOFF — Perfeitamente. Eu acho que a posição dele está certa, porque há um princípio de direito aí, e nisso está a arte de julgar... Ele, na verdade, vitalizou um preceito constitucional que diz que ' 'nenhuma lesão de direito individual pode ser subtraída à apreciação do Poder Judiciário". No momento em que o Ministério Público, quer dizer, o promotor, fosse dono da ação penal, a tal ponto que a vontade de um promotor, simplesmente, a vontade do Ministério Público fechasse a possibilidade da ação penal, estaria se tornando letra morta o princípio constitucional que diz que "nenhuma lesão de direito pode ser subtraída ao Poder Judiciário". O artigo que contraria esse preceito constitucional é um artigo fascista. Não se pode admitir que esteja na mão do governo abrir processos contra alguém. Se o governo, o Ministério Público (embora o promotor seja independente, mas ò chefe do Ministério Público é um cargo de confiança do Poder Executivo)... então se o promotor deixa de apresentar denúncia... no caso, o promotor pede arquivamento... do inquérito, o juiz nega esse arquivamento, o processo sobe para o Procurador-Ge-ral da Justiça, que é alguém de confiança do Poder Executivo. E o Procurador-Geral da Justiça diz que quer o arquivamento. Então o Judiciário tem de se dobrar a esse pedido, contrariando o princípio constitucional que diz que "nenhuma lesão de direito individual pode ser subtraída à apreciação do Poder Judiciário". Então esse exemplo é um exemplo típico de que dentro do próprio sistema legal, atualmente, existem aberturas que propiciam encontrar soluções criativas para as situações. E aparentemente o juiz não tinha outro caminho a não ser aquele tra-di-ci-o-nal-men-te vivido por milhares de pessoas. Por que ficou notória a decisão desse juiz? Porque ela quebrou toda uma tradição mas quebrou certo. TINOCO — Eu queria perguntar o seguinte. Depois de vivermos num período autoritário, como o senhor vê o relacionamento entre os dois poderes, executivo e judiciário? HERKENHOFF — Bem, devo reconhecer que a devolução das garantias da magistratura representa um grande passo. As garantias da magistratura não são garantias dos juizes simplesmente. São garantias do povo. Quando o juiz é vitalício, quando ele é inamovível, quando os seus vencimentos são irredutíveis, ele não tem essas garantias para ele. Ele

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tem essas garantias para exercer com independência a sua profissão, para não sofrer perseguição do governo. A não observância das garantias do judiciário estava no Ato Institucional n° 5. A supressão dessas restrições já representa um progresso. Mas se por um lado a devolução das garantias da magistratura já representa um progresso, que foi toda uma luta da sociedade civil, para esse avanço democrático, por outro lado, lamentavelmente, a Lei Orgânica da Magistratura estabelece um retrocesso quando diz que um juiz para se remover de uma comarca para outra depende da vontade do Executivo. É inadmissível que um juiz para se remover dependa do governo. Ora, isso é a submissão ao poder político. O juiz para mudar de comarca tem de depender da boa vontade do senhor feudal local. O chefe político local, o coronel, não deixa o governador colocar no seu feudo, na sua região, um juiz que não seja do agrado dele. Isso é um terrível retrocesso em termos históricos. AMYLTON — Ele acha que o Código Penal Brasileiro está de acordo com a situação do País e acha que as leis devem ser fortes? HERKENHOFF — Eu não quero me manifestar sobre o caso Aézio. A minha manifestação é sobre o Ministério Público ter direito, o direito de requerer o arquivamento do inquérito. Eu quero fazer essa ressalva porque eu não conheço o caso Aézio, a não ser o que dizem os jornais e revistas. Eu não tenho elementos para me manifestar sobre o caso Aézio e nem poderia me manifestar porque é um caso entregue a um outro juiz, um colega meu. Eu me manifesto sobre o princípio do Ministério Público requerer o arquivamento do inquérito, acho que isso fere o princípio constitucional sobre o qual nós falamos, que nenhuma lesão individual pode ser subtraída ao Judiciário. Agora, quanto à pergunta do Amylton sobre o Código Penal, se a lei forte é fator de segurança, me parece que, inicialmente... GLECY — Existe lei forte, ou lei mal ou lei bem aplicada? HERKENHOFF (pensativo) — Bem, se eu vejo o Código Penal como benévolo ou como rigoroso. Eu vejo o Código Penal com inúmeras distorções. Vejo setores da vida social inteiramente desguarnecidos de regulamentação jurídica. E setores da vida social excessivamente guarnecidos de tutela penal. Para citar um exemplo: um empresário que omite providências de segurança, regras de segurança, e provoca acidentes de trabalho não comete nenhum crime. Norma do Ministério do Trabalho estabelece que determinado tipo de serviço exige determinado equipamento de segurança... Se o empresário, porque aquele equipamento é muito caro, deixa de adquiri-lo, ele simplesmente transgride uma norma administrativa e leva uma multa. Se em conseqüência dessa omissão, dessa falta de equipamento, o empregado morre, o patrão não comete nenhum crime. Não existe no Brasil a definição, como crime, da omissão de precaução de segurança do trabalho. Ora, parece-me que é extremamente anti-social não providenciar para os empregados equipamentos previstos em lei. E parece que o Código Penal, se fosse feito para a maioria, pre-veria como crime um procedimento dessa natureza. Porque nós sabemos que o Direito Penal é regulado por um princípio geral, que não há crime sem definição legal. Só é crime aquilo que a lei diz que é crime. Então esse tipo de conduta extremamente anti-social não é crime. Quer dizer que é mais negócio pagar a multa do que comprar o equipamento. GLECY — Isso vem mais uma vez afirmar que as leis são feitas em benefício dos poderosos porque pobre não é empresário.

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HERKENHOFF — Perfeitamente, eu concordo com você. A lei predominantemente é feita de acordo com o modelo sócio-eco-nômico vigente em um País. Beneficia a minoria se se trata de um país em que a minoria está no poder e beneficia a maioria se a maioria está no poder. Por exemplo, no que tange a acidente de trabalho, omissão de precaução de acidente tinha de ser crime. Mas não é. Por outro lado, nós temos uma contravenção chamada vadiagem. A lei define a vadiagem: "Vadio é quem, não tendo recursos, não trabalha". O rico não está incurso no crime de vadiagem. Não é vadio. Só o pobre é vadio. Ora, isso é um absurdo. Em qualquer sociedade onde se tenha um conceito ético de trabalho, em que se visualize o trabalho como um dever de todos, não trabalhar será crime ou contravenção para todo mundo, não haverá discriminação como aqui. Então voltaremos à pergunta do Código, mais ou menos rigoroso. Crimes econômicos que estão aí, crimes contra o povo que estão aí e que não são nem previstos como crimes. Os crimes contra o povo são muito mais graves do que os crimes contra uma pessoa só. Não são crimes enquanto não definidos como crimes, são condutas anti-sociais. TINOCO — Que crimes econômicos o senhor definiria como crime? HERKENHOFF — Açambarcamento de mercadorias para aumento de preço e muitos procedimentos que existem aí de ganhar dinheiro sem trabalhar. São condutas anti-sociais, que não são definidas como crimes. Então o Código Penal deveria ser repensado para definir o crime. Redefinir as condutas anti-sociais e definir como crimes aquelas condutas que trazem conturbação social. Então a gente veria que teria de repensar o Código Penal. JÚLIO — Eu queria voltar àquela situação de vadiagem. Quem seria vadio então? HERKENHOFF — Pelas definições das leis brasileiras só é vadio o pobre. O rico não é passível da contravenção de vadiagem. Pela lei só é vadio quem não tem recursos e não trabalha, quem é rico e não trabalha não é vadio. Isso é um absurdo. O trabalho é uma obrigação social, haja vista que Paulo, em uma de suas epístolas, diz: "Quem não trabalha, não come". Mas realmente há discriminação. TINOCO — E essa história de não ter documentos e ser preso por isso? HERKENHOFF — Isto é um absurdo e uma violência porque não existe nenhuma lei no Brasil que diga que não ter documentos seja um crime ou contravenção. Ter documentos é uma coisa que ajuda as pessoas a se identificarem, mas ninguém é obrigado a ter documentos. Além disso, se nos debruçarmos diante da realidade social... tirar documentos custa dinheiro, tirar documentos representa perda de tempo e tirar documentos é uma conduta que está acima da cultura vigente em largas faixas da população. Então é um inominável abuso prender qualquer pessoa por falta de documentos. GLECY — E um País onde se sabe que certidão de idade, que é um documento fundamental, um percentual enorme de pessoas não tem porque não possui dinheiro para se registrar. Aliás, certidão de idade deveria ser gratuita. HERKENHOFF — Perfeitamente. Estou de pleno acordo. TINOCO — Eu gostaria de fazer uma pergunta, como o senhor vê a burocracia na Justiça e essa tentativa do governo no sentido de desburocratizar? E como a burocracia afeta a Justiça?

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HERKEENHOFF - A Justiça é excessivamente burocratizada. Inúmeros atos praticados num processo poderiam ser praticados sem qualquer intervenção do juiz. E simplesmente nada anda sem a assinatura do juiz. Qualquer papel para entrar dentro de um processo depende do despacho do juiz. A única exceção que se abre é na Justiça do Trabalho, onde o trabalhador vai à junta de conciliação, apresenta queixa verbal, e o empregador é citado para comparecer a uma audiência, e no dia da audiência é que o juiz vai tomar contato com o processo. Até aquela hora o processo andou sem ele. É uma exceção na estrutura judiciária brasileira. O Poder Executivo é muito menos burocratizado que o Judiciário. TINOCO — Quais são as conseqüências da burocracia na Justiça comum? HERKENHOFF — Primeiro, a lentidão dos processos, que é dos maiores males da Justiça. Já dizia Rui Barbosa que "justiça tardia é denegação de justiça". É o formalismo, são os processos kafkianos. JÚLIO — E a questão que às vezes um indivíduo é preso e fica meses na prisão esperando a lentidão dos processos. Esperando um simples despacho. GLECY — É. A Dalva Ramaldes uma vez foi fazer uma reportagem num presídio e encontrou um rapaz que estava preso há quase um ano porque havia roubado um radinho de pilha. Foi preciso que ela apelasse para o pai dela, que é advogado, para libertar o rapaz. HERKENHOFF — Há muitos casos e são necessárias providências de dinamização da máquina judiciária para evitar esses problemas. AMYLTON — Isso só aconteceria de acordo com a realidade social e a mobilização das forças sociais. TINOCO — Qual foi o objetivo do senhor ao baixar uma portaria em Vila Velha a respeito das prisões ilegais? O que o senhor pretendeu? HERKENHOFF — Pretendi que o Judiciário exerça uma rigorosa fiscalização sobre as prisões. Eu estava constatando uma quantidade muito grande de prisões ilegais? Constatando a permanência de indivíduos presos por tempo muito longo. TINOCO — Para averiguações? HERKENHOFF — As vezes sob processo, mas em casos em que a própria lei vigente permite fiança. Ou mesmo liberdade até sem fiança. E o indivíduo por falta de um advogado ficava preso até 3 meses. A portaria não foi estabelecendo nenhuma inovação, foi simplesmente dinamizando o sistema legal. TINOCO — E outra providência da portaria foi em relação às prisões que só podem ser praticadas em flagrante, ou com ordem judicial? HERKENHOFF — Mas isto já é da Constituição, o que nós fizemos foi dinamizar medidas concretas para validar, tornar respeitados os preceitos da Constituição, das leis. Então, por exemplo, quando chegar uma comunicação de prisão (a Constituição obriga a autoridade policial a comunicar as prisões)... se dentro de um processo eu perceber a omissão do cumprimento imediato desse dever, sinto-me na posição de responsabilizar quem tiver

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descumprido essa obrigação. Mas a portaria não se refere expressamente a isso. A portaria estabelece que toda vez que a polícia comunicar uma prisão, o juiz daria vista daquela comunicação ao defensor público. Essa portaria foi fruto de um diálogo inclusive que eu tive com o defensor público de minha vara. Então toda vez que chegasse uma comunicação de prisão, iria para a mão do defensor público. O defensor público imediatamente requereria fiança se fosse o caso, liberdade sem fiança se fosse o caso, ha-beas corpus se fosse o caso. Enfim ele se colocava imediatamente em defesa do preso. Essa mesma portaria determinou expediente para controle de prazo. Feita a comunicação de prisão à Justiça, a polícia tem 10 dias para mandar o inquérito. Se não mandar o inquérito dentro de 10 dias, a prisão é ilegal, então o defensor público entra com o habeas corpus. Também fruto de entendimentos havidos com o defensor público. A portaria visou a medidas para impedir prisões ilegais e prolongamentos de prisão. Agora essa portaria beneficia os pobres, porque os que têm recursos procuram seus advogados. Normalmente os que vivem mofando, nas prisões, são os que não têm ninguém por eles. Sempre requisito a presença do preso, ao tomar conhecimento de uma prisão. O preso visto pelo juiz, só por este fato, já está mais protegido contra eventuais torturas. AMYLTON — A Comissão de Justiça e Paz, nesse tempo que ela existe, o que conseguiu de objetivo? Por que o senhor participa dela? HERKENHOFF — O que me levou a participar da Comissão de Justiça e Paz foi um compromisso de fé. Vejo a fé como tendo uma dimensão política: a dimensão política é inerente à fé. Dentro dessa dimensão política o homem de fé deve atuar na construção de estruturas sociais que salvaguardem os direitos do homem. Não é possível admitir um destino eterno para o homem, não é possível aceitar seja o homem imagem e semelhança de Deus, e conciliar essa visão de homem com uma realidade social onde ele é despejado de seu barraco como se fosse um bicho. Como pode o homem eterno ser maltratado, torturado, preso injustamente, ser discriminado, ter fechado para si o acesso aos bens da terra, que não foram feitos apenas para alguns, mas para todos? Convocado para a Comissão de Justiça e Paz pelos Bispos de Vitória, faço parte dela e a presido como uma conseqüência de minha fé. AMYLTON — E como funciona a Comissão de Justiça e Paz? HERKENHOFF — As ações da Comissão de Justiça e Paz até agora foram as seguintes, em síntese: a luta ao lado do povo contra os despejos em massa; luta a favor das populações atingidas pelas enchentes; apoio as greves operárias; apoio à campanha da anistia ampla, geral e irrestrita; repúdio às prisões ilegais e à violência contra o povo; solidariedade para com os exilados; luta ao lado do índio em favor de suas terras; solidariedade a cristãos perseguidos pelo compromisso com a causa do povo; ajuda individualizada a pessoas que procuram a Comissão. Sempre assumindo essas posições ao lado do povo, sem paternalismo. TINOCO — Agora o senhor poderia retomar as teses do livro. HERKENHOFF — Bem, retomando as teses fundamentais do nosso livro, vejamos... a perspectiva axiológica que defendemos deve presidir aos julgamentos. Afirma-se que o juiz não pode transcender a norma. Como homem, pode discordar da justiça da norma. Entretanto deverá aplicá-la ao caso concreto que lhe incumbe julgar. Não se nega que o juiz deve-se manter dentro do sistema jurídico. Desapareceria aquele mínimo de segurança jurídica, sempre desejável, se cada juiz pudesse, sem qualquer justificativa séria, transformar-se em legislador; nesta hipótese, afoito legislador. A legislação estatal é

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apenas o núcleo estável, a linha de referência do ordenamento jurídico positivo do Estado. A legislação é estática; o ordenamento é dinâmico. Em nenhuma hipótese, entretanto, estará o juiz obrigado a sentenciar conforme a norma, ainda que com drama íntimo. Haverá sempre recursos, dentro do sistema jurídico para que o juiz procure sentenciar em paz de consciência. E a perspectiva axiológica que permite a valoração da lei pelo juiz. TINOCO — Agora a outra perspectiva de que fala o livro. HERKENHOFF — A aplicação do direito numa perspectiva fenomenológica visa a compreender o homem a partir de sua condição humana, comprometida com uma situação não escolhida. Tentar reencontrar a verdade nos dados originários da experiência. Descer ao homem julgado, a sua pauta de valores, e fugir da violência de exigir que o homem julgado suba à pauta dos valores do juiz, ou dos que fizeram a lei, ou daqueles para os quais a lei foi feita. Estes são os desafios e inquietações que me preocupam. Se alguém pratica um crime na minha jurisdição, que é o município de Vila Velha, ao concluir pela minha competência ingresso no campo geográfico da pessoa. Se o indivíduo que vou julgar pratica um crime de lesão corporal e eu simplesmente enquadro seu ato como delituoso (art. 129 do Código Penal), estou vendo o indivíduo como a lei o descreve. Mas se, ao interrogar o acusado, procuro pesquisar sua vida, seu mundo, suas circunstâncias, se procuro compreender seu ato à luz de seus valores, se desço às suas motivações, aí, e só aí, ingressei no campo fenomenal. O indivíduo que estou julgando é, então, um perceptor: vejo os motivos que operam nele. O campo fenomenal revela ao juiz um universo. No caso de crime de lesão corporal, se o autor do delito é um homem simples, que conviva diutumamente com a violência, a visão fenomenológica entrará em choque com aquela friamente descrita pela lei: será injusta a sentença que não considere o mundo do réu. Um esforço para entender o mundo do réu vem sendo desenvolvido há muitos anos por um famoso juiz do Rio, Eliézer Rosa, que, além de juiz, é autor de vários livros. E Eliézer Rosa absolveu um jovem pobre, que furtou uma bicicleta, porque verificara, no curso do processo, que o jovem carregava dentro de si uma grande frustração por ter desejado a vida toda uma bicicleta e nunca ter podido comprar uma. A bicicleta tinha sido deixada, descuidada-mente, no meio-fio da rua, e o rapaz, ao vê-la assim tão a jeito, cedeu ao desejo de possuí-la. Ojuiz não disse na sentença, porém, na verdade, o que fez foi considerar o campo fenomenal: fenome-nologicamente, a bicicleta pertencia ao rapaz da mesma forma que, fenomenologicamente, o braço amputado pertence à pessoa que, geograficamente, não tem o braço. Não tem braço para os outros: para ele, existencialmente, tem. Os comandos da lei nunca consideram o campo fenomenal e individual. Uma justiça que pretenda servir ao homem, e não esmagá-lo, que pretenda libertar, que se negue a sustentar privilégios, terá de penetrar no campo fenomenal. Só o juiz, assumindo uma perspectiva fenomenológica, pode vencer a insensibilidade da lei. AMYLTON — Falta a perspectiva sociológico-política. HERKENHOFF — A perspectiva sociológico-política promove a abertura da lei ao fato social. O juiz não atuará apenas no sub-sistema jurídico, porém, mais amplamente, no sistema social. Essa perspectiva defende a idéia de que todo juiz não apenas tem de ser um sociólogo, mas de que a aplicação do Direito pelo juiz ou será uma aplicação sociológica e política, ou será uma aplicação extremamente nociva ao homem julgado e à comunidade regida por uma tal jurisdição.

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TINOCO — O advogado Vinícius Bittencourt em seu livro recentemente lançado diz que a história da pena é a história de sua abolição. Que a história da pena chegou ao fim. O senhor concorda com isso? HERKENHOFF — Concordo com essa afirmação do emérito criminalista Vinícius Bittencourt. A pena de prisão, por exemplo, encerra, em si mesma, uma incoerência: não é possível socializar segregando. "Prisão não cura,.corrompe." Esse é o título de um livro de Gyles Playfair e Derrick Sington, e encerra uma grande verdade. Porque a prisão corrompe, porque degrada, somente pode ser aceita em casos extremos; ou diante de hipóteses em que a periculosidade do criminoso, em liberdade, não pode ser suportada sem grave perigo para a coletividade, e a prisão é um mal menor; ou quando o crime tenha provocado profunda conturbação social e a prisão imediata possa contribuir para minorar essa situação anômala. GLECY — O que é que o senhor chama de conturbação social? HERKENHOFF — Um homicídio frio, por exemplo, praticado na praça pública, numa cidade do interior, provoca grande conturbação social. Em qualquer hipótese, porém, a prisão precisa respeitar a dignidade do ser humano: prisões que são jaulas, prisões onde haja promiscuidade de pessoas, prisões onde o indivíduo é torturado, constituem um fulminante libelo contra o sistema social e político que as tolera. A prisão deve ser substituída por outros tipos de penas: amais indicada é a prescrição de trabalho gratuito em benefício da coletividade, pena mais aconselhável do que a multa, pois a multa é insignificante para os ricos, enquanto o trabalho iguala ricos e pobres.

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