Como ver um filme

415

description

"Este livro começou como uma ideia simples — desvendar o outro lado dos filmes para todos nós, no escuro da plateia — e evoluiu para uma sequência de fascinantes contatos com pessoas de todo o Brasil, por meio de cursos e palestras, muitos deles realizados sob os auspícios da Casa do Saber do Rio de Janeiro e São Paulo. Como afirmo no início de cada um desses encontros, a proposta não é formar cineastas ou teóricos — existem muitos e bons cursos e livros dedicados a essa tarefa — mas sim, formar plateias informadas, críticas, mais bem-habilitadas a compreender o que veem e a escolher do que gostam."

Transcript of Como ver um filme

Page 1: Como ver um filme
www.princexml.com
Prince - Personal Edition
This document was created with Prince, a great way of getting web content onto paper.
Page 2: Como ver um filme
Page 3: Como ver um filme

Folha de rosto

Page 4: Como ver um filme

Ficha catalográficaCopyright © 2012, by Ana Maria BahianaDireitos de edição da obra em língua portuguesa noBrasil adquiridos pela Editora Nova Fronteira Par-ticipações S.A. Todos os direitos reservados. Nen-huma parte desta obra pode ser apropriada e esto-cada em sistema de banco de dados ou processosimilar, em qualquer forma ou meio, sejaeletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a per-missão do detentor do copirraite.Editora Nova Fronteira Participações S.A.Rua Nova Jerusalém, 345 – Bonsucesso – CEP21042-235Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-8200 – Fax: (21) 3882-8212/[email protected] revisto pelo novo Acordo Ortográfico.

CIP-Brasil. Catalogaçãona fonte.

Sindicato Nacional dosEscritores de Livros, RJ.

B135c Bahiana, Ana MariaComo ver um filme / Ana Maria Bahiana. – Rio

de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

Page 5: Como ver um filme

FilmografiaInclui bibliografiaISBN 978-85-209-3125-71. Cinema. 2. Cinema – Apreciação. 3. Plateias de

cinema. I. Título.CDD: 791.43CDU: 791.43

5/415

Page 6: Como ver um filme

Introdução

Introdução

Quase tudo que sei aprendi na salaescura do cinema ou Como (e por

que) ver um filme

UMA DAS MINHAS CENAS FAVORITAS de qualquerfilme em qualquer época é a do final deCrepúsculo dos deuses (Sunset Blvd., 1950), deBilly Wilder. Completamente ensandecida, aoutrora grande estrela Norma Desmond

Page 7: Como ver um filme

(Gloria Swanson, magnífica), banida das tel-as pela idade (“uma velha de cinquentaanos!”, ruge, a certo momento, o seu pro-tegido/explorador/vítima, Joe Gillis/WilliamHolden) desce lentamente a escadaria de suamansão. É um truque para fazê-la entregar-se pacificamente à polícia. A casa está repletade policiais, repórteres e equipes dos “jornaisda tela”, os “telejornais” do momento. Numgesto de compaixão, Max, o chofer que umdia foi diretor (Eric Von Stroheim), convenceNorma de que ela está num set de filmagem,em plena produção do roteiro que ela vemtentando produzir ao longo de todo o filme,mais uma versão do drama de Salomé e JoãoBatista. Todas aquelas luzes! Todas aquelascâmeras! Toda aquela gente! Que maravilha!Emocionada, Norma pede para fazer um dis-curso. Diz que está feliz em voltar a um set, eque jamais abandonará seus fãs. E, acima detudo, conclui que, para ela, não existe mais

7/415

Page 8: Como ver um filme

nada, “apenas as luzes, as câmeras e todasaquelas pessoas maravilhosas na escuridão”.

E, dirigindo-se a nós e à lente da câmera,desaparece num dos mais geniais fade-outs docinema.SUSAN SONTAG, que teorizou sobre quasetudo, diz que a experiência essencial de ir aocinema é o desejo de “ser sequestrado pelofilme, ser possuído pela presença física daimagem”. É uma boa analogia, e definitiva-mente parte do charme centenário da arte.No entanto, não creio que seja apenas isso;sou mais partidária das visões de JeanCocteau, Luiz Buñuel e David Lynch: ocinema é a arte mais próxima do sonhoacordado. Estamos no escuro, mas de olhosbem abertos. Se o filme for realmente bom,se ele for tudo o que uma película pode ser,conversará conosco, exigindo de nossocérebro, alma, espírito, corpo astral ou sejalá o que se quiser chamar a contrapartida depreencher as lacunas, absorver o que é

8/415

Page 9: Como ver um filme

apenas intuído, mas não é visto por com-pleto, associar som e imagem, e, dentrodessa última, cor, textura, ritmo eluminosidade.

É um sonho, mas proposto por outra pess-oa: cabe a nós torná-lo nosso sonho. Ou não.

A isso eu chamo ver, e não assistir. Passardo estágio de plateia passiva — a que se deixasequestrar pelo filme — para o de plateiaativa — que colabora com os realizadoresacrescentando ao filme sua percepção,memórias e emoções de espectador.Deixando-se levar por algumas ideias, recus-ando outras. Compreendendo, o tempo todo,por que está vendo o que está vendo (e nãooutra coisa), nesta ordem (e não em outra) ecom estes sons (e não outros, ou nenhum).

Quando conseguimos isso, a experiência deir ao cinema se transforma. O filme se abrepara nós. Passamos a compreender in-tenções e planos de quem nos propõe osonho do dia, e a ter os apetrechos para

9/415

Page 10: Como ver um filme

aceitá-los ou não. O filme se torna, como de-ve ser, uma conversa. De preferência, umaconversa inteligente.UMA PLATEIA DESPERTA, sonhando consciente-mente. É uma plateia interessante: curiosa —e perigosa. É mais difícil subestimá-la,ofender sua inteligência. Torna-se absoluta-mente essencial para os realizadores cumprirsua parte do trato: honrar o investimento in-estimável de dinheiro (e o aumento do preçodo ingresso garante que esse investimentoseja cada vez mais substancial) e, sobretudo,o tempo que cada pessoa na plateia dispon-ibiliza quando opta por ver um filme. O queestou dando em troca das duas preciosashoras de vida e atenção absoluta que essapessoa escolheu dedicar à minha visão? Algointeligente ou tosco? Fascinante ou repuls-ivo? Estimulante ou emburrecedor? Import-ante apenas para o meu umbigo ou capaz detocar outras vidas?

10/415

Page 11: Como ver um filme

Se cada realizador imaginar que ali, noescuro da sala, cada uma daquelas pessoasmaravilhosas está alerta, sabendo o que estávendo e por que está vendo, essas perguntasdeixam de ser retóricas e passam a integrarum verdadeiro contrato entre produtor econsumidor de arte e entretenimento. Umcontrato que, num cenário ideal, nos elevará,dos dois lados da luz da tela.ESTE LIVRO COMEÇOU como uma ideia simples— desvendar o outro lado dos filmes para to-dos nós, no escuro da plateia — e evoluiupara uma sequência de fascinantes contatoscom pessoas de todo o Brasil, por meio decursos e palestras, muitos deles realizadossob os auspícios da Casa do Saber do Rio deJaneiro e São Paulo. Como afirmo no iníciode cada um desses encontros, a proposta nãoé formar cineastas ou teóricos — existemmuitos e bons cursos e livros dedicados aessa tarefa — mas sim, formar plateias infor-madas, críticas, mais bem-habilitadas a

11/415

Page 12: Como ver um filme

compreender o que veem e a escolher do quegostam.

Temos em comum o mesmo amor pelocinema. De uma forma ou de outra, os son-hos e ideias de gente que nunca conhecemos,a maioria do outro lado do planeta, ali-mentou e forjou nosso modo de ver omundo, de caminhar nele, de interagir. Her-damos dessas visões alheias desejos de bei-jos, fantasias de cópulas, terrores noturnos,pesadelos ao meio-dia, duelos na rua prin-cipal, aiô Silver!, cubra-me!, Houston, we havea problem. Vamos precisar de um barcomaior. Teremos sempre Paris. Rosebud! It’sshowtime!

Tudo o que espero é que, ao final deste liv-ro, eu tenha compartilhado o que aprendi aolongo não apenas de todas essas horas nasala escura do cinema, mas também emmuitas e muitas outras, em sets de filmagem,salas de reunião, cafés, festivais, calçadas,entre fios e trilhos, em depósitos, galpões,

12/415

Page 13: Como ver um filme

trens e aviões, conversando, perguntando,ouvindo, aprendendo com quem dedica suavida a compor essas visões para nosso es-panto, horror e delícia.

13/415

Page 14: Como ver um filme

Parte 1: Os Alicerces

Page 15: Como ver um filme

1. Entre arte e comércio: como nascem os filmes

1. ENTRE ARTE ECOMÉRCIO: COMO

NASCEM OS FILMES

“Ninguém sabe nada.”William Goldman, roteirista

Page 16: Como ver um filme

UM FILME É UMA CRIATURA muito especial,muito específica, nascida das mesmas vont-ades antigas que levaram nossos antepassad-os a narrar uma caçada ao mamute nasparedes das cavernas de Lascaux ou criarminiaturas com cenas das vidas dos santos.Num filme está um impulso ao mesmotempo mais primitivo que o da leitura e maistecnologicamente sofisticado que o do teatro.Como na leitura, queremos narrativas que al-imentem nossa imaginação — mas diferente-mente do livro, onde mundos interiores,paisagens distantes, estados de espírito e in-tenções ocultas podem ser descritos, deixan-do que nossa imaginação preencha o vácuo,o filme tem a obrigação de nos mostrar, oupelo menos balizar visualmente cada umadessas coisas. Como no teatro, ele propõe a

Page 17: Como ver um filme

apreciação do movimento, da presença hu-mana, da máscara do personagem — masapenas com a intermediação da imagemcaptada, uma camada adicional de interfer-ência, manipulação, irrealidade.

E assim, desse jeito tão peculiar, o cinematem capturado nossa atenção, nossa imagin-ação, nosso tempo e nosso dinheiro há maisde um século.

Um filme é uma encruzilhada de elementoscontraditórios. Exige ao mesmo tempo amais alta tecnologia de imagem e som e oartesanato mais puro de corte, costura, bor-dado, maquiagem, escultura, carpintaria.Segue a visão de uma pessoa, o diretor, masemprega os talentos de uma pequena mul-tidão de indivíduos igualmente criativos. E —muito importante — equilibra-se no gumeafiado entre arte e comércio.

Os tempos românticos de “uma ideia nacabeça e uma câmera na mão” se foram. Éclaro que existe toda uma produção

17/415

Page 18: Como ver um filme

cinematográfica que pode se ater a esseprincípio, assim como existe toda uma outraprodução audiovisual cujo destino são galeri-as, museus e salas especiais. Mas não é denenhuma das duas que falamos aqui. Falam-os daquela que chega ao cinema da sua cid-ade, à sua locadora ou à sua TV. E, para essa,o contorcionismo entre criatividade e re-sponsabilidade fiscal é o que está na base, naraiz. É a tensão entre dois polos que podemse aniquilar mutuamente ou gerarmaravilhas.

As normas que hoje regem o mercado daprodução cinematográfica mundial não sãoexatas e rígidas, mas, basicamente, a filosofiaprincipal é: um filme, mesmo “barato”, écaro; antes de investir a pequena fortuna ne-cessária para que ele se torne realidade, háque se tentar ao máximo minimizar os riscos.E esse processo interessa de perto a nós, osespectadores, porque são as decisões toma-das durante essa tentativa de minimizar os

18/415

Page 19: Como ver um filme

riscos que, em última análise, determinam aforma final que um filme terá, se ele será ou-sado ou conservador, autoral ou formulaico,luxuoso ou cru, cheio de estrelas ou repletode desconhecidos, digital ou em película,rodado em alguma ilha do Pacífico ou dentrode algum estúdio.

QUANTO CUSTACUSTOS MÉDIOS DEPRODUÇÃO DE:

FILMES PRODUZIDOS INTEIRAMENTE

DENTRO DE UM GRANDE ESTÚDIO DE

HOLLYWOOD: 70 milhões de dólares

FILMES INDEPENDENTES NORTE-

AMERICANOS: 40 milhões de dólares

19/415

Page 20: Como ver um filme

FILMES BRITÂNICOS E AUSTRALIANOS:

20 milhões de dólares

FILMES INDIANOS: 5 milhões dedólares

FILMES BRASILEIROS: 1,5 milhões dedólares

CUSTO MÉDIO DE LANÇAMENTO DE

FILMES (CÓPIAS, MARKETING,

DIVULGAÇÃO): de 30 a 50% do orça-mento de produção

FONTES: Motion Picture Association ofAmerica, British Film Institute, FilmeB

A jornada de um filme, da primeira ideia ànossa chegada ao cinema com um saco de pi-poca nas mãos, cumpre seis etapas distintas:▪ Desenvolvimento

20/415

Page 21: Como ver um filme

▪ Pré-produção▪ Produção▪ Finalização▪ Testes e plano de marketing▪ DistribuiçãoCom sorte, dinheiro em caixa, profissionais

que cumprem prazos, catástrofes naturaisausentes e estrelas tranquilas e estáveis, essatrajetória leva de 18 a 24 meses. Sem nadadisso, pode durar três, cinco, dez, até vinteanos. Os deuses do cinema não contam otempo real, apenas o tempo de tela.O DESENVOLVIMENTO É, POSSIVELMENTE, aetapa menos conhecida e mais importante dagestação de um filme. Ele é a rede de segur-ança do projeto: cobre os meses (de três aseis, em média) em que o filme existe apenasno papel, e demanda trabalho de umpequeno número de profissionais (dois, três,cinco no máximo), com um gasto de aprox-imadamente 1% do custo final do projeto.

21/415

Page 22: Como ver um filme

É nesse momento de casulo que uma ideia,livro, série de televisão ou roteiro prova serum filme… ou não. Nem tudo aquilo que éfascinante numa mídia pode ser traduzidopara o cinema com o mesmo resultado — eesse é um dos erros mais comuns dos realiz-adores principiantes. Obras literárias que seapoiam principalmente no mundo interiordos personagens. Séries de TV com persona-gens esquemáticos, superficiais ou com tem-as específicos de determinadas épocas.Novelas gráficas de grande complexidade,com várias tramas paralelas. Estes são apen-as alguns dos elementos que podem semostrar fatais para um filme.

Num desenvolvimento bem-feito, essesproblemas aparecem antes que fortunas ten-ham sido gastas para contratar roteiristas eatores, e possibilitam decisões feitas em con-dições mais tranquilas: deve-se continuar ounão com o projeto? O que pode ser alterado?O que não pode?

22/415

Page 23: Como ver um filme

O desenvolvimento começa quando al-guma propriedade intelectual é compra-da (o que explica um velhíssimo jargão da in-dústria: “Nada acontece até que o dinheirotroque de mãos.”). Essa propriedade podeser:▪ Pitch. Pitch é um termo de beisebol que

significa “arremesso”. É um dos muitosjargões do esporte norte-americano que fo-ram incorporados pela prática cinemato-gráfica de quase todo o mundo. O pitch éexatamente isso — o “arremesso” da ideiade um filme, feito por quem a criou, paraquem pode realizá-la. O “arremessador”pode ser um roteirista com um textopronto ou idealizado, um diretor que teveuma inspiração, escreveu ou achou um ro-teiro ou livro interessante, ou um produtorindependente num desses casos, mas comrecursos limitados para ir em frente. O “re-cebedor” do “arremesso” pode ser umprodutor poderoso, uma estrela com sua

23/415

Page 24: Como ver um filme

própria butique produtora, um agente combons contatos na indústria internacional,um grande estúdio, uma distribuidora ouuma companhia de vendas internacionais.

Como quase tudo na indústria, o pitch éaltamente ritualizado, com uma etiquetaprópria. Um encontro específico para opitch precisa ser previamente agendado (anão ser durante festivais e mercados, ver-dadeira artilharia de pitches). O arremes-sador deve chegar pontualmente, mesmoque tenha que esperar um bom tempo pelasua chance de pitch. Uma vez diante de seu“alvo”, ele deve aceitar a bebida que o as-sistente lhe oferece, participar de aproxim-adamente cinco minutos de conversa fiadae — isso é fundamental — só começar opitch quando o recebedor indicar que estápronto para ouvi-lo (isso em geral é assin-alado por frases como “Então, o que vocêtem para nós?” ou “Tem tido alguma boaideia ultimamente?”).

24/415

Page 25: Como ver um filme

O pitch deve ser breve, claro e poderoso.Se tiver mais de vinte minutos, é ar-remesso fora. Nesse tempo, o arremessad-or deve descrever o futuro filme e, mais doque isso, vendê-lo como algo irresistível,envolvente, original (mas não muito —veremos por que em breve). Pode e devedar ideias de elenco — “uma personagemtipo Penélope Cruz”, “vejo Clive Owenneste papel” —, transmitir o clima da obra— “imagine um deserto gelado num plan-eta distante” — e referenciar outros filmese realizadores — “é como se fosse um BladeRunner dirigido por François Truffaut.” Seo arremessador for um profissional derenome (sim, profissionais de renome tam-bém têm que passar por este rito: pergun-tem a Martin Scorsese quantas vezes eleteve que “arremessar” Gangues de NovaYork), é de bom-tom lembrar sucessos re-centes, mesmo que o alvo insista que, éclaro, é fã, admirador e conhecedor do

25/415

Page 26: Como ver um filme

trabalho do arremessador (com quase todacerteza ele não se lembra de um títulosequer).

O ritual pode se encerrar com um apertode mãos que não quer dizer absolutamentenada ou com um polido “é ótimo, mas nãocreio que seja um projeto para nós”. É omais comum. Se o recebedor começar afazer perguntas — “E se a personagem dePenélope Cruz tivesse uma filha?” — e adar sugestões — “podemos passar de umdeserto para uma cidade fantasma” —, ésinal de que um “sim” está a caminho. Emcasos raros — mas que acontecem — hátapas na mesa, gritos de admiração e umaminuta de contrato produzida imediata-mente: o pitch foi comprado, por valores nacasa das dezenas ou centenas de milharesdólares, em geral com a estipulação de umvalor extra a ser recebido pelo autor caso oprojeto de fato vá adiante, ou seja, passarpelo crivo do desenvolvimento.

26/415

Page 27: Como ver um filme

▪ Roteiro ou argumento on spec. Umargumento é a narrativa do filme sem in-dicação de cenas e diálogos; é a históriaque o filme contará. O roteiro é essahistória já formatada para ser filmada, comas divisões de cena, especificações de locale hora do dia e diálogos. Um roteiro ou ar-gumento escrito sem ter sido en-comendado (e pago com antecedência) échamado on spec — literalmente, em basesespeculativas. Um roteirista que decide de-votar seu tempo — não remunerado — aescrever um material que depois será colo-cado à venda pode ganhar em liberdadecriativa (ao menos inicialmente) e, se omercado estiver aquecido, embolsar umabela quantia. O recorde atual para um ro-teiro escrito on spec é de cinco milhões dedólares, pagos em 2005 a Terry Rossio eBill Marsilii por Déjà vu, que depois seriadirigido por Tony Scott e estrelado porDenzel Washington.

27/415

Page 28: Como ver um filme

▪ Obras já existentes. Livros, quadrinhos,peças de teatro, graphic novels, séries de TV,atrações de parques temáticos, video-games, tudo isso pode se transformar emfilme — desde que os direitos sejam com-prados, ou melhor, opcionados, dando aocomprador um determinado tempo paralevar o projeto à tela. Outro tipo de pro-priedade que, cada vez mais, tem sido ad-quirida é o filme já pronto. Opcionam-seentão os direitos de refilmagem, pelo qualpersonagens e situações do original podemser reinterpretados em outra língua e con-texto — o que aconteceu, por exemplo, como coreano Mou gaan dou, que se transfor-mou em Os infiltrados, e com o japonês Rin-gu, que virou O chamado.

Uma vez adquirida a propriedade in-telectual que vai servir de base ao projetode filme, o desenvolvimento entra em suasegunda etapa: a análise de viabilidade.Com base nas informações disponíveis,

28/415

Page 29: Como ver um filme

levantam-se os custos prováveis deprodução e estabelece-se um cronogramade pré-produção e filmagem que dará adata aproximada de entrega do filme. Issoé crucial para um filme feito dentro de umestúdio, que tem um calendário rígido delançamentos, estudado cuidadosamente deacordo com as oscilações do consumo e daconcorrência. Para um filme produzido deforma independente, em qualquer línguaou país, é igualmente fundamental: não sóporque cada país tem as suas datas boas eruins de lançamento, mas principalmenteporque os compromissos assumidos cominvestidores, financiadores e distribuidoresrequerem uma data certa de entrega dofilme completo.

Saber quanto um filme pode custar éapenas uma parte da análise. A outra parteé tentar projetar quanto ele pode render.Não é um gesto tão frio e calculista quantopode parecer à primeira vista — os mais

29/415

Page 30: Como ver um filme

sérios realizadores autorais sabem que aexpectativa de gastos tem que se adequar àexpectativa de ganhos. Essa responsabilid-ade fiscal faz parte do empenho de criar omelhor filme possível — com ênfase tantono “melhor” quanto no “possível”. É umaparte essencial das perguntas que devemnortear o desenvolvimento: Que filme va-mos fazer? Um trabalho experimental, des-tinado a poucas telas ou apenas a festivais?Um sólido filme de gênero que talvez nãová para os cinemas, mas que pode fazerboa carreira em DVD e na TV? Um filmeclassudo que pode ousar a temporada deprêmios? Um arrasa-quarteirão, bempipocão?

É claro que isso não é uma ciência exata— como diz o experiente e oscarizado Wil-liam Goldman (Todos os homens do presid-ente, Butch Cassidy) na nossa epígrafe, “Nin-guém sabe nada”. Nem sucesso nem fra-casso podem realmente ser previstos. Mas

30/415

Page 31: Como ver um filme

as variantes podem ser estudadas e osriscos, atenuados. Custa menos do que searriscar na cara selva do mercado sem amunição correta.

Normalmente, o processo de avaliação eestudo de viabilidade é feito em duasfrentes: enquanto o gerente de produçãodestrincha os custos possíveis, o diretor dedesenvolvimento analisa o material debase sob um ângulo criativo. Se é um livroou graphic novel, que roteirista melhorpoderia adaptá-lo? Se é um roteiro, ele estápronto para ser filmado? Muito raramenteum script sai completamente certinho naprimeira tentativa — até mestres comoPaul Schrader, Robert Towne, PaulGaghan e William Goldman reescrevemseus textos à exaustão. Se o material pre-cisa ser reescrito, quem melhor o faria? Eque áreas precisam ser melhoradas: os diá-logos? A estrutura? O final? Há

31/415

Page 32: Como ver um filme

necessidade de mais clareza, mais ação,mais profundidade?

E o conceito, a premissa mesmo dahistória, é interessante? Para projetos de-cididamente autorais essa pergunta nãotem muita relevância, mas, mesmo assim,um produtor consciente deve pelo menostentar antecipar como o tema do projetoserá recebido pelas plateias. Há possibilid-ade de controvérsia? Isso pode ser bom...ou não. É conservador demais, ou talvezousado demais? Banal? Excessivamente vi-olento? Muito água com açúcar? Poucoágua com açúcar?

Talvez o projeto pertença a um gênero noostracismo — mas será que não está nahora de trazê-lo de volta? Estudos detendência de mercado mostram que tudoaquilo que foi muito popular 20, 30 anosatrás está pronto para ser apreciado nova-mente. Os épicos históricos do subgênero“espada e sandália” estavam no exílio há

32/415

Page 33: Como ver um filme

três décadas em 1997, quando o roteiristaDavid Franzoni começou a cortejar os po-derosos — a DreamWorks e o diretor Rid-ley Scott — para levar às telas seu roteiroGladiador.

Finalmente, quando tudo isso estádeterminado, tenta-se avaliar como o custodisso tudo se comporta frente ao esperadoretorno. Uma forma não exatamentecientífica de fazer esse cálculo é levar emconsideração o quanto títulos semelhantesrenderam na bilheteria, e, para produtoresindependentes que não podem ou nãoquerem trabalhar com dinheiro dos estúdi-os (e as obrigações e concessões que issoimplica), que valores alcançariam nos mer-cados de cinema, em vendas antecipadasdos direitos de distribuição.

Quando tudo isso é avaliado, o produtor— que deve ter pilotado todo o processo,desde a aquisição do material de origem —precisa tomar as decisões-chave que darão

33/415

Page 34: Como ver um filme

a forma do filme que, um ou dois anos de-pois, iremos ver:• Pequeno ou grande orçamento? Até

onde se pode estender o risco de um or-çamento maior? Até onde um orçamentomenor pode comprometer a qualidadedo projeto?

• Que tipo de diretor? Diretor estabele-cido, emergente ou estreante? Autoral ouprofissional? Comercial ou experiment-al? O que vale mais a pena: um diretorestrela, que atraia vendas internacionaismas pode ser difícil e exigente, ou umdiretor confiável, que vai entregar o pro-jeto no prazo, dentro do orçamento, mascom menos ideias e criatividade?

• Astros ou conjunto de elenco?Grandes estrelas podem ancorar e viabil-izar projetos apenas com seus nomes — apresença de Angelina Jolie assegurouque o “difícil” O preço da coragem, sobre oassassinato do jornalista Daniel Pearl

34/415

Page 35: Como ver um filme

nas mãos de terroristas paquistaneses,fosse realizado por um diretor autoral(Michael Winterbottom) e em locação naÍndia. Mas astros têm agendas próprias,calendários cheios de compromissos,agentes agressivos e cachês normal-mente na casa dos milhões — e nemsempre são os atores ideais para ospapéis.

• Estúdio, locação ou ambos? Digital?A novela gráfica 300, de Frank Miller, es-tava há anos perambulando pelas salasdos executivos da Warner, prisioneira darelação custo/benefício, até que o diretorZack Snyder apresentou um rascunho decomo o projeto poderia ser realizado porum quarto do custo e do tempo previs-tos, se feito com recursos digitais nospróprios estúdios da Warner, e não emalguma remota locação.

• Serão necessárias alterações sub-stanciais na história? Muitos

35/415

Page 36: Como ver um filme

produtores hesitam em rodar um filmeque possa ser proibido para menores de17 anos, que, hoje, constituem o maiscobiçado público de cinema. Ou talvez oprojeto não tenha um público-alvo defin-ido: mulheres? Homens? Adolescentes?Famílias? Muitas vezes o diretor que é fi-nalmente contratado quer tornar o filmemais próximo de seu estilo. Estrelas deprimeira grandeza rotineiramente exi-gem que suas cenas sejam reescritas,ampliadas e customizadas ao seu modode falar e agir.

Quando este processo termina, o filme queiremos ver ainda não passa de montes depapéis, mas a maior parte de seu destino jáfoi selada.

Agora são contratadas as peças-chave daequipe: o diretor, que, a partir deste mo-mento, assume o papel de comandante su-premo do projeto; os atores principais, escol-hidos pelo diretor com a consultoria do

36/415

Page 37: Como ver um filme

diretor de elenco e, é claro, os palpites doprodutor; o diretor de fotografia e o diretorde arte, braços direito e esquerdo do diretor,escolhidos diretamente por ele. O projetosaiu do casulo do desenvolvimento, recebeua luz verde e está pronto para voar.SE O DESENVOLVIMENTO É UM INFERNO, a pré-produção é a hora do recreio. Ainda livresdas amarras da realidade, do universo tridi-mensional, o diretor e sua equipe podemimaginar o roteiro de todos os modos, por to-dos os ângulos, e, com o auxílio de story-boards, conceitualizações e visualizações, teruma boa ideia de como será o resultado final.Os detalhes aborrecidos de quem tem quefazer o que e quando ficam por conta do ger-ente de produção (produtor executivo, noBrasil), a quem cabe a tarefa de transformaro roteiro num plano de filmagem, especific-ando que cenas serão filmadas quando, ondee com que integrantes do elenco e da equipe;que equipamentos serão necessários; se

37/415

Page 38: Como ver um filme

efeitos especiais, armas e dublês serão usad-os; se há figurantes, e quantos; e como todaessa gente será transportada e alimentada.Uma equipe de filmagem tem entre quarentae cem integrantes, fora o elenco e os extras —em casos de grandes produções, esse númeropode ser facilmente triplicado ou quadruplic-ado. É como movimentar um circo ou um ex-ército, ou decolar um jumbo, todos os diasdurante seis, oito, doze semanas… ou mais.

Enquanto isso, o diretor conspira com seusdois generais: o diretor de fotografia e o dire-tor de arte. A meta é estabelecer o conceitovisual do filme, seu estilo. Com o diretor defotografia (o DP, director of photography, nataquigrafia da indústria), o diretor selecionaos tipos de película, câmeras e lentes a seremempregados. Cenas-chave ou todo o filmesão decupados em storyboards, onde diretor eo DP imaginam como cada imagem ficará semostrada de determinado ângulo, com de-terminados movimentos. (Alguns diretores,

38/415

Page 39: Como ver um filme

como Martin Scorsese, Akira Kurosawa, Fe-derico Fellini e Tim Burton, desenham seuspróprios storyboards; outros, como os irmãosCoen e Quentin Tarantino, confiam otrabalhosempre aos mesmos profissionais, que setornam verdadeiros parceiros de sua visão,com acesso privilegiado ao roteiro).

O QUE ODESENVOLVIMENTOFAZ — A HISTÓRIA DEUMA LINDAMULHERNO FINAL DE 1988, A BUENA VISTA,

braço de produção da Disney, ad-quiriu os direitos de um roteiro on spec

39/415

Page 40: Como ver um filme

escrito pelo então jovem talento maisbadalado do laboratório Sundance, oJ. F. Lawton. Entitulado 3000, o ro-teiro era uma mistura de La Traviata ePigmaleão, e contava a jornada de umagarota vinda do interior que se tornaprostituta em Los Angeles, vicia-se emcocaína e aceita passar uma semanacom um alto executivo pelo preço detrês mil dólares, dinheiro que ela pre-cisa para realizar seu sonho — ir àDisneylândia. O final era triste ecínico — a moça termina abandonadana beira da freeway a caminho da Dis-neylândia, e tem uma overdose — masa estrutura era excelente, e ospersonagens, bem-desenhados.Quando os agentes de uma nova atrizascendente — Julia Roberts, que

40/415

Page 41: Como ver um filme

aparecera no independente MysticPizza e acabara de filmar Flores de aço,gerando altas doses de zum-zum pos-itivo — sondaram a Disney sobre pos-síveis projetos para sua cliente, LauraZiskin, produtora executiva no estú-dio, na época, lembrou-se de 3000. In-stintivamente, Ziskin sabia que muitacoisa teria que ser mudada: o final, osubplot da cocaína e todas as suasramificações, o tom amargo da trama.Isso se Julia dissesse sim.

E Julia disse. Lawton foi convocado,uma nova versão foi proposta. Julia eo estúdio queriam menos Traviata emais Gata borralheira. Muito mais.

Lançado em 1990 com direção do ex-periente Garry Marshall, Uma linda

41/415

Page 42: Como ver um filme

mulher impulsionou a carreira de JuliaRoberts, reapresentou a comédiaromântica para uma nova geração, e,tendo custado 14 milhões de dólares,rendeu quase 500 milhões no mundotodo. Julia ganhou um Globo de Ouroe foi indicada ao Oscar. J.F. Lawtonganhou o prêmio da Writers Guild ofAmerica, por roteiro original.

O INFERNO DODESENVOLVIMENTOCINCO ROTEIROS QUE JAMAIS VIRAM A

LUZ DAS TELAS:

42/415

Page 43: Como ver um filme

Flamingo Feather, Alfred Hitchcock,1956. Intriga de espionagem, rec-heada de suspense (é claro), passadana África do Sul. Hitchcok fez umaviagem de pesquisa à África do Sul echegou à conclusão de que não con-seguiria realizar o projeto por um or-çamento razoável.

Edward Ford, Lem Dobbs, 1979. Namitologia de Hollywood, Edward Fordé “o melhor roteiro não produzido ja-mais escrito”. Dobbs (nome real LemKitaj, nascido em 1959 em Oxford,Grã-Bretanha) veio a ter uma carreiraestelar como roteirista, assinandoTudo por uma esmeralda, Kafka e O es-tranho. Mas sua sombria comédiasobre um aspirante a ator em queda

43/415

Page 44: Como ver um filme

livre pelas entranhas da indústria per-manece inédita.

One Saliva Bubble, David Lynch e MarkFrost, 1987. Antes de conspirarempara criar a megacult série de TV TwinPeaks, Lynch e Frost criaram estescript, uma espécie de Dr. Strangelovepara o final do século sobre uma armanuclear que, ao dar defeito, causa todotipo de transtorno. Por exemplo: fazertodo o queijo de uma cidade do Kan-sas desaparecer. O projeto chegou aser anunciado no mercado de Cannesem 1992 na euforia pós-Peaks, masficou nisso mesmo.

Smoke and Mirrors, Lee e Janet ScottBatchler, 1994. Livremente inspiradonum fato real — o envolvimento do

44/415

Page 45: Como ver um filme

mágico Houdin numa tentiva de con-trolar rebeldes na Argélia francesa de1856 —, o roteiro já atraiu a atençãode Sean Connery, Michael Douglas eTom Cruise, mas jamais saiu do papel.

A Crowded Room, James Cameron,1995. Durante anos James Cameronfoi fascinado pela história de BillyMilligan, um homem preso e acusadode vários crimes graves no Meio-Oeste americano, em 1979. Ao pre-parar sua defesa, seus advogadosdescobriram que Milligan sofria depersonalidade múltipla, e que os as-saltos e estupros tinham sidocometidos cada um por uma de suas24 personalidades, sem o conheci-mento das demais. O distúrbio foiconfirmado por diversos psiquiatras, e

45/415

Page 46: Como ver um filme

Milligan foi o primeiro réu a usar per-sonalidade múltipla em sua defesa.Cameron opcionou o livro de DanielKeyes sobre o caso e escreveu um ro-teiro interessantíssimo, com muitoselementos que seriam vistos anos de-pois em Uma mente brilhante, de RonHoward. Mas quando o financiamentode outro projeto seu finalmente ficoudisponível, Cameron abandonou ACrowded Room e foi filmar Titanic.

Para sequências complicadas, comoperseguições, tiroteios e batalhas, os story-boards são uma ferramenta indispensável —ajudam a prever todas as variantes positivase negativas, antes que o “taxímetro” dos cus-tos de filmagem comece a rodar.

Com o diretor de arte — que a essa alturajá montou a sua equipe, com o figurinista, o

46/415

Page 47: Como ver um filme

chefe de maquiagem e cabelo e o criador doscenários —, o diretor trabalha a “encarnação”de personagens e ambientes do filme.Locações podem já ter sido pré-selecionadas,aguardando apenas a palavra final do diretore do diretor de arte — ou, pelo contrário, sãoimaginadas e desenhadas nesta etapa, com oauxílio de artistas conceituais, e depois pro-curadas no mundo real ( o “lago gelado” queserve de cenário a um confronto importantede Rei Artur, de Antoine Fuqua, 2004, foi cri-ado primeiro pelos artistas conceituais e de-pois achado parcialmente na Nova Zelândia.Montanhas, geleiras e nuvens digitais fizer-am o restante.).

Muitas vezes cabe a esta fase a criação dospróprios personagens do filme. Se seu ro-teiro pede um monstro assassino, um visit-ante extraterrestre ou um flexível e transpar-ente ser das profundezas abissais, nenhumaprodutora de elenco poderá resolver seuproblema. O brainstorm entre diretor, diretor

47/415

Page 48: Como ver um filme

de arte e artista conceitual — muitas vezescom a participação do roteirista — deu aforma final a personagens famosos como oalien de Alien, o oitavo passageiro (RidleyScott, 1979; concepção de H.R. Giger), o ex-traterrestre de E.T. (Steven Spielberg, 1982;concepção de Carlo Rambaldi) ou o pseudo-pod de O segredo do abismo (James Cameron,1989; concepção de Dennis Muren & ILM).IDEALMENTE, COM TODOS OS PROBLEMAS e asminúcias do projeto resolvidos — pelo menosno papel —, o projeto entra, afinal, em fasede produção, que é o que a maioria daspessoas associa com “fazer um filme”. Paranós, na plateia, é interessante saber que,quando as câmeras começam a rodar, amaior parte do tempo de criação de um filmejá está, geralmente, no passado, nas etapasde desenvolvimento e pré-produção. De mui-tos modos, é como se todo o filme já tivessesido realizado na cabeça do diretor (e do ro-teirista) e, agora, simplesmente tivesse que

48/415

Page 49: Como ver um filme

ser passado para uma mídia que nospossibilite vê-lo também.

No set de filmagem — um pouco circo, umpouco laboratório —, a visão se realiza e osplanos confrontam a dura realidade.Acidentes acontecem, com todo tipo de res-ultado, do tufão catastrófico que destruiu oscenários de Apocalipse Now nas matas dasFilipinas ao ator que se intimidou com apresença de Daniel Day-Lewis em Sanguenegro e foi substituído no meio da filmagempor Paul Dano, inicialmente escalado parafazer o irmão dele (criando, assim, uma novae peculiar textura aos personagens, que pas-saram a ser gêmeos). Um gato vira-lata pulano colo de Marlon Brando durante a fil-magem da cena de abertura de O poderosochefão e é rapidamente incorporado pelo atorao mundo doméstico de seu personagem,dando uma dimensão imprevista ao poder-oso diálogo com Bonasera. Uma atriz famosa— Ali McGraw — se divorcia do produtor —

49/415

Page 50: Como ver um filme

Robert Evans — na véspera do início das fil-magens e é substituída por outra, que abso-lutamente rouba o papel — Faye Dunaway —em Chinatown (Roman Polanski, 1974).Atores morrem no meio das filmagens —Brandon Lee em O corvo (Alex Proyas, 1994),Oliver Reed em Gladiador (Ridley Scott,2000) —, obrigando a novas abordagens datrama.

Sem falar nos amores — o diretor Peter Bo-gdanovich se apaixonando pela então atrizestreante Cybill Shepherd em pleno set de Aúltima sessão de cinema (1970) diante dos ol-hos da esposa, a diretora de arte Poly Platt—, desamores, birras, brigas — Peter Fondarompendo com Dennis Hopper a meio cam-inho das filmagens de Sem destino (1969), cri-atura de ambos —, explosões, fofocas: umavasta gama de complexas interações human-as que ocorrem no mundo hermeticamentefechado do set de filmagem e que podem, de

50/415

Page 51: Como ver um filme

um modo ou de outro, interferir na estruturatão rigorosamente planejada do filme.

Durante as filmagens — um processo quepode durar de seis semanas a dez meses —, omaterial de cada dia é avaliado pelo diretor epelos produtores através de cópias tem-porárias chamadas dailies, em que o desem-penho de todos — atores, diretor, equipe téc-nica — é avaliado com rigor. Erros sérios decontinuidade — coerência entre os elementosde uma mesma cena — ainda podem ser cor-rigidos, abordagens dos personagens e toma-das de cena ainda podem ser alterados.

Uma vez aprovado e colocado “na lata”, omaterial bruto de um filme só terá mais umaoportunidade para ser melhorado, corrigidoou salvo: a pós-produção.NA PÓS-PRODUÇÃO o filme recebe sua formafinal, através de montagem, sonorização eefeitos visuais e sonoros. Como veremosmais adiante, cada um desses elementospode alterar radicalmente o tom, a textura e

51/415

Page 52: Como ver um filme

até mesmo a intenção de sequências inteiras,e, muitas vezes, do próprio filme. Filmes po-dem nascer na pós-produção — Tubarão(Steven Spielberg, 1975) foi um deles — ounela morrer, com elementos vitais cortados,adicionados, modificados — a primeira ver-são de Blade Runner, em 1982, e, mais re-centemente, Invasores (2007), arrancado dasmãos do diretor Oliver Hirschbiegel peloprodutor Joel Silver, são bons exemplos.

Raros e privilegiados são os diretores quedetêm o poder de “corte final” para as ver-sões de seus filmes — este glorioso períodode autoria total encerrou-se com os anos1970. A imensa maioria dos realizadoresobriga-se a entregar aos produtores e/ou dis-tribuidores (dependendo da estrutura de fin-anciamento) um corte dentro de parâmetrospreestabelecidos contratualmente — dur-ação, data de entrega, faixa etária de público.O que acontecerá com este corte é determ-inado, em grande parte, pelo projeto de

52/415

Page 53: Como ver um filme

marketing que veio sendo elaborado para ofilme desde que ele recebeu a luz verde —seja dentro de um grande estúdio, seja numaprodutora independente.

Um elemento essencial deste projeto são assessões-teste. De um modo ou de outro, todofilme é visto com fins de avaliação antes departir para um lançamento comercial. Umprojeto altamente autoral pode ser exibidopor seu diretor para um grupo de amigos,colegas, conselheiros e consultores de confi-ança. Um filme independente, de orçamentomodesto, pode ser testado em exibições gra-tuitas em campi universitários, salascomunitárias ou pequenas mostras não com-petitivas. Qualquer coisa acima dos vintemilhões de investimento clama por testesrealizados profissionalmente por grupos deanálise de mercado, em amostras de públicorigorosamente selecionadas.

53/415

Page 54: Como ver um filme

UMA DÚZIA DE BONSFILMES SOBREFAZER FILMESO crepúsculo dos deuses, Billy Wilder(1950). Um último olhar sobre a “Hol-lywood velha escola” que em brevenão existiria mais.

Oito e meio, Federico Fellini (1963). Namente de um diretor em crise, vida,sonho e criação se misturam numgrande set espiritual.

A noite americana, François Truffaut(1973). O set como uma família tem-porária, neurótica e criativa.

54/415

Page 55: Como ver um filme

Stardust Memories, Woody Allen(1980). Através de um alter ego o“Woody cineasta de humor” refletesobre sua obra e os impasses da meia-idade.

O substituto, Richard Rush (1980). Umfugitivo da lei se esconde num set defilmagem e ninguém nota.

O jogador, Robert Altman (1992). Aalta e a baixa política de Hollywooddão forma a um filme do pitch à es-treia para os executivos.

Ed Wood, Tim Burton (1994). Seu lemaera: “Meu próximo filme serámelhor.”

Vivendo no abandono, Tom DiCillo(1995). A dura, hilária e

55/415

Page 56: Como ver um filme

frequentemente poética vida dos cine-astas independentes.

Boogie Nights, Paul Thomas Anderson(1997). Filme pornô também é cinema— e seus sets criam as mesmas famíli-as temporárias.

Os picaretas, Frank Oz (1999). O pitor-esco universo do filme abaixo de B,em todo o seu glorioso absurdo.

A sombra do vampiro, E. Elias Mehrige(2000). Uma possível abordagem doque teria acontecido no set de Nosfer-atu, de Murnau, em 1922.

Dirigindo no escuro, Woody Allen(2002). Um riff sobre uma antiga ane-dota da velha Hollywood — quando os

56/415

Page 57: Como ver um filme

filmes se tornam formulaicos, até umdiretor cego é capaz de fazê-los.

Todos esses processos têm uma coisa emcomum: a importância da opinião dos es-pectadores, expressa em geral em formulári-os previamente distribuídos. Diretor,produtores e distribuidores querem dimen-sionar, em primeiro lugar, a clareza do filme,se ele está sendo compreendido pelo público.Depois, que impacto, positivo ou negativo, ofilme tem sobre ele. Que elementos e per-sonagens mais atraíram o interesse? Quesentimentos provocaram? E, finalmente, quetipo de público mais se identificou com ofilme — o que pode contradizer ou confirmaros estudos feitos durante o desenvolvimento.

Uma vez obtidas essas respostas, o queacontece com o filme depende muito davisão do diretor, do seu prestígio e seu poder

57/415

Page 58: Como ver um filme

de fogo, do estado do seu relacionamentocom produtores e distribuidores (relaçõespodem se deteriorar rapidamente neste meioaltamente combustível) e da flexibilidadedaqueles que detêm o poder da decisão final.Versões múltiplas podem ser feitas e testadasseparadamente. O diretor pode ceder umtanto e o produtor, outro tanto, chegando aum consenso. Quando criador e detentor depoder econômico têm um bom relaciona-mento, este processo aparentemente brutal ecerceador pode se transformar num exercíciocriativo que, efetivamente, torna o filme mel-hor. Em períodos de crise, recessão, re-traimento de mercado, ou quando o pêndulocai exclusivamente para o lado das finanças,verdadeiras matanças se dão. Telas e ilhas deedição estão repletas dos restos mortais deideias que talvez dessem belos filmes, sacri-ficados no altar do clichê, do previsível e dolucro fácil.

58/415

Page 59: Como ver um filme

ALGUMAS SUGESTÕESLEIA SOBRE A PRODUÇÃO DE UM FILME

antes de vê-lo. Procure compreendero que foi envolvido no processo delevar o projeto à tela, quem foram osprincipais elementos que tornaramisso possível, qual o impacto desseseventos na forma final do filme.

Veja o making of e as entrevistas sobreo filme ANTES de vê-lo em DVD. Ob-serve como os diversos problemas daprodução foram abordados eresolvidos.

59/415

Page 60: Como ver um filme

2. No princípio era o verbo: a construção do roteiro

2. NO PRINCÍPIO ERA OVERBO: A CONSTRUÇÃO

DO ROTEIRO

“A função do poeta não é relatar o queaconteceu,

mas o que pode acontecer, de acordo com asleis da

probabilidade e da necessidade.”Aristóteles, Poética

Page 61: Como ver um filme

QUANDO, NO ANO 335 A.C., Aristóteles dissecouprincípios e práticas da arte dramática emseu tratado Poética, ele conseguiu antecipar“um texto em prosa ainda sem nome”, queseria a literatura, mas não o que viria a serum dos usos mais comuns de seu trabalho —o roteiro cinematográfico. Ouso dizer que,sem Aristóteles e Poética, o roteiro não seria aclara e definida peça de literatura dramáticaque é hoje, e roteiristas ainda estariamquebrando a cabeça para tentar contar umahistória complexa em menos de 120 minutos,sem perder a atenção das pessoas na salaescura.

Nada mais adequado, portanto, quecomeçar nossa jornada pelo interior do pro-cesso criativo do cinema com Aristótelescomo guia. Se na frase que serve de epígrafe

Page 62: Como ver um filme

ao capítulo substituirmos a palavra “poeta”por “roteirista”, teremos uma definição pre-cisa do que um bom roteiro deve ser: o relatodo possível, não do real, balizado pelas leisinternas da probabilidade e da necessidade.

A lei da probabilidade cria a lógica internaque todo bom filme deve ter e que nos leva asuspender nossa descrença. Sabemos quetudo na tela é fruto da imaginação de alguémmas... tudo aquilo é provável? Se os fatos natela obedecem a normas inventadas porémrigorosamente mantidas ao longo dos 120minutos, somos capazes de acreditar empraticamente tudo: bichos que falam, carrosque voam, prostitutas que se casam commilionários, vampiros que frequentam aescola. No primeiro momento em que pis-camos forte, balançamos a cabeça e dizemosmentalmente (ou não) “Mas que surreal!”, ofilme nos perdeu um pouquinho. Se continu-armos tendo a mesma reação, o filme pode

62/415

Page 63: Como ver um filme

nos perder de vez — o preço de violar a lei daprobabilidade.

A lei da necessidade dá ao roteirista a dis-ciplina para escolher, entre todas as ver-tentes possíveis para sua narrativa, aquelasque realmente impulsionam a história, ex-plicam o mundo interior dos personagens,justificam suas ações, esclarecem o universofísico e emocional em que vivem, criamtensões, enigmas e paradoxos que tornam ahistória mais envolvente e interessante. Seuma página de roteiro contém palavraslindas e comoventes, sejam elas descriçõesépicas ou diálogos poderosos, mas nada da-quilo é necessário para elucidar, complicarou avançar o que aconteceu antes, a lei danecessidade foi violada. Vamos achar o filmeconfuso, tedioso, talvez até agressivamenteimpenetrável. O perfume exageradamentedoce da autoindulgência vai pairar no ar, ir-ritante como num elevador às 9h da manhã.Vamos nos perguntar: “Mas por que mesmo

63/415

Page 64: Como ver um filme

estou vendo isso, hein?” Quando ruid-osamente desobedecida, a lei da necessidadenos desprende do filme de imediato — e, emgeral, para sempre.

Ao final da jornada criativa de um filme —que começa com uma ideia expressa num ro-teiro —, o controle sobre o material deve serde tal ordem que nada do que está na telaseja gratuito, tudo o que está na tela tenhauma razão de ser. Um diálogo inteligenteentre criação e espectador, filme e plateia, atela e nós, no escuro, pode se dar, então.Para nós, as perguntas-chave são:▪ Por que o diretor está me mostrando es-

tas imagens, e não outras?▪ Por que estou vendo as imagens desta

forma?▪ Por que estou vendo as imagens nesta

ordem?▪ Por que estou ouvindo ou não ouvindo

palavras, sons, ruídos, música?

64/415

Page 65: Como ver um filme

As respostas, idealmente, nos abrirão aschaves secretas do filme, permitindo quetudo nele fale conosco.TODO FILME TEM UM TEMA, uma premissa, umatrama e um ou mais gêneros. O tema éaquilo sobre o que o filme discorre. Não é ahistória, ou os traços dos personagens, ou oque acontece com eles: é a ideia fundament-al, subjacente a tudo. O vencedor do Oscarde 2009, Quem quer ser um milionário? (DannyBoyle, 2008), por exemplo, é sobre esper-ança — como, nas condições mais horrendasde vida, a pura vontade de seguir adiantepode forjar um futuro melhor. O do ano an-terior, Onde os fracos não têm vez (Joel e EthanCoen, 2007), é sobre responsabilidade, opeso e as consequências de nossas escolhas eações. Guerra ao terror, o melhor filme de2010, era sobre a estranha vertigem doperigo extremo, adicionando uma camada decomplexidade a um tema central a todo filmede guerra: o da lealdade (a quem ser leal: à

65/415

Page 66: Como ver um filme

sua tropa? Ao seu país? A si mesmo?). Curi-osamente, O discurso do rei, o premiado em2011, tem um tema que, de imediato, parececaber apenas em dramas bélicos ou de aven-tura: a coragem, compreendida não como aausência do medo (um dos aspectos deGuerra ao terror, aliás), mas como a capacid-ade de, consciente dele, enfrentá-lo.

A premissa é a forma que esse tema as-sume. No filme de Danny Boyle, a premissa éa determinada convicção de seu jovem prot-agonista, Jamal Malik (Dev Patel), de quepode vencer o concurso que dá título ao filmeno Brasil, apesar de seu passado de pobrezaextrema. No dos irmãos Coen, a premissa é oimpacto que uma maleta cheia de dinheirotem na vida do homem que a encontra, e osfatos que a descoberta deflagra. Em Guerra aoterror, a premissa é a capacidade (ou não) donovo sargento James (Jeremy Renner) parasubstituir seu predecessor no minucioso eperigosíssimo ofício de desmontar bombas

66/415

Page 67: Como ver um filme

na zona de guerra do Iraque. Num outroparalelo interessante, a premissa de O dis-curso do rei também envolve um homem — opríncipe Albert, duque de York (Colin Firth)— que precisa substituir outro — seu irmãomais velho, David, príncipe de Gales (GuyPearce) — sem ter um elemento fundamentalna era do rádio: a eloquência.

A trama é a história do filme, o desenvol-vimento da premissa. É aquilo que contamosaos amigos que não viram o filme: os detal-hes da história, como ela começa, como sedesenvolve, os conflitos, os problemas, osconfrontos, as vitórias e as derrotas.

O gênero é a forma que a premissa e atrama tomam. Uma mesma história — di-gamos, a saga do rei Arthur e os cavaleirosda Távola Redonda — pode assumir caracter-ísticas de gêneros diferentes: em Excalibur(John Boorman, 1981), um drama; em Rei Ar-thur (Antoine Fuqua, 2004), um filme deaventura; e em Monty Python e o Santo Graal

67/415

Page 68: Como ver um filme

(Terry Gilliam e Terry Jones, 1975), umacomédia satírica. Na segunda parte do livrovamos nos ocupar em detalhes dos principaisgêneros, como eles se organizam, quais sãoseus temas essenciais e como foi suaevolução ao longo da história do cinema.

Uma vez estabelecidos estes elementosbásicos, o escritor deve escolher o tipo denarrativa que dará à sua trama, qual a maisadequada para enfatizar o tema, mais coer-ente com sua premissa. Os principais tiposde narrativa são:▪ Direta: A mais comum, que mais vemos:

uma história em ordem cronológica, comcomeço, meio e fim, contada exatamentenessa ordem, mesmo que com algunsflashbacks e flashforwards no meio.

▪ Inversa: Uma história contada inteira-mente em flashback, cujas primeiras im-agens são, na realidade, as derradeiras. Émuito usada em filmes em que se conta ahistória de uma vida, seja pelo próprio

68/415

Page 69: Como ver um filme

biografado ou por algum observador(Amadeus, Milos Forman, 1984; ForrestGump, o contador de histórias, Robert Ze-meckis, 1994; Ratatouille, Bard Bird,2007). É um formato que também sepresta ao thriller de suspense, oferecendoa enganosa certeza de “como tudoacabou”, e nos deixando curiosos a re-speito de como foi a jornada até lá(Crepúsculo dos Deuses, Billy Wilder, 1950;Cães de aluguel, Quentin Tarantino, 1992;Os suspeitos, Bryan Singer, 1995).

▪ Episódica: Diversas histórias, cada qualcom sua própria trama, mas em geralunidas por um tema comum, ou atémesmo uma única premissa. Cadahistória tem o seu começo, meio e fim,que podem ou não se intercalar em de-terminados momentos (La Ronde, MaxOphuls, 1950, e Roger Vadim, 1964;Short Cuts, Robert Altman, 1993; Traffic,Steve Soderbergh, 2000; Amores brutos,

69/415

Page 70: Como ver um filme

Alejandro González Iñarritu, 2000; Ashoras, Stephen Daldry, 2002; Sin City,Robert Rodriguez e Frank Miller, 2005).

▪ Fracionada/Não linear: Uma ou vári-as histórias (ligadas entre si) contadasem segmentos fora de cronologia, que seconectam em momentos-chave, atravésde personagens, situações ou símbolos(Oito e meio, Federico Fellini, 1963; PulpFiction, Quentin Tarantino, 1994; Am-nésia, Christopher Nolan, 2000; Cidade deDeus, Fernando Meirelles, 2002; Quemquer ser um milionário?, Danny Boyle,2008; Namorados para sempre, Derek Ci-anfrance, 2010).

Para sustentar qualquer um desses tipos denarrativa, o roteirista precisa se preocuparcom a estrutura de seu projeto. Muitagente acredita que roteiro equivale a diálogo,e que um bom roteiro é o que tem diálogosbem-escritos, comoventes, espirituosos, sar-cásticos, divertidos etc. Na verdade, o

70/415

Page 71: Como ver um filme

diálogo é algo secundário no filme — sendo aplanta baixa de imagens em movimento, umbom roteiro deve privilegiar o mostrar e nãoo contar; o diálogo, quando presente, precisaestar subordinado às essenciais regras aris-totélicas de probabilidade (na qual se inclui acoerência com o perfil psicológico de cadapersonagem — um sinal seguro de um mauroteiro é quando todos os personagens falamdo mesmo modo) e necessidade.

Roteiro é principalmente estrutura:a arquitetura de uma ideia claramente ex-pressa, mas repleta de elementos que pos-sam estimular, intrigar, provocar, emocionaro espectador. Um roteiro bem-estruturado,em que o autor revela um profundo conheci-mento de seus personagens e um controlecompleto sobre o que eles fazem e o que comeles acontece, é a base para um bom filme.Nele, os diálogos surgem naturalmente,como parte orgânica dos personagens, nas-cendo de suas emoções, valores e reações e,

71/415

Page 72: Como ver um filme

de fato, colaborando para a condução danarrativa.

Um antigo adágio do meio diz que fazerum mau filme com um bom roteiro é algoque acontece, mas fazer um bom filme comum roteiro ruim é praticamente impossível.

A estrutura de um roteiro apoia-se em doiselementos essenciais:

O ritmo: Todo roteirista é escravo dotempo — seja qual for a trama que ele quisercontar, de um dia na vida de uma pessoa avárias décadas na história de uma nação, eleprecisa fazê-lo em, idealmente, 120 minutos,equivalendo a 120 páginas impressas. É pre-ciso pensar nessas páginas como tempo, enão como texto (privilégio da literatura).Como usar esse tempo é o primeiro desafiopara a montagem da estrutura: quantas pági-nas/minutos cada personagem, situação esentimento pedem? Onde se deter ou seaprofundar? Onde economizar tempo commontagens, sequências simultâneas ou

72/415

Page 73: Como ver um filme

intercaladas? Qual o ritmo geral que trama epremissa pedem para melhor expressar otempo: a lentidão meditativa de umKurosawa em Dersu Uzala (1975), de umBergman em Gritos e sussurros (1972) ou o pi-cote acelerado de um Tarantino em Pulp Fic-tion (1994)? Decisões tomadas no set pelodiretor (que, nos três exemplos acima, tam-bém é o roteirista, situação ideal de autoriacada vez menos comum) influenciarão esteuso do tempo. A montagem dará o ritmo fi-nal do filme, mas a proposta inicial deve es-tar incluída desde o início no modo como oautor administra o tempo de cada um deseus elementos dramáticos.

O arco da narrativa: Um filme é umajornada, e o roteiro é seu mapa.Protagonistas movimentam-se não apenasno espaço, mas principalmente no espaço in-terior, ao sabor de crises e resoluções. Ideal-mente, eles devem chegar ao final do filme omais transformados possíveis, ou seja:

73/415

Page 74: Como ver um filme

narrativa e existencialmente o mais distantepossível do lugar — físico, metafísico, emo-cional — onde começaram.

Para que possamos seguir essa trajetória,ela não pode ser linear — morreríamos de té-dio e logo nos desprenderíamos emocional-mente da narrativa. Respeitados o ritmo e asopções estilísticas do autor, a narrativa cine-matográfica segue um arco assim, descritopor Aristóteles em Poética:

Na Exposição, trama e personagens sãoapresentados. Na Ação Crescente (ouComplicação), conflitos se anunciam etentam ser resolvidos, com intensidade cres-cente até atingir um Clímax, um evento emque todas as ações e os conflitos chegam aoseu ápice. A partir daí a ação torna-seDecrescente, com a dissolução ou resol-ução dos conflitos, até a Conclusão final.

74/415

Page 75: Como ver um filme

Um roteirista pode seguir este arco ao péda letra, criar variações sobre ele ou até,deliberadamente, ignorá-lo, para obterreações e resultados diversos. Mas eu ousariadizer que 95% dos filmes que vemos obed-ecem essencialmente a essa estrutura, analis-ada com precisão há mais de três mil anos.

A adesão estrita ao modelo aristotélico doarco constrói um roteiro com três atosbastante definidos:ATO I:Exposição: Onde estamos, quem são ospersonagens, o que acontece com eles paraque a trama se ponha em movimento. (Umaabordagem tradicional da abertura do Ato I

75/415

Page 76: Como ver um filme

diz que o primeiro personagem que vemosdeve ser o protagonista. É uma regra con-stantemente quebrada com grande efeitodramático: por exemplo, em O poderoso chefãoo primeiro personagem que vemos é osuplicante Bonasera, e não o Padrinho Corle-one — que, quando finalmente surge emcena, está de costas.)

Oposição: O primeiro grande obstáculose apresenta, complicando a ação: umoponente, um rival, uma perda, um desafio,enfim, uma mudança no status quo descritona exposição.ATO II:Auge da oposição: A trama se complicaainda mais, a ação cresce; novos persona-gens são introduzidos dos dois lados daoposição: mentores, aliados,coconspiradores.

Conflito: O problema essencial da tramase revela. Há um grande impasse, umdilema, algo que exige decisões drásticas,sacrifícios, mudanças de rumo.

76/415

Page 77: Como ver um filme

Primeira tentativa de resolução: Umasolução imediata é encontrada, mas rapida-mente se revela insuficiente, criando atémesmo novos problemas.ATO III:Mudança radical: Transformação interiordos personagens, grandes mudanças, escol-has radicais, sacrifícios, atos heroicos re-solvem finalmente o conflito/impasse.

Resolução: Os personagens principais es-tão o mais longe possível de onde estavam noinício do filme. São capazes de atos, escolhase sentimentos impensáveis no Ato I. Umagrande jornada se deu e, se o final é satis-fatório, o espectador sente isso. Não é ne-cessário que tudo seja resolvido ou explic-ado, mas deve permanecer clara a resoluçãodo conflito que foi a espoleta da jornada (porexemplo, o final de Filhos da esperança, de Alf-onso Cuaron, 2006, é aberto à interpretaçãode cada um, mas uma criança nasceu numaTerra até então estéril, quebrando o

77/415

Page 78: Como ver um filme

paradigma essencial e resolvendo o grandeimpasse da narrativa).

Popular a partir do final dos anos 1960com a disseminação das obras e das teoriasdo antropólogo Joseph Campbell, o modeloJornada do Herói trouxe uma abordagemmais orgânica e integrada desta estrutura detrês atos, deixando a narrativa ancorada àtrajetória do protagonista. Como, na visão deCampbell, todas as histórias da humanidadesão uma única história (monomito) em infin-itas variações, o roteiro no modelo Jornadado Herói organiza-se de acordo com os pon-tos básicos deste mito universal, menos pre-ocupado com os três atos e mais com a flu-idez, causas e consequências das ações doprotagonista:

O mundo da inocência: A situação ini-cial em que o herói se encontra, ignorante desuas possibilidades e poderes, muitas vezesaté mesmo equivocado quanto à suaidentidade.

78/415

Page 79: Como ver um filme

O chamado: Um fato novo, inesperado,perturbador, que tira o herói de seu mundoda inocência e revela todo um novo universode desafios, uma nova identidade, umamudança radical da autopercepção. Em ger-al, o chamado traz consigo algum tipo demissão ou desafio que deve ser cumpridopara que as promessas nele contidas se real-izem plenamente.

A jornada e as provações: Herói parteem resposta ao chamado, saindo do mundoda inocência para cumprir sua missão.Segue-se todo tipo de teste, atribulação,perigo e sofrimento. A cada uma dessasprovações, idealmente, algo novo sobre areal identidade do herói deve ser revelado, eele deve descobrir um novo poder, virtude oufraqueza.

A conquista do troféu: A missão écumprida, o chamado é plenamente realiz-ado. Herói é o que deveria ser, consciente desua identidade e poderes.

79/415

Page 80: Como ver um filme

A volta para casa/Compartilhando asconquistas: Pode haver uma outra jornadade retorno em que questões pendentes sãoresolvidas. Fundamental é que o herói passeagora a se comportar como seu verdadeiroEu, corrigindo falhas e eliminando prob-lemas do passado.

Não é difícil ver que este é o modelo exatoda trama de Guerra nas estrelas (Star Wars) —George Lucas foi um dos primeiros discípu-los de Campbell a testar suas teorias na nar-rativa cinematográfica, comprovando com oenorme sucesso da série que de fato a Jor-nada do Herói era um template perfeito paracriar novas mitologias. Longas de animação,que também trabalham na esfera da fábula,são assíduos seguidores deste modelo, assimcomo filmes de fantasia como a série HarryPotter e a trilogia O senhor dos anéis.

80/415

Page 81: Como ver um filme

RESTA AGORA DECIDIR COMO esta narrativaserá conduzida. No cinema de ficção, tempoe prática mostraram que há dois caminhosbásicos:

Narrativa conduzida pela ação (plotdriven): É a abordagem que Aristótelesescolheria, se estivesse trabalhando como ro-teirista, hoje. Em Poética, nosso mestre e guiadiscorre extensamente sobre a importânciados acontecimentos na narrativa dramática:como eles deveriam ser os condutores dodrama, restando aos personagens reagirem aeles. A grande maioria dos filmes comerciaisopta por este caminho — embora num bom

81/415

Page 82: Como ver um filme

roteiro os personagens estejam construídospor inteiro, com personalidades e mundosinteriores, é o que acontece a eles que põe atrama em movimento: o escritor e aven-tureiro T.E. Lawrence emerge completo econtraditório no roteiro de Michael Wilson eRobert Bolt para Lawrence da Arábia (DavidLean, 1962), mas é sua ida para o OrienteMédio, seu encontro com os líderes tribais, odeflagrar da Primeira Grande Guerra e suaparticipação nela que impulsionam o filme,deixando-nos sempre interessados em vercomo ele reagirá a cada novo fato, o queacontecerá com ele, que escolhas fará. Nestetipo de roteiro, são essenciais o controle daestrutura e o uso sábio dos plot points — osmomentos cruciais de acontecimento aolongo do filme. Esse estilo é típico do cinemaamericano de mercado e de boa parte daprodução internacional, principalmente apartir dos anos 1980.

82/415

Page 83: Como ver um filme

Narrativa conduzida pelos persona-gens (character driven): Nesta opção,não é o que acontece aos personagens queimporta — é quem eles são, quais suas mo-tivações interiores, o relacionamento com omundo à sua volta e com os demais persona-gens. Na verdade, num filme conduzidopelos personagens, muito pouco acontece —em Gritos e sussurros (Ingmar Bergman,1972), uma mulher agoniza, cercada pelafamília imediata; em Sem destino (DennisHopper, 1969), dois amigos atravessam osEstados Unidos de moto, movidos larga-mente a maconha; em Juno (Jason Reitman,2007), uma adolescente se descobre grávidae decide entregar o bebê para adoção. Nempor isso deixamos de seguir cada momentodestas odisseias íntimas, pessoais, se o ro-teiro é bom e nos oferece suficientes janelaspara o universo interior dos personagens, enos dá a opção de conhecer indivíduos real-mente únicos, complexos, interessantes,

83/415

Page 84: Como ver um filme

fascinantes. Neste tipo de narrativa, a back-story — o passado do personagem até o mo-mento em que a história do filme começa — éessencial, e o autor precisa conhecer e con-trolar todos os detalhes da personalidade desuas criaturas. A narrativa character driven édominante no cinema europeu, nas obras dachamada Geração Nova Hollywood dos anos1960-70 e no cinema independente norte-americano a partir do final dos anos 1980.TEORIA E PRÁTICA CRIARAM um repertório es-pecífico de recursos e atributos da narrativacinematográfica. São os ossos e os truques doofício que, se descobertos, dão uma novaqualidade à nossa experiência de assistir.

Suspensão da descrença: O resultadomáximo da lei da probabilidade é suspendernossa descrença. Uma narrativa convicta desi mesma, com impecável lógica interna,sustenta qualquer absurdo, qualquer voo daimaginação. O filme que realmente nos en-volve e dialoga conosco é o que sobrepuja

84/415

Page 85: Como ver um filme

nosso ceticismo e deixa-se governar por suaspróprias regras.

Quarto muro: O filme deve ser uma en-tidade em si mesma, independente do nossoolhar e indiferente a ele. Um mundo contidonele mesmo, que não sabe que está sendovisto. Fazer um personagem quebrar este“quarto muro” invisível, entre tela e plateia, edirigir-se diretamente a nós é uma audáciaque deve ser cuidadosamente medida.Quando bem-usada, nós achamos divertido esurpreendente. Em excesso e na hora errada,é extremamente irritante.

Backstory: Imaginar, esboçar e, em mui-tos casos, escrever detalhadamente o pas-sado dos personagens antes do início datrama é um recurso de grande utilidade pararoteirista, diretor e elenco. Elementos dessepassado informam a reação dos personagens,explicam traços de sua personalidade e po-dem ou não pontuar a trama, em referênciasclaras ou sutis (uma foto sobre a mesa, um

85/415

Page 86: Como ver um filme

objeto de uso pessoal, uma expressão muitasvezes repetida). Atores treinados pelo “méto-do”, como Sean Penn, Al Pacino e Robert DeNiro, usam backstories detalhadas como fer-ramenta para ancorar a veracidade do per-sonagem e muitas vezes complementam asanotações de roteiristas com suas própriaspesquisas.

Foreshadowing: Talvez o recurso maispoderoso e menos notado do roteiro, o fore-shadowing (literalmente, sombreamentoantecipado) é um elemento tipicamente cine-matográfico, de notável eficiência. Foreshad-owing é mostrar antes, de forma simples ouresumida, algo que será de enorme im-portância mais adiante, no clímax ou na res-olução da trama. É um modo do roteiristanos treinar a ver, nos educar na percepçãodaquilo que ele escolheu como essencial paraa história. Em Onde os fracos não têm vez, porexemplo, os irmãos Coen nos mostram váriasvezes como o assassino, Anton Chigurh

86/415

Page 87: Como ver um filme

(Javier Bardem), usa um compressor de arnão apenas como arma mortal, mas tambémcomo eficiente método para abrir fechadurase trancas. Numa sequência essencial dofilme, quando o Llewellyn de Josh Brolin es-tá acuado num hotel da fronteira, nós, naplateia, sabemos antes dele quem o estáperseguindo, simplesmente ao ver o ferrolhoda porta saltar com um golpe de ar comprim-ido. Mais que isso — nesta simples imagem,temos imediatamente toda a realização doperseguidor implacável e cruel que está atrásdo protagonista.

Bookends: Uma história que pode ou nãoter relação com o resto do filme, e que servede moldura para o resto da trama. Por exem-plo, em Sin City, a história entre uma mulhere um homem na cobertura de um arranha-céu abre e fecha a narrativa sem ter nada emcomum com ela a não ser o estilo e o ambi-ente. Em Babel (Alejandro González Iñarritu,2006), a história do rifle e dos meninos nas

87/415

Page 88: Como ver um filme

montanhas do Marrocos pode ser vista comoo bookend das outras tramas. Quando umbookend está ligado, ainda que sutilmente, ànarrativa principal, ele também pode serchamado de framing device, a “moldura” queserve de base à trama ou às tramas. Em Quemquer ser um milionário? a detenção e a torturade Jamal são a moldura de toda a história, doseu passado e de como ele se conecta ao pro-grama de TV.

Flashbacks/flashforwards: Um ele-mento do passado (flashback) ou do futuro(flashforward) da trama é revelado, sob aforma de lembrança, especulação ousimplesmente como uma interferência nanarrativa “presente”. É um recurso poderosoquando usado sabiamente, e que a plateiaconhece bem. Conduta de risco (Toy Gilroy,2007) começa com uns bons quinze minutosde flashforward: a empresa frenética nacalada da noite, a ligação para MichaelClayton (George Clooney) e sua atribulada

88/415

Page 89: Como ver um filme

jornada pela estrada campestre são incid-entes que ocorreram quatro dias depois danarrativa principal que, em ordem direta,ocupa a maior parte do filme. Tanto CidadãoKane (Orson Welles, 1941) quanto Entrevistacom o vampiro (Neil Jordan, 1994) e J. Edgard(Clint Eastwood, 2011) usam o flashback domesmo modo: como um artifício para “en-quadrar” a narrativa principal. No primeiro,a busca do significado de “rosebud”, a últimapalavra do protagonista Kane (OrsonWelles), leva ao flashback de sua vida; nosoutros dois, são os próprios protagonistas,Louis (Brad Pitt) e Edgar Hoover (LeonardoDiCaprio) que, de um ponto no presente,narram suas vidas no passado.

McGuffin: O equivalente às falsas pistasde um livro policial ou às elaboradas mano-bras de um mágico, o McGuffin é um ele-mento, em geral um objeto, colocado natrama propositalmente para nos distrair.Quando o verdadeiro mistério/intriga/perigo

89/415

Page 90: Como ver um filme

é revelado, ele adquire um impacto aindamaior porque passamos um bom temposeguindo a “pista falsa” do McGuffin. Bonsroteiristas divertem-se imensamente criandoelaborados McGuffins para deleite nosso edeles mesmos. Em Pulp Fiction, QuentinTarantino nos faz seguir o tempo todo umapasta pela qual as pessoas aparentemente es-tão dispostas a matar ou morrer, e cujo con-teúdo nunca é bem-esclarecido (típicoMcGuffin). Em Ronin (1998), David Mamet,reescrevendo substancialmente o roteiro deJ.D. Zeik, faz grande alarde da importânciade uma maleta de metal que troca de mãosàs custas de muitos tiros, perseguições e ex-plosões — e que não é a parte essencial datrama.

Set pieces: Grandes cenas escritas ex-pressamente para ancorar a ação em determ-inados momentos, enfatizando pontos-chaveda evolução do protagonista. São os mo-mentos “de encher os olhos” — a carga sobre

90/415

Page 91: Como ver um filme

Akabah em Lawrence da Arábia, o incêndio deAtlanta em ...E o vento levou (Victor Fleming,1939), a retirada de Dunquerque em Desejo ereparação (Joe Wright, 2007). Gladiador tempelo menos três set pieces, dando o tom decada um de seus atos: a batalha de invernona Germânia, o primeiro combate no Coliseude Roma e o enfrentamento final entre Max-imus (Russel Crowe) e o imperador Com-modus (Joaquin Phoenix).

QUEM É McGUFFIN?Alfred Hitchcock foi a primeira pessoaa se referir ao objeto como recursonarrativo como McGuffin. Na longa emaravilhosa série de entrevistas aFrançois Truffaut, em 1966, Hitch-cock referencia a origem da palavra auma piada escocesa. Dois homens se

91/415

Page 92: Como ver um filme

encontram na cabine de um trem eum pergunta ao outro:

— O que é aquele pacote que vocêcolocou ali em cima?

O outro, um escocês, responde:

— É um McGuffin.

— O que é isso? — quer saber o outro,admirado.

— É uma armadilha que usamos paracaçar leões nas montanhas da Escócia— responde ele, calmamente.

O outro aceita momentaneamente aresposta, observando o pacote comcuriosidade durante algum tempo. Atéque cai em si:

92/415

Page 93: Como ver um filme

— Mas… não existem leões nasmontanhas da Escócia!

— Exatamente — retruca o escocêscom um suspiro, ajeitando-se para umcochilo. — O McGuffin é, precis-amente, nada.

Pode ser uma piada verdadeira, mas,se tratando de Hitchcock, é capaz deter sido algo que ele tenha inventadona hora, apenas para divertir Truffaut.Em sua biografia The Life of AlfredHitchcock: The Dark Side of Genius(1983), Donald Spoto atribui ao inglêsAngus MacPhail, amigo de Hitchcocke roteirista de seu Quando fala o cor-ação (1945), a invenção do termo.

Exposição: Exposição não é apenas a ex-plicação inicial de onde estamos/quem

93/415

Page 94: Como ver um filme

somos do primeiro ato. É todo momentodurante a narrativa em que algo precisa serelucidado, informações adicionais precisamser passadas ao público. Para um roteirista,este é um dos problemas mais difíceis de re-solver. A saída mais óbvia e mais usada —simplesmente fazer um ou dois personagensdiscorrerem sobre o assunto em questão —pode ser incrivelmente tediosa e, em muitoscasos, destruir o ritmo da narrativa, comosabe qualquer pessoa que não se levantou dapoltrona durante os quase 15 minutos emque Ian McKellen discursa sobre MariaMadalena, Leonardo da Vinci e o Santo Graalem O código Da Vinci (Ron Howard, 2006).Um diálogo entrecortado por ação, como oque explica quem é o cyborg assassino de OExterminador do Futuro (James Cameron,1984), é uma boa saída, iluminando a nar-rativa sem esgotar a paciência da plateia.

94/415

Page 95: Como ver um filme

UM ROTEIRO É A PLANTA BAIXA de um grandeedifício feito de luz e imagens emmovimento.

Construir este edifício é o trabalho de umaequipe de dezenas — até mesmo centenas —de pessoas, idealmente afinadas e integradascomo uma orquestra sinfônica, sob ocomando de um maestro: o diretor.

De posse de um roteiro, escrito por elemesmo ou por outro profissional, o diretorcomeça a pensar dramática e visualmente. Oque, no texto, pode ser uma única fala — “Játerminei!”, a frase final de Sangue negro (PaulThomas Anderson, 2007) — ou uma simplesdescrição — “O carro de Duffy desacelera atéparar no meio da rua”, na cena que encerraChinatown — pode ser interpretado, visto,revisto, ampliado, fotografado de maneirasquase infinitas.

Este é o atributo, o mandato do diretor:transformar ideias expressas em papel emuma narrativa dramática manifestada não ao

95/415

Page 96: Como ver um filme

vivo, mas através do medium do cinema, quepermite toda maneira de captação e manipu-lação do que é visto.

Para realizar esta obra, o diretor atua sim-ultaneamente em três frentes:▪ Dramática. O trabalho de escolher os

atores principais e coadjuvantes, por sisó, já define o tom do filme e propor-ciona a primeira oportunidade para en-carnar a narrativa de acordo com a visãodo diretor. Francis Ford Coppola, nosanos 1970 e 1980, foi responsável pelolançamento de diversas carreiras notá-veis, que, por sua vez, deram o tom certode seus filmes — pensem em Al Pacino,Robert de Niro, Martin Sheen, TomCruise, Mickey Rourke, Matt Dillon, Pat-rick Swayze, Laurence Fishburne, Nic-olas Cage (seu sobrinho). Ele diz que aescolha do elenco representa 80% do su-cesso criativo de um filme. Fellini diziaque todo o trabalho de imaginar um

96/415

Page 97: Como ver um filme

filme, escrever um roteiro, era, para ele,“muito vago” — até o momento de escol-her os atores. “Ao dar rostos e corposàquilo que você imaginou as escolhas setornam finais, definitivas. Nada mais évago — o filme passa a ser real.” Ao de-safiar a convenção da época e escolherSigourney Weaver para o papel de Ripley(escrito para um homem) em Alien, ooitavo passageiro, Ridley Scott deu todauma outra textura ao personagem e suatrajetória, propondo um ângulo — a fero-cidade de mães com suas crias — queseria levado ao extremo no filmeseguinte da série, Aliens (James Camer-on, 1986). Escolhido o elenco essencial,diretor e atores estabelecem seu plano detrabalho, que pode ir da preparação ex-trema — com oficinas de imersão, apren-dizados de talentos específicos, con-vivência com os modelos para seuspapéis etc. — ao completo improviso,

97/415

Page 98: Como ver um filme

deflagrado a partir de um mergulho pro-fundo na estrutura psicológica e nahistória pessoal (no cinema norte-amer-icano recente, Francis Ford Coppola estána primeira categoria; Robert Altman, nasegunda).

▪ Visual: Atores e diretor colaboram in-tensamente também na criação daaparência de seus personagens e nomodo como eles interagem com o ambi-ente elaborado para o projeto. Veremosmais sobre esta etapa do processo nopróximo capítulo, mas é aqui, com o ro-teiro em movimento, que diretor, diretorde arte, figurinista e maquiador, junta-mente com o elenco principal, criam omundo no qual se dará a trama.

▪ Fotográfica. Com o diretor de foto-grafia, o diretor decupa o filme sequênciapor sequência, cena a cena e tomada atomada. O grau de detalhe desta etapado trabalho também varia muito de

98/415

Page 99: Como ver um filme

cineasta para cineasta — WilliamFriedkin registrou praticamente todo oseu Operação França (1971) em pedaçosde papel com notas e rabiscos, caóticospara qualquer pessoa exceto ele. SamPeckinpah fazia a mesma coisa, só quedireto no roteiro. Já Martin Scorsese,desde seu primeiro longa, desenha dopróprio punho os storyboards que ori-entam a criação de cada cena.

ALGUMAS SUGESTÕES:▪ Aplique as quatro perguntas — por

que estou vendo estas imagens, enão outras? Por que estou vendo asimagens desta forma? Por que estouvendo nesta ordem? Por que estououvindo ou não ouvindo palavras,

99/415

Page 100: Como ver um filme

sons, ruídos, músicas? — a algunsde seus filmes favoritos.▪ Faça listas de filmes que você con-

hece de acordo com seu gênero etipo de narrativa.▪ Tente identificar os três atos e seus

pontos importantes em filmes quevocê conhece.▪ Escolha dois ou três filmes difer-

entes e compare como eles“expõem” sua trama: como são suasprimeiras imagens e o que elasdizem a você?▪ Leia roteiros e compare com os res-

ultados finais, na tela: como cadafrase foi transformada em imagens?

Ou seja: o filme transforma-se de textoem narrativa visual aqui, antes mesmoque sets sejam construídos, locações

100/415

Page 101: Como ver um filme

escolhidas e equipes contratadas. Deuma forma ou de outra — de sonhos,como Fellini e James Cameron; memóri-as, como Truffaut e Spielberg; livros,documentários, pilhas de notinhasguardadas em gavetas, como Woody Al-len; filmes de outros criadores, comoScorsese e Tarantino — grandesdiretores têm um arsenal de informaçãovisual estocada em algum lugar de suamente, que vem à tona em resposta aochamado do texto.

A alquimia que se dá depois pode serdescrita, mas nunca realmente explicada.

101/415

Page 102: Como ver um filme

3. O império dos sentidos: criando mundos com luz, sombrae cor

3. O IMPÉRIO DOSSENTIDOS: CRIANDO

MUNDOS COM LUZ,SOMBRA E COR

“Num filme estamos contando uma históriacom luz e

sombra, cores e movimento. É aqui que en-contramos o

verdadeiro significado do que estamosfazendo.”

Vittorio Storaro, diretor de fotografia

Page 103: Como ver um filme

A RESPOSTA ESSENCIAL ÀS QUATRO PERGUNTAS

que propusemos no capítulo anterior é muitosimples: nada do que está na tela, em mo-mento algum, é gratuito ou por acaso; tudo oque está na tela, a qualquer momento, temuma razão de ser.

Ou pelo menos deve ter — errosacontecem, acidentes também. A diferençaentre um erro e um acidente está na atençãoda equipe e, principalmente, na visão precisado diretor, capaz de separar o que o acasocoloca no seu caminho para atrapalhar oumelhorar seu conceito original. O gatinhoque aparece no colo de Marlon Brando logona sequência inicial de O poderoso chefão foium acidente: as câmeras estavam rodando, eBrando, imbuído do personagem de DonCorleone, ouvia as queixas de Bonasera

Page 104: Como ver um filme

quando o gato, de origem desconhecida,simplesmente entrou em cena, quem sabe at-raído pelo calor das luzes e pela promessa deum colo bem-estofado. E, interessantemente,nem Brando se assustou e saiu do papel, nemCoppola mandou cortar — pelo contrário,deixou que o felino e o ator se entendessem,numa troca de gestos e olhares que acres-centa à cena uma curiosa dimensãodoméstica, informal, um contraste a mais aotema explosivo do diálogo entre Corleone eBonasera — violência e a promessa de maisviolência, fora da lei.

Uma parte do imponderável na alquimiado fazer cinema está entre saber onde o rigorda preparação profunda pode abrir espaçopara o improviso do acaso.

Com toda a importância do texto comoplanta baixa da construção de um filme, ele éessencialmente um medium visual. Ideal-mente, um filme deve comunicar-se conoscopelo poder de suas imagens — cada quadro

104/415

Page 105: Como ver um filme

pensado para obter um determinado efeitosobre nossos corações e nossas mentes. Semmencionar as grandes obras mudas do iníciodo cinema — Nosferatu, Metrópolis, Temposmodernos —, filmes recentes mostram que odiálogo pode ser completamente secundárioquando o poder das imagens está em seuapogeu: Assédio (Bernardo Bertolucci, 1998),Náufrago (Robert Zemeckis, 2000), HabanaBlues (Benito Zambrano, 2005).

Dois departamentos ligados diretamenteao diretor são incumbidos da missão de criarplenamente, na tela, o princípio de que nadado que está ali, em momento algum, é gra-tuito ou por acaso; tudo o que está na tela, aqualquer momento, tem uma razão de exi-stir: o Departamento de Arte e o De-partamento de Fotografia.O LÍDER DO DEPARTAMENTO DE ARTE é o produc-tion designer, o desenhista de produção. Noinício do cinema, esse papel cabia ao diretorde arte, e, ainda hoje, em produções

105/415

Page 106: Como ver um filme

menores, o diretor de arte acumula as duasfunções: criar, com o diretor e o diretor defotografia, a expressão visual, o “look” dofilme, e conceber e coordenar a execução decenários. Em grandes produções, os papéisestão divididos, com o diretor de arte cuid-ando da realização de cenários e preparaçãode locações e reportando ao desenhista deprodução, responsável pela visão geral, o“look” do projeto.

MAS QUEMGANHA O OSCAR?Ironicamente, é quem recebe o títulode diretor de arte, compartilhado comquem decora os cenários, o set dresser.O primeiro Oscar para esse ofício foientregue em 1928, com o título

106/415

Page 107: Como ver um filme

Decoração de Interiores. Em 1940 oprêmio para decoração de interioresfoi dividido em dois: “Filmes em pretoe branco” e “Filmes a cores”. Em 1947,ainda dividido em duas categorias, oprêmio passou a se chamar Direção deArte e, como até hoje, atribuído aodiretor de arte e ao decorador do set.Em 1957, o Oscar para MelhorDireção de Arte passou a ser um únicoprêmio entregue a esses dois profis-sionais, independentemente de ofilme ser colorido ou em preto ebranco.

Cabe ao desenhista de produção/diretor dearte:▪ Encontrar a expressão visual

(“look”) do filme. Quando um diretorlê ou escreve um roteiro, uma série de

107/415

Page 108: Como ver um filme

imagens, memórias e emoções vem à suamente. Grande parte dela dá ao diretor oclima visual, a atmosfera, o ambiente emque seus personagens viverão e que de-verão compartilhar conosco, na plateia.Frequentemente ele as expressa em pa-lavras repletas de carga emocional, masvagas: “cru”, “urbano”, “onírico”,“luxuoso”, “austero”, “claustrofóbico”,por exemplo. Como isso se expressa emtermos práticos, na realização de cenári-os, na escolha das locações, no desenhodos figurinos?

▪ Criar metáforas visuais. Um dos ele-mentos mais poderosos do cinema écomo ele manifesta diante de nossos ol-hos aquilo que todas as noites nossocérebro cria para nós enquanto dormi-mos. Quem não passou por uma situaçãoaparentemente sem saída e sonhou queestava num beco, ou numa sala semportas ou janelas? Quem, no meio de

108/415

Page 109: Como ver um filme

uma grande crise existencial, não sonhoucom ondas gigantescas desabando sobresua cabeça? Quem, num momento de in-segurança ou ansiedade, não se viu nu nomeio da rua ou no ambiente de trabalho?E quantas vezes não vimos essas mesmasimagens, ou variações delas, em cenas defilmes? O herói encurralado num beco, amocinha aflita debaixo de uma cama,vendo apenas os pés dos bandidos… Es-sas imagens são metáforas visuais,traduções literais de expressões como“estou atolado”, “eu me sinto sufocadopor esse problema”, “não tenho saída”.Trabalhando com o diretor e o diretor defotografia, o desenhista de produção/diretor de arte deve materializar essasmetáforas.

▪ Criar as atmosferas do filme. Nemmesmo filmes que seguem um únicogênero ao pé da letra mantêm um climauniforme em toda a sua duração.

109/415

Page 110: Como ver um filme

Adequar a linguagem visual aos difer-entes momentos emocionais do filme étarefa do desenhista de produção/diretorde arte. Em Peixe grande e suas históriasmaravilhosas (Tim Burton, 2003), há umaqualidade de imagem e de cenário muitodiferente entre as cenas do personagemde Bill Crudup e de seu pai já idoso, Al-bert Finney, e as sequências das históriasque o mesmo pai conta: nas primeirasimpera o realismo, a sensação de do-mesticidade; nas segundas, tudo é sonho,imaginação, fantasia.

▪ Estabelecer os pontos principais dacaracterização dos personagens ecomo os ambientes se relacionamcom os personagens e a narrativa.Tudo o que compõe a aparência física e ouniverso habitado pelos personagens de-ve nos dizer quem eles são antes mesmoque eles digam uma frase. Assim quevemos a townhouse do personagem de

110/415

Page 111: Como ver um filme

Hugh Grant em Um grande garoto (Chris ePaul Weitz, 2002), sabemos que ele é umsolteiro convicto e de posses: todo o am-biente é luxuosamente austero e imacu-lado, sem a bagunça de crianças outoques “frescos” de uma presençafeminina; sobressaem-se os móveis emcouro, as superfícies em aço polido evidro, tudo frio, de bom gosto, deaparência cara e pouco prática se aquelafosse uma casa habitada por umafamília.

ALGUMASMETÁFORAS VISUAISÁGUA/MERGULHAR NA ÁGUA/EMERGIR

DA ÁGUA: Renascer, assumir umanova personalidade, lavar culpas do

111/415

Page 112: Como ver um filme

passado. Por exemplo: Jason Bourneno rio, em Manhattan, ao final de Asupremacia Bourne (Paul Greengrass,2004).

CHUVA/SER LAVADO PELA CHUVA: Aforça do destino, e também puri-ficação, exorcismo do passado. Por ex-emplo: a batalha final de Os setesamurais (Akira Kurosawa, 1954), naqual os camponeses e seus protetoresmudam seu destino e resgatam (comsacrifício) sua dignidade, se dá in-teiramente debaixo da chuva.

OBJETOS CAINDO DO CÉU: Catástrofe,destruição, a Mão do Destino (comono arcano A Torre do Tarô). A chuva desapos em Magnólia (Paul ThomasAnderson, 1999) é uma referência

112/415

Page 113: Como ver um filme

bíblica às sete pragas do Egito. Achuva de papéis e detritos que osmonstrengos de Guerra dos mundos(Steven Spielberg, 2005) deixam emseu caminho é uma referência muitoprecisa da mesma chuva sinistra noataque às Torres Gêmeas, no 11 deSetembro.

DESCER AO PORÃO: Investigar oinconsciente, retrair-se, esconder osreais problemas num plano inferior deconsciência. Por exemplo: em A noitedos mortos-vivos (George Romero,1968), os sobreviventes suspeitos sãosempre encerrados no porão da casa.E onde Norman Bates finalmenteesconde a mãe quando as coisas es-quentam em Psicose (Alfred Hitchcok,1960)?

113/415

Page 114: Como ver um filme

VOAR: Orgasmo, extremo prazer,liberdade, poder absoluto. Quando oSuper-Homem finalmente ganha LoisLane em Superman — O filme (RichardDonner, 1978), os dois voam juntos.Toda vez que o personagem deJonathan Pryce se sente acuado nomundo sem sentido de Brazil (TerryGilliam, 1985), ele também voa.

GRANDES MÁQUINAS: Opressão,abusos, o poder absoluto do Mal con-tra o Bem. Chaplin sendo tragadopelas engrenagens da fábrica em Tem-pos modernos (Charles Chaplin, 1936)ecoa o Moloch/Fábrica de Metrópolis(Fritz Lang, 1927). A fragilidade dopolítico, a pé, sendo perseguido in-cansavelmente por um automóvel emZ (Costa Gavras, 1979) é um

114/415

Page 115: Como ver um filme

antecedente do pequeno carro ver-melho diante do gigantesco caminhãode Encurralado (Steven Spielberg,1971) — e não vemos nenhum dos doismotoristas, assim como não vemosquem controla as máquinasdevoradoras.

E quando finalmente vemos o dono dacasa, nossa impressão é confirmadaantes mesmo que possamos prestaratenção ao seu monólogo: ele não temum cabelo fora do lugar, suas roupas sãosimples, em tons neutros (influênciafeminina zero), bem-cortadas, de tecidosde qualidade. Em compensação, assimque vemos o menino e sua mãe (vividospor Nicholas Hoult e Toni Collette),sabemos que eles habitam o extremooposto desse espectro existencial: suas

115/415

Page 116: Como ver um filme

roupas mal-acabadas e vagamente exót-icas têm todo o jeito de terem sido feitasem casa, seguindo padrões “étnicos” deoutras culturas. Cada um é uma esferaconcentrada de cores, texturas e fios nat-urais, indicando um estilo de vida neo-hippie, ecologicamente correto, com bemmenos recursos do que o solteirão deGrant. Ao vermos a casa da família,nossa impressão se confirma: tudo écheio de plantas, cores diferentes, artes-anato; uma atmosfera de caos impera,mostrando como a mãe estressada e dep-rimida de Toni Collette tem dificuldadeem lidar com sua vida cotidiana, mas semantém fiel a seus princípios “verdes”. Odesenrolar da trama de Um grande garotonos confirmará tudo isso, dará os comose porquês e mostrará causas e con-sequências. Mas a informação básica nósapreendemos pelos códigos visuais.

116/415

Page 117: Como ver um filme

O processo de transformar conceitos ab-stratos em signos visuais concretos é um dosmais fascinantes de todo o processo de cri-ação. Para um diretor, especialmente umdiretor roteirista, é um momento altamentesatisfatório, em que o universo que ele ima-ginou aparece, literalmente, no mundotridimensional.

A colaboração entre um diretor e um dire-tor de arte/desenhista de produção é umadas mais intensas e importantes de todo oprocesso, e por isso a maioria dos realiz-adores forma duplas constantes com os mes-mos profissionais: Fellini com DaniloDonati, Scorsese com Dante Ferretti, Berg-man com Marik Vos-Lundh, os irmãos Coene Dennis Gassner.

O Departamento de Arte, que se incumbede realizar essa tarefa, é assim organizado:

117/415

Page 118: Como ver um filme

Cabe ao Departamento de Arte, em seusdiversos subofícios:▪ Auxiliar o diretor na escolha de loc-

ações. Uma locação é sempre umaescolha arriscada em termos deprodução — o que traz de cor local eautenticidade ela apresenta também deriscos de todo tipo, de distúrbios climáti-cos a insurreições políticas. A possibilid-ade de cenários virtuais cada vez maisexatos e detalhados teria, por exemplo,salvo de continuadas catástrofes as fil-magens de Apocalypse Now, vítimas deum tufão e de uma ameaça de golpe deestado nas Filipinas, em 1976. Ao mesmo

118/415

Page 119: Como ver um filme

tempo, a quase exasperante realidadeque envolve todo o filme possivelmentese deve em grande parte exatamente aesses percalços, que tão bem exempli-ficavam o drama subjacente à história:ocidentais descendentes do velho coloni-alismo europeu perdidos numa selvatropical hostil.

▪ “Vestir” as locações para adequá-lasàs necessidades do projeto. Muitorara é a locação que se apresenta exata-mente de acordo com as necessidades doroteiro e a visão do diretor. Cabe àdireção de arte transformar aquilo quefoi encontrado em algo único, diferen-ciado — os carros de trem usados emViagem a Darjeeling (Wes Anderson,2007) são verdadeiras composições emuso na Índia, mas foram totalmente re-pintados, decorados e adornados pelodiretor de arte Mark Friedberg segundoo esquema visual preciso e detalhado do

119/415

Page 120: Como ver um filme

diretor. Da mesma forma, o mosteiroque abriga as sequências finais é, na real-idade, um antigo pavilhão de caça danobreza de Udaipur, inteiramente redec-orado por Friedberg.

▪ Conceber, desenhar e supervision-ar a construção dos cenários, deacordo com as especificações dodiretor. A possibilidade de criar ambi-entes que sirvam precisamente às ne-cessidades práticas e criativas do projetoé uma das tarefas mais complexas e grat-ificantes de uma produção. Um cenáriodeve servir tanto às necessidades maisbásicas das cenas — permitir a movi-mentação segundo a marcação do diretore as propostas do roteiro — quanto criaro primeiro impacto visual que vai nospassar toda a carga emocional dahistória. Além de tudo isso, cenários de-vem acomodar, sempre, os habitantes“invisíveis” mas essenciais e

120/415

Page 121: Como ver um filme

onipresentes de todo set: a equipe, prin-cipalmente câmeras, microfones e seusoperadores. Um submarino, por exem-plo, é um dos cenários mais difíceis deconstruir: tubular, estreito, necessaria-mente hermético e raramente disponívelno mundo real. Em Caçada ao OutubroVermelho (John McTiernan, 1990) odesenhista de produção, Terence Marsh,criou uma série engenhosíssima decenários tubulares com placas removí-veis, que permitiam o acesso da câmeraem trilhos ou na mão sem violar a im-pressão claustrofóbica, essencial paraum thriller de submarino.

A precisão estética de um cenário é umdos elementos mais eloquentes de umfilme — um ambiente vivo, repleto dasideias e das metáforas visuais pensadaspelo diretor.

Quando Stanley Kubrick enviou seudesenhista de produção Roy Walker em

121/415

Page 122: Como ver um filme

viagem de pesquisa por grandes hotéisdos Estados Unidos, ele não queria re-produções fiéis deste ou daquele: queria,como explicou a Walker, “exemplosclaros de banalidade e de ambientesgenéricos”, nos quais a descida aos sub-terrâneos da loucura do protagonista deO iluminado (1980) ficasse ainda mais ter-rível e clara, por contraste. Os magnífi-cos cenários construídos por Walker nosgigantescos estúdios Elstree, perto deLondres, reproduzem quartos e salas deum hotel no Arizona, um resort noparque de Yosemite, na Califórnia, ecorredores de hotéis sem nome de beirade estrada — todos unidos numa mesmavisão estética para se tornar o labirínticohotel Overlook do filme.

Da mesma forma, quando MartinScorsese explicou a Dante Ferretti — seuassíduo colaborador no Departamentode Arte, e muitas vezes vencedor do

122/415

Page 123: Como ver um filme

Oscar — como via a Nova York do séculoXIX descrita por Edith Wharton em seulivro A época da inocência, ele estava maispreocupado com paisagens emocionaisdo que físicas. O mundo de opulência daalta burguesia nova-iorquina nos anos1880 era algo completamente distantedele e de suas raízes, como descendentede imigrantes italianos pobres, explicouele; por isso ele via seu filme, baseado nolivro, com um olhar detalhado sobre ummundo novo e estranho, onde os ambi-entes fossem um pouco maiores e maisluxuosos do que o real. E, de fato, é umprazer a mais seguir o olhar de Scorsesepela câmera de Michael Ballhaus,curioso e deslumbrado pelo mundo dosricos e atormentados de Inocência.

Um ambiente cinematográfico con-struído com inteligência, sensibilidade ecriatividade é, em todos os aspectos, umambiente vivo. O castelo da Fera em A

123/415

Page 124: Como ver um filme

Bela e a Fera de Jean Cocteau (1946),desenhado por Lucien Carré e ChristianBérard e decorado por Carré e RenéMoulaert, é uma caixa de Pandora desímbolos oníricos tão potentes que aindasão referenciados e copiados mais demeio século depois (pense nos braços-candelabros e quantas vezes eles foramvistos em filmes muito menos ambi-ciosos que o de Cocteau). A mansãocampestre onde Agnes/HarrietAndersson agoniza em Gritos e sussurros,de Ingmar Bergman (1972), é umlabirinto cheio de propósito, uma réplicaem grandes dimensões do próprio corpohumano, em tons de vermelho, comportas e corredores que se abrem unspara os outros. Na concepção de MarikVos-Lundh, para a visão de Bergman es-tamos na “casa” freudiana: dentro de nósmesmos, última fronteira para as

124/415

Page 125: Como ver um filme

questões de vida e morte que o filmeabraça.

▪ Estabelecer com o diretor de foto-grafia a paleta de cores do filme —e suas variações ao longo da trama.Desejo do cinema desde seu nascimento,conquistada em escala industrial nadécada de 1930 e transformada empadrão de produção na de 1950, a cor ex-pandiu as opções de envolvimento emo-cional que iluminação e textura jápropunham. Porque cada filme tem umtema, um tom emocional prevalecente, etambém uma paleta específica de cores,empregada em toda a sua extensão —nos figurinos, nos cenários, na tonalid-ade da luz. É uma combinação de de-cisões tomadas muito cedo no processocriativo, a partir de instruções específicasdo diretor, colocadas em prática pelodiretor de fotografia e pelo diretor dearte. O diretor de fotografia selecionará a

125/415

Page 126: Como ver um filme

melhor mídia — celuloide, digital —, asmelhores câmeras e lentes e o melhormodo de iluminar cada sequência paraque a paleta cumpra sua função. Ao de-partamento de arte cabe utilizar a paletanos cenários, trajes e objetos de cena, co-ordenados com o clima geral do filme e atemperatura emocional de cada mo-mento. A paleta em geral se restringe auma gama precisa de cores e tonalid-ades, explorada em suas variações; porexemplo, tons de bala e doce para MariaAntonieta, de Sofia Coppola (2006), umareferência tanto à sua juventude e suafrivolidade quanto ao amor pelas pâtis-series que trouxe de sua nativa Áustriapara a corte de Versalhes. Por contraste,variações de cinza, branco e preto paraSweeney Todd: o barbeiro demoníaco da ruaFleet, de Tim Burton (2007), evocandotanto a monotonia opressiva da Londresda Revolução Industrial, afogada em

126/415

Page 127: Como ver um filme

smog, quanto o absoluto vazio existencialdo personagem-título, um homem dequem tudo foi tomado, restando-lheapenas uma emoção monocromática — avingança, representada no vermelho dosangue de suas vítimas e de sua cadeirade barbeiro.

O vermelho de Sweeney Todd — e deoutro filme que usa o mesmo esquemade ausência de cor, Fargo, dos irmãosCoen (1996) — representa a cor que pro-positalmente não se encaixa na paleta,que dela se destaca dramaticamente parasublinhar momentos fortes, elementosimportantes, grandes emoções. EmMoulin Rouge!, de Baz Luhrmann (2001),um verdadeiro estudo de tons de ver-melho, com pontuações em preto ebranco, a cor-destaque é o oposto do ver-melho: o verde, que aparece na Fada deAbsinto para encarnar a inspiração, aloucura, o espírito boêmio.

127/415

Page 128: Como ver um filme

Muitos filmes manipulam a paleta decores ao longo de sua narrativa, enfatiz-ando certas tonalidades sobre outraspara indicar diferentes momentosdramáticos e emocionais. Zhang Yimou,um mestre supremo do uso da cor, abusadesse direito em O clã das adagas voadoras(2004), quando, na sequência final,suprime subitamente os tons douradosque vinham marcando o ambiente e, comuma tempestade de neve, torna tudoetereamente branco, distante, estranho,gelado. Em Onde os fracos não têm vez, ostons naturais do deserto — bege, areia,ocre, azul, verde — dominam a paletadurante a primeira parte da narrativa; àmedida que o personagem de Javier Bar-dem assume o controle da história, begee areia se tornam laranja, tijolo e ver-melho, assinalando uma descida a umoutro mundo, sangrento e infernal.

128/415

Page 129: Como ver um filme

▪ Conceber, desenhar e executar o as-pecto visual dos personagens. Umpersonagem bem-desenhado fala cono-sco antes que o ator que o interpretaabra a boca. Na primeira vez que ovemos devemos ser capazes de saber oessencial a seu respeito — estado de es-pírito, estilo de vida, gosto, classe social,poder aquisitivo, ambições, desejos. Seprimeiras impressões são essenciais navida real, o que não dizer do controladomundo do filme, onde o diretor tem 120minutos, em média, para criar universose manipular tudo o que eles contêm? Dopenteado aos sapatos, tudo na com-posição visual de um personagem devenos dizer quem ele é. Um exemplo já foidado aqui mesmo — a apresentação dospersonagens principais de Um grande ga-roto, o solteirão, o menino e sua mãe.Pense também no ar de obviamente ter-rível no Anton Chigurh de Javier Bardem

129/415

Page 130: Como ver um filme

em Onde os fracos não têm vez — uma com-binação de suas roupas escuras, urbanas,diferentes do estilo caubói à sua volta e,principalmente, seu estranho corte decabelo, uma espécie de versão cimentadada cabeleira beatle, rigorosa e proposital-mente simétrica — algo impossível nanatureza, criação expressa do mestrePaul LeBlanc, colaborador dos Coen emquase todos os seus filmes.

A evolução dos personagens ao longode sua jornada pelo arco da narrativatambém tem que ser expressa por pen-teados, maquiagem e roupa. Filmes detransformação, como Sabrina (BillyWilder, 1954; Sydney Pollack, 1995), MyFair Lady (George Cukor, 1964), Tootsie(Sydney Pollack, 1982), O casamento deMuriel (P.J. Hogan, 1994) ou O Diabo vestePrada (David Frankel, 2006) divertem-seimensamente com o poder imediato dasmudanças na composição visual. Mas

130/415

Page 131: Como ver um filme

pense no significado poderoso deLawrence/Peter O’Toole vestindo ostrajes brancos de líder tribal do desertoem Lawrence da Arábia ou Rita Hayworthtirando lentamente a luva negra em Gilda(Charles Vidor, 1946), e ficará clara a im-portância de cada detalhe da aparênciacomo indicador de mudanças e marcosna jornada do personagem. Mesmo quenunca tenha visto Thelma e Louise (RidleyScott, 1991), uma pessoa que olhe umacena do início do filme, em que duasdondocas de cabelos armados e vestidosarrumadinhos de poliéster sorriem paraa câmera, e compare com as duas desca-beladas, bronzeadas e nada sorridentescriaturas em botas, jeans e camisetasempoeiradas do final saberá que coisasabsolutamente extraordinárias, marcant-es e transformadoras aconteceram aolongo da trajetória dessas mulheres.

131/415

Page 132: Como ver um filme

O LÍDER DO DEPARTAMENTO DE FOTOGRAFIA é odiretor de fotografia ou DP. Como o diretorde arte/desenhista de produção, é um par-ceiro inestimável do diretor, e em geralforma com ele uma dupla que só é rompidapor motivos de força maior. Bergman e SvenNykvist, Glauber e Antonio Beatto, Almod-óvar e Javier Aguirresarobe, Spielberg eJanuzs Kaminsky, Won Kar Wai e Christoph-er Doyle são apenas algumas das muitas do-bradinhas célebres cuja intensa colaboraçãocriou assinaturas visuais indeléveis.

O DP é o senhor absoluto de tudo o queacontece com a câmera ou câmeras — ondeela fica, como se movimenta, que lentes efilme usa, que foco emprega. Como câmera eluz são parceiros inseparáveis — a câmera vêo que a luz transmite, num diálogo silenciosoe poderosíssimo —, o modo como o set ou alocação são iluminados também cai na juris-dição do DP.

132/415

Page 133: Como ver um filme

Por isso, o Departamento de Fotografia éassim organizado:

Cabe ao DP e ao Departamento de Foto-grafia estabelecer os mesmos elementos doDepartamento de Arte — a atmosfera visualdo filme e suas alterações ao longo da nar-rativa a afirmação da paleta de cores, criaçãode metáforas visuais —, mas utilizando não oque está na frente da câmera, e sim comoisso é captado.

133/415

Page 134: Como ver um filme

COMO ASSIMBEST BOY?QUALQUER PESSOA QUE PRESTE

ATENÇÃO aos intermináveis créditosao final de um filme já se deparoucom termos como esses que estão nográfico. Deve ser um alívio poder fi-nalmente saber que estranho código epossivelmente bizarras tarefasocultam-se sob best boy grip e gaffer.Todos esses termos remontam aosprimeiros anos do cinema, quando ossets estavam ainda se organizandocomo as rígidas estruturas hierár-quicas que seriam em breve.

O Departamento de Iluminação (ouelétrica, como é comumente

134/415

Page 135: Como ver um filme

conhecido no Brasil) é liderado pelogaffer, um termo britânico que é umavariação de grandfather (avô), sinôn-imo de “velho” ou “chefe” — e quepode tambem ter derivado do termogaff, a longa estaca encimada por umgancho usada até hoje para moverspots em locais muito altos. Ao gaffercabe coordenar todo o plano de ilu-minação de cada cena, sabendo ondecada ponto de luz deve estar, que in-tensidade deve ter, com qual gel (tirasplásticas que conferem diferentes ton-alidades às luzes) deve estar. O gaffertrabalha com o DP e reporta-se direta-mente a ele — que, por sua vez,reporta-se diretamente ao diretor.

O best boy electric é o braço direito dogaffer. O termo best boy vem do

135/415

Page 136: Como ver um filme

ancestral sistema de aprendizado deofícios, em que o termo era umaláurea que destacava o mais dedicadoaprendiz. E, de fato, o best boy de hojeé frequentemente o gaffer de amanhã— mesmo que seja, como atualmenteé cada vez mais comum, umamulher…

Os grips são as abelhas operárias doset, responsáveis por mover, manter einstalar toda a complexa maquinariaque manipula câmeras e alimentaluzes (por isso no Brasil seu departa-mento é conhecido como Maquin-aria). Grip é um verbo da línguainglesa que quer dizer “pegar comfirmeza, agarrar”. No circo, os gripssão os responsáveis por todo oequipamento utilizado em cena e,

136/415

Page 137: Como ver um filme

frequentemente, os zeladores pela se-gurança dos artistas — uma funçãoque seus herdeiros no set de filmagemmantêm em muitas produçõesmenores, acumulando o papel de su-pervisão de cenas perigosas. Os gripsnão tocam nas luzes em si, masocupam-se de todo o resto — cabos,fios, rebatedores e todos os sistemasde movimentação das câmeras, comocarrinhos (dolly), gruas (crane), cameracar etc. Grips podem ser altamente es-pecializados, e por isso muitas vezeseles aparecem nos créditos como dollygrip ou crane grip.

O key grip é o chefe da maquinaria, re-sponsável pelo trabalho de toda essagente. Seu braço direito é o best boygrip. Como o gaffer, o key grip reporta-

137/415

Page 138: Como ver um filme

se diretamente ao DP — juntos, gaffere key grip têm a missão de providen-ciar tudo o que, fora da câmera, sejanecessário para que a fotografia dofilme cumpra a visão estabelecida porDP e diretor.

Ao escolher os tipos de câmeras, lentes, fil-tros e material de suporte — digital oupelícula e, no caso de película, qual tipo emilimetragem — e ao decidir com elétrica emaquinaria suas necessidades de iluminaçãoe movimentação, o DP já estabeleceu aplanta baixa do visual do projeto. Filmes dediferentes tipos captam imagens com difer-entes tonalidades. Filtros alteram cor e lu-minosidade. Filtros e películas diferentes,por exemplo, foram usadas para definir ostrês fios narrativos de Traffic (Steve Soder-bergh, 2000): frio, azul/cinza, para a trama

138/415

Page 139: Como ver um filme

envolvendo o juiz; ocre para todas as sequên-cias no México; e dourado/alaranjado, solar,para a história da dona de casa tornadatraficante, em San Diego, Califórnia.

Cabe agora, com o diretor, fazer com queas imagens efetivamente falem. A gramáticada linguagem cinematográfica está no en-quadramento, o ponto de vista da câmera emrelação ao que ela vai mostrar. Os principaisenquadramentos são:▪ Extreme long shot/plano geral:

Mostra onde estamos, o local onde aação vai se passar. Em geral é o establish-ing shot, a tomada que ancora na nossamente a noção de lugar.

▪ Long shot/plano aberto: Aindaamplo, porém mais próximo que o planogeral. Mostra a informação essencial, oclima, o ambiente. Dentro do universopredefinido pelo plano geral, o planoaberto nos aponta para onde devemos ol-har, onde está o ponto de maior interesse

139/415

Page 140: Como ver um filme

para nós. Usado de outra maneira, o pla-no aberto pode significar distanciamento— muitas vezes o diretor opta por mantera câmera propositalmente longe de algoque até pediria para ser mostrado deperto, como uma conversa, uma luta, umbeijo, para contrapor ao sentido deintimidade .

▪ Medium shot/plano médio: Tambémconhecido como plano americano: acâmera se aproxima enquadrando ospersonagens do quadril ou da cinturapara cima. É a apresentação dos per-sonagens, o momento de mostrá-los anós, mesmo que eles tenham sido vistosde longe, em planos gerais ou abertos.Dependendo do blocking — do lugar decada um em relação ao outro e a câmera— e da movimentação da câmera, esteenquadramento pode mostrar a relaçãoentre os personagens, ou entre eles e oambiente à sua volta. Note, por exemplo,

140/415

Page 141: Como ver um filme

o que está em foco, ou o que está maisem foco. Se, num plano americano, tudoestá em foco — assinatura visual de Or-son Welles e Stanley Kubrick —, o diretorquer nos dizer que tudo importa, e queos personagens são peças num jogomuito mais amplo.

▪ Close up: Apenas o rosto é enquadrado.Estamos agora na intimidade dos per-sonagens. O diretor não quer nos distraircom mais nada, e apenas aquela imagemimporta. Dependendo da cena, ele podeestar querendo despertar em nós empa-tia, horror, compaixão, paixão, surpresa.Se não for um personagem, o close up estádestacando detalhes importantes dacena, objetos significativos. De todomodo, a mensagem é: Atenção! Emoçõesfortes!

▪ Extremo close up: Vemos apenas ol-hos, ou apenas bocas, ou olhos/nariz/boca. Estamos “dentro da cabeça” dos

141/415

Page 142: Como ver um filme

personagens. Seu mundo interior, nestemomento, é mais importante do quequalquer outra coisa, e apenas quem elessão, o que pensam ou sentem deve pren-der nossa atenção.

Além de enquadrar, a câmera, comonossos olhos, se move. Ao decidir, com odiretor, como ela se move, o DP cria umtecido visual que nos envolve tanto pelasua familiaridade quanto pela sua es-tranheza. Os movimentos da câmera po-dem ser naturais, semelhantes ao quenós fazemos a todos os momentos, e nãonaturais, que somos completamente in-capazes de fazer. Os primeiros noscolocam dentro da ação, como obser-vadores diretos ou até participantes. Ossegundos criam emoções novas e fortes— são como temperos exóticos ou coresinusitadas enfatizando, alterando, ampli-ando sensações.

Alguns movimentos naturais:

142/415

Page 143: Como ver um filme

• Pan: A câmera se mantém em seu eixo,mas roda pela cena, antecipando-seaos atores — assemelha-se ao nosso ol-har quando, parados, giramos lenta-mente a cabeça para tomar conheci-mento de uma situação, um ambiente.O movimento em geral começa comuma imagem fixa, como ponto departida. O ritmo do movimento conduza emoção, mas, de um modo geral, opan diz: olhe tudo isto, veja onde vocêestá.

• Câmera na mão: A câmera balança,treme e sai de foco com o ritmo de seuoperador. É o que veríamos se es-tivéssemos, nós mesmos, correndo. Amensagem é: urgência, caos, “veracid-ade”, testemunho (porque remete aoque estamos acostumados a ver emdocumentários e telejornalismo).

• Tracking: A câmera é colocada numtrilho e se movimenta com ritmo

143/415

Page 144: Como ver um filme

próprio, suave. É o equivalente aonosso olhar quando caminhamosprestando atenção ao ambiente à nossavolta. Em ritmo rápido, o tracking shotaumenta a excitação, sugereperseguição, fuga. Lento, aumenta aemoção, cria a sensação de importân-cia, solenidade, pompa. Na mesma ve-locidade do objeto em cena, injeta oespectador “na ação”, de forma“natural”.Alguns movimentos não naturais:

• Zoom: As lentes se mexem,aproximando-se ou recuando, mas acâmera permanece fixa. Sublinha en-faticamente um elemento ou um mo-mento da cena, dá sustos, cria estran-heza, irrealidade. Em Super 8 (J.J.Abrams, 2011), quando os meninos es-tão filmando na estação ferroviária, acâmera de Larry Fong faz dois zoomsdramáticos: o primeiro, aproximando-

144/415

Page 145: Como ver um filme

nos rapidamente do “diretor” Charles(Riley Griffiths) e sua turma, em fugadepois da colisão; e, logo a seguir,mostrando sem sombra de dúvida(para nós) o elemento mais importanteda cena — a câmera super 8 que, aban-donada e caída no chão, continuafilmando.

• Grua: A câmera é colocada numa grua,podendo subir, sobrevoar ou descersobre a cena. Em conjunto com toma-das aéreas ou com tomadas a partir decâmeras móveis, pode nos levar donível do chão aos céus. É a chamada“visão dos anjos”. Dá um tom épico,majestoso, dramático, “maior que avida”. Em Desejo e reparação a antoló-gica sequência da retirada de Dun-querque, pelos olhos do protagonistaRobbie Turner (James McAvoy), ter-mina exatamente assim: com a câmerasendo suspensa aos céus, levando

145/415

Page 146: Como ver um filme

nosso olhar, pela primeira vez, para oquadro completo de devastação e car-nificina que Robbie nos mostrara emrelances.

Se o diretor tem uma abordagem estru-turada do projeto, a maioria destes enquad-ramentos e movimentos já terá sido decididameses antes do primeiro grito de “ação”, at-ravés dos storyboards e das pré-visualizações.Realizadores que preferem o improviso terãomarcado apenas o essencial para o estabele-cimento das necessidades de produção, edeixarão que o local, os atores e até a luz domomento o inspirem a decidir onde pôr acâmera e como fazê-la se mover.

Racional ou intuitivo, científico ou poético,é um processo não muito diferente do de umpintor escolhendo cores e modos de espalhara tinta, ou um compositor procurando notasem seu piano — planejamento e estudo vãosó até certo ponto. Depois, estamos num

146/415

Page 147: Como ver um filme

outro território, governado pelo talento epelo mistério da criação artística.

ALGUMAS SUGESTÕES▪ Escolha uma cena de um filme, pare

e observe tudo o que está na tela,tentando descobrir por que cada im-agem está lá, que função estácumprindo.▪ Procure notar o que os ambientes

transmitem a você mesmo antes deos personagens aparecerem.▪ O quanto do personagem você

apreende apenas olhando suaaparência (roupas, cabelo etc.)?▪ Você consegue perceber a paleta de

cores de um filme?

147/415

Page 148: Como ver um filme

▪ Note os movimentos da câmera —quando eles são mais aparentes,quando são mais imperceptíveis.Como eles alteram a experiênciaemocional do filme para você?

148/415

Page 149: Como ver um filme

4. A costura do sonho: dando forma e voz à narrativa

4. A COSTURA DO SONHO:DANDO FORMA E VOZ À

NARRATIVA

“A essa altura você provavelmente nota queestá vendo

um filme, e não uma imitação da vida real.Até mesmo os

sonhos, em seu peculiar surrealismo, não sãoassim. É isso

que torna nosso trabalho tão especial eúnico.”

Walter Murch, montador/designer de som

Page 150: Como ver um filme

A SEQUÊNCIA A QUE WALTER SE REFERE é umadas mais extraordinárias do cinema, um ex-emplo perfeito da importância da pós-produção — a finalização de um filme,centrada na montagem de som e imagem —em todo o conceito de um projeto. Murch,um colaborador de confiança de FrancisFord Coppola, cinco vezes indicado ao Oscare três vezes vitorioso — inclusive uma inéditavitória dupla em 1997 por montagem de some imagem de O paciente inglês, de AnthonyMinghella —, está falando da abertura deApocalypse Now: ao som da sombriamenteépica canção “The End”, do The Doors, ocapitão Willard (Martin Sheen) espera, numquarto de Saigon, sua próxima missãosecreta nas selvas do Vietnã, durante aguerra. É uma tradução visual das páginas de

Page 151: Como ver um filme

abertura do livro que foi uma das inspiraçõespara Coppola, Despachos do front, do corres-pondente de guerra Michael Herr, um fluxode consciência febril, colagem de memóriasterríveis e líricas, água, fogo, selva, napalm,lama, excremento, sangue, o “tat tat tat” doshelicópteros, o umf surdo das explosões, ma-conha, anfetamina, ópio. Willard/Sheenbebe e delira, delira e cambaleia, bebe e re-corda, bebe e tenta esquecer, flutua no limiteda inconsciência, corta-se ao dar um soco noespelho e finalmente vai até a janela.“Saigon! Merda! Ainda estou em Saigon” étudo o que ele diz, levantando, de relance, asréguas da persiana.

Isso é tudo o que “acontece” na sequência— e, no entanto, muito mais acontece nosnossos olhos, ouvidos, mente. Pela arte sutilde Murch — que também editou som e im-agem do filme —, mergulhamos na própriaalma de Willard, no fundo do seu caos demedos e memórias. O fogo — horrível, belo

151/415

Page 152: Como ver um filme

— do napalm, que muda a paisagem radic-almente nos primeiros minutos dasequência, implanta-se na sua cabeça, quei-mando permanentemente no canto da tela.Fotos antigas e cartas misturam-se a rostosde estátuas, vultos de palmeiras, ao própriorosto de Willard pintado de preto. O ritmohipnótico de “The End” guia as imagens eserpenteia entre o stacatto das hélices dehelicóptero, um som onipresente na guerrado Vietnã.

Coppola não previra nada disso no iníciode sua longa e conturbada jornada por Apoca-lypse Now. O que chegou às mãos de Murchfoi uma massa caótica de imagens captura-das ao longo dos 16 meses de filmagem, res-ultado de várias versões do roteiro, muitasbrigas no set e todo tipo de problema pess-oal, logístico, profissional, financeiro e atémédico (Sheen teve um ataque do coraçãologo após a filmagem dessa sequência deabertura). Foi o paciente trabalho de Murch

152/415

Page 153: Como ver um filme

e sua equipe que devolveu a Coppola a visãoinicial de seu projeto e, mais que isso, deu-lhe uma forma. O que fora ideia, dois anosantes, na concepção do projeto, era, então,um filme.

Esse, em essência, é o trabalho dafinalização.

Ao dar ordem ao material colhido, acres-centando trilhas de som e música e, se ne-cessário, efeitos visuais, a finalização está:▪ Dando a forma final do filme;▪ Criando o ritmo da narrativa;▪ Acrescentando camadas de significado às

imagens;▪ Modificando, comentando ou amplific-

ando o que estamos vendo;▪ Criando um “realismo emocional”: a

sensação clara que nós, na plateia, temosde que tudo o que estamos vendo é “ver-dade”, mesmo que saibamos, racional-mente, que se trata de “apenas umfilme”.

153/415

Page 154: Como ver um filme

NOS PRIMÓRDIOS DO CINEMA não havia mont-agem porque não havia o que montar: en-cantadas com a novidade da imagem em mo-vimento, as plateias do final do século XIX secontentavam com uma tomada estática, quedurava enquanto houvesse filme na câmera,algo em torno de três minutos. A necessidadede aumentar a duração das sessões, ofere-cendo mais ao público, só podia ser resolvidacom a adição de mais imagens: um problemaque Edwin Porter, o ex-eletricista e fun-cionário do laboratório de um dos pioneirosda imagem em movimento, Thomas AlvaEdison, resolveu o problema com inventivid-ade em Life of an American Fireman, filme de1903.

Em pouco mais de seis minutos, Portercostura cenas de um dia na vida de umbombeiro, estabelecendo o conceito narrat-ivo que iria dominar o cinema comercial, demassa, ao longo das décadas seguintes: asimagens se sucedem convidando o

154/415

Page 155: Como ver um filme

espectador a organizá-las como uma histórialinear, com começo, meio e fim. Cochilandona estação, um bombeiro sonha com sua vidadoméstica (algo revolucionário para 1903 —dois planos de tempo na mesma cena!). Al-guém aciona um alarme. Os bombeirosdescem às pressas para as charretes, atraves-sam as ruas a galope, manobram asmangueiras, sobem e descem escadas parasalvar uma criança enquanto a mãe clamapor socorro. Imagens diversas, em locais emomentos diferentes, transformadas emuma narrativa pela montagem.

No mesmo ano de 1903, Porter levou adi-ante sua experiência com o que muitos con-sideram o primeiro filme de ação e oprimeiro western da história do cinema: Ogrande roubo do trem. Em 12 minutos, Porterrecria um episódio da conquista do Oesteutilizando recursos ousados que se tornari-am parte integrante da linguagem cinemato-gráfica, como narrativas paralelas (eventos

155/415

Page 156: Como ver um filme

acontecendo simultaneamente em doislugares diferentes), compressão do tempo,tela dividida e — fundamental para o cinemaamericano — naturalidade do corte, que faz oespectador acreditar que o cenário da es-tação de trem e a floresta por onde os ban-didos fogem são parte da mesma realidade, ecompõem uma mesma história seminterrupções.

Na Europa, os pioneiros da imagem emmovimento estavam progredindo na mesmadireção. Encantado com uma demonstraçãodos irmãos Lumière, o mágico e prestidigita-dor Georges Mélies decidiu combinar seustruques de palco com a nova tecnologia noque viria a ser uma série de filmes notáveis,explorando a força narrativa da montagem eo potencial da imagem em movimento narealização de trucagem — ou seja, efeitosvisuais. Viagem à lua, de 1902, combina todosesses elementos numa adaptação de 14minutos de textos de Julio Verne e

156/415

Page 157: Como ver um filme

H.G.Wells que seria impossível, como nar-rativa, sem a colaboração do espectador at-ravés da montagem.

Essa colaboração entre o que a câmeracapta e o que a mente do espectador acres-centa é o coração do conceito da montagem.Na terceira década do cinema, seu podertornou-se o principal alvo de estudo e de-bate, principalmente na Europa. Na Rússiarecém-comunista, o potencial desse ele-mento como fomentador de debates não pas-sou despercebido. Dois teóricos e cineastasfizeram as mais importantes reflexões sobreo tema: Lev Kuleshov e Sergei Eisenstein. Aointercalar a mesma imagem — um ator ol-hando para a câmera — com três tomadasdiferentes — um prato de sopa, uma mulherchorando sobre um caixão e uma criança ab-raçada a um ursinho de pelúcia —, Kuleshovprovou que a mente humana colore comemoções o que vê, dependendo da ordem emque vê. Aos espectadores que participaram

157/415

Page 158: Como ver um filme

do experimento em 1918 (e na verdade atéhoje), o ator parecia faminto quando o pratode sopa aparecia antes de sua imagem; tristee compassivo, quando precedido pela mulherchorando; e terno, amoroso, quando a cri-ança e seu ursinho eram vistos antes. ParaKuleshov, a montagem era o elemento maisimportante do cinema, equivalente a con-struir uma casa tijolo por tijolo — apenas ajustaposição das imagens poderia criar o sig-nificado do filme, assim como os tijolos, jun-tos, construíam uma casa.

Um dos primeiros teóricos do cinema, Eis-enstein foi além de expor suas ideias em doislivros essenciais: O sentido do filme e A formado filme. Em 1924, ao começar sua carreiracomo diretor, com A greve, ele colocou natela, eloquentemente, o que constatara: que amontagem não apenas modifica emoções epercepções, mas as cria aparentemente donada. Em A greve e, mais espetacularmenteainda, em O encouraçado Potemkin, de 1925,

158/415

Page 159: Como ver um filme

Eisenstein alinha imagens aparentementedesconexas — as laranjas caindo pelos de-graus de Odessa, os soldados do tzar atir-ando sobre a multidão, por exemplo — paragerar vastos conceitos e sentimentos. Tudoestá no olhar e na cabeça do espectador: seas laranjas caem e rolam, o que estaráacontecendo com as pessoas? Caindo e ro-lando, indefesas…

Nos anos 1920 e 1930, a montagem estavafirmemente estabelecida como a fundaçãosobre a qual toda a linguagem do cinema sebasearia. Dois modos de encarar a mont-agem rapidamente se solidificaram: a mont-agem invisível ou “natural” e a montagemvisível.

A montagem invisível, praticada comgrande entusiasmo pelo patriarca do cinemanorte-americano, D.W. Griffith, tornou-se amais usada em Hollywood. Seu objetivo éesconder ao máximo a experiência do filme eenvolver o espectador no que parece ser a

159/415

Page 160: Como ver um filme

observação de “fatos reais”. As cenas precis-am ser cuidadosamente encaixadas para quenão haja descontinuidade: a moça segurandoo copo cheio tem que estar segurando o copocheio na cena seguinte, mesmo que o ânguloda câmera seja outro, por exemplo; o homemsaltando do carro, entrando no prédio pelaporta da frente e se encaminhando para aportaria precisa ser visto sem interrupção esem diferença de roupa e iluminação em to-dos esses momentos, mesmo que essas im-agens tenham sido captadas em dias, locais ecircunstâncias completamente diferentes. Éo domínio do corte casado — a cena anterior ea seguinte devem se “casar” perfeitamente,com a mesma naturalidade que nosso olharteria ao ver as imagens no mundo real.

A montagem visível, decorrente dospostulados de Kuleshov e Eisenstein, propõeexatamente o oposto: que o espectador estejaconsciente o tempo todo de que está vendouma representação da realidade — um

160/415

Page 161: Como ver um filme

construto intelectual a partir de imagenscaptadas expressamente para esse fim —, eque acrescente suas conclusões pessoais aoque vê. A metáfora visual impera, aqui, coma sobreposição de imagens tão dísparesquanto as laranjas e as pessoas de O Encour-açado Potemkin, e mudanças abruptas deritmo, grandes saltos entre o close de umrosto, uma mão, um plano aberto de mul-tidão. É a província do corte seco, que nãopretende imitar a realidade, mas subvertê-la,um tipo de linguagem essencial no desenvol-vimento do cinema europeu.

As trocas de informação, o fluxo de mão deobra estrangeira em Hollwyood — o próprioEisenstein trabalhou brevemente na Para-mount, nos anos 1930 — e, nos anos 1950 e1960, a influência do novo cinema europeusobre a geração que se formava nas escolasde cinema acabou mesclando as duas abord-agens. Hoje o mais comum é vermos ambasem prática nos filmes, com objetivos

161/415

Page 162: Como ver um filme

diferentes e complementares: levar a históriaadiante (tarefa mais fácil com a montageminvisível) ou nos fazer ponderar o mundo in-terior ou a experiência única de um person-agem (o que exige o poder metafórico damontagem visível). Um filme como Inception— A origem não seria possível sem a utiliza-ção sábia das duas formas de montagem —invisível no “mundo real” dos personagens,visível, inquieta e provocante no “mundo dosonho”.A IMPORTÂNCIA DO MONTADOR num filme é decerto modo parecida com a do goleiro numtime de futebol: o público só nota quando eleerra. Seu trabalho não é glamoroso como odo desenhista de produção, influente como odo diretor de fotografia, divertido como o doroteirista. Para a grande maioria de nós, naplateia, ele — ou ela; o contingente femininona ilha de edição sempre foi substancial e,hoje, é cada vez maior — é invisível. Na ver-dade, quanto melhor e mais brilhante for seu

162/415

Page 163: Como ver um filme

trabalho, mais o montador será invisível, esairemos do cinema elogiando o diretor, osatores e o roteirista. No entanto…

A lista dos filmes que foram literalmentefeitos ou salvos na ilha de edição daria outrolivro. Apocalypse Now foi um exemplodramático, mas há muitos mais. Noivoneurótico, noiva nervosa (Woody Allen, 1977)mudou radicalmente de rumo quando, já nafinalização, o montador Ralph Rosenblumapontou a Allen que Annie Hall, a person-agem de Diane Keaton, era o coração dofilme (que até aquele momento se chamavaAnhedonia, termo médico para “incapacidadede sentir prazer”). Allen concordou e, juntos,ele e Rosenblum remontaram o filme, enfat-izando o personagem de Keaton — que, afi-nal, deu o título à versão original.

Tubarão (Steven Spielberg, 1975) é um casoainda mais dramático. O material quechegou à moviola da experiente Verna Fieldsera desesperador: as oscilações de luz,

163/415

Page 164: Como ver um filme

comuns no oceano, faziam com que tomadasda mesma sequência parecessem estar emhoras do dia e estações do ano diversas; er-ros de continuidade estavam por toda parte,atestando o caos das semanas finais de fil-magem. Mais grave, o astro do filme, omegavilão do título, era um horror, mas emoutro sentido: “representado” por trêstubarões mecânicos (todos batizados “Bruce”por Spielberg, em homenagem a seu ad-vogado), a criatura era risível em todas ascenas. Isso quando se dignava a aparecer —um dos Bruces afundou no Atlântico ao largode Martha’s Vineyard e jamais foi resgatado.

Calma e filosófica, Fields foi franca comSpielberg. Do alto de seus 57 anos de idade(contra os 29 do aflito diretor) e 20 de car-reira, Fields foi decisiva — só havia um jeitode salvar Tubarão: sumindo com o dito cujo.Spielberg, fã de Hitchcock, tivera oportunid-ade de trabalhar com o mestre em sua sériede TV e imediatamente compreendeu a

164/415

Page 165: Como ver um filme

proposta. O que realmente assusta a plateia,sempre dissera Hitchcock, é o que ela não vê,mas antecipa — e imagina.

Nas mãos hábeis de Fields, os Bruces fo-ram cirurgicamente eliminados, substituídospor elegantes cortes que priorizam o possívelponto de vista do predador e ocultam sempresua aparência física. Adicione-se a isso amaravilhosa “assinatura musical” criada porJohn Williams (e inspirada nos mesmos cel-los assustadores empregados por BernardHerrmann, com o mesmo objetivo, emPsicose), e pronto: nunca tantos tiveram tantomedo de planos da luz do sol entrando pelomar, boias amarelas pipocando na superfíciee dois acordes graves em sequência.

Este é o ofício do montador elevado à arte.Verna Fields, é claro, ganhou o Oscar porTubarão.

A importância da montagem é tanta quemuitos diretores a tomam nas mãos, semmedo do enorme, sistemático e paciente

165/415

Page 166: Como ver um filme

trabalho que ela representa. O grande HalAshby começou sua carreira como montadore, mesmo depois de sua ascensão a diretor,continuava editando seus filmes — e fil-mando como um montador, já com todos oscortes e inserções previstos em sua cabeça.Steven Soderbergh e os irmãos Coen sempremontam seus próprios filmes.

A segunda melhor opção para um diretor éter um montador de fé, com quem mantémuma relação tão profunda e duradouraquanto a com os diretores de arte ou de foto-grafia. Spielberg trabalha sempre que podecom Michael Kahn; Scorsese, com ThelmaSchoonmaker. Godard foi parceiro de AgnésGuillemot até sua morte, em 2005; Fellini,do grande Ruggero Mastroianni (irmão deMarcello). David Lynch acabou se casandocom sua editora, Mary Sweeney (e se sep-arando dela em 2006). Até hoje, FrancisFord Coppola e Walter Murch são parceirosinseparáveis.

166/415

Page 167: Como ver um filme

A ideia que um dia foi um roteiro e depoisse tornou uma visão nasce apenas depois demoldada pelo minucioso e delicado trabalhodo montador — carpinteiro e ourives docinema.COMO TODO ARTESÃO DE ALTO NÍVEL, o monta-dor tem uma bem-abastecida caixa de ferra-mentas. Algumas de suas favoritas são:

1. O ritmo do corte: Muitos montadorestrabalham com metrônomos paramanter a contagem certa de compassospara a duração de cada cena. Outros tra-balham com a música prevista pelo dire-tor (Scorsese costuma filmar todas assuas principais sequências ao som damúsica que pretende usar na trilha).Como na música, o ritmo do corte seajusta pelo ritmo cardíaco — para nós,quanto mais rápido, maior a sensação detensão na sequência.

2. Fade in, fade out/dissolve: Umalenta transição entre uma imagem e

167/415

Page 168: Como ver um filme

outra. Os fades dissolvem a imagem paraou de uma tela vazia. Os dissolves fundemduas imagens. Criam a sensação decomeço, fim e passagem de tempo. Cid-adão Kane abre com uma série de dissolvesentre diversas imagens importantes paraa mitologia do protagonista — elabora-das grades e portões, o castelo deXanadu —, muitos terminando emsuperposições.

3. Superposição: Uma imagem nitida-mente colocada sobre ou ao lado deoutra. Cria imediatamente uma metáforavisual ou indica uma porta de acesso aomundo interior dos personagens — comono caso da abertura de Apocalypse Now,em que o fogo do napalm aparece sobre-posto ao rosto de Martin Sheen.

4. Cutaway: Uma imagem secundária éintercalada à ação principal. Permite-nosacompanhar eventos, reações e aconteci-mentos de diversos pontos de vista. Em

168/415

Page 169: Como ver um filme

Chinatown, Jake (Jack Nicholson) ob-serva, através de binóculos, o encontroentre o engenheiro Hollis Mulwray (Dar-rell Zwerling) e um menino, em uma desuas muitas andanças por áreas de seca.Um cutaway nos mostra a imagem queele está vendo através dos binóculos.

5. Cortes casados (matched): Imagensdiferentes entre si são postas lado a lado.É outro modo de criar, instantanea-mente, uma metáfora visual. Nosso olharsoma as informações das duas imagens ecria um conceito a partir delas — comoquando o macaco do início de 2001: umaodisseia no espaço atira para o alto umosso que ele acabou de usar como arma,e a imagem que vemos, logo a seguir, éuma nave espacial — longa como umosso — flutuando sobre a Terra.

6. Cortes contínuos: É o fundamento da“montagem contínua” ou “americana” —aquela que busca criar grandes doses de

169/415

Page 170: Como ver um filme

“realismo emocional” que permita àplateia “perder-se” na “realidade” dofilme. Um ou mais elementos assegurama “naturalidade” da sequência de im-agens: mesmo que tomadas tenham sidofeitas em dias, horas e locais diferentes, oeditor “costura” as imagens para criar ailusão de continuidade da ação, re-forçando a suspensão de descrença enosso envolvimento com a narrativa. Aimagem de uma atriz olhando pela janelapode ter sido filmada em um dia, e a im-agem de ela se voltando para ver quementra no quarto pode ter sido captada emoutro. Se a montagem coloca os dois ladoa lado, nossa mente logo torna o movi-mento contínuo, habitando o mesmomomento e espaço.

7. Jump cut: O oposto da “montagemcontínua” e uma das armas mais usadaspelas brigadas da Nouvelle Vague para“desconstruir o cinema”: tomadas da

170/415

Page 171: Como ver um filme

mesma cena, mas com diferentes ângu-los e até enquadramentos, são colocadasem sequência, fazendo com que as im-agens pareçam “pular” (daí o nome). Nocorte contínuo, aceitam-se imagens decâmeras, uma depois da outra, que es-tejam em posições diferentes — desdeque a câmera tenha se movido menosque trinta graus, uma diferença que oolho humano corrige naturalmente e nãoquebra a ilusão de “naturalidade”. Nojump cut, as imagens são deslocadas o su-ficiente para que a sensação seja ooposto, a de artificialidade. Uma grandeparte de Corra, Lola, corra (Tom Tykwer,1998) é jump cut: Tykwer proposital-mente corta de tomadas próximas paralongínquas, e entre locais e personagensdiferentes, o que aumenta a tensão e asensação de urgência da correria deses-perada de Lola.

171/415

Page 172: Como ver um filme

O jump cut tornou-se, na verdade, umadas ferramentas mais comuns da lin-guagem audiovisual contemporânea. Oque era insolente nos anos 1960 é, hoje,comumente empregado não apenas emfilmes, mas em videoclipes e na TV, tantoem séries quanto em documentários.

Além de controlar o modo como exper-imentamos a narrativa, o montador tam-bém tem o domínio sobre o tempo e o es-paço — afinal, um filme é um exercíciodigno de Einstein, no qual histórias quepodem se estender por séculos em diver-sos continentes nos são apresentadas, deforma clara e compreensível, durante,em média, duas horas.

Como isso é possível? Alguns modospelos quais os montadores manipulam ocontínuo espaço-tempo:• Tempo subjetivo: Tempo como per-

cebido por determinado personagem(lento demais, rápido demais…). As

172/415

Page 173: Como ver um filme

imagens são desaceleradas ou acelera-das para acompanhar o ponto de vistado personagem.

• Tempo comprimido/passagem detempo: Pode ser breve (o subir deuma escada) ou longo (vários dias eanos). É obtido em geral através defusões, dissolves e superposições, fre-quentemente acompanhadas demúsica (o que, na linguagem profis-sional, configura uma “montagem”). Éuma das formas mais eficientes decomprimir grandes blocos de inform-ação visual numa sequência curta, queindique o estilo de vida ou asmudanças na personalidade, aparênciaou relacionamentos dos personagens.Uma das mais conhecidas montagensdo cinema, que usa amplamente o re-curso do tempo comprimido, é a se-quência do treinamento de Rocky Bal-boa (Sylvester Stallone) em Rocky, um

173/415

Page 174: Como ver um filme

lutador (John Avildsen, 1976): ao somde “Gonna Fly Now” (o épico tema in-strumental de Rocky), Stallone at-ravessa várias ruas da Filadélfia (in-clusive um mercado ao ar livre ondesão visíveis os trilhos usados paramover a câmera), faz flexões com umbraço só, dá murros em enormes peçasde carne e sobe triunfantemente a es-cadaria do Museu de Arte da Filadélfia.A ideia é mostrar, em três minutos, osmeses de preparação de Rocky com re-cursos escassos, mas transformandocada desafio numa vitória (um climaenfatizado pela música e pelos gestosde Stallone).

• Tempo simultâneo: Eventos difer-entes, em locais e possivelmente mo-mentos diversos parecem ocorrer aomesmo tempo porque as imagens sãoinseridas em blocos sucessivos dentrode uma ação principal, ou colocadas

174/415

Page 175: Como ver um filme

em subdivisões na tela (como StevenSoderbergh faz constantemente emseus filmes Onze homens e um se-gredo/Doze homens e outro segredo…).

• Tempo ambíguo: Ao intercalar dis-solves e fusões numa sequência decortes, cria-se um “espaço” visual quepode indicar lembrança, devaneio, ra-ciocínio, impressão subjetiva. O temposubjetivo, quando o sujeito em questãoestá alterado por algum motivo (apaix-onado, sonhando, drogado, bêbado),aparece frequentemente como tempoambíguo — “perdemos tempo” juntocom os personagens.

• Tempo “natural”: Obtido em geralpelo long take ou plano-sequência —uma rodada da câmera, sem inter-rupções e cortes. Tem um aspecto nat-ural, como o olhar humano, mas podeser manipulado pelo DP através damovimentação da câmera. Há planos-

175/415

Page 176: Como ver um filme

sequência históricos: as aberturas de Amarca da maldade (Orson Welles, 1958),Absolute Beginners (Julien Temple,1986) e O jogador (Robert Altman,1992), ou a integralidade de Arca russa(Aleksandr Sokúrov, 2000). Curi-osamente, quanto mais longo esustentado o plano-sequência, menos“natural” o tempo fica — porque es-tamos acostumados ao olhar picotadodo cinema.

HOJE NOS PARECE UMA ABERRAÇÃO ver um filmecom o som dessincronizado, mas é bom lem-brar que as primeiras duas décadas de vidado cinema foram completamente mudas. Eque, nos anos 1930, na esteira do sucesso deO cantor de jazz — o primeiro longa com somsincronizado, de 1927 —, o cinema tornou-seamplamente sonorizado, muita gente jurouque seria o fim da recém-nascida “sétimaarte”.

176/415

Page 177: Como ver um filme

O cinema nasceu do desejo pela imagemem movimento, um impulso distinto da nar-rativa pela voz, que o teatro saciava, ou pelotexto, província da literatura. Parece quelevamos algum tempo até conciliar todas es-sas possibilidades — algumas culturas maistempo que outras. No Japão, por exemplo, aarte da narração do filme mudo por benshispermaneceu viva até a Segunda Guerra Mun-dial, suplantando em popularidade a “novid-ade” do som sincronizado.

Mesmo a música, que hoje associamos comtanta naturalidade à experiência de ver umfilme, tardou a ser incorporada completa-mente à narrativa. O “acompanhamento mu-sical” que Victor Herbert escreveu para Fallof a Nation (Thomas F. Dixon Jr., 1916) eraexecutado paralelamente à exibição, assimcomo os temas compostos por GottfriedHuppertz para os filmes de Fritz Lang e porHans Erdmann para Nosferatu, de Murnau,em 1922.

177/415

Page 178: Como ver um filme

Mesmo depois do advento do som sin-cronizado, a música parecia sempre algopairando sobre a superfície do filme — atéKing Kong, em 1933, e a apavorante trilha deMax Steiner, que fazia o que centenas de out-ras fariam nas próximas décadas: dizer aopúblico o que deveria sentir, e quando.

Colocados juntos, som e música podemser:▪ Diegéticos: Que vêm do “mundo da

história”, ou diegesis. Ou seja, tudo aquiloque, visível ou possível de existir numacena, pode ser compreendido como“fonte sonora”. Por exemplo: se na cenade uma diligência atravessando oDeserto Pintado ouvimos o uivo dovento, o estalar do chicote ou o ruído doscascos — mesmo que naquele momentopreciso não possamos ver inteiramente ochicote, o vento ou os cascos — assumi-mos que aquilo “naturalmente faz parte”da cena.

178/415

Page 179: Como ver um filme

▪ Não diegéticos: Tudo aquilo que éouvido mas não visto na cena por ser im-possível ou improvável no contexto dahistória. E, mesmo assim, aceitamoscomo parte do “realismo emocional” dofilme, o que chamo de “efeito King Kong”.Ou seja: na mesma sequência da diligên-cia atravessando o Deserto Pintado, sevocê ouvir metais gloriosos sobre umfundo de cordas e tímpanos, ou há umaorquestra sinfônica escondida em algumcanyon ou você está vendo No tempo dasdiligências (Gordon Douglas, 1966) com amaravilhosa trilha de Jerry Goldsmith.

Os principais usos do som são:▪ Ambiente. Em geral captado de forma

direta, ou mixado para parecer natural,como que emanando do ambiente emque os personagens se movimentam edialogam. Hitchcock dá uma aula de usodo som ambiente em Janela indiscreta(1954), utilizando, para compor os

179/415

Page 180: Como ver um filme

climas emocionais, apenas os sons que“naturalmente” partem do apartamentode James Stewart e, sobretudo, de seusvizinhos de frente.

▪ Establishing sound. Recurso tão anti-go quanto o som sincronizado: é o ruído— ou a mistura de ruídos — que, colo-cado sob uma imagem que não é neces-sariamente específica, nos “diz” o que es-tamos vendo. Se olhamos uma imagemde prédios e ouvimos buzinas, sirenes,tráfego e vozes, imediatamente presumi-mos estar vendo uma grande cidade (enão uma maquete sobre uma mesa di-ante de uma janela aberta, que é o que aimagem também pode ser…).

▪ Soundscape (paisagem sonora).Complexa massa de diálogo, música, ruí-dos e efeitos sonoros que compõe amaior parte dos filmes que vemos hoje.Desenhada e planejada antes mesmo deo filme ser rodado, com o mesmo rigor e

180/415

Page 181: Como ver um filme

atenção ao detalhe dos aspectos visuaisdo projeto, a soundscape é uma espécie de“filme auditivo”, com todas as chavesemocionais da narrativa visual — emforma de som.

Em qualquer um desses usos, o som utilizaalgumas ferramentas específicas:▪ Som direto: Gravado ao vivo durante a

filmagem. Pode ser usado como base ouno resultado final. Soa “autêntico”.

▪ Som de cena (source): Música ou sonsque se originam de objetos vistos na cena(uma TV, um aparelho de som etc.).Raramente é som direto — para clareza,o som é acrescentado depois, num pro-cesso chamado foley.

▪ Foley: Ruídos e sons acrescentados pos-teriormente para recriar/enfatizar/com-plementar elementos perdidos no somdireto ou criar sons artificiais. Percorremtoda a gama de situações presentes natela, de notas sendo manuseadas

181/415

Page 182: Como ver um filme

(reproduzidas com lenços de papel sendoamassados num microfone) a corpos seespatifando no meio-fio (uma melanciasendo atingida por um objeto contun-dente, em geral um martelo).

▪ Narração off/voice over: Comentárioà ação por alguém que, em geral, não es-tá na cena.

▪ Ponte sonora: Um som (música, ruído,fala) que passa de uma cena a outra, es-tabelecendo uma unidade dramáticaentre elas ou sobrepondo a “realidadeemocional” de uma sobre a outra.

▪ Assinatura sonora: Um som que é in-cluído repetidas vezes em determinadotipo de cenas ou sequências, para definirum clima emocional, um ambiente oupersonagem. Todas as vezes que vemos ocarcereiro sádico, de óculos espelhados,em Rebeldia indomável (Stuart Ronsen-berg, 1967), ouvimos latidos de cães deguarda na trilha sonora.

182/415

Page 183: Como ver um filme

▪ Silêncio: É um dos elementos maisdramáticos e perturbadores num filme.O silêncio absoluto, muito raro, é usadoem geral como elemento extremo decena. O silêncio com ruídos ambientespode indicar “naturalismo” ou servir deênfase a determinados momentos. EmFonte da vida (Darren Arnofosky, 2006),os momentos que se seguem à morte deIsabel (Rachel Weisz) estão em absolutosilêncio; seu marido, Tomas (Hugh Jack-man), está isolado do mundo, envolto emdor tão profunda que tudo silencia à suavolta; o som retorna abruptamente, coma buzinada de um carro que quase oatropela.

Mesmo sem ser silêncio completo, a re-tirada de qualquer elemento importante datrilha causa, para nós, o mesmo efeito. Em Opianista (Roman Polanski, 2002), WladislawSzpilman (Adrien Brody) está tocando na rá-dio nacional polonesa, em Varsóvia, quando

183/415

Page 184: Como ver um filme

a cidade começa a ser bombardeada pelosnazistas. Quando uma bomba explode nasproximidades do prédio, o efeito é ensur-decedor — e sabemos disso porque todos ossons desaparecem da trilha, substituídosapenas por um longo e agudo zumbido, o tin-ido da lesão auditiva. Steven Spielbergemprega o mesmo recurso em uma cena decombate de O resgate do soldado Ryan (1998),e, em Soldado anônimo (Sam Mendes, 2005),o ruído de grãos de areia caindo ao chão étudo o que resta depois de uma explosãomedonha — sua presença enfatiza a surdezcompleta dos personagens.A MÚSICA É USADA, COMO O SOM, para amplifi-car e comentar o que vemos. Na verdade, emmãos adequadas, ela nos diz como sentir e oque sentir. Somada às imagens certas, criamemórias absolutamente indeléveis: como o“Danúbio Azul” fazendo naves e estações es-paciais valsarem em 2001: uma odisseia no es-paço, uma das muitas peças de trilhas que

184/415

Page 185: Como ver um filme

deveriam ser apenas rascunhos para auxiliaro trabalho do montador, mas que acabaramindo parar na mixagem final dos filmes deStanley Kubrick, que quase nunca aprovavaos esforços dos compositores que contratava.

De acordo com seu uso, a música no filmepode ser:▪ Pano de fundo/background: Cria um

“tecido” sonoro/emocional que quasesempre não é ouvido conscientemente,mas registrado como “dica emocional”da cena. A montagem em geral segue omesmo ritmo deste forro musical. Amúsica de fundo é mais notada quandonão está lá: os filmes norte-americanosda geração “sexo e drogas” dos anos 1970e uma grande parte dos filmes europeus— notadamente os filmes do movimentoDogma — propositalmente não usammúsica de fundo, sublinhando diálogo eruídos de cena com essa ausência.

185/415

Page 186: Como ver um filme

A presença da boa música de fundo ésutil, quase subliminar. A oscarizadatrilha de Trent Reznor e AtticusRoss para A rede social (David Fincher,2010) inclui vários baixos contínuos, queseguram os momentos de introspecçãode Mark (Jesse Eisenberg), e sequênciasde pulsos, que sublinham as ebulições decriatividade e iniciativa.

▪ Primeiro plano/foreground: Nemdublada, nem de cena, é um tema music-al que funciona como “cenário” auralpara uma cena ou sequência. Nas se-quências de montagem/passagem detempo, este é o modo de utilização damúsica. Se Rocky Balboa treina nas ruasda Filadélfia ao som dos metais eufóricosde Bill Conti, o junkie/traficante Renton(Ewan McGregor) corre da polícia de Ed-inburgo ao som da voz rascante de IggyPop em “Lust for Life” na genial sequên-cia de abertura de Trainspotting (Danny

186/415

Page 187: Como ver um filme

Boyle, 1996), condensando em doisminutos a vida fora da lei do anti-herói.

▪ Música de cena/source: É a músicaque toca (ou melhor, parece tocar) nacena que vemos, vinda de um rádio, uminstrumento musical, um disco. Ajuda acaracterizar os personagens, firmando-osnum tempo ou lugar real ou imaginário.Para A última sessão de cinema (1971),Peter Bogdanovich usou apenas músicade cena.

▪ Dublada: Elemento tradicional dos mu-sicais, substitui o texto falado como con-dutor ou comentador da narrativa.

▪ Assinatura musical: Frases musicaisusadas como elementos de cena, em onou off: os violinos e cellos sinistros dePsicose e Tubarão, por exemplo.

▪ Abertura/encerramento:Estabelecem o clima em que a narrativase dará — “The End” em Apocalypse Now,ou o tema de saxofone de Bernard

187/415

Page 188: Como ver um filme

Herrmann em Taxi Driver (MartinScorsese, 1976), por exemplo — esumarizam suas sensações depois do fi-nal da trama — como a maravilhosa “JaiHo” no final de Quem quer ser ummilionário?.

ALGUMAS SUGESTÕES▪ Procure notar como algumas de

suas sequências favoritas forammontadas. Você consegue perceberonde estão os cortes? Ou não?▪ Note os diferentes recursos de

montagem usados em seus filmesfavoritos.▪ Experimente ver cenas-chave de al-

guns filmes sem som. Que diferençavocê percebe?

188/415

Page 189: Como ver um filme

▪ Veja se consegue notar a música defundo num filme e estabeleça a re-lação entre ela e o clima emocionaldas imagens.▪ Ouça uma sequência conhecida com

os olhos fechados e tente perceberas camadas de sons que estão nar-rando e complementando asimagens.

189/415

Page 190: Como ver um filme

Parte 2: O estilo

Page 191: Como ver um filme

1. Mil e uma maneiras de ver: os gêneros cinematográficos

1. MIL E UMA MANEIRASDE VER: OS GÊNEROSCINEMATOGRÁFICOS

“Só podemos definir ‘gênero’ comparandouma obra a outra,

nunca comparando a obra com a experiênciavivida.”

Roland Barthes, S/Z

Page 192: Como ver um filme

UMA FORMA GARANTIDA DE PROVOCAR a maisacirrada das disputas entre teóricos e ciné-filos em estado agudo é levantar a questãodos gêneros (genres). Apenas a vida depois damorte, a existência de uma divindade ouaquele pênalti no último jogo decisivo docampeonato são capazes de deflagar rajadasverbais e conceituais mais calorosas. Minúciaalguma será insignificante demais.Sacrossantos nomes de diretores e críticosserão invocados com fervor. Gritos de blas-fêmia e solicitações de exorcismo ou ex-comunhão não são impensáveis. E semprehaverá alguém que, com um dar de ombrostalvez, dirá que seria melhor debater o sexodos anjos. Gêneros, afinal de contas, nãoexistem.

Page 193: Como ver um filme

Não vou tão longe. Gêneros existem eservem de código de compreensão tanto pararealizadores quanto para nós, na sala escura.Melhor compreendê-los como algo fluido,em mutação, vivo como o próprio cinema,que muda muito cada vez que olhamos paraele.

Herdeiro de muitas formas de expressãoanteriores ao seu nascimento, o cinemadefiniu sua gramática e sua sintaxe tomandoemprestados elementos alheios: da literatura— da mais clássica à mais rueira, tragédiasgregas, folhetins, gibis — do teatro, das artesplásticas, da fotografia. O cinema sedebruçou sobre praticamente todas as fa-cetas da atividade e do sonho humanos,expressando-as em uma profusão de formas.

Ao reorganizar estes elementos atendendoà disciplina rigorosa do tempo de tela —entre 70 e 120 minutos, com raras indulgên-cias para além da marca das duas horas — edas necessidades de uma narrativa que possa

193/415

Page 194: Como ver um filme

ser compreendida pelas pessoas mais varia-das, unidas apenas pela cumplicidade da salaescura, o cinema criou seus códigos interi-ores, os gêneros.

Como Barthes indica — e ele está falandodos gêneros literários, os antepassadosnobres dos gêneros cinematográficos —, nãose podem definir gêneros estudando a realid-ade. Ninguém foi perseguido pelas ruas, emalta velocidade, por um androide assassino, eno entanto aceita perfeitamente que estasimagens componham um elemento import-ante da história de um filme — O Exterm-inador do Futuro, de James Cameron. Na ver-dade, a próxima vez que a mesma pessoa vir,na tela, um androide mal-intencionado, ar-mado até os dentes, ela imediatamente re-conhecerá o filme que a espera, mesmo semo ter visto (ainda): um thriller de ação comelementos de ficção científica. E ao saber oque é o filme mesmo antes de ver o filme, suacabeça fará previamente uma série de

194/415

Page 195: Como ver um filme

associações que possibilitam que a narrativavisual se plugue de maneira mais intensa emsua mente.

Mais uma vez, o filme pede a parceria doespectador, e lhe dá os sinais necessáriospara o diálogo. São as muitas maneiras dever um filme, cristalizadas em torno de códi-gos próprios.

Para os realizadores, gêneros podem serbalizas, desafios, confinamentos ou estímu-los. Podem fornecer parâmetros tão clarosque se tornam irresistivelmente sedutores,bela fruta pronta a ser mordida — ao fazerCabo do medo, Martin Scorsese me disse que“não podia resistir” à tentação de abraçarsem restrições as regras do thriller: “Parafazer um thriller você tem que contar ahistória de uma certa maneira, com certosmovimentos e certos momentos. É difícil.Gosto de thrillers, mas sei que é difícil fazê-los, perigoso até: é um desafio, não posso meentediar fazendo, mas não posso enfeitar

195/415

Page 196: Como ver um filme

muito a história, senão o clima do thriller seperde.”

Roger Corman (A casa de Usher, A mansão doterror, O corvo e mais 53 títulos como diretore 398 como produtor), que sabe que seunome é sinônimo de “filme de terror”, temuma abordagem mais singela: “Os gênerospodem aprisionar um realizador. Ainda bemque fiquei aprisionado num gênero que amo,o terror.”

Ao fornecer, a priori, uma série de elemen-tos que balizam o futuro filme, o conceito de“gênero” também funciona como uma es-pécie de taquigrafia da comunicação entre asdiversas etapas da realização. Quando umdiretor ou roteirista vai pitchear um projetoque se atém, por fidelidade, oposição oucomentário, a um gênero preestabelecido, apessoa do outro lado da conversa sabe imedi-atamente que tipo de filme esperar.

A delícia do cinema são as mil e umamaneiras que essa interpretação pode tomar.

196/415

Page 197: Como ver um filme

Entre o Scarface de Howard Hawks, em 1932,e o de Brian de Palma, em 1983, um universode normas e clichês do thriller dramático degângster são, ao mesmo tempo, abraçados ereinterpretados; na verdade, ao colocar seunovo Scarface no mundo da cocaína e dosimigrantes latinos de Miami, De Palma criouum novo subset do gênero, por sua vezaberto a mais reinterpretações, comentários— e até sátiras, como a menção recorrente nopastelão Reno 911: Miami, de Robert BenGarant (2007).

São caminhos praticamente infinitos, umglossário preestabelecido que se presta apoemas, piadas, dramas, romances. ShanghaiTriad (Zhang Yimou, 1995) e Kill Bill (QuentinTarantino, 2003/2004); O poderoso chefão(Francis Ford Coppola, 1972), Ajuste de contas(Joel Coen, 1990) e A estrada para a perdição(Sam Mendes, 2002) — todos são “filmes degângster”, todos repetem elementos cênicose narrativos que nos mostram com clareza o

197/415

Page 198: Como ver um filme

que são. E todos são absolutamentediferentes.UM GÊNERO PODE SER DEFINIDO POR:

▪Narrativa: tramas, premissas e estrutur-as parecidas (até o formulaico); situ-ações, obstáculos, conflitos e resoluçõesprevisíveis.

▪ Caracterização dos personagens: ti-pos semelhantes de personagens (próxi-mos aos estereótipos) com qualidades,motivação, objetivos e aparênciasimilares.

▪ Temas básicos: os filmes são sobretemas semelhantes, frequentemente emcontextos históricos, culturais e sociaissemelhantes.

▪ Ambiente: o lugar — geográfico ouhistórico — onde a trama se passa é omesmo.

▪ Iconografia: uso de “ícones” semel-hantes — objetos, atores, atrizes,

198/415

Page 199: Como ver um filme

cenários; uso de certos tipos de lin-guagem e terminologia.

▪ Técnicas e estilo: iluminação, paleta decores, movimentação de câmera e enqua-dramentos semelhantes.

Cinema é uma arte empírica. Tempo eprática se encarregam de acumular esses si-gnos e organizá-los em gêneros. Sincera-mente, não conheço nenhum diretor, ro-teirista ou produtor que acorde um dia e de-cida “hoje vou criar um gênero novo” e sejabem-sucedido. Há algo orgânico no modocomo esses elementos se arranjam dentro danarrativa e sobre ela que nos faz detectarimediatamente uma tentativa de pré-fab-ricação. Nós, a plateia, somos o campo deprovas desses signos — eles se repetem e setransformam em gêneros porque nós damoso retorno, porque sinalizamos nossa satis-fação em compreender tanta coisa ao veralgo tão simples quanto uma capa preta, um

199/415

Page 200: Como ver um filme

carro em alta velocidade ou uma lua cheia at-rás de nuvens.

Cinema é uma arte viva — tudo nele temum claro ciclo natural — e, como ele, seusgêneros. Temas e estilos que rapidamenteencontram eco junto ao público logo se tor-nam “gêneros” menores no espaço aproxim-ado de uma década. Seus elementos prin-cipais passam a ser copiados, reinterpreta-dos, respondidos por outras visões, outrosrealizadores. A certa altura da repetição, ogênero se cristaliza, torna-se plenamente umclichê, pronto para ser criticado, destroçado,ironizado, satirizado e, eventualmente, es-quecido. Mas nada permanece morto dur-ante muito tempo neste ecossistema — tudoo que foi clássico vinte anos atrás pode sernovidade de novo, resgatado e reinter-pretado por um novo olhar.

O ciclo aproximado de vida de um gêneroé:

200/415

Page 201: Como ver um filme

▪ Enunciação: os primeiros elementossão tomados emprestados de outraforma de expressão — literatura, tendên-cias das artes plásticas, outras mídias ±—e colocados de um modo coerente e sis-temático na tela. Por exemplo: nutridopelo movimento expressionista alemão einspirado no livro Drácula, de BramStoker, Murnau cria o seu Nosferatu, em1922.

▪ Solidificação: com o retorno do públicoe do meio, estabelecem-se os elementosrecorrentes, os que “funcionam”. Os ele-mentos que funcionam passam a sercopiados. Dessa forma, nove anos de-pois, começamos a ver mais títulos sobremonstruosas criaturas saídas das pági-nas da literatura vitoriana: Drácula, es-trelado por Bela Lugosi (1931), Franken-stein, dirigido por James Whale. Cadaqual a seu modo, eles repetem elementosde Nosferatu: o uso das sombras, as

201/415

Page 202: Como ver um filme

heroínas virginais, a antecipação comorecurso dramático para sublinhar assensações de medo e tensão.

▪ Apogeu (“clássicos”): o gênero“nasce”. Seus elementos essenciais estãoclaramente enunciados e, pela repetição,inculcados na cabeça do público. A partirdos anos 1930, por exemplo, pode-sedizer que o thriller de terror está firmadocomo gênero cinematográfico — em ret-rospectiva, os thrillers da Universal dosanos 1940 e os góticos da produtorabritânica Hammer serão vistos como“clássicos do gênero”.

▪ Fórmula: o gênero enrijece, fica enges-sado. A repetição supera a possibilidadede renovação, não há mais espaço para acriatividade. Em geral é o momento daprodução em massa, com diversos títulosparecidos em tudo. As massas de filme-cos de terror que enchem as prateleirasdas locadoras e as altas horas de nossas

202/415

Page 203: Como ver um filme

tvs são bons exemplos desses produtosrecicláveis — que, frequentemente, setornam os melhores campos de treina-mento para futuros cineastas (comoatestam Francis Ford Coppola, OliverStone e James Cameron, quecomeçaram, todos, em filmes B deterror).

▪ Dissolução/ desconstrução/ crítica:quando os elementos estão claros o sufi-ciente e já passaram da fase do clichê, es-tá na hora de um bom polimento por at-rito. Cada signo é olhado tão de pertoque revela todas as suas minúcias e fal-has, abrindo a possibilidade para umacuidadosa evisceração. Os anos 1960/70foram o grande período em que os prin-cipais gêneros clássicos do cinema so-freram todo tipo de cirurgia radical. O be-bê de Rosemary, de Roman Polanski(1968), e O exorcista, de William Friedkin(1973), são gloriosas tentativas de pôr o

203/415

Page 204: Como ver um filme

thriller de cabeça para baixo. A presençado mal — tema essencial do gênero — étornada mais real pela banalidade de seuentorno, despido de teias de aranha,trovoadas e sombras, revelado à luzplena de ambientes cotidianos.

▪ Retomada/ hibridização/ sátira:uma vez limpo de suas cascas mais pesa-das, o gênero está pronto para um renas-cimento. O processo crítico frequente-mente traz novos elementos para seuglossário — quantos filmes de possessãodemoníaca em ambientes triviais vieramdepois de Rosemary e Exorcista? —, e aquebra do respeito possibilita tanto asátira rasgada — a série Todo Mundo emPânico, por exemplo — como o metafilmeque, ao expor os clichês conhecidos,propõe novas soluções para eles —Pânico, de Wes Craven (1996), é um ex-emplo clássico. O subgênero do terrorasiático — filmes como O chamado (Hideo

204/415

Page 205: Como ver um filme

Nakata, 1998) e Água negra (HideoNakata, 2002) — é um exemplo de umgênero “clássico” revisto, limpo, descon-struído, reconstruído e agregado de nov-os elementos. O ciclo está prestes arecomeçar…

QUANTOS GÊNEROS EXISTEM? A rigor, tantosquantos nós queremos que existam. Colocarlado a lado elementos em comum pode serum dos mais divertidos exercícios que um fãde cinema pode fazer. Eu, por exemplo,gosto muito das minhas categorias pessoais:▪ Filmes muito mais inteligentes do

que têm direito. Os Batmans de Chris-topher Nolan (2005 e 2008) e os Bournede Paul Greengrass (2004 e 2007), porexemplo.

▪ Filmes muito mais inteligentes doque parecem. O virgem de 40 anos (JuddApatow, 2005) e Quem vai ficar com Mary?(Bobby e Peter Farrelly, 1998) são algunsdos meus favoritos.

205/415

Page 206: Como ver um filme

▪ Mas o que foi isso? Filmes que deixama sensação de que você acaba de ser atro-pelada por um caminhão em alta velocid-ade: você não entende nada e sai docinema como quem sofreu traumatismocraniano. Império dos sonhos, de DavidLynch, foi um deles. A árvore da vida, deTerrence Malick, o mais recente.

▪ Filmes tão ruins que são bons. Show-girls, de Paul Verhoeven (1995), é umclássico.

▪ Filmes bem-feitos que são ruins. Fo-tografia, roteiro, acabamento... Está tudocertinho, mas você sente claramente queperdeu duas horas de sua vida. A maioriados filmes de Adam Sandler se encaixaaqui. Redacted, de Brian de Palma (2007),também.

Retornando à base do conceito de gênero— as estruturas dramáticas identificadas porAristóteles na Poética —, chegamos a cincogêneros cinematográficos essenciais:

206/415

Page 207: Como ver um filme

▪ Drama▪ Comédia▪ Ação/Aventura▪ Ficção científica/fantasia▪ Thriller (compreendendo suspense e

terror)Esta classificação leva em consideração

apenas os princípios mais básicos de cadaformato, possibilitando que se vejam outrosgêneros a partir de sua essência. Assim, west-erns — um gênero essencial para o desenvol-vimento do cinema — caem facilmente den-tro da categoria “drama” (em sua maioria…Blazing Saddles — Mel Brooks, 1974 — e ThreeAmigos — John Landis, 1986 — ficam mais àvontade entre as comédias). O western é es-sencialmente um drama — sua paisagemfísica e sociopolítica é que lhe dá os con-tornos finais, a devida coloração. Por se pas-sarem em paisagens belas mas inóspitas, depossibilidades, perigos e desafios constantes,onde estruturas sociais ainda não estão

207/415

Page 208: Como ver um filme

plenamente construídas, o “drama do oeste”,ou western, é um dos gêneros mais profunda-mente morais do cinema: seu tema essencialé o livre-arbítrio, a escolha entre bem e mal,entre o que é certo e errado. Na “derradeirafronteira” ainda não há leis ou acordos quepossam dizer aos personagens como agir —apenas seus desejos e consciências os impul-sionam, e cada escolha pode ser uma decisãofatal. Por esse ângulo é possível ver filmestão diversos quanto Thelma e Louise (RidleyScott, 1991), Sangue negro (Paul ThomasAnderson, 2007), Onde os fracos não têm vez(Joel e Ethan Coen, 2007) e a maior partedos filmes brasileiros de cangaço (especial-mente Deus e o Diabo na terra do sol, GlauberRocha, 1964) como westerns: dramas moraisda “derradeira fronteira”.

O mesmo se dá com o musical, para falarde outro gênero fundamental — em sua es-sência, um musical tanto pode ser um drama(Amor, sublime amor, Jerome Robbins e

208/415

Page 209: Como ver um filme

Robert Wise, 1961; All That Jazz, Bob Fosse,1979; Dreamgirls, Bill Condon, 2006), quantouma comédia (Cantando na chuva, StanleyDonen e Gene Kelly, 1952; Agora seremos fel-izes, Vicente Minelli, 1944). Pode até mesmoconter elementos de western (Oklahoma!, FredZinnemann, 1955; Annie Get Your Gun, GeorgeSidney, 1950), terror (Rocky Horror PictureShow, Jim Sharman, 1975; Pequena loja doshorrores, Frank Oz, 1986) ou comentário so-cial (Quando o carnaval chegar, Cacá Diegues,1972; Hair, Milos Forman, 1979; Absolute Be-ginners, Julian Temple, 1986; Evita, AlanParker, 1996; Hairspray, Adam Shankman,2007). Podem ser filmes de época (Kiss meKate, George Sidney, 1953; My Fair Lady, Ge-orge Cukor, 1964; Camelot, Joshua Logan,1967), romances (Gigi, Vincente Minnelli,1958; Os guarda-chuvas do amor, JacquesDemy, 1964; Sweet Charity, Bob Fosse, 1969)ou fantasias (O Mágico de Oz, Victor Fleming,1939; Tommy, Ken Russell, 1975; The Wall,

209/415

Page 210: Como ver um filme

Alan Parker, 1982, Encantada, Kevin Lima,2007). Em comum eles têm a música comoelemento narrativo essencial, canções impul-sionando a narrativa e não apenas atuandocomo coadjuvantes. Em seus temas eles sãodramas, comédias, romances etc. Em suaforma, eles são musicais.

Pelo mesmo motivo não incluí filmes deanimação entre os gêneros. Longas anima-dos podem ser absolutamente tudo: dramas(Watership Down, Martin Rosen, 1978; O ReiLeão, Roger Allers e Rob Minkoff, 1994; TheIron Giant, Brad Bird, 1999, Ratatouille, BradBird, 2007); comédias (Shrek, Andrew Adam-son e Vicky Jenson, 2001, Madagascar, EricDarnell e Tom McGrath, 2005), ficçãocientífica (O segredo de N.I.M.H, Don Bluth,1982; Os incríveis, Brad Bird, 2004; O homemduplo, Richard Linklater, 2006; Wall-E,Andrew Stanton, 2008), filmes de ação(Aladim, Ron Clemens e John Musker, 1992;Toy Story, John Lassseter, 1995; A fuga das

210/415

Page 211: Como ver um filme

galinhas, Nick Park, 2000; Procurando Nemo,Andrew Stanton, 2003), romances (Apequena sereia, Ron Clemens e John Musker,1989; A Bela e a Fera, Gary Trousadle e KirkWise, 1991), dramas políticos (Persépolis, Vin-cent Paronnaud e Marjane Satrapi, 2007;Valsa com Bashir, Ari Folman, 2008), thrillersgóticos (O estranho mundo de Jack, Tim Bur-ton, 1993; A noiva cadáver, Tim Burton, 2005;A guerra dos vegetais, Nick Park e Steve Box,2005), filmes de época (A espada era a lei,Wolfgang Reitherman, 1963; O Corcunda deNotre Dame, Gary Trousadle e Kirk Wise,1996). Além, é claro, de seu “feijão com ar-roz”, fantasia — em que brilham os clássicosda Disney e a obra filosófica e metafísica deHayao Myiazaki (Princesa Mononoke, 1997; Aviagem de Chihiro, 2001).

Mais que qualquer outra forma de fazercinema, a animação é adaptável — realmentelivre das amarras do mundo real, ela podeser qualquer coisa que seus realizadores

211/415

Page 212: Como ver um filme

imaginarem. Não me parece justo prendê-laa uma única categoria de gênero.

Estabelecidas as vigas mestras, podem-sefazer todas as associações possíveis: local,época, subtemas, tudo isso adiciona-se aoeixo central de um gênero e cria a diversateia de estilos que chega às nossas telas.

Assim, um drama sobre conflitos armadostorna-se o subgênero drama de guerra.Dependendo do conflito, ele pode ser dramada Primeira Guerra (trincheiras, baionetas,gás, abuso de autoridade, a corrupção dopoder)....▪ Enunciação: O grande desfile, King

Vidor, 1925; Asas, William Wellman eHarry d’Abbadie d’Arrast, 1927; Semnovidade no front, Lewis Milestone, 1930;A grande ilusão, Jean Renoir, 1937.

▪ Clássico: Sargento York, Howard Hawks,1941; Glória feita de sangue, StanleyKubrick, 1957; Lawrence da Arábia, DavidLean, 1962.

212/415

Page 213: Como ver um filme

▪ Revisto: Eterno amor, Jean-Pierre Jeun-et, 2004, Cavalo de guerra, Steven Spiel-berg, 2011.

...Ou o drama da Segunda Guerra Mundial,que pode ainda ser subdividido em fronteuropeu, (nazismo/fascismo, resistência,genocídio, guerra aérea) e front do Pacífico(império japonês, kamikazes, bomba atôm-ica, campos de prisioneiros).EUROPA:▪ Enunciação: Roma, cidade aberta,

Roberto Rosselini, 1945; Brinquedo proi-bido, René Clément, 1952.

▪ Clássico: O mais longo dos dias, Darryl Za-nuck (produtor), 1962; Trens estreitamentevigiados, Jirí Menzel, 1966; Os doze con-denados, Robert Aldrich, 1967; Patton, re-belde ou herói?, Franklin Schaffner, 1970;O inferno é para os heróis, Don Siegel,1962; Paris está em chamas?, René Cle-ment, 1966.

▪ Revisto: O resgate do soldado Ryan, StevenSpielberg, 1998; The Miracle of Santa Anna,

213/415

Page 214: Como ver um filme

Spike Lee, 2008; Bastardos Inglórios,Quentin Tarantino, 2010.

PACÍFICO:▪ Enunciação: Trinta segundos sobre

Tóquio, Mervyn le Roy, 1944.▪ Clássico: As pontes de Toko-Ri, Mark Rob-

son, 1954; A ponte do Rio Kwai, DavidLean, 1957; A um passo da eternidade, FredZinnemann, 1953; Tora! Tora! Tora!,Richard Fleischer, 1970.

▪ Revisto: Além da linha vermelha, TerrenceMalick, 2002; A conquista da honra eCartas de Iwo Jima, Clint Eastwood, 2006;Códigos de Guerra, John Woo, 2002; Cid-ade de vida e morte, Chuan Lu, 2009;Flores da guerra, Zhang Yimou, 2011.

E dentro dessas divisões pode-se ir a cam-inhos mais específicos: drama de guerra emsubmarinos (O mar é nosso túmulo, RobertWise, 1958; Das Boot, Wolfgang Petersen,1981; U-571, Jonathan Mostow, 2000);drama de guerra em campo de concentração(Stalag 17, Billy Wilder, 1953; Fugindo do

214/415

Page 215: Como ver um filme

inferno, John Sturges, 1964; A lista de Schind-ler, Steven Spielberg, 1993; Um canto de esper-ança, Bruce Beresford, 1997; O pianista, Ro-man Polanski, 2002); drama de guerra naRússia (A balada do soldado, GrigoriChurkhari, 1959; Doutor Jivago, David Lean,1965); drama da guerra do Vietnã (O francoatirador, Michael Cimino, 1978; ApocalypseNow, Francis Ford Coppola, 1979; Platoon,Oliver Stone, 1984; Fomos heróis, RandallWallace, 2002); drama da Guerra Civilamericana (O nascimento de uma nação, D. W.Griffith, 1915; ...E o vento levou, Victor Flem-ing, 1939; Tempo de glória, Edward Zwick,1989) etc.

Cada um desses subgêneros tem seupróprio conjunto de normas e elementos-chave. É quando um subgênero desse se tor-na maduro o suficiente para ser satirizadoque esses ossos aparecem claramente, calci-ficados em clichês: Platoon se torna TrovãoTropical (Ben Stiller, 2008); os filmes

215/415

Page 216: Como ver um filme

patrióticos dos anos 1940 se transformamem Herói de mentira (Preston Sturges, 1944),e os dos 1950, no anti-heroísmo de M.A.S.H(Robert Altman, 1970).

Finalmente, existem os gêneros autorais:realizadores cuja marca é tão pessoal e dis-tinta que, além de transcender as normaspreestabelecidas, criam um novo parâmetrode reconhecimento. Não importa que elespratiquem com assiduidade um ou mais gên-eros preexistentes: nomes como Buñuel,Hitchcock, Lynch, Kurosawa, Scorsese,Fellini são, eles mesmos, qualificadores. Nãohá mais o que dizer.

216/415

Page 217: Como ver um filme

2. Drama: a catarse pela dor

2. DRAMA: A CATARSEPELA DOR

“A estrutura da melhor tragédia não ésimples,

mas complexa, e representa incidentes queprovoquem medo e compaixão — pois isto é

característico desta forma de arte.”Aristóteles, Poética

Page 218: Como ver um filme

O DRAMA É UMA ESPÉCIE de grande template danarrativa cinematográfica: no final das con-tas, depois de tudo dito, explicado, analisadoe classificado, quase todos os filmes — sim,até mesmo as comédias e os longas de anim-ação — poderiam, sem grande dificuldade,ser encaixados na categoria “drama”. Odrama filmado é uma das respostas à nossafome ancestral por catarse — queremos, pre-cisamos ver o pior que acontece aos outrospara termos algum conforto tanto na human-idade compartilhada quanto no saldo finaldo inventário de tormentos e perdas. Assim,sem muito exagero, apenas o tom, o ritmo, oambiente e os “temperos” da narrativa po-dem distinguir um drama no oeste — o west-ern — de um drama com momentos deridículo — a comédia, especialmente a

Page 219: Como ver um filme

comédia dramática ou dramedy —; um dramade ação de um drama sobre o sobrenatural.Todos eles nos oferecem a possibilidade dabreve transcendência — “purificação”, diriamos gregos — pela observação das provaçõesalheias.

Aristóteles, o mestre supremo dos roteiris-tas, a quem já recorremos tantas vezes nestajornada, vai nos levar um pouco adiante naexploração das diferentes formas que a nar-rativa cinematográfica tomou ao longo dasdécadas. E, para ele, o drama — a tragédia,para ser mais exata — era a forma mais per-feita e exaltada da arte dramática, a únicacapaz de nos proporcionar lições duradourase catarses poderosas.

As tramas dramáticas, segundo Aristóteles,precisam incluir os seguintes elementosessenciais:▪ Um grande obstáculo ou reversão de for-

tuna (peripeteia) dever ser enfrentado porum personagem de substância. A

219/415

Page 220: Como ver um filme

natureza do protagonista é de grande im-portância — ao contrário da comédia,que se ocupa das desditas de mulheres ehomens comuns, o drama deve afligir in-divíduos de peso por seu status social ouenvergadura moral e intelectual. Odrama deve ser, literalmente, exemplar.

▪ A reversão de fortuna deve ser fruto deum erro do protagonista. Aristóteles usaa palavra grega hamartia — que vem daprática do arqueirismo e significa, liter-almente, “errar o alvo” — para qualificaresse erro ou falha. Há algo interior, algoque vem da própria personalidade doprotagonista, que o faz “errar o alvo” e,dessa forma, desencadear a tragédia, re-verter sua fortuna. Ele é otimista demais,autoconfiante demais, talvez altivo e ar-rogante em seu estado elevado, julgando-se, quem sabe, com o direito nato aoalvo, em qualquer flechada. Nesse sen-tido, drama e comédia são, exatamente,

220/415

Page 221: Como ver um filme

os dois lados do mesmo espelho em quese debruça a alma humana — em um, ahamartia é compensada pela dor; naoutra, pelo ridículo. Nós, na plateia, queconhecemos bem flechas e alvo, somospurificados, do mesmo modo, por lágri-mas ou risos.

▪ Uma lição deve poder ser extraída daprovação do protagonista. A narrativadramática de qualidade não deveria, pordefinição, ser sádica: a dor pela dor podeser entretenimento em algumas áreas daexperiência humana, mas não aqui. Nodrama, a dor deve poder ser convertidaem sabedoria.

É fácil ver, nas elegantes e precisas normasda Poética, o núcleo central de todos osgrandes dramas cinematográficos, de ...E ovento levou a Menina de ouro (Clint Eastwood,2004); de A regra do jogo (Jean Renoir, 1939)a Soldado anônimo (Sam Mendes, 2005); deBen Hur (William Wyler, 1959) a Gladiador

221/415

Page 222: Como ver um filme

(Ridley Scott, 2000): personagens nadacomuns, notáveis por sua coragem, ousadia,resistência e princípios arriscando suas fle-chas em alvos constantemente em movi-mento, para nosso deleite e aprendizado.

Ao traduzir as regras aristotélicas da tragé-dia para os três atos da narrativa filmada, ocinema codificou o gênero em torno dealguns temas-chave:▪ Superação. Os personagens devem ser

submetidos a provas tais que apenas aorecorrer a qualidades insuspeitadas evencer seus piores medos eles chegarãoao terceiro ato. Pensem em Luke Sky-walker recebendo a estranha transmis-são holográfica da princesa Leia ou Indi-ana Jones defrontando-se com serpentesa cada etapa de suas aventuras.

▪ Heroísmo, em geral equacionado a sac-rifício. O heroísmo da sobrevivência, dodia a dia — o heroísmo de RobinsonCrusoé ou, mais cinematograficamente,

222/415

Page 223: Como ver um filme

do Forrest Gump (1994) e do Náufrago(2000) de Tom Hanks nas mãos deRobert Zemeckis —, interessa ao cinema,porém menos que o heroísmo de Leôni-das e seus bravos companheiros diantedos persas nas Termópilas em 300 (ZackSnyder, 2006), o da maioria dos Setesamurais (Akira Kurosawa, 1954), depoisde vários encontros com os bandidos, ode Thelma e Louise escolhendo o voo sobreo Grand Canyon no final do filme de Rid-ley Scott (1991), ou James 007 Bonddeixando uma trilha de namoradas as-sassinadas em nome do serviço secretode sua majestade. Observação import-ante: o drama não apenas tolera masmuitas vezes exige que a resolução dahistória seja triste. O autossacrifício ou osacrifício de entes queridos são, port-anto, recursos comuns.

▪ Destino. Ironicamente, o cinema acred-ita mais em destino do que os

223/415

Page 224: Como ver um filme

dramaturgos gregos cuja concepção domundo submetia os próprios deuses àstramas fiadas pelas Moiras, e que tantoocupavam Aristóteles. Mais que a tragé-dia clássica, o drama cinematográficoacredita no que tem que ser, na fatalid-ade, no acaso, na necessidade de cumpriruma missão predeterminada. O recursodas “vidas entrelaçadas”, por exemplo —da Trilogia das cores de KrzyzstofKieslowski (1993-1994) a Babel (Ale-jandro Gonzalez Iñarritu, 2006) —, é es-sencialmente um estudo sobre os nós nateia das Moiras, e nosso papel neles. Odrama romântico é quase sempre sobrepessoas destinadas umas para as outras,mesmo e principalmente quando a re-lação é truncada (Tarde demais para esque-cer, Leo McCarey, 1957), abdicada(Casablanca, Michael Curtiz, 1942) ou in-terrompida pela morte, uma das faces do

224/415

Page 225: Como ver um filme

destino (Love Story, Arthur Hiller, 1970;Titanic, James Cameron, 1997).

▪ Descobertas interiores. Como já vi-mos, os filmes existem para nos mostrarcomo, no intervalo de duas horas, maisou menos, um ou mais indivíduos podemir de zero a duzentos quilômetros porhora, existencialmente falando. O dramaapoia-se fundamentalmente na capacid-ade de o protagonista descobrir — depreferência logo no primeiro ato — deque substância moral ele é feito de formaque, mesmo mandado para as galés,como Ben Hur, ou forçado a lutar numaarena como o deposto general Maximusde Gladiador, seus novos talentos sejamimediatamente úteis e acessíveis.

▪ Grandes questões morais (coloca-das em forma de dilema). Essencialem dramas de guerra e westerns, o dilemamoral aparece na maioria das vertentesdo drama como a prova definitiva do

225/415

Page 226: Como ver um filme

estofo de seus heróis e heroínas. O jovemcoronel Lawrence (de Lawrence da Arábia)obrigado a executar um homem que,pouco antes, havia resgatado do deserto,e Sofia (de A escolha de Sofia, Alan Pakula,1982) forçada a fazer a escolha do título(que, na verdade, prenuncia todas as de-mais que ela fará até o fim do filme) sãoalguns exemplos do tipo de decisão devida e morte que reside no coração dosbons dramas cinematográficos.

Existem excelentes motivos para a pre-valência do drama como gênero-mestre docinema: enquanto o que nos faz rir é emgrande parte específico e cultural, o que nosfaz chorar e emocionar é universal, suplant-ando fronteiras, idiomas e peculiaridadesculturais. No jargão cinematográfico, diz-seque o drama (sobretudo o drama de ação,que discutiremos daqui a pouco) “viaja”muito bem, enquanto a comédia é sempremais arriscada. O que é hilário na França

226/415

Page 227: Como ver um filme

pode ser ofensivo em Cingapura; filmes quearrancam gargalhadas no México podemfazer uma plateia britânica dormir. E por aívai.

No final de 2011, a mais recente contagemde bilheterias internacionais de todos ostempos1 mostra que, dos vinte filmes maisbem-sucedidos comercialmente pelo mundoafora, 13 são dramas puros ou têm elementossusbtanciais de drama, associados a aventurae fantasia. Dois títulos de James Cameron —Avatar, que sintetiza elementos de drama,fantasia, aventura e ficção científica, e Titan-ic, verdadeiro repositório de todas as regrasintactas do gênero — estão na liderança comuma receita de, respectivamente, 2,7 bilhõesde dólares e 1,8 bilhão de dólares. Mais in-teressante: 12 desses 20 títulos pertencem afranquias: Senhor dos Anéis, Harry Potter,Piratas do Caribe e Star Wars.

Nossa fome de mitos é, de fato, insaciável.E, como nossos antepassados, gostamos de

227/415

Page 228: Como ver um filme

longas narrativas desses mitos, como osciclos de poesia épica dos tempos antigos.

O drama puro tem, além disso, um outroefeito colateral positivo: uma probabilidademuito maior de ganhar um Oscar: das 83 es-tatuetas já entregues,2 67 foram para dra-mas. A última comédia a receber uma es-tatueta por melhor filme foi Noivo neurótico,noiva nervosa, de Woody Allen, em 1978.Num estudo conjunto,3 os sociólogos NicoleEsparza, da Universidade de Princeton, eGabriel Rossman, da UCLA, estabeleceramque um ator que trabalhe num drama temnove vezes mais chances de ganhar um Oscardo que um que atue numa comédia, por mel-hor que ela seja.

Embora a catarse da comédia possa sermuitas vezes mais poderosa que a do drama,algo na nossa natureza nos indica que choraré mais nobre e digno de mérito do que rir.GÊNERO-BASE DA NARRATIVA cinematográficade ficção, o drama pode ter tantas

228/415

Page 229: Como ver um filme

subdivisões quanto ambientes, temas eescolhas estilísticas, sem alterar seus traçosessenciais de heroísmo, renúncia, su-plantação e dilemas morais. Algumas dasprincipais variantes do drama são:▪ Drama épico ou histórico. Inter-

pretações, frequentemente estilizadas, defatos e personagens históricos. Depend-endo da época e do estilo, podem cair nosubgênero “espada e sandália” (QuoVadis, Mervyn LeRoy e Anthony Mann,1951; Ben Hur, William Wyler, 1959;Spartacus, Stanley Kubrick, 1960; Gla-diador, Ridley Scott, 2000; Troia,Wolfgang Petersen, 2004; Alexandre,Oliver Stone, 2004; 300, Zack Snyder,2006) ou “capa e espada” (Os três mos-queteiros, Henri Diamant-Berger, 1932,Richard Lester, 1973, Stephen Herek,1993; Capitão Blood, Michael Curtiz, 1935;As aventuras de Robin Hood, Michael Curtize William Keighley, 1938; O príncipe dos

229/415

Page 230: Como ver um filme

ladrões, Kevin Reynolds, 1991; O homemda máscara de ferro, Allan Dawn, 1929, eRandall Wallace, 1998; Excalibur, JohnBoorman, 1981; O Conde de Monte Cristo,Kevin Reynolds, 2002; A Duquesa, SaulDibb, 2008). Muitas vezes assume carac-terísticas predominantes de ação/aven-tura. Além dos temas essenciais de her-oísmo, suplantação, renúncia e dilemasmorais, o drama histórico pode, numaespécie de contraponto perfeito à ficçãocientífica, oferecer uma oportunidadepara reimaginar o passado como modode comentar o presente. Dramas históri-cos de qualidade superior, como Alexan-dre Nevsky (Sergei Eisenstein, 1938),Spartacus (Stanley Kubrick, 1960),Lawrence da Arábia (David Lean, 1962) ouMaria Antonieta (Sofia Coppola, 2006),têm a marca bem clara da época em queforam realizados, revelando muitas daspreocupações de seus criadores no

230/415

Page 231: Como ver um filme

momento: o poder dos cidadãos quandounidos por um ideal em Nevsky, obra dajuventude do Estado soviético; a im-portância das ideias sobre o poder brutoem Spartacus, criatura do pós-macarthismo norte-americano, e oprimeiro roteiro assinado por um ro-teirista condenado pela “caça às bruxas”,Dalton Trumbo; a importância das escol-has pessoais no grande esquema dascoisas em Lawrence, nascido no primeiromomento de reenergização da Grã-Bretanha depois dos duríssimos anos daSegunda Guerra Mundial; a energiaefêmera da juventude em Maria An-tonieta, visualizada por uma realizadoraque, aos 35 anos, despedia-se ela mesmada doce inconsequência dos verdes anos.

▪ Drama de época. Versão quarteto decordas para a orquestra sinfônica dodrama histórico. No primeiro, os fatos eos personagens são reais ou muito

231/415

Page 232: Como ver um filme

próximos dos reais. No drama de época,o período inspira e dá contornos específi-cos a crises mais íntimas e fictícias.Como no drama histórico, o desloca-mento para um outro lugar no passado— a “terra estranha onde as coisasacontecem de modo diferente”, comoJoseph Losey diz na abertura de seu Omensageiro, de 1970, um excelente exem-plo do gênero — permite uma grandeliberdade aos realizadores. Trabalhandocom material fictício, as possibilidadessão ainda mais semelhantes às da ficçãocientífica: mundos inteiros podem ser re-criados a serviço das ideias e preocu-pações dos diretores. Separadas por trêsdécadas, duas visões da aristocracia noséculo XIX servem a propósitos diversosem O leopardo (Luchino Visconti, 1963) eÉpoca da inocência (Martin Scorsese,1993). Nascido em berço aristocrata, Vis-conti expressa as melancólicas sutilezas

232/415

Page 233: Como ver um filme

de uma classe em extinção; seu olhar éde dentro para fora — na maravilhosa setpiece que é a sequência final do baile,onde o mundo do príncipe de Salina(Burt Lancaster) literalmente se trans-muta numa futura sociedade burguesa,Visconti encheu o salão com reais des-cendentes da aristocracia siciliana, umaespécie de espelho vivo de suas própriasansiedades — acentuadas, pode-se espec-ular, por estar trabalhando com tantorigor formal enquanto o mundo da cul-tura, da política e do cinema iniciava ossucessivos abalos sísmicos dos anos1960. Filho de imigrantes operários —pai alfaiate, mãe costureira —, Scorsesecresceu no bairro italiano de Nova York,um pequeno passo além dos cortiços queele mesmo recriaria em outro drama deépoca, Gangues de Nova York (2002). Aalta sociedade nova-iorquina que EdithWharton descreve no livro que inspirou

233/415

Page 234: Como ver um filme

Época lhe é totalmente estranha — seu ol-har é de fora para dentro, como o de umintruso gentil e especialmente atento,um pouco deslumbrado com as rígidasregras de um universo que lhe parece tãodesconhecido como a nós, na plateia. Seubaile — que, ao contrário de O Leopardo,abre o filme — é repleto de pequenos ol-hares laterais em busca de informaçõessobre os códigos secretos que vislumbra.Como Visconti, Scorsese trabalha, nosprimeiros 1990, numa era de transição,um outro fin de siecle — a Nova Yorkainda inocente, como a de Wharton, dasmonstruosidades que a aguardavam navirada do outro século, e momentanea-mente dividida pelas discussões da cam-panha do futuro prefeito Rudy Giulianique, em síntese, propunha a salvação dacidade pelo aburguesamento. Assim asépocas se sobrepõem nesta vertente dodrama, criando uma rica perspectiva

234/415

Page 235: Como ver um filme

pela qual podemos ver a nós mesmos,longe das amarras do tempo.

▪ Drama de guerra. Embora a definiçãose estenda a todo filme que tenha o com-bate entre forças armadas como princip-al ambiente da narrativa, a maioria dosdramas de guerra se ocupa dos conflitoshistóricos dos séculos XX e XXI. Oprimeiro filme de ficção que pode serconsiderado um drama de guerra, TheBattle Cry of Peace, da Vitagraph, data de1915 e é uma obra de propaganda a favordo envolvimento dos Estados Unidos naPrimeira Guerra Mundial, uma tendên-cia bem clara em grande parte dos dra-mas de guerra do primeiro século docinema. Na verdade, a noção de quefilmes ambientados em conflitos poderi-am ser contra a guerra é razoavelmenterecente, filha da inquietação geral dos1960 e 1970 (embora Intolerância, deD.W. Griffith, em 1916, seja

235/415

Page 236: Como ver um filme

possivelmente o pioneiro dos dramas deguerra pacifistas, ao mostrar diversos ti-pos de carnificina engendrados pela hu-manidade contra si mesma). Quasesempre o tema central dos dramas deguerra é o heroísmo, compreendido nãoapenas como renúncia e superação, masprincipalmente como lealdade — a umpaís, uma causa, um batalhão, umamigo, alguém que se ama. O dilemamoral do herói é, em geral, entre alealdade expressa, que lhe é exigida — abandeira, tropa, causa, país — e a que eledescobre em si mesmo como mais ur-gente — a família, amores, camaradas. Odrama de guerra pode vir servido puroou mesclado com praticamente todos osdemais gêneros: drama romântico(Casablanca, Michael Curtiz, 1942; A umpasso da eternidade, Fred Zinnemann,1953; Eterno amor, Jean Pierre Jeunet,2004); comédia (Diabo a quatro, Irmãos

236/415

Page 237: Como ver um filme

Marx, 1933; O grande ditador, CharlesChaplin, 1940; Inferno número 17, BillyWilder, 1953; Dr. Strangelove, StanleyKubrick, 1964; Ardil 22, Mike Nichols,1970; M.A.S.H., Robert Altman, 1970;Trovão Tropical, Ben Stiller, 2008); bio-grafias (Patton, rebelde ou herói, FranklinJ. Schaffner, 1970; McCarthur, JosephSargent, 1977; Bom Dia, Vietnã, Barry Lev-inson, 1987); ação e aventura (Os canhõesde Navarone, J. Lee Thompson, 1961; Fu-gindo do inferno, John Sturges, 1963; Osdoze condenados, Robert Aldrich, 1967;Rambo II, a missão, George Cosmatos,1985; Atrás das linhas inimigas, JohnMoore, 2001) e até fantasia e ficçãocientífica (Things to Come, William Men-zies, 1936; A Matter of Life and Death, Mi-chael Powell e Emeric Pressburger, 1946;Alucinações do passado, Adrian Lyne,1990). O período histórico e as caracter-ísticas específicas do combate também

237/415

Page 238: Como ver um filme

geram subgêneros: filmes da GuerraCivil norte-americana (Nascimento de umanação, D.W. Griffith, 1915; Tempo deglória, Ed Zwick, 1989), da PrimeiraGuerra Mundial (Sem novidade no front,Lewis Milestone, 1930; A grande ilusão,Jean Renoir, 1937; Glória feita de sangue,Stanley Kubrick, 1957), da SegundaGuerra na Europa (O mais longo dos dias,Ken Annakin, Andrew Marto e BernhardWick, 1962; Soldaat Van Oranje, Paul Ver-hoeven, 1978; Europa, Europa, AgnieszkaHolland, 1990; O resgate do soldado Ryan,Steven Spielberg, 1998), da SegundaGuerra no Pacífico (Tora! Tora! Tora!,Richard Fleischer e Kinji Fukasaku,1970; Cartas de Iwo Jima, Clint Eastwood,2007), de combate aéreo (Wings, queganhou o primeiro Oscar de MelhorFilme, William Wellman, 1927; Trinta se-gundos sobre Tóquio, Mervyn Le Roy,1944), de submarinos (O mar é nosso

238/415

Page 239: Como ver um filme

túmulo, Robert Wise, 1957; Das Boot,Wolfgang Petersen, 1981), de campos deprisioneiros (A ponte do rio Kwai, DavidLean, 1957; Furyo: Em nome da honra, Na-gisa Oshima, 1983; O império do sol,Steven Spielberg, 1987; A guerra de Hart,Gregory Hoblit, 2002); do holocausto(Kapò, Gillo Pontecorvo, 1973; A lista deSchindler, Steven Spielberg, 1993; O pi-anista, Roman Polanski, 2002), daGuerra da Coreia (As pontes de Toko-Ri,Mark Robson, 1954; Sob o domínio do mal,John Frankenheimer, 1962), do Vietnã(Apocalypse Now, Francis Ford Coppola,1979; Os gritos do silêncio, Roland Jaffe,1984; Platoon, Oliver Stone, 1986; FullMetal Jacket, Stanley Kubrick, 1987;Fomos heróis, Randall Wallace, 2002), doOriente Médio (Três reis, David O. Rus-sel, 1999; Soldado anônimo, Sam Mendes,2005). Cada um desses subgêneros temseus próprios clichês, personagens

239/415

Page 240: Como ver um filme

recorrentes e frases-chave que nosancoram no realismo emocional de cadaguerra fictícia.

▪ Drama romântico/melodrama. Umalinha muito fina separa o dramaromântico do melodrama. Em ambos,casais vivem paixões que não devem, nãopodem, não conseguem de jeito nenhumser felizes (...E o vento levou, Victor Flem-ing, 1939; Clamor do sexo, Elia Kazan,1961; Jules e Jim, François Truffaut, 1962;Época da inocência, Martin Scorsese,1993), mulheres são as grandes protag-onistas, e a história ou é contada de seuponto de vista ou é inteiramentecentrada nele (Rebecca, a mulher in-esquecível, Alfred Hitchcock, 1940;Estranha passageira, Irving Rapper, 1942;Gilda, Charles Vidor, 1946, Crepúsculo dosdeuses, Billy Wilder, 1950; Adele H.,François Truffaut, 1975). Crimes muitasvezes são a única solução para os

240/415

Page 241: Como ver um filme

complicados enredamentos destas vidasgloriosamente infelizes, com noir sendo oestilo ideal (Pacto de sangue, Billy Wilder,1944; O destino bate à sua porta, Tay Gar-nett, 1946; Atração fatal, Adrian Lyne,1987). Mas a morte por causas naturais,com uma necessária dose de renúncia,sacrifício e heroísmo, também é import-ante para a definição do gênero (A pontede Waterloo, Mervyn LeRoy, 1940; Tardedemais para esquecer, Leo McCarey, 1957;Love Story, Arthur Hiller, 1970; O pacienteinglês, Anthony Minghella, 1996; Fim decaso, Neil Jordan, 1999).

Uma subida de tom rumo ao excesso,às emoções à flor da pele, a complicaçõesquase sádicas em sua complexidade ca-racteriza a transformação de um dramaromântico num melodrama. Os materi-ais permanecem quase os mesmos, maso tom muda. Mulheres à beira de um ataquede nervos, de Pedro Almodóvar (1988) é

241/415

Page 242: Como ver um filme

um exemplo perfeito — a partir do título— do que é um melodrama, realizado porum grande admirador e conhecedor dogênero em sua forma clássica, a cristaliz-ada nos anos 1930-40 como uma altern-ativa aos filmes de crime e gângster, des-tinados aos homens. Porque o melo-drama nasceu como um gênero essen-cialmente feminino — a realização dovelho clichê de que as mulheres se unempelo sofrimento e os homens, pela viol-ência —, seu universo primordial é acasa, o lar, a família. Seus conflitosemergem desse ambiente e envolvemtraições, adultérios, gestações indeseja-das, filhos ilegítimos, abandonados e ad-otados, paternidades e maternidadesdesconhecidas, amores proibidos, crimespassionais, casamentos arranjados. (Sevocê acha que tudo isso se assemelha de-mais a algo que você conhece muito bem,está absolutamente certo — o melodrama

242/415

Page 243: Como ver um filme

é a matriz essencial da nossa velha e boatelenovela).

▪ Drama de crime (policial). Como omelodrama, o drama de crime ou policialé um gênero de emoções extremas. En-tretanto, seu universo é essencialmentemasculino, e a expressão de suas paixõesse dá, sem exceção, através da violência.Em suas origens mais remotas, o dramapolicial se confunde com o próprio iníciodo cinema narrativo. Um dos primeirosfilmes do cinema mudo é The Musketeersof Pig Alley, de D.W. Griffith, em 1912,centrado numa quadrilha de crime or-ganizado; três anos depois Raoul Walshestrearia na direção com The Regeneration(1915), um tipo de história que marcariatoda a primeira etapa do gênero — men-ino pobre das cabeças de porco dascomunidades imigrantes de Nova Yorknão tem outra saída senão entrar parauma quadrilha.

243/415

Page 244: Como ver um filme

Quando o drama de crime mantémuma aura de mistério e a essência de suatrama se concentra em quem matouquem e por que ou quem está matandoum monte de gente e como poderemosdetê-lo, ele assume os contornos de umthriller, do qual nos ocuparemos daqui apouco. Essencialmente, o thriller se pre-ocupa em nos assustar e nos apavorar,enquanto o drama quer nos comover enos dar a boa catarse proposta porAristóteles. Num universo em que aspreocupações civilizadas desaparecem etudo se move por códigos próprios delealdade e sobrevivência — a versão cine-matográfica da lei do mais forte —, acatarse do bom drama de crime pode serpoderosíssima. Seria muito simples dizerque todo drama de crime é uma fábulacatequética onde o bem sempre supera omal num universo fictício de luz esombra bem-definidos: essas são, na

244/415

Page 245: Como ver um filme

verdade, as características marcantes dospoliciais dos anos 1930-40, quando oCódigo Hays de autocensura estava emseu auge e a Warner Brothers pratica-mente se especializou numa espécie defilme moralista de gângster em geral es-trelado por James Cagney ou HumpreyBogart (The Roaring Twenties, RaoulWalsh, 1939; They Drive By Night, 1940;This Gun For Hire, 1942). São filmes emque o bandido sempre é punido no final,mas, no processo de levá-lo até lá, es-tabeleceram uma série de convenções es-tilísticas que definiram nossa percepçãode “policial” — e que podem ser vistas, deforma altamente estilizada, em obrascomo Miller’s Crossing, dos irmãos Coen(1990), Pulp Fiction, de Quentin Tarant-ino (1994), e Estrada para perdição, deSam Mendes (2002).

Mas desde o primeiro momento ogênero se mostrou igualmente fascinado

245/415

Page 246: Como ver um filme

pelas sombrias maquinações dos que sededicam ao crime e não ao seu combate.Entre 1922 e 1933 a série de filmes diri-gida por Fritz Lang, centrada no person-agem do Dr. Mabuse, um sinistro megac-riminoso com poderes hipnóticos sobresuas vítimas, antecipava décadas de dra-mas de crimes mais preocupados com oponto de vista do malfeitor do que deseus captores. Do Scarface original —uma obra-prima de 1932 dirigida porHoward Hawks, produzida por HowardHughes e estrelada por Paul Muni comouma versão amplificada de Al Capone —à sua versão Miami-cubana em 1982, di-rigida por Brian de Palma e estrelada porAl Pacino, o bandido como anti-herói éuma oferta altamente tentadora que pou-cos cineastas de talento conseguiram re-cusar. Os signos do extremo poder forado alcance das convenções sociais e otipo de espelho distorcido mas

246/415

Page 247: Como ver um filme

paradoxalmente exato que ele ergue paraa sociedade da época dá a esse tipo defilme uma capacidade vasta de uso nasmãos de realizadores talentosos. MartinScorsese e Francis Ford Coppola dedi-caram cada um uma trilogia à exploraçãodeste universo paralelo — Caminhos peri-gosos (1973), Os bons companheiros (1990)e Casino (1995) do primeiro, Os poderososchefões I, II e III (1972, 1974 e 1994) do se-gundo. Em seu antípoda, Zhang Yimoumergulhou no mesmo universo emShanghai Triad, enquanto, no Japão, osyakuza eida vinham, desde os anos 1960,mostrando anti-heróis conflituados entreemoções pessoais e deveres do clã. O ro-teirista Leonard Schrader, que viveu etrabalhou no Japão durante a maiorparte da sua vida, trouxe o tema da máfiajaponesa para o Ocidente, com OperaçãoYakuza (1974), escrito com seu irmãoPaul e dirigido por Sydney Pollack. Na

247/415

Page 248: Como ver um filme

virada dos 1960 para os 1970, ArthurPenn e Warren Beatty colaboraram paracriar Bonnie & Clyde (Arthur Penn, 1967),um drama de crime enamorado com seusanti-heróis, usados como metáfora paraa crescente onda de insatisfação que embreve se chamaria “contracultura”.

CAIM E ABELUMA VARIAÇÃO DESTE GÊNERO quetambém daria infinitos frutos nosanos a seguir é a oposição amigos/irmãos criados no mesmo ambiente,no qual um cai no crime e o outro, nolado da lei. Alicerces desse subsub-gênero são Manhattan Melodrama (W.S.Van Dyke, 1934), com William Powelle Clark Gable, e principalmente omuito copiado Anjos de cara suja

248/415

Page 249: Como ver um filme

(Michael Curtiz, 1938), com JamesCagney e Pat O’Brien. Notem ecos daproposta em obras como Quase doisirmãos (Lucia Murat, 2004), Quem querser um milionário (Danny Boyle, 2008),Cidade de Deus (Fernando Meirelles,2001), Infernal Affairs/ Os infiltrados(Wai-keung e Lau Siu Fai Mak, 2002;Martin Scorsese, 2006); Sobre meninose lobos (Clint Eastwood, 2003).

Como o mundo do combate, o mundodo crime é um ecossistema altamentecinematográfico, onde as leis da normal-idade não vigoram, todos os valores po-dem ser revertidos e tudo tem signific-ado absoluto e consequências fatais; porisso é um instrumento tão potente comometáfora das inquietações da sociedadeem qualquer época.

249/415

Page 250: Como ver um filme

▪ Drama do oeste (Western). Em ter-mos estritos, o drama do oeste — o west-ern, faroeste, bangue-bangue — é aqueleque se desenrola durante a ocupação doterritório norte-americano depois daguerra de independência. É uma janelapequena — de meados do século XIX aoinício do século XX — e, num primeiroolhar, limitada, uma vez que se refere ex-clusivamente à experiência norte-amer-icana. Por que, então, o gênero criouraízes tão profundas pelo mundo afora,visíveis em filmes tão díspares quanto aobra do italiano Sergio Leone (Por umpunhado de dólares, 1964; Três homens emconflito/ O bom, o mau e o feio, 1966; Aconte-ceu no Oeste, 1968), o tailandês As lágrimasdo tigre negro (Wisit Sasanatieng, 2000) eo coreano Os invencíveis (Ji-woon Kim,2008). De fato, juntamente com o music-al — que considero um estilo, não umgênero —, o western foi uma das

250/415

Page 251: Como ver um filme

vertentes do cinema americano mais fec-undas na imaginação do mundo. E a res-posta simplista do “imperialismo cultur-al” pode até explicar a exposição, masnão a permanência profunda dos signosdestes estilos.

Uma possibilidade é que o western, aoretirar o ser humano de um ambienteconhecido e estruturado e colocá-lo numterreno belo mas inóspito, sem suportessociais, legais e políticos, reduz nossa hu-manidade à sua essência, ao seu mínimodenominador comum e, por isso, torna-se imediatamente acessível e universal.

Um outro ponto de vista afirma que owestern é essencialmente sobre ocupaçãode território, sendo parte inseparável daexperiência norte-americana do mundo,estendendo-se, assim, para os filmessobre a corrida espacial — a derradeirafronteira. Creio que esse veio de fato ex-iste, mas há muito se dissolveu numa

251/415

Page 252: Como ver um filme

compreensão mais universal do tema“ocupação do território”, adaptando-se aqualquer experiência em que o ser hu-mano se veja em busca de seu próprio es-paço e precise tomar decisões de vida emorte sem o apoio da sociedade.

Westerns tendem a repetir certas tra-mas, principalmente:• Conflito com os ocupantes originais da

terra• Conflito entre a lei nascente e os fora

da lei• Conflito entre rancheiros estabelecidos

e criadores de gado migrantes(cowboys)

FILM NOIRUM ESTILO MUITO ESPECÍFICO de con-tar o drama de crime recebeu o nome

252/415

Page 253: Como ver um filme

de film noir no final da década de1940, pelas mãos de críticos franceses(o primeiro a empregar o termo foiNino Frank, em 1946, na revistaL’Ecran Français, num artigo em quecomentava a primeira leva de “filmspoliciers americains”, que osfranceses conseguiam ver desde aocupação nazista: Laura, de OttoPreminger, 1944, Pacto de sangue, deBilly Wilder, 1944, Um retrato de mulh-er, de Frizt Lang, 1944, Murder, MySweet, de Edward Dmytryk, 1944, e Osegredo das joias, de John Huston,1950). O noir é mais um estilo que umgênero, nascido naturalmente de umainteressante conjugação de fatoresartísticos e econômicos. Quando osfranceses perceberam que havia todo

253/415

Page 254: Como ver um filme

um corpo de obra norte-americano,produzido no pós-guerra, com temát-ica e estilo visual semelhantes,dezenas de filmes já haviam sido real-izados sem que seus diretores, con-scientemente, tivessem decido “fazerum noir”. O que eles tinham emcomum:

▪ Influências estéticas do expression-ismo alemão dos anos 1920 e 1930,especialmente a obra de Murnau eLang, que usavam com enorme efi-ciência e dramaticidade recursosminguados — poucas fontes de ilu-minação, cenários despojados.▪ Orçamentos restritos, comuns no

período do pós-guerra para filmesque não fossem de primeira linha,

254/415

Page 255: Como ver um filme

obrigando ao uso de menos equipa-mento, elenco e sets.▪ Um ponto de vista pessimista, so-

frido, cínico. Heróis repletos deproblemas e contradições, muitasvezes não muito distantes dosvilões. Mulheres perigosas, at-raentes mas falsas. Finais amargos,em que os bons não são recom-pensados e os maus não sãopunidos.▪ Inspiração nas novelas pulp de de-

tetive da época, imensamente pop-ulares de Dashiell Hammett, Ray-mond Chandler e James Cain.▪ O período clássico do noir cobre de

1940 ao final dos anos 1950, baliza-dos por O homem dos olhos esbugalha-dos, de Boris Ingster (1940) e A

255/415

Page 256: Como ver um filme

marca da maldade, de Orson Welles(1958). Estilisticamente, um noirpode ser reconhecido por:• Fotografia em preto e branco, alta-

mente contrastada• Vasto uso de sombra e focos úni-

cos de luz• Ângulos inusitados, “tortos”• Ambientes sórdidos: crime,

gangues, quadrilhas, submundo• Anti-heróis e mulheres fatais• Narrativa fracionada, com várias

surpresas mudando o curso dahistória

• Narração em off, em geral doponto de vista do anti-herói

A influência do noir, em estilo etemática, estendeu-se pelo cinema

256/415

Page 257: Como ver um filme

europeu dos anos 1950 e 1960, evoltou ao cinema norte-americano navirada da década de 1970, em grandeparte graças à consciente citação doestilo em Chinatown, de RomanPolanski (1977). Filmes tão diversosquanto Blade Runner (Ridley Scott,1980) e Sin City (Robert Rodriguez eFrank Miller, 2005) contêm claroselementos de noir, repensados ereconfigurados.

NA ESTRADAESSENCIALMENTE SOBRE BUSCAS

INTERIORES expressas na mudança depaisagem, o filme na estrada é uma

257/415

Page 258: Como ver um filme

das hibridizações mais comuns e ex-pressivas do cinema: ele pode ser umdrama (Easy Rider, La Strada, Paris,Texas, Thelma e Louise, Central do Brasil,Diários de Motocicleta, A história real, Abanda, Na natureza selvagem), umacomédia (Antes só do que mal-acompan-hado, Os três amigos), um thriller(Encurralado, Intriga internacional),uma dramédia (Pequena Miss Sunshine,Sideways/Entre umas e outras, As confis-sões de Schmidt, As aventuras de Priscilla,Rainha do Deserto). Sendo voluntáriaou não, a viagem é sempre uma ex-pressão visual de uma profundamudança interior dos protagonistas, avisualização mesma do arco da nar-rativa. Estranho numa terra estranhae em mutação, o protagonista se vê a

258/415

Page 259: Como ver um filme

sós com sua alma, suas questões e osoutros, que encontra em situaçõesdespidas dos contornos do dia a dia e,por isso, levadas ao extremo.

Ou seja, variações sobre o tema devisões e estilos de vida conflituantessobre uma tábula rasa — o novoterritório.

O western teve seu apogeu entre asdécadas de 1930 e 1950, quandodiretores como John Ford, John Hustone Howard Hawks estabeleceram as re-gras essenciais do gênero: a paisagem dodeserto pintado, o perfil do heróimonossilábico, a linguagem corporal, ascenas-chave (a briga no bar, o duelo narua principal, a emboscada no Canyon)que seriam copiadas, refeitas, desfeitas,citadas e reinventadas por décadas.

259/415

Page 260: Como ver um filme

▪ Drama musical. As mesmas propostasdo drama, apenas cantadas e dançadas:Amor, sublime amor, All That Jazz, Chicago,Dreamgirls, Sweeney Todd.

▪ Animação dramática: Assim como omusical, animação é uma forma de fazercinema, não necessariamente um gênero.A associação do “desenho animado”apenas com histórias ligeiras e felizesnão representa o espectro total desta lin-guagem sem limites — mesmo Bambi,com todos os seus bichinhos fofos, é, emsua essência, uma verdadeira tragédiasobre uma criança órfã depois de um atode violência, em busca de sua identidadee seu lugar na sociedade (assim como seujusto sucessor, O Rei Leão). Uma grandeparte da animação japonesa, especial-mente a obra de Hayao Miyazaki, nadatem de infantil ou cômico — as poder-osas metáforas visuais da animação sãousadas para abordar temas como

260/415

Page 261: Como ver um filme

responsabilidade ecológica (PrincesaMononoke, 1997) e vida além da morte (Aviagem de Chihiro, 2001). O túmulo dosvaga-lumes (Isao Takahata, 2005) é umadas mais dramáticas reconstituições davida no Japão nos anos finais da Se-gunda Guerra, sob constante bombarde-io aliado; Gen pés descalços (Mori Masaki,1983) conta o extermínio nuclear deHiroshima e Nagazaki pelos olhos de ummenino. Persépolis (2007) retrata o Irãdurante a revolução dos aiatolás e aguerra com o Iraque. Valsa com Bashir(2008) investiga as consequências emo-cionais e morais do ataque israelense aocampo de refugiados palestinos de Shat-ila, no Líbano. A obra de stop motion(uma das técnicas mais antigas da anim-ação, na qual objetos tridimensionais sãofotografados quadro a quadro para criara ilusão de movimento) de Tim Burtoncom Henry Selick é um excelente

261/415

Page 262: Como ver um filme

exemplo de drama musical animado (esurreal): O estranho mundo de Jack (1993),A noiva cadáver (2005), Coraline (2009).

▪ Dramédia ou comédia dramática. Oencontro de opostos aparentemente irre-conciliáveis já está presente em toda aobra de Chaplin em sua persona Carlitos:em Em busca do ouro (1925), por exemplo,Chaplin nos faz rir com suas tentativasde cozinhar sapatos, mas estamos diantede um homem à beira da morte por inan-ição. Tempos modernos (1936), com todasas gargalhadas que podemos dar ao verCarlitos apertando compulsivamentebotões e carrapetas, é sobre a desuman-ização do trabalho, a alienação do ser hu-mano na sociedade industrial, a loucurada repetição sem sentido. Experimente,por exemplo, ver Metrópolis (Fritz Lang,1927), Tempos modernos e Vinhas da ira(John Ford, 1940) em rápida sucessão eo tema deve parecer óbvio — observe

262/415

Page 263: Como ver um filme

como as diferentes maneiras deexpressá-lo alteram sua percepção daquestão. Exemplos mais recentes de dra-mas com elementos de comédia pontu-ando a narrativa incluem Lembranças deHollywood (Mike Nichols, 1990), Carodiário (Nanni Moretti, 1993), Melhor é im-possível (James L. Brooks, 1997), Eleição(Alexander Payne, 1999), Em seu lugar(Curtis Hanson, 2005) e Juno (JasonReitman, 2005).

OLHO VIVO:OS INEVITÁVEISCLICHÊS▪ Num filme de ação/aventura, terror

ou guerra, os personagens vividospelos atores mais conhecidos são

263/415

Page 264: Como ver um filme

sempre os últimos a morrer. Omotivo é óbvio: eles representam omaior investimento da produção e omaior chamariz de bilheteria. Pormaiores que sejam os apuros emque eles se encontram no final doprimeiro ato, com certeza vãosobreviver — mesmo que se sacri-fiquem heroicamente no final. Porcontraste, os atores menos con-hecidos — aqueles que a gente nãoreconhece nem de séries de TV —são sempre os despachados sem amenor cerimônia, logo no primeiroou segundo ato.▪ Fotos podem ser fatais: em qualquer

filme de ação/aventura, ficçãocientífica ou guerra, o personagemque saca a foto de um ente querido— esposa, namorada, bicho de

264/415

Page 265: Como ver um filme

estimação — tem muito poucotempo de vida na tela: em média 15minutos a mais.

1 Boxoffice Mojo, http://www.boxofficemojo.com/alltime/world/2 Academy of Motion Pictures Arts and Sciences. ht-tp://www.oscars.org3 http://www.ccpr.ucla.edu/asp/ccpr—035—06.asp

265/415

Page 266: Como ver um filme

3. Comédia: o poder do ridículo

3. COMÉDIA: O PODER DORIDÍCULO

“Morrer é difícil, mas não tão difícilquanto fazer comédia.”

Edmund Gwenn, ator

Page 267: Como ver um filme

SEGUNDO ARISTÓTELES, A COMÉDIA é a irmãmenor e menos importante do drama. Suaorigem seria a komos, dança-pantomimafálica praticada na Antiguidade nos vilarejosgregos. Como o drama, a forma mais ex-altada da imitação da ação, a comédia tem ahamartia (falha de caráter/“errar o alvo”)como espoleta. Mas dessa vez a falha éridícula, “um tipo de feiura; um erro que nãoé doloroso ou destrutivo, um erro inocente,cometido sem maldade ou intenção daninha”pelo protagonista (Aristóteles, Poética). Aocontrário do drama, em que lições devem seraprendidas mas nada é capaz de mudar ocurso depois que a flecha deixa o arco emtrajetória torta, na comédia o herói deve teroportunidade de corrigir o erro e escapar desuas piores consequências.

Page 268: Como ver um filme

Por ser uma imitação inferior da ação, nãopede protagonistas complexos ou nobres,muito pelo contrário: seu herói deve sersimples, inocente e simpático (sim + pathos,com quem se sente junto) e deve passar poruma reversão positiva de fortuna. No cinemaele é o bobo alegre (Jerry Lewis, os Três Pat-etas, Oscarito), o arlequim (Buster Keaton,Grande Otelo), o bem-intencionado confuso(Cantinflas, Monsieur Hulot, o InspetorClouzot, Lucille Ball), o mendigo sábio masinevitavelmente à margem de tudo(Carlitos). Frequentemente ele sofre, masseu sofrimento não dura muito, nem é emvão — exagerado como dizer que não é pre-ciso fazer drama por pouca coisa, já que avida é breve e difícil, ele quer nos fazer rircom suas provações sempre banais: a cascade banana, a engenhoca que se recusa a fun-cionar, a identidade trocada, a porta errada.

Se no drama o herói é o nosso Eu exaltado,ideal, a nos mostrar num plano muito

268/415

Page 269: Como ver um filme

superior as duras lições da existência, nacomédia o herói é cada um de nós, comum,simples, bobo, de quem tiram vantagem, quenão sabe tudo o tempo todo, que é enganado.Na boa comédia cinematográfica, dever-íamos rir com o herói, e não dele. Uma comé-dia malconcebida ou realizada em que somoscompelidos a rir apenas do herói em geralnos deixa com desconforto, aquele travo am-argo de quando sentimos vergonha pelosoutros.

Deveríamos rir, sim, do antagonista, dizAristóteles. Idealmente, o antagonista deuma comédia deve ser ridículo e sofrer“justiça poética” pela exposição desseridículo. Numa deliciosa reversão das regrasdo drama, grandes figuras, seres poderosos ericos são antagonistas ideais, proporcion-ando ao herói plebeu a oportunidade de ex-por seus podres através do ridículo. É acatarse por humilhação, a catarse cômica,obtida pelo riso, que “purifica toda emoção

269/415

Page 270: Como ver um filme

pela exposição do ridículo” — flagelo de tir-anos e delícia de plateias dos anfiteatros gre-gos a O grande ditador (Charles Chaplin,1940).

No cinema, os sólidos princípios aristotéli-cos foram elaborados como regras adicionaisdo que funciona na tela:▪ Idealmente, só o público deve saber

que se trata de uma comédia. Esta éa regra de ouro da boa comédia: um votofirme de confiança na solidez do QuartoMuro. Nós, na plateia, podemos escolherde que rir, e por quê. Como todo bomfilme, uma comédia encontrará ecos nasexperiências e nas memórias individuaisdos espectadores. Mas quando o filmequer nos obrigar a rir, é uma violação,não um diálogo inteligente. Uma comé-dia que pisca o olho constantementepara nós, em que todos os atores estãohiperexagerados, berrando seu diálogo,extrapolando limites nos gestos e na

270/415

Page 271: Como ver um filme

caracterização porque estão conscientesde viverem uma comédia, está maispróxima do circo (que não é o Cirque duSoleil…) que da tela. As melhores comé-dias — as melhores de Woody Allen eChaplin, por exemplo — são, para seuspersonagens, verdadeiros dramas, ecomo tal são interpretadas. A última noitede Boris Grushenko (Woody Allen, 1975,que prenuncia O sentido da vida, de TerryGilliam e Terry Jones, do Monty Python,em 1983) é de fato uma tragédia in-spirada em Tolstói e aproximada de O sé-timo selo, de Bergman. Que nós nosdobremos de rir com as vicissitudes deseu herói enquanto aguarda a inevitávelexecução é testemunho do gênio de Allene da extraordinária capacidade do serhumano de saber que está vivo, que vaimorrer, e que a ironia de sua curta tra-jetória merece uma boa gargalhada.

271/415

Page 272: Como ver um filme

▪ Obstáculos triviais, frequentementeampliados até o exagero ou o ab-surdo. As escolhas trágicas e absolutasdo drama ficaram para trás. Os heróiscômicos não precisam salvar o mundo,curar doenças fatais, resgatar a família,compor sinfonias. Será o bastante, paraeles, controlar um sistema temperament-al de irrigação de jardim (As férias de M.Hulot, Jacques Tati, 1953), ser um pobrecoitado numa festa de milionários (Umconvidado bem trapalhão, Blake Edwards,1968) ou explorar os limites físicos deuma cabine de navio (Uma noite na ópera,Irmãos Marx, 1935). O drama é históricoou épico, mas a comédia é essencial-mente individual.

▪ Final feliz, obrigatoriamente. Sim,Boris Grushenko morre no final. Mas vaidançando a caminho do Além. Brian écrucificado sem a plateia do “outro”, queatrai multidões no gólgota ao lado (A vida

272/415

Page 273: Como ver um filme

de Brian, Terry Jones e Terry Gilliam,1979), mas todos os agonizantes e seusalgozes cantam “Always Look on theBright Side of Life”. E assobiam!Aristóteles, de novo: a catarse na comé-dia vem pelo riso, não pelo pranto.

▪ Desigualdade. Pessoas pequenas, obje-tos enormes; pessoas enormes, objetos(ou pessoas) pequenas. Arnold Schwar-zenegger gêmeo de Danny de Vito, porexemplo (Irmãos gêmeos, Ivan Reitman,1988). Ou legumes gigantes perseguindoo baixinho Woody Allen (O dorminhoco,1973). Ou ainda uma escala completa-mente diversa de visões de mundo, tãobrutal que configura uma desigualdade:um policial negro cheio de manha e umesquadrão de tiras mauricinhos deBeverly Hills, por exemplo (Um tira dapesada, Martin Brest, 1984).

▪ Deslocamento. O estranho na terra es-tranha, o peixe fora d’água, um príncipe

273/415

Page 274: Como ver um filme

africano nos Estados Unidos (Um príncipeem Nova York, John Landis, 1988), umasereia em Nova York (Splash: Uma sereiaem minha vida, Ron Howard, 1984), doisguapos rapazes travestidos em recatadasmoças (Quanto mais quente melhor, BillyWilder, 1959), um menino ou uma men-ina no corpo de um adulto (Quero sergrande, Penny Marshall, 1988; De repente30, Gary Winick, 2004), um homem nocorpo de uma mulher (Trocaram meu sexo,Blake Edwards, 1991), ou vice-versa eversa-vice (Se eu fosse você, Daniel Filho,2005/2006).

▪ Timing é tudo. Os animadores daWarner Bros, que criaram clássicoscômicos em alta velocidade como o Di-abo da Tasmânia, Frajola e Piu-Piu,Papa-léguas e Coiote, trabalhavam commetrônomos para garantir que cada gagvisual durasse o tempo exato para ser en-graçado — a pausa antes de cair no

274/415

Page 275: Como ver um filme

abismo, por exemplo. Nem mais nemmenos.

▪ Pureza de intenções = veracidadedos personagens. O herói (ou anti-herói) de uma boa comédia é essencial-mente um puro — o Louco do Tarot, umatábula rasa onde o mundo deverá deixarsuas impressões frequentemente cruéis.Suas trapalhadas não têm más intenções,não almejam ferir ninguém, nem mesmoquando ferem — Steve Carell involun-tariamente socando sua destemida par-ceira amorosa em O virgem de 40 anos —,mas são fruto de suas inocentes hamar-tias, seus espetaculares erros de alvo cau-sados por falhas não maliciosas de seuser (no caso do Virgem, ser virgem…).

▪ Imitação até o exagero. A arte dasátira nasce aqui.

▪ Quando em dúvida, atire a torta. Acomédia física, mesmo grotesca ou ruim,sempre faz rir, mesmo que não seja por

275/415

Page 276: Como ver um filme

muito tempo. E uma “vaca sagrada” é umexcelente alvo. Quanto mais poderoso enobre o personagem, mais famoso o atorque o representa ou mais solene a situ-ação, mais saborosa a piada física. Os re-petidos insultos e humilhações à “rainhada Inglaterra” em Corra que a polícia vemaí (David Zucker, 1988) e as estrepoliasde Sacha Baron Cohen durante umjantar formal ou cantando o hino norte-americano num rodeio, em Borat: O se-gundo melhor repórter do glorioso país Caza-quistão viaja à América (Larry Charles,2006) são colegas na prática da antigaarte da comédia física.

O uso desses recursos e o tom com queeles são empregados criam uma espéciede pirâmide classificatória da comédia.

Em seu topo está a Alta Comédia, oriso que vem das ideias, do comporta-mento dos personagens. Frequente-mente inclui doses fartas de ironia e

276/415

Page 277: Como ver um filme

cinismo e exige da plateia um conheci-mento prévio de várias referênciashistóricas, culturais, literárias e políticas.A maioria das comédias de Woody Allense inclui nesta categoria — e não apenasporque elas presumem que os especta-dores estão familiarizados com a obra deIngmar Bergman, o existencialismo, astradições judaicas, a teoria da comu-nicação, o pensamento de Freud, Nietz-sche e Kierkegaard, a literatura russa, ahistória e a teoria do cinema e os hábitoscotidianos da burguesia e da intelectual-idade de Manhattan. Mas sobretudoporque sua graça vem do diálogo bem-escrito, que expõe o mundo interior e asinquietações dos personagens. Obvia-mente, este é um tipo de comédia muitosatisfatório intelectualmente, e o maisdifícil de atravessar fronteiras — tro-cadilhos perdem seu sentido em outras

277/415

Page 278: Como ver um filme

línguas, referências culturais passambatido ou são revertidas.

Quando a comédia vem não necessari-amente dos personagens, e sim da situ-ação em que se encontram, temos aComédia de Situação, a faixa médiado nosso espectro. A televisão americanase fez nas costas deste tipo de comédia,exportada rapidamente para todo omundo: o riso vem da situação em que ospersonagens se encontram; digamos:uma família que sobrevive cantando(Família Do-Ré-Mi) ou um grupo de ami-gos compartilhando apartamentos emNova York (Friends). Para que o formatose expanda para a tela grande, a situaçãoprecisa ser igualmente aumentada até olimite do absurdo, ou além dele: umasereia em Nova York (Splash, uma sereiaem minha vida, Ron Howard, 1984) ou ummenino no corpo de um adulto (Quero sergrande, Penny Marshall, 1988). Não por

278/415

Page 279: Como ver um filme

acaso estes dois exemplos são estreladospor Tom Hanks — ele vem dos sitcoms deTV e se especializou no tipo de comédiareativa, que nasce do confronto com asituação e o ambiente, que é a essênciada Comédia de Situação. Tom sabe comoreagir aos incidentes mais triviais oumais absurdos — rimos porque sentimosuma empatia imediata com essa reação,com a humanidade desse rosto. Esse é odom de um grande comediante. O su-cesso dessa gama de comédia na TV con-firma que, se a situação tiver os elemen-tos corretos, capazes de encontrar ecoem diversas culturas, o riso pode sercompartilhado em qualquer língua oupaís. Situações específicas a determin-adas culturas ou subculturas, contudo,são difíceis de atravessar fronteiras — éum dos problemas, por exemplo, dascomédias black norte-americanas, quasetodas de situação, mas de situações

279/415

Page 280: Como ver um filme

conhecidas intimamente apenas por essegrupo social.

Finalmente, na base da pirâmide,temos a Baixa Comédia, a comédiafísica, que prescinde de qualquer conhe-cimento a não ser o da nossa mais básicahumanidade. Porque não necessita dediálogo, ela é o alicerce de toda a comé-dia do cinema mudo, o momento em quesua gramática essencial é elaborada: acasca de banana, a queda, o tombo da ca-deira, a tábua na cara, os tabefes emsérie aperfeiçoados pelos Três Patetas, osconstrangimentos de erros de identi-ficação, as fugas em alta velocidade, asmordidas nos fundilhos e, é claro, a tortana cara.

280/415

Page 281: Como ver um filme

Como seu irmão mais nobre — odrama —, a comédia tem diversas ver-tentes ou subgêneros. Alguns dos prin-cipais são:

▪ Farsa. Tudo é um meio-tom acima. O ex-agero de gestos, vozes, expressões e situ-ações sublinha o surreal, o passional, oabsurdo. É um traço forte do cinemaitaliano, o coração da chanchadabrasileira, da comédia de costumesinglesa e francesa, a base da screwballcomedy americana dos anos 1930, o feijão

281/415

Page 282: Como ver um filme

com arroz dos sitcoms da TV. O diálogo érápido, lotado de piadas contidas emuma frase ou uma expressão, troca ouconfusão de identidades são uma con-stante. É uma forma eficientíssima decrítica social, ao mostrar, pelo exagero,os podres que se ocultam sob as con-venções da boa sociedade. Algumas óti-mas farsas: Arsenic and Old Lace (FrankCapra, 1944), Quanto mais quente melhor(Billy Wilder, 1959), O discreto charme daburguesia (Luis Buñuel, 1972), Primaverapara Hitler (Mel Brooks, 1968), Bananas eO Dorminhoco (Woody Allen, 1971 e 1973), O panaca (Carl Reiner, 1977), JohnnyStecchino (Roberto Benigni, 1991), En-trando numa fria (Jay Roach, 2000), Ocloset (Francis Verber, 2001).

▪ Comédia cerebral. Depois de seusprimeiros filmes farsescos, a obra deWoody Allen torna-se um exemplo per-feito da comédia cerebral, curiosamente

282/415

Page 283: Como ver um filme

o antípoda da farsa. Na comédia cereb-ral, são ideias, ironias, sarcasmo e refer-ências culturais que provocam o riso,sem necessidade de situações ou gestosexagerados. Noivo neurótico, noiva nervosa(1977) e Manhattan (1979) são bons ex-emplos, assim como quase todo o humoringlês. Os roteiros de Charlie Kaufmancontêm uma boa dose de humor intelec-tual, especialmente nas referências cul-turais: Eu quero ser John Malkovitch(1999), Adaptação (2002). QuandoQuentin Tarantino precisa de umaclareira de riso entre um e outro mas-sacre, é a mais pura comédia cerebralque ele pratica —nas discussões sobre osnomes de código dos assaltantes em Cãesde aluguel, nos diálogos entre os dois pis-toleiros de Pulp Fiction, nas tiradas deUma Thurman nos dois Kill Bill (2003,2004).

283/415

Page 284: Como ver um filme

▪ Comédia romântica. Quando o amor édivertido, embora com os percalços es-perados, temos a comédia romântica(romcom, no jargão do meio). Segundo omestre da comédia romântica, as regrasdo subgênero são claras: no primeiro ato,o rapaz ganha a moça, ou vice-versa; nosegundo, perde a moça (ou o rapaz); noterceiro, ganha de volta. Simples, maseficiente. E aberto a todas as variações epermutações possíveis, como exercita-das, por exemplo, por um dos mais aplic-ados discípulos de Wilder, CameronCrowe (vide a trilogia Say Anything, 1989;Singles, 1992; Jerry Maguire, 1996). OuCafé au Lait (Mathieu Kassovitz, 1994) eLigeiramente grávidos (Judd Apatow,2007), que invertem completamente aordem dos fatores. Para exemplos maisou menos clássicos: Aconteceu naquelanoite (Frank Capra,1934), Núpcias de es-cândalo (George Cukor, 1940), A princesa

284/415

Page 285: Como ver um filme

e o plebeu, (William Wyler, 1953 ), Sabrina(Billy Wilder, 1954), Bonequinha de luxo(Blake Edwards, 1961), Splash: Uma sereiaem minha vida (Ron Howard, 1984), Noitesde lua cheia (Eric Rohmer, 1984), Harry eSally, feitos um para o outro (Rob Reiner,1989), Uma linda mulher (1990), Sintoniado amor (Nora Ephron, 1993), Quatrocasamentos e um funeral, (Mike Newell,1994), Comer, beber, viver (Ang Lee,1994), O casamento do meu melhor amigo(P.J. Hogan, 1997), Uma ligação porno-gráfica (Frederic Fonteyne, 1999), Umlugar chamado Notting Hill (Roger Michell,1999), Simplesmente amor (Richard Curtis,2003). A realidade de uma convivênciamais áspera entre os sexos, a partir do fi-nal do século XX, gerou um novo sub-gênero de comédia romântica, maiscínico (Sex and the City, Michael PatrickKing, 2008) e mais cômico (Quem vaificar com Mary?, Bob and Peter Farrelly,

285/415

Page 286: Como ver um filme

1998; O diário de Bridget Jones, SharonMaguire, 2001; Casamento grego, NiaVardalos, 2002; Se beber não case, ToddPhillips, 2009; Missão madrinha decasamento, Paul Feig, 2011).

▪ Comédia musical. O formato maiscomum de fusão entre música e comédia,trazido do vaudeville e dos palcos daBroadway para a tela, tem a intermedi-ação do romance — casos de amor comfinais felizes prestam-se especialmente àestilização suprema do musical, em quecanto e dança têm permissão para ir-romper livremente, impulsionando oupontuando a narrativa. É uma opção es-tilística que tem encontrado dificuldadeem dialogar com plateias contem-porâneas, acostumadas a uma abord-agem “realista” da narrativa cinemato-gráfica, mas que fazia todo sentido domundo no período pré e pós-guerra. Vi-cente Minelli é o grande mestre do

286/415

Page 287: Como ver um filme

formato — Agora seremos felizes (1944),Um americano em Paris (1951), A lenda dosbeijos perdidos (1954), Gigi (1958) —,seguido de perto por Stanley Donen —Cantando na chuva (1952), Sete noivas parasete irmãos (1954), Damn Yankees! (1958).A influência, decupada e reinventada, dacomédia musical americana pode servista em vertentes tão diversas quanto ocinema de Jacques Demy (Os guarda-chuvas do amor, 1964, Duas garotasromânticas, 1967), as extravagâncias deBollywood, a chanchada musicalbrasileira e os rigores coreográficos dassequências de artes marciais do cinemachinês.

▪ Animação cômica. Relevando-se as lá-grimas derramadas por gerações de cri-anças com a morte da mãe de Bambi e dopai de Simba, o default do filme de anim-ação é cômico. A animação permitepleno controle e rigor na execução dos

287/415

Page 288: Como ver um filme

gags da comédia física — área em queChuck Jones e os desenhistas do TermiteTerrace da Warner Brothers erammestres — e é uma excelente ferramentapara a caricatura e a sátira, como prova asérie Shrek, da Dreamworks.

▪ Sátira. Irmã da farsa, a sátira pede alvosprecisos, e exercita cirurgicamente adivina missão da catarse pelo ridículo. Oalvo tanto pode ser um fato ou figurapública — Hitler em O grande ditador, oabsurdo da guerra em M.A.S.H (RobertAltman, 1970), a cultura rock’n’roll emThis is Spinal Tap (Rob Reiner, 1984), assujeiras da política em Bob Roberts (TimRobbins, 1992) — quanto um gênerocinematográfico e seus clichês —, o west-ern em Banzé do Oeste (Mel Brooks, 1974),o filme gótico em Jovem Frankenstein (MelBrooks, 1974), o filme de terror em Todomundo em pânico (Keenan Ivory Wayans,2000), o filme catástrofe em Apertem os

288/415

Page 289: Como ver um filme

cintos, o piloto sumiu (Jim Abrahams eDavid Zucker, 1980), o épico bíblico emA vida de Brian (Terry Jones, 1979), odrama medieval em Monty Python e oSanto Graal (Terry Jones e Terry Gilliam,1975).

▪ Black comedy/comédia sinistra. Selembrarmos que uma das reações maisfrequentes em filmes de terror e sus-pense realmente apavorantes é o riso, aideia de uma forma de comédia entre-laçada com violência, morte e outrostemas sombrios não deve parecer tão es-tranha assim. Thriller e comédia nascemdo mesmo gosto pelo extremo, o mesmoimpulso para a gratificação imediata — e,no cérebro humano, os centros do prazere da dor estão lado a lado. Ficar horroriz-ado e rir ao mesmo tempo pode ser,portanto, uma delícia muito especial. Osirmãos Coen são os grandes estilistascontemporâneos da comédia sinistra:

289/415

Page 290: Como ver um filme

Gosto de sangue (1984), Arizona nunca mais(1987), Barton Fink (1991), Fargo (1996),O grande Lebowski (1998), E aí, meu irmão,cadê você? (2000), Matadores de velhinhas(2004 — por sua vez o remake de umaoutra black comedy, AlexanderMackendrick, 1955), Queime depois de ler(2008). Mas o gênero tem raízes pro-fundas e multinacionais: Dr. Strangelove(Stanley Kubrick, 1964) e 8 mulheres(François Ozon, 2002); Ensina-me a viver(Hal Ashby, 1971) e Pink Flamingos (JohnWaters, 1972), Komm, süsser Tod(Wolfgang Murnberger, 2000) e Marteataca! (Tim Burton, 1996). Porque estálidando com situações extremas que nãopodem — e, moralmente, nem devem —ser abordadas com leveza, o tom dasblack comedies é quase sempre de farsa,um hiperrealismo que enfatiza o absurdomesmo da existência humana.

290/415

Page 291: Como ver um filme

291/415

Page 292: Como ver um filme

292/415

Page 293: Como ver um filme

4. Ação/Aventura: a jornada do Herói

4. AÇÃO E AVENTURA: AJORNADA DO HERÓI

“Meus filmes são repletos de paixão esentimento. A ação é nada sem a naturezahumana — é preciso mostrar o que vai no

mais fundo do coração.”John Woo, diretor

Page 294: Como ver um filme

REDUZINDO AO MAIS BÁSICO, o filme de ação éum drama em que os atos e os feitos — e nãoo diálogo — são a narrativa. O filme de aven-tura é um filme de ação que se passa em localexótico, imaginário ou em outra época.Séries como Duro de matar e Máquinamortífera são tipicamente ação. Franquiascomo Indiana Jones e Piratas do Caribe sãoaventuras. Como todo gênero, o filme deação e aventura comumente é hibridizadocom outros gêneros, como comédia, drama,comédia romântica ou ficção científica.

O filme de ação/aventura ganhou poder euma péssima reputação nos anos 1980-1990,quando foi reduzido à sua forma mais des-cerebrada: um herói musculoso e de poucaspalavras resolvia tudo na base da porrada,fazendo vítimas às dúzias sem piscar um

Page 295: Como ver um filme

olho, e, a intervalos regulares, coisas explo-diam e perseguições terminavam destruindocidades inteiras.

Essa, contudo, é a fórmula do filme deação, o ponto em que o gênero se enrijeceu edecaiu. Suas origens e propósitos são tãonobres quanto os do drama, e, por apelarpara nossas emoções mais instintivas, ofilme de ação é extremamente eficiente e po-deroso quando aliado a ideias e propostasbem-fundamentadas. O que seriam Os 12 tra-balhos de Hércules e a Odisseia senão grandesnarrativas de ação protagonizadas por seuelemento essencial, o herói?

Na Poética, Aristóteles ressalta a importân-cia da ação: “A ação é o princípio vital, aalma mesma do drama. O drama é uma imit-ação não de pessoas, mas de ações.”

Para Aristóteles, a ação é mais eficiente emprovocar catarse quando são respeitadas astrês unidades:

295/415

Page 296: Como ver um filme

▪ Unidade de TEMPO — Quanto maiscontido e claro o período em que ele sepassa, mais eficiente é o drama da ação.Idealmente, um drama impulsionadopela ação deve se desenrolar em um dia euma noite.

▪ Unidade de LUGAR — Idealmente, aação deve se desenrolar num único local,onde mandatoriamente tem que se dar acrise e sua resolução.

▪ Unidade de AÇÃO — A trama deve selimitar a uma única cadeia de incidentes,claramente relacionados por causa eefeito, e com um começo, um meio e umfim igualmente claros.

E, de fato, os melhores filmes de ação re-speitam pelo menos uma dessas unidades, senão todas. No excelente e inteligente O reino(Peter Berg, 2007), a ação é contida em cincoprecisos dias, na cidade de Riad, ArábiaSaudita, e gira em torno de um único

296/415

Page 297: Como ver um filme

propósito — achar os responsáveis pelo at-entado terrorista visto no primeiro ato.

A revivida série Bourne (A identidade Bourne,Doug Liman, 2002; A supremacia Bourne, PaulGreengrass, 2004, e O ultimato Bourne, PaulGreengrass, 2007) é outro bom exemplo decinema de ação com ideias; mantém-se presaa uma clara cadeia de incidentes — a jornadado protagonista em busca de sua identidade,enquanto é perseguido por inimigos ligadosa ele. E, embora a trama movimente-se porunidades de espaço diferentes, a unidade detempo de cada um dos episódios é absoluta-mente precisa e limitada a alguns poucosdias.

Um filme que é um verdadeiro templatepara o uso inteligente dos recursos da ação,O salário do medo (Henri-Georges Clouzot,1953), captura todas as unidades em umúnico recurso narrativo: num país pobre daAmérica Latina, dois caminhões carregadosde nitroglicerina e conduzidos por dois pares

297/415

Page 298: Como ver um filme

de homens desesperados devem atravessaruma estrada de terra esburacada para chegarao seu destino. Os caminhões, seus ocu-pantes, a carga, a estrada e o percurso são,juntos, as três unidades: nada fora dos lim-ites desse universo penetra a trama.

O filme de ação/aventura é sobre o herói esua capacidade de superar obstáculos for-midáveis trazidos por acontecimentos exter-nos e alheios à sua vontade. Idealmente, ofilme de ação/aventura deve falar ao nossoherói interior, despertando nossos recursospessoais de coragem, resistência, abnegação,engenho. Como no princípio aristotélico, oherói não deve precisar de palavras para nosempolgar — seus atos, decisões e reaçõesfrente a obstáculos que nós, na plateia, nãoousaríamos enfrentar é que devem nos con-vencer de seu heroísmo.

Num bom filme de ação/aventura, os ob-stáculos não são gratuitos — são testes dasvirtudes do herói: força de vontade,

298/415

Page 299: Como ver um filme

persistência, inteligência, bravura, es-toicismo, capacidade de autossacrifício.

Os obstáculos — versão cinematográficados 12 trabalhos mitológicos — também de-vem, progressivamente, revelar mais e maissobre o mundo interior do herói e, fre-quentemente, ser sua redenção — a possibil-idade de corrigir um erro (hamartia) do pas-sado (O matador, John Woo, 1989; O exterm-inador do futuro II, James Cameron, 1991), dedar significado e dignidade à sua vida (Os setesamurais, Akira Kurosawa, 1954; Os doze con-denados, Robert Aldrich, 1967).

Finalmente, o filme de ação/aventura deveobrigatoriamente concluir com o triunfo dobem contra o mal, mesmo que isso repres-ente enormes sacrifícios para o herói — in-clusive da própria vida. A meta não é o alíviodo happy ending, mas a catarse heroica: o her-ói nos redime porque encarna o que há demelhor em nós.

299/415

Page 300: Como ver um filme

Alguns elementos são essenciais para que aação na tela seja produtiva:▪ Heróis extraordinários. Os melhores

entre eles não são declaradamente hero-icos desde o início, mas se parecemilusoriamente com qualquer um de nós.Seus dotes excepcionais ocultam-se até omomento do desafio, o “chamado” daJornada do Herói (o pai divorciado deTom Cruise em Guerra dos mundos, StevenSpielberg, 2005; o ladrão de AntonioBanderas em A máscara do Zorro, MartinCampbell, 1998; o menino Harry Potter,que não sabe que é um mago com um pa-pel fundamental na batalha entre bem emal).

▪ Antagonistas à altura dos heróis. Éuma noção básica de todo drama e filmede ação que o herói deve ter um worthyopponent, um inimigo à altura, tãomedonho quanto o herói for ex-traordinário. Dr. No para James Bond

300/415

Page 301: Como ver um filme

(007 contra o Dr. No, Terence Young,1962), Hans Gruber para John McClane(Duro de matar, John McTiernan, 1988),Bill para a Noiva (Kill Bill, volumes I e II,Quentin Tarantino, 2003 e 2004).

▪ Obstáculos tão ou mais ex-traordinários que os heróis. Crisesde proporções épicas: salvar o mundo é amais comum, tarefa dos super-heróis ede 007 em todos os seus filmes. Os amer-icanos costumam ocupar-se com salvaros Estados Unidos, Nova York (Nova Yorksitiada, Ed Zwick, 1998, Homem-Aranha,Sam Raimi, 2002), Los Angeles (Velocid-ade máxima, Jan de Bont, 1994), algumapequena cidade afligida por catástrofes(Tubarão, Steven Spielberg, 1975) ou,pelo menos, o presidente (Na linha defogo, 1993, Força Aérea Um, 1997, ambosde Wolfgang Petersen).

▪ Violência. Não é possível fazer a jornadade um Herói sem confronto e

301/415

Page 302: Como ver um filme

derramamento de sangue. O que nodrama pode se resolver com um diálogobem-estruturado e na comédia com al-guns tropeções, no filme de ação/aven-tura só pode ser condignamente expres-sado em atos extremos — porque herói,antagonista e obstáculos sãoextraordinários.

DOIS ELEMENTOSESSENCIAISTODO GÊNERO TEM MOMENTOS-CHAVE

QUE O DEFINEM — o duelo na rua prin-cipal no western, o beijo final na comé-dia romântica, a entrada fumacentada femme fatale no policial noir. Nofilme ação/aventura, dois elementossão absolutamente essenciais: a

302/415

Page 303: Como ver um filme

perseguição e o confronto (que podeser um tiroteio, um duelo de espadas,uma briga de socos ou golpe de kungfu, uma batalha, uma emboscada ouqualquer permutação destas opções).Ambos são set pieces que ancoramtrechos importantes da narrativa.Bem-pensados e bem-executados, elesdevem:

IMPULSIONAR A NARRATIVA. Algo de-ve acontecer na perseguição e no con-fronto que deixe os personagensnuma nova situação, com algunsproblemas resolvidos e/ou outrosnovos a serem atacados. Em Os setesamurais, cada enfrentamento entre osbandidos e os “samurais” contratadospara defender o vilarejo cria uma novadimensão do drama de todos,

303/415

Page 304: Como ver um filme

eliminando alguns personagens, cri-ando situações e necessidades novas eenvolvendo os aldeões até a batalha fi-nal, onde todos os fios da narrativasão resolvidos. A sensacionalperseguição do personagem semnome de Yves Montand em Z (CostaGavras, 1969) estabelece claramente,para o personagem e para a plateia, onível da ameaça que paira sobre oprotagonista, e deflagra toda a sériede eventos que levarão o filme até suaconclusão.

MOSTRAR ALGO IMPORTANTE SOBRE A

NATUREZA DOS PERSONAGENS. Luta eperseguição, bem-feitos, são o equi-valente aos diálogos nos demais gên-eros: enunciam intenções, pensamen-tos, objetivos e estratégias dos

304/415

Page 305: Como ver um filme

personagens, só que em alta intensid-ade, velocidade e urgência. Numa boasequência de luta ou perseguição, ospersonagens devem de fato estar “dia-logando”, ainda que seja através desocos, tiros, golpes de espada ou man-obras radicais. Quem tem mais a per-der? Quem é valente? Quem é deses-perado? Quem parece valente mas écovarde? Quem não tem nada a per-der? Quem é sádico, brutal? Quem énobre? Quem raciocina mais rápido emelhor? Uma boa luta ou perseguiçãodeve ter as respostas para essas per-guntas. A sensacional perseguiçãopelas ruas de Moscou no terceiro atode Ultimato Bourne revela a engen-hosidade de Bourne em se adaptar asituações que desconhece e que tem

305/415

Page 306: Como ver um filme

limitações — ele está dirigindo um dospiores carros do mundo, um Trabanttaxi, ainda por cima caindo aos ped-aços — e a tenacidade e o absolutodescaso pela vida humana de seuperseguidor. Os dois mantêm contatovisual frequente durante toda a se-quência, enfatizando a conexão entreeles — além de perseguidor eperseguido, colegas de ofício. E, no de-nouement, na resolução final da se-quência, a atitude de Bourne mostraque, ao contrário de seu perseguidor,ele é um homem capaz de compaixão.

DEIXAR CLARO O RISCO (JEOPARDY) E O

PERIGO PARA TODOS. Se não há nadaa perder, não há nada a arriscar, e umconfronto ou uma perseguiçãotornam-se apenas exercícios vazios de

306/415

Page 307: Como ver um filme

transformar violência em entreteni-mento, uma aberração mais próximada pornografia que de um cinema comum mínimo de ideias. É importantemostrar risco, perigo real, sofrimento,tanto do herói como do oponente edas pessoas em torno do confronto ouperseguição para ilustrar que aquelasações são extremas, com um preçomuito alto a ser pago. Sofre-se.Sangra-se. Chora-se e desespera-sediante de mortos e feridos. Mostra-seque são seres vivos — humanos ounão — que estão ali envolvidos. Comodiz John Woo, um filme de ação ésempre, primordialmente, sobre pess-oas. E, por extensão, sobre como éfrágil e preciosa a vida. Quando Ar-thur Penn e Warren Beatty

307/415

Page 308: Como ver um filme

concordaram em mostrar a morte deBonnie e Clyde, ao final de Bonnie &Clyde — Uma Rajada de Balas (1967),com a câmera próxima, em câmeralenta e com grande quantidade desangue, sua ideia era deixar bem claroo que acontece quando um corpo hu-mano é varado de balas, o destino doqual os heróis haviam fugido durantetoda a narrativa (um paralelo com oque já estava acontecendo no Vietnãpareceu bem claro a todas as plateias,na época). Sam Peckinpah tinha omesmo propósito ao começar a colo-car squibs — bolsas de sangue artificialdetonadas com uma pequena carga depólvora — para criar ferimentos debala mais realistas em seus filmes (oefeito é particularmente forte em Meu

308/415

Page 309: Como ver um filme

ódio será tua herança, 1969). Ações viol-entas, heroicas ou vilanescas, têmconsequências reais e fatais, e umbom filme do gênero deve ter esseeixo moral bem firme ao planejar seusset pieces.

TER UM MÍNIMO DE CUIDADO

ESTÉTICO. A chuva torrencial sobre abatalha final de Os sete samurais. Asquatro estações e os elementos danatureza em cores abundantes e pre-cisas nos enfrentamentos de O tigre e odragão (Ang Lee, 2000). A neve nojardim da casa de chá para o dueloentre Uma Thurman e Lucy Liu emKill Bill (Quentin Tarantino, 2003).Nada disso é um acaso, mas um exem-plo de cuidado e planejamento paracriar um set piece realmente

309/415

Page 310: Como ver um filme

dramático, e não apenas um conjuntode socos, tiros e pontapés. Os filmesasiáticos elevaram esse cuidado aoauge da estilização — Ran (AkiraKurosawa, 1985); Herói (ZhangYimou, 2002), A maldição da flordourada (Zhang Yimou, 2006) –, queapurou o estilo ocidental. O dueloentre Tom Cruise e Thandie Newtonpilotando seus carros esportivos emmútua perseguição ao som de fla-menco, no primeiro ato de Missão im-possível II (John Woo, 2000), mostraum cinema americano mainstream ple-namente confortável com a ideia deque pode e deve haver algum tipo debeleza no perigo e na brutalidade.

310/415

Page 311: Como ver um filme

OS INEVITÁVEISCLICHÊS▪ O mundo está em perigo/prestes a

acabar▪ Um vilão ou grupo de vilões deseja

controlar/dominar o mundo/umpaís/uma cidade/um vilarejo▪ Abundante testosterona (“Mulheres,

só mortas ou na cama” — instruçãopermanente do produtor de arrasa-quarteirões Joel Silver a seus ro-teiristas e diretores)▪ Há pelo menos uma bomba com um

contador digital que precisa ser de-sarmada em dez segundos▪ Filhos, pais, namoradas/maridos

são vítimas ideais

311/415

Page 312: Como ver um filme

▪ Heróis não precisam recarregararmas; vilões, sim▪ Se um herói precisar carregar uma

arma, que seja enorme. Melhor:duas. Duas armas são sempre mel-hores do que uma (“Dê uma arma aum personagem e ele é um herói; dêduas, e ele é um deus.” — JohnWoo)▪ Um bom herói tem pelo menos uma

frase-chave, um bordão▪ Todo herói deve ser capaz de:

— Dirigir/pilotar qualquer tipo deveículo, principalmente em altavelocidade e correndo grandeperigo

— Quebrar qualquer código de se-gurança ou combinação de cofre

— Saber os planos do inimigo

312/415

Page 313: Como ver um filme

— Salvar a mocinha

313/415

Page 314: Como ver um filme

314/415

Page 315: Como ver um filme

315/415

Page 316: Como ver um filme

5. Ficção Científica/Fantasia: o império da imaginação

5. FICÇÃO CIENTÍFICA/FANTASIA: O IMPÉRIO DA

IMAGINAÇÃO

“O coração e a essência da ficção científicatornaram-se cruciais para nossa salvação —

seé que ainda podemos ser salvos.”

Isaac Asimov

Page 317: Como ver um filme

CAMINHAMOS, ATÉ AGORA, por território famili-ar. Extraordinário, talvez, mas familiar. Asexperiências narradas em drama, comédia eação/aventura estão firmemente enraizadasem nossa vida, nosso passado e nossahistória, representam apropriações de ele-mentos de nossa experiência direta, devida-mente alteradas, manipuladas e interpreta-das pelos realizadores. Assim:DRAMA: ÉTICA E MORAL▪ Grandes lições morais a partir da rever-

são de fortuna de um personagemcomplexo.

▪ Catarse: elevação das emoções através dador e do medo alheios.

COMÉDIA: JUSTIÇA POÉTICA▪ Alívio (purificação das emoções) através

do triunfo de um personagem bom e

Page 318: Como ver um filme

simples sobre personagens ou situaçõespoderosas, arrogantes e/ou opressivas.

▪ Catarse cômica: o poder do ridículo.AÇÃO E AVENTURA: SUPLANTAÇÃO EHEROÍSMO▪ Superação de nossos limites pela aceit-

ação de provas aparentemente acima dacapacidade humana.

▪ Catarse heroica: o herói nos redimeporque encarna o que há de melhor emnós.

Deixamos agora o familiar para trás e, nosdois últimos grandes gêneros, nos aven-turamos por um território além do planofísico, onde a imaginação e o inconscientedominam, e as narrativas têm mais ligaçõescom processos psicoanalíticos e filosóficosdo que com dramaturgia.

Utilizando a mesma organização propostano início do capítulo para os três primeirosgrandes gêneros, ficção científica e fantasiase apresentam da seguinte forma:FICÇÃO CIENTÍFICA E FANTASIA:

318/415

Page 319: Como ver um filme

METAFÍSICA E PSICANÁLISE▪ Elaboração de questões atuais sob a

forma de sonhos e projeções.▪ Resolução de problemas particularmente

difíceis ou subconscientes através da re-locação em espaço e tempo.

▪ Poder da imaginação.▪ Catarse pelo transe.Estes são os elementos comuns às duas

vertentes do gênero. O primeiro é essencialpara que possamos realmente apreciar bonsfilmes: o fato de que nenhuma ficçãocientífica ou fantasia, de Metropólis ao Senhordos Anéis, deixa de se basear, essencialmente,sobre o que está acontecendo no mundo nomomento em que o filme foi feito. Não no“futuro”, ou “na Terra Média” ou “numagaláxia distante, muitos e muitos anos atrás”,mas agora mesmo, simbolizado em projeçõese fantasias que nos confortam e tranquilizamao nos dar uma adequada distância de tempoe espaço. É o faz de conta do faz de conta, acapacidade de, como nos sonhos, abordar as

319/415

Page 320: Como ver um filme

questões mais difíceis e espinhosas de umaforma menos dolorosa.

Na ficção científica/fantasia, a sociedade sepermite “sonhar” seus piores problemas: de-sumanização, superpopulação, poluição,holocausto nuclear, totalitarismo, perda dosdireitos civis, loucura, fome, epidemias,desigualdade social. Num dos primeiros —senão o primeiro — filmes de ficçãocientífica, Le Voyage dans la Lune (GeorgesMéliès, 1902), o mestre astrônomo professorBarbenfouillis (interpretado pelo próprioMéliès) propõe aos seus colegas a viagem dotítulo como meio de escape de uma Terradominada pela fumaça dos novos monstros,as fábricas.

É a imaginação tomando precedênciasobre razão, lógica e observação — não seimita mais a realidade, como no universodescrito por Aristóteles em Poética, masimagina-se, sonha-se, cria-se uma outra real-idade onde possamos colocar e resolver tudo

320/415

Page 321: Como ver um filme

o que nos incomoda aqui, no mundo cotidi-ano. É a catarse pelo transe, induzido pelasimagens dançantes na tela luminosa, numasala escura, muito próxima dos mitosfantásticos e aterradores que pajés e xamãscontam à luz de fogueiras, para os mesmosfins.

Para que na nossa fogueira a magia seopere, ficção científica e fantasia precisamcriar a sua própria lógica e se ater a ela. Umalógica interna absolutamente rigorosa, cujaquebra implica na ruptura do transe, o fimda magia. É a prática mais intensa do “real-ismo emocional” do cinema, aquilo que paranós passa a ser real porque nós o sentimoscomo real — não porque de fato o seja.

Na ficção científica, esse realismo é o dofuturo. A lógica interna é a lógica do possível— uma extensão daquilo que já é conhecido eaceito em teoria. Deslocamento no tempo éteoricamente possível? Então vamos visitarvários momentos do contínuo espaço-tempo

321/415

Page 322: Como ver um filme

(De volta para o futuro I, II, III, Robert Zemeck-is, 1985, 1989 e 1990; 12 macacos, Terry Gilli-am, 1995; A máquina do tempo, Simon Wells,2002). Há evidência de formas de vida emoutros planetas? Vamos imaginar em detal-hes como elas seriam, e que intenções teriamcom relação a seus colegas terráqueos (O diaem que a Terra parou, Robert Wise, 1951; E.T.,o extraterrestre, Steven Spielberg, 1982; Aguerra dos mundos, Byron Haskin, 1953,Steven Spielberg, 2005).

O elemento essencial para guiar essa lógicainterna é a ciência: todos os demais são tol-erados se forem uma extensão da ciência oupor ela puderem ser explicados, ainda queespeculativamente. Por isso, a tecnologia éessencial — parte do poder deste tipo de ma-gia cinematográfica é concretizar, diante denossos olhos, objetos possíveis mas inexist-entes: sabres de luz, carros voadores, com-putadores falantes, robôs inteligentes. Comovárias dessas coisas imaginadas acabam se

322/415

Page 323: Como ver um filme

tornando realidade, o realismo emocional dealgumas décadas atrás torna-se cotidiano,corriqueiro, e reforça nossa sensação de queestamos vendo projeções coletivas dasnossas possibilidades.

SCI-FI COMOFILOSOFIAPORQUE NOS LIBERA DA OBRIGAÇÃO

Da lógica e dos limites da “realidade”,mas baseia-se no que somos teorica-mente capazes de fazer, a ficçãocientífica é, em mãos hábeis, um ex-celente instrumento de reflexãofilosófica profunda. La Jetee (ChrisMarker, 1962), um slide-show emforma de filme, questiona a manipu-lação do tempo e da memória (e foi a

323/415

Page 324: Como ver um filme

base para 12 macacos, de Terry Gilli-am); 2001: uma odisseia no espaço(Stanley Kubrick, 1968) exploranossas origens como espécie inteli-gente e nossa conexão com o uni-verso; Laranja mecânica (StanleyKubrick, 1971) pergunta-se qual é olimite de violência que estamos pre-parados a aceitar da sociedade e doEstado; Solaris (Andrei Tarkovsky,1972, Steve Soderbergh, 2002) é umaindagação existencial contínua a re-speito de morte, perda e responsabil-idade disfarçada de ficção científica.Mesmo filmes mais pipocas como Odia em que a Terra parou, Planeta dosmacacos (Franklin Schaffner, 1958,Tim Burton, 2001) e Sunshine — Alertasolar (Danny Boyle, 2007) contêm

324/415

Page 325: Como ver um filme

reflexões sobre nosso destino comoespécie e nossa responsabilidade di-ante da Criação.

Às vezes as coisas se tornam um pou-co surreais. O universo filosófico-reli-gioso criado por George Lucas parasua saga Star Wars — inspirado emprincípios e disciplinas do taoismo, dobudismo e hinduísmo — é tão detal-hado que, no censo de 2001 na Grã-Bretanha, “Jedi” apareceu como aquarta afiliação religiosa maisdeclarada.

E ARISTÓTELES?

325/415

Page 326: Como ver um filme

“Quando se trata de ideiassobre o futuro, não é ne-cessário que, em uma afirm-ação e sua oposição negativa,uma seja verdade e a outra,não.”

(Organon, Da Interpretação)

Na fantasia, o realismo interno épuramente da imaginação. A única ló-gica necessária é a lógica interna:mundos devem ser criados com regraspróprias, e essas regras devem sermantidas a todo custo, em toda a nar-rativa. O espectador de um filme defantasia aceita praticamente tudo,menos a incoerência e a inconsistên-cia. Se um manto mágico confere in-visibilidade, ele tem que conferir in-visibilidade sempre — a não ser que

326/415

Page 327: Como ver um filme

seja claramente enunciado o princípiopelo qual a regra nem sempre seaplica.

A suspensão de descrença, tão funda-mental no cinema e ainda mais im-portante no cinema metafísico deficção científica, é uma questão devida ou morte no filme fantástico. Orealizador tem aproximadamente 15minutos para convencer absoluta-mente a plateia de que está vendo aTerra Média, a Cidade de Oz ou anjossobre Berlim. E, uma vez “vendida” aideia, ela tem que ser mantida comrigorosa direção de arte e completacoerência dentro da narrativa.

Na ficção científica, alguma noção delógica, extrapolada daquilo que a

327/415

Page 328: Como ver um filme

ciência teoriza, norteia a trama. Nafantasia, elementos de absurdo,sobrenatural e místico são integral enaturalmente aceitos; tempo e espaçosão extremamente flexíveis; e a tecno-logia é desnecessária ou secundária.

Porque está tão além de qualquer con-exão com a realidade, o filme defantasia é um bom veículo para abor-dar o espinhoso tema da mortalidadee do sentido da vida: A Matter of Lifeand Death (Michael Powell, EmericPressburger, 1946), A felicidade não secompra (Frank Capra, 1946), Asas dodesejo (Wim Wenders, 1988), After Life(Hirokazu Koreeda, 1998) — que, apartir do título original em japonês,Wandarafu raifu, ecoa o filme de Capra—, Amor além da vida (Vincent Ward,

328/415

Page 329: Como ver um filme

1998), a animação A viagem de Chihiro(Hayao Myiazaki, 2001) e O labirintodo fauno (Guillermo del Toro, 2006)são especulações fantásticas sobreuma outra vida, depois desta ouparalela a ela, e como uma pode terimpacto sobre a outra.

Outro tema comum no filme defantasia é a responsabilidade —porque no filme fantástico fatos e at-ributos podem ser reduzidos a símbo-los e metáforas; escolhas tambémtomam um outro peso, absoluto, semas ambiguidades do mundo real. Omágico de Oz (Victor Fleming, 1939), ABela e a Fera (Jean Cocteau, 1946, eGary Trousdale/Kirk Wise, 1991), Ahistória sem fim (Wolfgang Petersen,1984), La Invencion de Crónos

329/415

Page 330: Como ver um filme

(Guillermo del Toro, 1993), A bússolade ouro (Chris Weitz, 2007), a trilogiaSenhor dos Anéis (Peter Jackson, 2001,2002 e 2003) e a série Harry Potter(diversos diretores, 2001-2011) são,essencialmente, sobre escolhas,poderes e responsabilidade.

AS TRÊS REGRASSAGRADAS DEFICÇÃO CIENTÍFICA/FANTASIACOERÊNCIA É TUDO. Antes da plateia,os realizadores têm que acreditar na

330/415

Page 331: Como ver um filme

premissa que oferecem e criar todosos elementos para que ela se sustente.A lógica interna deve ser absoluta-mente rigorosa.

CRIE UM MUNDO COESO. Não faça eco-nomia na direção de arte nem nosefeitos visuais: eles SÃO a suanarrativa.

O IMPROVÁVEL PODE SER ACEITO SE

FOR:

▪ Relevante à condição humana domomento;▪ Explicável pela lógica interna da

trama;▪ Apresentado de modo sensorial-

mente envolvente.

331/415

Page 332: Como ver um filme

332/415

Page 333: Como ver um filme

333/415

Page 334: Como ver um filme

334/415

Page 335: Como ver um filme

335/415

Page 336: Como ver um filme

6. Thriller (suspense e terror): a soma de todos os medos

6. THRILLER (SUSPENSE/TERROR): A SOMA DE

TODOS OS MEDOS

“O medo é a dor que sentimos quandoantecipamos a presença do mal.”

Aristóteles

“O único modo que encontrei para me livrardos meus medos foi fazer filmes sobre eles.”

Alfred Hitchcock

Page 337: Como ver um filme

NA ÚLTIMA PARADA EM NOSSA JORNADA pelocinema da imaginação, chegamos ao prover-bial fundo do poço. Se o drama lidava comquestões éticas e morais; a comédia, com oalívio da alma pelo ridículo; a ação, com aexaltação das qualidades heroicas; e a ficçãocientífica/fantasia com o poder da imagin-ação, o thriller — cujas principais vertentessão o suspense e o terror — lida com aemoção mais básica, mais primária, mais ab-soluta: o medo. A catarse já não se faz pelotranse, pelo encantamento, como no cinemafantástico — no thriller buscamos a catarsepelo exorcismo. Queremos olhar de frentenossos piores medos, num ambiente seguro econtrolado, com a devida distância da nar-rativa fictícia, mas também com o completoenvolvimento que as imagens em movimento

Page 338: Como ver um filme

provocam. Queremos viver esse medo com omáximo de intensidade, e depois saber queele acabou, que ficou lá na tela, na sala es-cura novamente clara, no DVD que desliza,inocente, na bandeja — exorcizado, aindaque temporariamente.

Ainda estamos no território da metafísica eda psicanálise, mas trabalhando com materi-ais muito mais imediatos e profundos, recri-ando nossos pesadelos para compreendê-losou liquidá-los. Coletivamente, o thriller é ummodo de lidar com questões perturbadorasdo indivíduo, da época e da sociedade, umadiscussão ao longo dos mais de cem anos decinema sobre o que mais nos desestabiliza eapavora.

Falando das provações que acometem osheróis da tragédia, Aristóteles diz que aquiloque nos dá pena ver acontecer com os outrosprovoca, em nós, o medo mais profundo: o“medo trágico”. A questão essencial do medotrágico — e, por extensão, do thriller — é: o

338/415

Page 339: Como ver um filme

que não suportamos perder de modo algum?O que mais amamos e valorizamos a talponto que a antecipação de sua perda de-flagra o medo absoluto, o medo profundo, omedo trágico?

Para que o medo trágico seja de fato catár-tico e leve ao exorcismo que queremos e deque precisamos, nós temos que nos identifi-car com o sofredor, temos que sentir o queele está sentindo com igual medo, ante-cipação, dor. Esse é um ponto importantepara diferenciar o que é um bom thriller e oque simplesmente é pornografia da dor e daviolência. No primeiro caso, os sofrimentos,reais ou psicológicos, dos protagonistas des-pertam a nossa simpatia, a nossa revolta,vemos a nós mesmos na situação. Todos osnossos medos são mobilizados, trazidos àtona, na pessoa do sofredor fictício que seoferece à imolação por nós. No segundo caso,temos apenas uma exibição sem fim e sempropósito de crueldades, com um convite

339/415

Page 340: Como ver um filme

implícito para que achemos que aquilo — atortura, o massacre, o barbarismo — édiversão. Identificarmo-nos com o sofredor éimpossível, tamanha a brutalidade do mas-sacre. Somos, então, sutilmente convidados anos identificar com quem comete os atos decrueldade. Não há exorcismo. E a catarse, sevem, é a do prazer pelo sofrimento alheio.Algo inteiramente diverso do que Aristótelesdescreve como “a dor que sentimos quandoantecipamos a presença do mal”.

Embora filmes tenham se tornado cada vezmais prazeres solitários, desfrutados na in-timidade do lar, o thriller pode ser sua maisenfática exceção. É muito melhor ver umfilme de suspense ou terror no cinemaporque, como nos anfiteatros da Grécia An-tiga, compartilhar o medo trágico nos fazsentir menos sós, mais conectados com nos-sos semelhantes. Todos temos medo de per-der algo: vida, sanidade, pessoas queridas. O

340/415

Page 341: Como ver um filme

que podemos perder, o que tememos, nosune quando nada mais consegue fazê-lo.

Há também uma fronteira muito fina entremedo e riso. Qualquer pessoa que já tenhavisto um filme de terror numa sala cheia degargalhadas nervosas depois das cenas maiseletrizantes sabe como é fácil e rápido passarde uma emoção extrema a outra — o alíviocatártico do riso, na comédia, é extrema-mente semelhante ao do medo controlado,no thriller. Em palavras simples, poderia sertraduzido como “antes ele do que eu”. Mashá uma outra maneira de um thriller provo-car riso, o avesso da moeda — nada maispróximo de uma comédia que um thrillermalfeito.

O produtor e diretor Roger Corman, veter-ano fabricante em massa do gênero e grandedescobridor e treinador de talentos (MartonScorsese, Francis Ford Coppola, JamesCameron, Jonathan Demme, Sam Raimi),diz que não há escola melhor para um

341/415

Page 342: Como ver um filme

aspirante a cineasta do que encarar um thrill-er. Suas regras básicas são claras e simples:▪ Não é tanto sobre assunto, e sim

sobre estilo. Um thriller pode ser sobreum fotógrafo com uma perna quebrada(Janela indiscreta, Alfred Hitchcock,1954), um casal querendo ter seuprimeiro filho (O bebê de Rosemary, Ro-man Polanski, 1968) ou um motoristaapressado que ultrapassa um caminhão(Encurralado, Steven Spielberg, 1971). Oimportante é como estas histórias sãocontadas: com todas as sensações ampli-ficadas ao máximo. Se um filme excitapelo medo (thrill), é um thriller.

▪ O que não suportaríamos perder?Um thriller acerta em cheio no alvoquando põe a plateia inteira se fazendoessa pergunta, mesmo que em seu sub-consciente. Eu aguentaria perder minhaliberdade? Meu sentido de visão? Meusmembros? Minha sanidade? Minha

342/415

Page 343: Como ver um filme

humanidade? A vida de um ser querido?A minha vida?

▪ O herói deve frustrar/destruir osplanos do antagonista. Não basta,como num drama simples de crime,descobrir quem fez o quê. Estamos lid-ando com algo além de um antagonista— estamos diante da presença do mal,cuja antecipação nos dói. Há que o deter.

▪ Clímax e/ou resolução devemsempre trazer a vitória do herói.Pelo mesmo motivo não se pode deixar aplateia na garras de uma possível vitóriado mal. Como no filme de ação, o finalnão precisa ser feliz; o sacrifício do heróié até esperado, faz parte da catarse —mas tem que ser moralmentesatisfatório.

▪ Protagonistas e plateia não podemsaber as mesmas coisas ao mesmotempo. Ou eles sabem algo que nós nãosabemos, deixando-nos na doce agonia

343/415

Page 344: Como ver um filme

de deduzir, ou nós sabemos algo que elesnão sabem, e só nos resta ter medo emdobro, na deliciosa e fatal serenidade daimpotência. A alternativa, que tambémfunciona, é ninguém saber nada — só odiretor e o roteirista. O thriller comocaixa de pandora.

COMO FAZER UMTHRILLER, SEGUNDOHITCHCOCK“Faça o público sofrer o máximopossível.”

“Não há terror num tiro ou numgolpe, mas na antecipação de um tiroou de um golpe.”

344/415

Page 345: Como ver um filme

“Quanto mais bem-sucedido é o vilão,mais bem-sucedido é o filme.”

“As louras são as melhores vítimas.São como a neve fresca que mostracom nitidez as manchas de sangue.”

“A duração de um filme deve estar emrelação direta à capacidade de re-tenção da bexiga humana.”

Porque um thriller deve trabalhar com osmateriais que tem à mão, sejam eles mortos-vivos ou adolescentes em férias, seus ele-mentos básicos podem ser tão variadosquanto seus temas. Em Pânico (Wes Craven,1996), o roteirista Kevin Williamson fez umótimo trabalho de catalogar os clichês maisóbvios de um tipo específico de thriller, oslasher, que opõe heroínas juvenis e indefesasa maníacos assassinos com predileção por

345/415

Page 346: Como ver um filme

objetos cortantes: o telefonema sinistro; a fu-ga sempre na direção mais perigosa; a portaaberta sem um momento de hesitação.

Alguns recursos, contudo, são comuns atodas as vertentes do thriller:▪ Escuridão, ambiguidade/impre-

cisão do olhar. Não é apenas porqueseres humanos têm medo nato da escur-idão: é porque esta é uma das melhoresmaneiras de ocultar a informação que es-clareceria tudo e acabaria se não com omedo, pelo menos com a antecipação.Em Alien, o oitavo passageiro, os sets deRoger Christian, em cima das visualiza-ções do artista plástico H.R. Giger, e a fo-tografia de Derek Vanlint conspirampara criar o efeito de um labirinto claus-trofóbico e desorientador onde nem nósnem os protagonistas vemos inteira-mente a ameaça que os cerca, a não serquando é tarde demais. O filme inteiro é

346/415

Page 347: Como ver um filme

construído em cima dessa antecipação,da angústia do não saber.

▪ Seu oposto: clareza absoluta, olharfixo. Uma opção ousada para um thrilleré não ocultar nada visualmente e, pelocontrário, deixar os protagonistas — enós — inteiramente a descoberto, in-defesos, vendo tudo mas ainda impot-entes para realmente fazer alguma coisa.A icônica sequência de Intriga internacion-al (Alfred Hitchcock, 1959), em que umavião fumigador pessimamente inten-cionado persegue Cary Grant por umcampo aberto e desolado, é poderosa ex-atamente porque vemos tudo. É plenodia, não há uma única árvore, um ar-busto, uma toca, uma caverna, um case-bre onde o pobre Cary Grant possa seproteger. A tela é um retângulo divididopelo horizonte, com dois pontos que seaproximam perigosamente: perseguidore perseguido.

347/415

Page 348: Como ver um filme

▪ Antecipação. Mestre Hitchcock disseisso com a mais absoluta clareza. O golpefatal, a aparição sinistra, o desmascarardo assassino em série são a resolução, oalívio, não o momento em que encon-tramos nosso medo trágico. Esses mo-mentos são os que se passam na nossacabeça, indo buscar memórias, pesade-los, reflexos de outras experiências paratentar compreender o que vai acontecer,o que pode acontecer. Passamos dois ter-ços de Tubarão (Steven Spielberg, 1975)não vendo o peixe em questão e sabendoquase nada sobre ele, mas roendo as un-has na expectativa de quando, onde,como ele vai fazer sashimi de algumbanhista.

▪ Inventário preciso de imagens. Detodos os gêneros, o thriller é o que maisse aproxima da experiência do sonho.Seu diálogo não é com nossas funçõesmais elevadas de fala, escrita, cálculo,

348/415

Page 349: Como ver um filme

mas com nosso sistema límbico, em quese processam as trocas mais básicas, eem que se armazena todo nosso reper-tório de medos. Por isso ele volta regu-larmente a algumas imagens e situaçõesque imediatamente puxam conversa comnosso paleopálio, a região intermediáriado cérebro onde arquivamos nossasemoções. Locais confinados, dos quaisnão é possível escapar — a casa/cabanaonde sobreviventes de alguma catástrofepensam achar refúgio é um dos maiscomuns (Noite dos mortos-vivos, George A.Romero, 1968). Sótãos e porões (O silên-cio dos inocentes, Jonathan Demme, 1991;REC, Jaume Balagueró e Paco Plaza,2007), os recantos “esquecidos” de nossapsique. Portas, escadas, janelas (Os out-ros, Alejandro Amenabar, 2001), el-evadores (Prelúdio para matar, Dario Ar-gento, 1971; O iluminado, Stanley Kubrick,1980), significando portais, transições,

349/415

Page 350: Como ver um filme

entremundos. Chaves (Interlúdio, AlfredHitchcok, 1946) e caixas (Os sete crimescapitais, David Fincher, 1995).

350/415

Page 351: Como ver um filme

351/415

Page 352: Como ver um filme

352/415

Page 353: Como ver um filme

353/415

Page 354: Como ver um filme

Conclusão

Conclusão

Como o filme pega você— e como você pega o filme

TODO FILME É FEITO PARA UMA ÚNICA PESSOA —

VOCÊ. Sem seu olhar, sua inteligência e suaemoção, reagindo e dando sentido às im-agens, o imenso trabalho de realizar umfilme é inútil.

O filme é criado, do começo ao fim, paraconversar com você. Essa conversa pode ser

Page 355: Como ver um filme

uma sedução, uma piada, uma provocação,uma discussão, um berro, um abraço, um de-safio, uma agressão, um enigma. O especta-dor deve poder escolher ser seduzido ou não,rir ou não, revidar, retrucar, se fechar, chor-ar, recordar, raciocinar. Este é o sentido dofilme. A obra que não conversa com você nãopresta — esta é a regra mais simples paraapreciar de verdade o trabalho de dezenas,centenas de pessoas que passam meses, àsvezes anos, planejando e realizando projetoscinematográficos.

O filme que conversa com você tem, emgeral, um ou mais destes elementos:▪ Personagens que parecem, senão

reais, plausíveis. Deve haver algo dehumanidade verdadeiro neles para quevocê possa dizer lá da poltrona: “Sim,somos da mesma espécie.” Não que elesprecisem ser humanos — os robozinhosde Wall-E tinham a mesma perplexidadede Carlitos; a Alien de Aliens — O Resgate

355/415

Page 356: Como ver um filme

era, simplesmente, uma mãe protegendosuas crias, exatamente como a Ripley deSigourney Weaver, sua necessária antag-onista; os “camarões” de Distrito 9 eramhumilhados, segregados e oprimidoscomo qualquer habitante de periferiaurbana.

▪ Uma história que intriga. Se em dezminutos você é capaz de antecipar cadaação dos personagens, por que você vaigastar mais uma hora e 50 minutos doseu precioso tempo? Você não precisaficar absolutamente virado do avesso,como em O Ano Passado em Marienbad ouAmnésia. Mas… o que Alice, a que nãomora mais aqui, do filme de Scorserse,vai fazer com sua vida de mulhersolteira? E o que aquela estátua de JesusCristo está fazendo sobrevoando Romanum helicóptero, em La Dolce Vita?

▪ Respeito à sua inteligência. É o co-rolário do princípio anterior. Um filme

356/415

Page 357: Como ver um filme

que acha que precisa ser o mais óbviopossível para prender sua atenção nãomerece sua atenção.

▪ Disciplina interior. O realizador queacha que não faz filmes para você, naplateia, em geral é aquele que roda quilô-metros de película e não consegue de-cidir o que cortar porque, é claro, consid-era tudo genial. Infelizmente ninguém égenial o tempo todo — a absoluta clarezade intenções, que é a marca dos grandesde verdade, é fruto da humildade deaprender por tentativa e erro, e de dizer,friamente, “isto não funcionou, vamostentar de novo, de maneira diferente”. ÉSpielberg sumindo com o tubarão,Kubrick mantendo a trilha temporária de2001: uma odisseia no espaço, Scorsese de-batendo com Thelma Schoonmaker quetomada mantinha a realidade emocionaldos personagens, em Os bons companheir-os — e jogando todas as outras fora.

357/415

Page 358: Como ver um filme

▪ Pelo menos uma imagem que fiquena sua cabeça. O processo do filme é omesmo do sonho — nosso cérebro pro-cessando informações complexas pormeio de imagens. Se pelo menos uma seagregou ao seu repertório de referências— o transatlântico sobre o mar de papelcelofane de Amarcord, a chuva de saposde Magnolia, os candelabros de braçoshumanos de A Bela e a Fera, de Cocteau —você sabe que viu não apenas um bom,mas um grande filme.

NO CONTRATO IMPLÍCITO PARA O PLENO

DESFRUTAR do cinema, nosso papel é o de seruma plateia inteligente.

Algumas ideias:1. Mantenha a mente aberta. Não lim-

ite suas escolhas dizendo, logo de cara,“não vejo filme de fulano ou beltrana”,“detesto filme de ação” etc. Claro que va-mos ter sempre uma queda especial poresse ou aquele diretor, gênero, ator,

358/415

Page 359: Como ver um filme

atriz. Mas da mesma forma que uma di-eta rigorosa é prejudicial à saúde, a longoprazo, um regime de filmes que, em es-sência, já conhecemos, enfraquece nossapossibilidade de escolher amplamente.Na verdade, ver um gênero ou um dire-tor que não nos é familiar pode se revelarum raro prazer e uma possibilidade deapreciar algo com uma nova perspectiva.

2. Encontre suas referências — esaiba por quê. De fato, queremos sabercom antecedência se sair de casa, acharlugar para estacionar e comprar ingressovalerá a pena. Então lemos resenhas emjornais, revistas, internet e quase sempreficamos mais perdidos do que antes. Oideal é identificar dois ou três resenhis-tas cuja opinião pareça especialmente lú-cida e bem-informada, e se basear neles.Veja bem: você não precisa concordarpor inteiro, mas eles devem ser capazesde ao menos dizer a você por que estão

359/415

Page 360: Como ver um filme

recomendando ou não um filme, demodo compreensível. Ir ver o filme e nãoconcordar é, aliás, um excelente exercí-cio de formação de gosto, especialmentese você for capaz de notar por que ocrítico gostou e você não. Depois de al-gum tempo é possível construir umacurva de apreciação dessas nossas refer-ências, e decidir se o melhor é sair decasa, esperar o DVD ou deixar pra lá.

3. Informe-se. Leia amplamente sobrecinema em geral e sobre filmes específi-cos. De preferência, procure a inform-ação em primeira mão, na voz dos realiz-adores. Compreenda o que eles propõem,como eles trabalham. Internet e livrossão excelentes recursos. Saiba, nem queseja por alto, o que é um roteiro, comoele é construído, como o diretor trabalhasobre ele, qual a contribuição da foto-grafia e da direção de arte, como é o pro-cesso de criação dos atores e dos

360/415

Page 361: Como ver um filme

músicos. Num plugue descarado eu avisoque estarei no Brasil em abril repetindomeu intensivo Como ver um filme, quecobre tudo isso. Se você se interessar emlevá-lo para sua cidade, me avise. Masexistem muitos outros recursos bemperto de vocês.

4. Surpreenda-se. Alugue um DVDsobre o qual não sabe nada. Vá a umfilme sem pensar muito sobre a escolha.Em grandes festivais, como Cannes eVeneza, o caos de horários e pro-gramações muitas vezes me levou a ex-periências incríveis nessa linha, e vifilmes fantásticos que, de outra maneira,jamais pensaria em assistir.

5. Apaixone-se. Nada mais tedioso que odiscurso teórico sem coração. Cinema éum trabalho de doidos, possível apenasaos mais passionais. O bom filme éaquele que gruda no fundo da retina, emalgum lugar secreto da alma que apenas

361/415

Page 362: Como ver um filme

a paixão abre. Deixe-se levar pelo cor-ação, pelos sentidos. Se o filme não pegarvocê, a culpa é do filme. Ainda assim,mais tarde, reflita sobre por que o filmenão o atingiu, esse é outro exercício es-sencial para formar seu gosto. Se o filmepegou você, não resista, não dê marcha àré, não se arrependa se amigos, jornais enamorados não concordarem. Cada filmeé uma experiência pessoal, única, umdiálogo entre a tela e você, só você. Nãoinvente desculpas depois. O que valeu foio momento.

E, é claro, mantenha a pressão sobre dis-tribuidores, exibidores, projecionistas, exi-gindo sempre qualidade, atualidade, re-speito. Mais do que nunca, o freguês temsempre razão. E os fregueses somos nós, es-sas pessoas maravilhosas na sala escura.

362/415

Page 363: Como ver um filme

Filmografia

Filmografia

Esta é uma lista de sugestões: ótimos filmesde épocas, realizadores, gêneros, estilos,nacionalidades e temáticas completamentediversos. Em comum, eles têm o fato de ser-em excepcionais, realizando plenamente avisão de seus criadores e, muitas vezes, es-tabelecendo um novo padrão de excelência ecriatividade. Juntos, eles representam umgrande painel da aventura da imagem emmovimento, expressão de nossos sonhos, an-siedades, imperfeições e desejos.

Page 364: Como ver um filme

1900-1930

Le Voyage dans la LuneGeorges Méliès, 1902

IntolerânciaD.W. Griffith, 1916

O gabinete do dr. CaligariRobert Wiene, 1919

NosferatuF.W. Murnau, 1922

O encouraçado PotemkinSergei Eisenstein, 1925

MetrópolisFritz Lang, 1926

The GeneralBuster Keaton & ClydeBruckman¸1927

NapoleãoAbel Gance, 1927

O cão andaluzLuis Bunuel & Salvador Dalí, 1928

Page 365: Como ver um filme

A paixão de Joana D’ArcCarl Theodor Dreyer, 1928

Man with the Movie CameraDziga Vertov, 1929

1930-1939

M, o vampiro de DusseldorfFritz Lang, 1931

A nós a liberdadeRené Clair, 1931

FrankensteinJames Whale, 1931

ScarfaceHoward Hawks, 1932

Zero de condutaJean Vigo, 1933

Diabo a quatroLeo McCarey, 1933

O atalanteJean Vigo, 1934

365/415

Page 366: Como ver um filme

Uma noite na óperaSam Wood, 1935

Tempos modernosCharles Chaplin, 1936

Cais das sombrasMarcel Carné, 1936

Branca de Neve e os sete anõesWilliam Cottrel, David Hand e outros,1937

A grande ilusãoJean Renoir, 1937

A cidadelaKing Vidor, 1938

A besta humanaJean Renoir, 1938

…E o vento levouVictor Fleming, 1939

A regra do jogoJean Renoir, 1939

O mágico de OzVictor Fleming, 1939

366/415

Page 367: Como ver um filme

1940-1949

O grande ditadorCharles Chaplin, 1940

Cidadão KaneOrson Welles, 1941

O segredo das joiasJohn Huston, 1941

Contrastes humanosPreston Sturges, 1941

As três noites de EvaPreston Sturges, 1941

BambiJames Algar, Samuel Armstrong e out-ros, 1942

CasablancaMichael Curtiz, 1942

Pacto de sangueBilly Wilder, 1944

Roma, cidade abertaRoberto Rosselini, 1945

367/415

Page 368: Como ver um filme

O boulevard do crimeMarcel Carné, 1945

Os melhores anos de nossas vidasWilliam Wyler, 1946

A felicidade não se compraFrank Capra, 1946

À beira do abismoHoward Hawks, 1946

A Bela e a FeraJean Cocteau, 1946

Neste mundo e no outroMichael Powell, 1946

Grandes esperançasDavid Lean, 1946

Narciso negroMichael Powell, 1947

Rio VermelhoHoward Hawks, 1948

Os sapatinhos vermelhosMichael Powell, 1948

368/415

Page 369: Como ver um filme

O tesouro de Sierra MadreJohn Huston, 1948

O ladrão de bicicletaVittorio De Sica, 1949

O terceiro homemCarol Reed, 1949

1950- 1959

A malvadaJoseph L. Mankiewicz, 1950

StromboliRoberto Rosselini, 1950

RashomonAkira Kurosawa,, 1950

Crepúsculo dos deusesBilly Wilder, 1950

Matar ou morrerFred Zinnemann, 1952

Cantando na chuvaStanley Donen & Gene Kelly, 1952

369/415

Page 370: Como ver um filme

Era uma vez em TóquioYasujiro Ozu, 1953

Contos da lua vagaKenzi Mizoguchi, 1953

Os boas vidasFederico Fellini, 1953

A um passo da eternidadeFred Zinnemann, 1953

O salário do medoGeorges Clouzot, 1953

Janela indiscretaAlfred Hitchcock, 1954

Os sete samuraisAkira Kurosawa, 1954

Sindicato de ladrõesElia Kazan, 1954

A estrada da vidaFederico Fellini, 1954

Rio 40 grausNelson Pereira dos Santos, 1955

370/415

Page 371: Como ver um filme

Rebelde sem causaNicholas Ray, 1955

The Night of the HunterCharles Laughton, 1955

A canção da estradaSatyajit Ray, 1955

Tudo o que o céu permiteDouglas Sirk, 1955

RififiJules Dassin, 1955

Rastros de ódioJohn Ford, 1956

Glória feita de sangueStanley Kubrick, 1957

Noites de cabíriaFederico Fellini, 1957

A ponte do rio KwaiDavid Lean, 1957

A marca da maldadeOrson Welles, 1958

371/415

Page 372: Como ver um filme

Um corpo que caiAlfred Hitchcock, 1958

Ascensor para o cadafalsoLouis Malle, 1958

Meu tioJacques Tati, 1958

O homem do SputnikCarlos Manga, 1959

Orfeu negroMarcel Camus, 1959

Hiroshima, meu amorAlain Resnais, 1959

AcossadoJean-Luc Godard, 1959

Os incompreendidosFrançois Truffaut, 1959

Imitação da vidaDouglas Sirk, 1959

Intriga internacionalAlfred Hitchcock, 1959

372/415

Page 373: Como ver um filme

O mundo de ApuSatyajit Ray, 1959

Quanto mais quente melhorBilly Wilder, 1959

1960-1969

La Dolce VitaFederico Fellini, 1960

Olhos sem rostoGeorges Franju, 1960

SpartacusStanley Kubrick, 1960

A aventuraMichelangelo Antonioni, 1960

PsicoseAlfred Hitchcock, 1960

Duas mulheresVittorio de Sica, 1960

Ano passado em MarienbadAlain Resnais, 1961

373/415

Page 374: Como ver um filme

Um gosto de melTony Richardson, 1961

ViridianaLuis Buñuel, 1961

O pagador de promessasAnselmo Duarte, 1962

LolitaStanley Kubrick, 1962

Cleo de 5 às 7Agnès Varda, 1962

Lawrence da ArábiaDavid Lean, 1962

Assalto ao trem pagadorRoberto Farias, 1962

8 1/2Federico Fellini, 1963

Shock CorridorSam Fuller, 1963

O desprezoJean Luc Godard, 1963

374/415

Page 375: Como ver um filme

O criadoJoseph Losey, 1963

Vidas secasNelson Pereira dos Santos, 1963

O leopardoLuchino Visconti, 1963

Os reis do iê-iê-iêRichard Lester, 1964

O evangelho segundo São MateusPier Paolo Pasolini, 1964

O homem do pregoSidney Lumet, 1964

Deus e o diabo na terra do solGlauber Rocha, 1964

Os guarda-chuvas do amorJacques Demy, 1964

Dr. FantásticoStanley Kubrick, 1964

Por um punhado de dólaresSergio Leone, 1964

375/415

Page 376: Como ver um filme

A Noviça RebeldeRobert Wise, 1965

Blowup, depois daquele beijoMichelangelo Antonioni, 1965

PersonaIngmar Bergman, 1966

O incrível exército de BrancaleoneMario Monicelli, 1966

A batalha de ArgelGillo Pontecorvo, 1966

A grande testemunhaRobert Bresson, 1966

Terra em transeGlauber Rocha, 1967

A primeira noite de um homemMike Nichols, 1967

Bonnie e ClydeArthur Penn, 1967

A bela da tardeLuis Buñuel, 1967

376/415

Page 377: Como ver um filme

2001: uma odisseia no espaçoStanley Kubrick, 1968

Se…Lindsay Anderson, 1968

A noite dos mortos-vivosGeorge Romero, 1968

Era uma vez no OesteSergio Leone, 1968

Beijos proibidosFrançois Truffaut, 1968

O bebê de RosemaryRoman Polansky, 1968

TeoremaPier Paolo Pasolini, 1968

MacunaímaJoaquim Pedro de Andrade, 1969

Sem destinoDennis Hopper, 1969

Meu odio será tua herançaSam Peckinpah, 1969

377/415

Page 378: Como ver um filme

ZCosta Gavras, 1969

Perdidos na noiteJohn Schlesinger, 1969

1970-1979

M.A.S.HRobert Altman, 1970

O conformistaBernardo Bertolucci, 1970

Mulheres apaixonadasKen Russell, 1970

O jardim dos Finzi ContiniVittorio de Sica, 1970

Operação FrançaWilliam Friedkin, 1971

O mensageiroJoseph Losey, 1971

Laranja mecânicaStanley Kubrick, 1971

378/415

Page 379: Como ver um filme

Ensina-me a viverHal Ashby, 1971

Morte em VenezaLuchino Visconti, 1971

Os demôniosKen Russell, 1971

Investigação de um cidadão acima dequalquer suspeitaElio Petri, 1971

Perversa paixãoClint Eastwood, 1971

SolarisAndrey Tarkovskiy, 1972

Estado de sítioCosta Gavras, 1972

Aguirre, a cólera dos deusesWerner Herzog, 1972

O discreto charme da burguesiaLuis Buñuel, 1972

O poderoso chefão,O poderoso chefão Parte II

379/415

Page 380: Como ver um filme

Francis Ford Coppola, 1972, 1974

Gritos e sussurrosIngmar Bergman, 1972

O último tango em ParisBernardo Betolucci, 1972

American GraffitiGeorge Lucas, 1973

O dia do ChacalFred Zinnemann, 1973

Inverno de sangue em VenezaNicolas Roeg, 1973

A noite americanaFrançois Truffaut, 1973

O exorcistaWilliam Friedkin, 1974

ChinatownRoman Polanski, 1974

Lacombe, LucienLouis Malle, 1974

A estrela sobe

380/415

Page 381: Como ver um filme

Bruno Barreto, 1974

O enigma de Kaspar HauserWerner Herzog, 1974

A rainha diabaAntonio Carlos Fontoura, 1974

AmarcordFederico Fellini, 1974

TubarãoSteven Spielberg, 1975

Um dia de cãoSidney Lumet, 1975

ShampooHal Ashby, 1975

Piquenique na montanhamisteriosaPeter Weir, 1975

O dia do gafanhotoJohn Schlesinger, 1975

Monty Python: em busca docálice sagradoTerry Jones e Terry Gilliam, 1975

381/415

Page 382: Como ver um filme

NashvilleRobert Altman, 1975

Carrie, a estranhaBrian DePalma, 1975

Taxi DriverMartin Scorsese, 1976

1900Bernardo Bertolucci, 1976

Rede de intrigasSidney Lumet, 1976

Contatos imediatos do terceiro grauSteven Spielberg, 1977

Pai patrãoPaolo Taviani, 1977

Noivo neurótico, noiva nervosaWoody Allen, 1977

Guerra nas estrelas (Star Wars)George Lucas, 1977

O ovo da serpenteIngmar Bergman, 1977

382/415

Page 383: Como ver um filme

Contatos imediatos do terceiro grauSteven Spielberg, 1977

Cinzas no paraísoTerrence Malick, 1978

O expresso da meia-noiteAlan Parker, 1978

A vida de BrianTerry Jones e Terry Gilliam, 1979

O casamento de Maria BraunRainer Fassbinder, 1979

Apocalypse NowFrancis Ford Coppola, 1979

Muito além do jardimHal Ashby, 1979

O tamborVolker Schlondorff, 1979

Bye bye BrasilCacá Diegues, 1979

Alien, o oitavo passageiroRidley Scott, 1979

383/415

Page 384: Como ver um filme

ManhattanWoody Allen, 1979

1980-1989

Agonia e glóriaSamuel Fuller, 1980

O iluminadoStanley Kubrick, 1980

Touro indomávelMartin Scorsese, 1980

O império contra-atacaIrvin Kershner, 1980

Berlim AlexanderpltazRainer Fassbinder, 1980

O homem elefanteDavid Lynch, 1980

Os caçadores da arca perdidaSteven Spielberg, 1981

Barco-inferno no marWolfgang Petersen, 1981

384/415

Page 385: Como ver um filme

Pixote, a lei do mais fracoHector Babenco, 1981

Carruagens de fogoHugh Hudson, 1981

GallipolliPeter Weir, 1981

Ladrões do tempoTerry Gilliam, 1981

Um lobisomem americano emLondresJohn Landis, 1981

E.T., o extraterrestreSteven Spielberg, 1982

Fanny e AlexandreIngmar Bergman, 1982

FitzcarraldoWerner Herzog, 1982

O ano em que vivemos em perigoPeter Weir, 1982

Blade RunnerRidley Scott, 1982

385/415

Page 386: Como ver um filme

Pra frente, BrasilRoberto Farias, 1982

O vereditoSidney Lumet, 1982

Nausicaä do vale do ventoHayao Miyazaki, 1984

Era uma vez na AméricaSergio Leone, 1984

A companhia dos lobosNeil Jordan, 1984

O Exterminador do FuturoJames Cameron, 1984

RanAkira Kurosawa, 1985

A testemunhaPeter Weir, 1985

Brazil: o filmeTerry Gilliam, 1985

A rosa púrpura do CairoWoody Allen, 1985

386/415

Page 387: Como ver um filme

Minha adorável lavanderiaStephen Frears, 1985

A excêntrica família de AntoniaMarleen Gorris, 1985

Veludo azulDavid Lynch, 1986

A moscaDavid Cronenberg, 1986

Jean de FloretteClaude Berri, 1986

A vingança de ManonClaude Berri, 1986

O sacrifício/OffretAndrey Tarkovsky, 1986

Aliens: o resgateJames Cameron, 1986

Por volta da meia-noiteBertrand Tavernier, 1986

A festa de BabetteGabriel Axel, 1987

387/415

Page 388: Como ver um filme

Nascido para matarStanley Kubrick, 1987

Quando chega a escuridãoKathryn Bigelow, 1987

Asas do desejoWim Wenders, 1987

Mulheres à beira de um ataque denervosPedro Almodóvar, 1987

Pelle, o conquistadorBille August, 1988

Ligações perigosasStephen Frears, 1988

Quero ser grandeNora Ephron, 1988

Gêmeos, mórbida semelhançaDavid Cronenberg, 1988

Salaam Bombay!Mira Nair, 1988

BirdClint Eastwood, 1988

388/415

Page 389: Como ver um filme

Cinema ParadisoGiuseppe Tornatore, 1988

Vertigem azulLuc Besson, 1988

Beetlejuice: os fantasmas se divertemTim Burton, 1988

Sexo, mentiras e videotapeSteve Soderbergh, 1989

O cozinheiro, o ladrão, sua mulhere o amantePeter Greenway, 1989

O segredo do abismoJames Cameron, 1989

Digam o que quiseremCameron Crowe, 1989

Faça a coisa certaSpike Lee, 1989

Sociedade dos poetas mortosPeter Weir, 1989

1990-1999

389/415

Page 390: Como ver um filme

Os bons companheirosMartin Scorsese, 1990

Edward mãos de tesouraTim Burton, 1990

Coração de caçadorClint Eastwood, 1990

NikitaLuc Besson, 1990

Close-upAbbas Kiarostami, 1990

A Bela e a FeraGary Trousadale, Kirk Wise, 1991

O silêncio dos inocentesJonathan Demme, 1991

Lanternas vermelhasZhang Yimou, 1991

Barton Fink: delírios de HollywoodJoel Coen, 1991

DelicatessenJean Pierre Jeunet, 1991

390/415

Page 391: Como ver um filme

A dupla vida de VeroniqueKrystof Kieslowski, 1991

O Exterminador do Futuro 2James Cameron, 1991

Traídos pelo desejoNeil Jordan, 1992

O jogadorRobert Altman, 1992

El MariachiRobert Rodríguez, 1992

Olivier, OlivierAgnieszka Holland, 1992

Os imperdoáveisClint Eastwood, 1992

Vem dançar comigoBaz Luhrmann, 1992

A lista de SchindlerSteven Spielberg, 1993

FiladélfiaJonathan Demme, 1993

391/415

Page 392: Como ver um filme

Vestígios do diaJames Ivory, 1993

Trilogia das cores:

A liberdade é azul,1993,

A igualdade é branca, 1994,

A fraternidade é vermelha, 1994Krystof Kieslowski

Short Cuts: cenas da vidaRobert Altman, 1993

Sintonia de amorNora Ephron, 1993

Um mundo perfeitoClint Eastwood, 1993

Adeus, minha concubinaChen Kaige, 1993

A era da inocênciaMartin Scorsese, 1993

Pulp FictionQuentin Tarantino, 1994

392/415

Page 393: Como ver um filme

Caro diárioNanni Moretti, 1994

Almas gêmeasPeter Jackson, 1994

Rosas selvagensAndré Techiné, 1994

O profissionalLuc Besson, 1994

Os condenados de ShawshankFrank Darabont, 1994

Ed WoodTim Burton, 1994

Tempo de viverZhang Yimou, 1994

O Rei LeãoRoger Ellers, Rob Minkoff, 1994

Chungking ExpressWong Kar Wai, 1994

Comer, beber, viverAng Lee, 1994

393/415

Page 394: Como ver um filme

Quatro casamentos e um funeralMike Newell, 1994

FargoJoel e Ethan Coen, 1995

O ódioMatthieu Kassovitz, 1995

Os 12 macacosTerry Gilliam, 1995

Toy StoryJohn Lasseter, 1995

CassinoMartin Scorsese, 1995

UndergroundEmir Kusturica, 1995

A flor do meu segredoPedro Almodóvar, 1995

O balão brancoJafar Panahi, 1995

Terra estrangeiraWalter Salles, 1996

394/415

Page 395: Como ver um filme

Romeu + JulietaBaz Luhrmann, 1996

Segredos e mentirasMike Leigh, 1996

A promessaJean-Pierre Dardenne, 1996

Marte ataca!Tim Burton, 1996

TrainspottingDanny Boyle, 1996

Jerry MaguireCameron Crowe, 1996

O paciente inglêsAnthony Minghella, 1996

Preso na escuridãoAlejandro Amenabar, 1997

O doce amanhãAtom Egoyan, 1997

TitanicJames Cameron, 1997

395/415

Page 396: Como ver um filme

Keep CoolZhang Yimou, 1997

Carne trêmulaPedro Almodóvar, 1997

Boogie NightsPaul Thomas Anderson, 1997

Gosto de cerejaAbbas Kiarostami, 1997

A princesa MononokeHayao Miyazaki, 1997

Velvet GoldmineTodd Haynes, 1998

Corra, Lola, CorraTom Tykwer, 1998

Central do BrasilWalter Salles, 1998

O show de TrumanPeter Weir, 1998

O clube da lutaDavid Fincher, 1999

396/415

Page 397: Como ver um filme

Toy Story 2John Lasseter, Ash Brannon, 1999

The Iron GiantBrad Bird, 1999

MagnoliaPaul Thomas Anderson, 1999

Tudo sobre minha mãePedro Almodóvar, 1999

À espera de um milagreFrank Darabont, 1999

Meninos não choramKimberly Peirce, 1999

O talentoso RipleyAnthony Minghella, 1999

EleiçãoAlexander Payne, 1999

De olhos bem fechadosStanley Kubrick, 1999

2000-2009

397/415

Page 398: Como ver um filme

TrafficSteven Soderbergh, 2000

Peppermint CandyLee Changpdong, 2000

Quase famososCameron Crowe, 2000

Amor à flor da peleWong Kar Wai, 2000

GladiadorRidley Scott, 2000

Amores brutosAlejandro González Iñárritu, 2000

AmnésiaChristopher Nolan, 2000

Requiém para um sonhoDarren Aronofsky, 2000

O tigre e o dragãoAng Lee, 2000

Nove rainhasFabián Bielinsky, 2001

398/415

Page 399: Como ver um filme

Cidade dos sonhosDavid Lynch, 2001

E sua mãe tambémAlfonso Cuarón, 2001

Moulin Rouge!Baz Luhrmann, 2001

A viagem de ChihiroHayao Miyazaki, 2001

Os outrosAlejandro Amenabar, 2001

O fabuloso destino de Amélie PoulainJean Pierre Jeunet, 2001

A espinha do diaboGuillermo del Toro, 2001

O Senhor dos Anéis:A sociedade do anel, 2001,As duas torres, 2002,O retorno do rei, 2003Peter Jackson

Fale com elaPedro Almodóvar, 2002

399/415

Page 400: Como ver um filme

Longe do paraísoTodd Haynes, 2002

O filho da noivaJuan Jose Campanella, 2002

ExtermínioDanny Boyle, 2002

Cidade de DeusFernando Meirelles, 2002

Sobre meninos e lobosClint Eastwood, 2003

Encontros e desencontrosSofia Coppola, 2003

Mestre dos mares: o lado mais dis-tante do mundoPeter Weir, 2003

As invasões bárbarasDenis Arcand, 2003

Kill Bill: Vol 1, 2003 e Vol. 2, 2004Quentin Tarantino

Sideways: entre umas e outrasAlexander Payne, 2004

400/415

Page 401: Como ver um filme

Mar adentroAlejandro Amenábar, 2004

Diários de motocicletaWalter Salles, 2004

Menina de ouroClint Eastwood, 2004

O segredo de Brokeback MountainAng Lee, 2005

Match PointWoody Allen, 2005

Estranhos prazeresKathryn Bigelow, 2005

O novo mundoTerrence Malick, 2005

O labirinto do faunoGuillermo del Toro, 2006

A vida dos outrosFlorian Henckel von Donnersmarck,2006

Filhos da esperançaAlfonso Cuarón, 2006

401/415

Page 402: Como ver um filme

A conquista da honraClint Eastwood, 2006

Cartas de Iwo JimaClint Eastwood, 2006

BabelAlejandro González Iñárritu, 2006

O grande truqueChristopher Nolan, 2006

Sangue negroPaul Thomas Anderson, 2007

PersépolisVincent Paronnaud, Marjane Satrapi,2007

Não estou láTodd Haynes, 2007

O escafandro e a borboletaJulian Schnabel, 2007

Onde os fracos não têm vezJoel e Ethan Coen, 2007

Wall-eAndrew Stanton, 2008

402/415

Page 403: Como ver um filme

HungerSteve McQueen, 2008

O cavaleiro das trevasChristopher Nolan, 2008

Quem quer ser um milionário?Danny Boyle, 2008

Valsa com BashirAri Folman, 2008

Gran TorinoClint Eastwood, 2008

O segredo dos seus olhosJuan Jose Campanella, 2009

A fita brancaMichael Haneke, 2009

MotherBong Joong-Ho, 2009

Distrito 9Neill Blomkamp, 2009

LíbanoSamuel Maoz, 2009

403/415

Page 404: Como ver um filme

AvatarJames Cameron, 2009

Guerra ao terrorKathryn Bigelow, 2009

2010-2011

Toy Story 3Lee Unkrich, 2010

O ilusionistaSylvain Chomet, 2010

A rede socialDavid Fincher, 2010

IncendiesDaniel Villeneuve, 2010

Inception — A origemChristopher Nolan, 2010

Minhas mães e meu paiLisa Cholodenko, 2010

O escritor fantasmaRoman Polansky, 2010

404/415

Page 405: Como ver um filme

Cisne negroDarren Aronofsky, 2010

127 horasDanny Boyle, 2010

Enterrado vivoRodrigo Cortés, 2010

O discurso do reiTom Hooper, 2010

BiutifulAlejandro González Iñárritu, 2010

Namorados para sempreDerek Cianfrance, 2010

Another YearMike Leigh, 2010

Meia-noite em ParisWoody Allen, 2011

A árvore da vidaTerrence Malick, 2011

A pele que habitoPedro Almodóvar, 2011

405/415

Page 406: Como ver um filme

O abrigoJeff Nichols, 2011

ShameSteve McQueen, 2011

DriveNicolas Winding Refn, 2011

A separaçãoAsghar Farhadi, 2011

Precisamos falar sobre o KevinLynne Ramsay, 2011

Os descendentesAlexander Payne, 2011

Cavalo de guerraSteven Spielberg, 2011

O garoto da bicicletaJean Pierre e Luc Dardenne, 2011

Planeta dos macacos: a origemRupert Wyatt, 2011

Compramos um zoológicoCameron Crowe, 2011

406/415

Page 407: Como ver um filme

RangoGore Verbinski, 2011

Miss BalaGerardo Naranjo, 2011

A invenção de Hugo CabretMartin Scorsese, 2011

As aventuras de Tintim:O segredo do LicornePeter Jackson, Steven Spielberg, 2011

O artistaMichel Hazanavicius, 2011

O espião que sabia demaisTomas Alfredson, 2011

Os homens que não amavam asmulheresDavid Fincher, 2011

J. EdgarClint Eastwood, 2011

Tudo pelo poderGeorge Clooney, 2011

407/415

Page 408: Como ver um filme

Bibliografia

Bibliografia

Satisfaça sua curiosidade sobre como as im-agens em movimento são captadas, organiza-das e como elas se comunicam com a plateiacom estas obras:

Page 409: Como ver um filme

Livros

Livros

A forma do filme, Sergei Einsenstein (Zahar,2002)

A jornada do escritor, Christopher Vogler (Am-persand, 1999)

A linguagem secreta do cinema, Jean ClaudeCarriere (Nova Fronteira, 2005)

A luz da lente, Ana Maria Bahiana (Globo,1995)

Adventures in the Screen Trade, William Gold-man (Warner Books, 1989)

American Cinema of the 1970s: Themes and Vari-ations (Screen Decades: American Culture),

Page 410: Como ver um filme

Lester D. Friedman (Editor) (Rutgers,2007)

American Cinema of the 1980s: Themes and Vari-ations (Screen Decades: American Cinema),Stephen Prince (Editor) (Rutgers, 2007)

Aristotle’s Poetics for Screenwriters: StorytellingSecrets from the Greatest Mind in Western Civil-ization, Michael Tierno (Hyperion, 2002)

As principais teorias do cinema, J. DudleyAndrew (Zahar, 1989)

Fazendo filmes, Sidney Lumet (Rocco, 1998)From Reel to Deal: Everything You Need to Create

a Successful Independent Film, Dov Simens(Warner Books, 2003)

Introdução à teoria do cinema, Robert Stam(Papirus, 2003)

Lições de roteiristas, Kevin Conroy (CivilizaçãoBrasileira, 2008)

O poder do clímax: fundamentos do roteiro decinema e TV, Luis Carlos Maciel (Record,2003)

410/415

Page 411: Como ver um filme

O sentido do filme, Sergei Einsenstein (Zahar,2002)

Teoria e prática do roteiro, David Howard e Ed-ward Mabley (Globo, 2008)

The Big Picture: Who Killed Hollywood? and Oth-er Essays, William Goldman (Applause,2001)

The Movie Business Book, Jason E. Squire(Fireside, 2004)

The Producer’s Business Handbook, John J. LeeJr, Rob Holt (Focal Press, 2006)

The Hollywood Rules, Anonymous (Fade In:Books, 2000)

Which Lie Did I Tell?: More Adventures in theScreen Trade, William Goldman (Vintage,2001)

411/415

Page 412: Como ver um filme

Documentários

Documentários

Cem anos de cinema — Uma viagem pessoal at-ravés do cinema americano / A Personal Jour-ney With Martin Scorsese Through AmericanMovies, Martin Scorsese, Michael HenryWilson (1995)

Cinema Europe — The Other Hollywood, Ken-neth Branagh (1995)

Easy Riders, Raging Bulls: How the Sex, Drugsand Rock’n’Roll Generation Saved Hollywood,Kenneth Bowser (2003)

Frank and Ollie, Theodore Thomas (1995)Kurosawa, Adam Low (2000)My Voyage to Italy, Martin Scorsese (1999)

Page 413: Como ver um filme

Stanley Kubrick: a Life in Pictures, Jan Harlan(2001)

The Cutting Edge: The Magic of Movie Editing,Wendy Apple (2004)

Visions of Ligh: The Art of Cinematography,Arnold Glassman (1992)

Waking Sleeping Beauty, Don Hahn (2009)

413/415

Page 414: Como ver um filme

CréditosEditora Responsável

Cristiane CostaProdução

Adriana TorresAna Carla Sousa

Produção editorialRachel Rimas

RevisãoMariana Freire Lopes

Marília LamasNina Gomes

Rodrigo FerreiraDiagramação

DTPhoenix EditorialConversão para ebook

Singular Digital | Mariana Mello e Souza

Page 415: Como ver um filme

@Created by PDF to ePub