Como tornar-se doente mental - V · 2004-07-27 · o assunto. Mas parece-me que, com todas as...

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VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 41 Controvérsias J. L. Pio Abreu Médico Psiquiatra dos H.U.C. Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra Como tornar-se doente mental - V A razão desta série de artigos foi explicada em números anteriores. Grosso modo, são um ensaio de solução do paradoxo dos psiquiatras: grande parte dos verdadeiros doentes (com diagnóstico a preceito) não aceitam tratar-se, enquanto um sem número de pessoas sem diagnóstico claro procura uma doença e o seu miraculoso tratamento. Espero, com este ensaio, contentar uns e outros, contribuindo assim para terminar com o jogo do gato e do rato que se trava frequentemente nos consultórios psiquiátricos. Dado porém o possível efeito prejudicial destes artigos, aconselho a que a sua leitura seja reservada a pessoas inteligentes e com espírito de humor. Terminamos esta série com as doenças sagradas da Psiquiatria: a psicose maníaco-depressiva e a esquizofrenia. Muitos entendidos dirão que estas doenças estão escritas nos astros (ou no destino, ou nos genes) e, portanto, não se pode fazer nada para as ter. Discordo.Todos os clínicos sabem que existem certas pessoas, tantas vezes familiares de doentes assumidos, que manifestam sintomas incipientes mas que, nada tendo feito para os agravar, passam uma vida normal e nem sequer se dão ao trabalho de se queixarem aos psiquiatras. Muitos outros procuraram cedo os psiquiatras e fazem, desde o princípio, um tratamento correcto e sensato, arriscando-se a fazer igualmente uma vida normal. Evidentemente, não aderiram à minha proposta. Para os aderentes, estão aqui vários truques que aprendi com aqueles que, de um modo ou doutro, tiram partido da doença e não resistem a complicá-la. Admito que alguns deles tenham obtido uma preciosa ajuda de psiquiatras ou psicólogos, ou mesmo dos malentendidos da ciência do seu tempo. São coisas que acontecem, e também não é seguro que, hoje, saibamos tudo sobre o assunto. Mas parece-me que, com todas as oportunidades que a sociedade actual põe à nossa disposição, tanto nos circuitos legais como não legais, qualquer pessoa será capaz, se não de exibir uma verdadeira doença deste tipo, ao menos adquirir uma imitação. Por isso, leitor aderente, tenha fé e persistência. Como tornar-se maníaco-depressivo Lord Byron, Schuman, Beethoven, Balzac, Hemingway, William Faulkner, Virginia Woolf,Althusser, Edward Munch, Paul Gaugin,Antero de Quental. Já ouviu falar de algum destes génios criadores? Pois bem: todos eles tinham psicose maníaco-depressiva, e a associação entre a doença e a genialidade não é pura coincidência.A psicose maníaco- depressiva (que agora tem o estúpido nome de doença bipolar) não é só a doença dos génios: é também a doença que confere a genialidade criativa. Mas desiluda-se o leitor. Para lá chegar precisa de pertencer a uma família tocada pelo fogo, na feliz expressão de Kay Jamison, ela também portadora da doença. Provavelmente será uma família ilustre, já que a doença facilita a ascenção social. Como, porém, saímos de um país rural, algum dos seus antepassados terá sido, pelo menos, navegador ou emigrante. Se esse for o caso, prepare-se para passar por períodos da sua vida que em tudo se parecem, quer à hibernação dos ursos, Nota: os critérios da DSMIV para as perturbações do humor (depressões e manias) são uma grande confusão; nestes quadros fizémos o nosso melhor para os simplificar, enquanto no texto esclarecemos a sua relação com a nomenclatura psiquiátrica mais clássica. A. Actualmente, ou muito recentemente, um episódio maníaco. B. Existiu previamente, pelo menos, um episódio depressivo major, episódio maníaco ou misto. C. Os episódios não se sobrepõem a esquizofrenia, perturbação esquizo-afectiva, perturbação esquizofreniforme ou outra perturbação psicótica. Objectivos a atingir para a Perturbação Bipolar I, Episódio Maníaco recente (DSMIV)

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    41

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    Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias

    J. L. Pio Abreu

    Médico Psiquiatra dosH.U.C.

    Professor da Faculdadede Medicina daUniversidade deCoimbra

    Como tornar-sedoente mental - V

    A razão desta série de artigos foi explicada em números

    anteriores. Grosso modo, são um ensaio de solução

    do paradoxo dos psiquiatras: grande parte dos

    verdadeiros doentes (com diagnóstico a preceito) nãoaceitam tratar-se, enquanto um sem número de pessoas

    sem diagnóstico claro procura uma doença e o seu

    miraculoso tratamento. Espero, com este ensaio,

    contentar uns e outros, contribuindo assim para

    terminar com o jogo do gato e do rato que se travafrequentemente nos consultórios psiquiátricos. Dado

    porém o possível efeito prejudicial destes artigos,

    aconselho a que a sua leitura seja reservada a pessoas

    inteligentes e com espírito de humor.

    Terminamos esta série com as doenças sagradas da

    Psiquiatria: a psicose maníaco-depressiva e a esquizofrenia.

    Muitos entendidos dirão que estas doenças estão escritas

    nos astros (ou no destino, ou nos genes) e, portanto,

    não se pode fazer nada para as ter. Discordo. Todos osclínicos sabem que existem certas pessoas, tantas vezes

    familiares de doentes assumidos, que manifestam

    sintomas incipientes mas que, nada tendo feito para os

    agravar, passam uma vida normal e nem sequer se dão

    ao trabalho de se queixarem aos psiquiatras. Muitosoutros procuraram cedo os psiquiatras e fazem, desde

    o princípio, um tratamento correcto e sensato,

    arriscando-se a fazer igualmente uma vida normal.

    Evidentemente, não aderiram à minha proposta.

    Para os aderentes, estão aqui vários truques que aprendi

    com aqueles que, de um modo ou doutro, tiram partido

    da doença e não resistem a complicá-la. Admito que

    alguns deles tenham obtido uma preciosa ajuda de

    psiquiatras ou psicólogos, ou mesmo dos malentendidosda ciência do seu tempo. São coisas que acontecem,

    e também não é seguro que, hoje, saibamos tudo sobre

    o assunto. Mas parece-me que, com todas as

    oportunidades que a sociedade actual põe à nossa

    disposição, tanto nos circuitos legais como não legais,

    qualquer pessoa será capaz, se não de exibir uma

    verdadeira doença deste tipo, ao menos adquirir uma

    imitação. Por isso, leitor aderente, tenha fé e persistência.

    Como tornar-se maníaco-depressivo

    Lord Byron, Schuman, Beethoven, Balzac, Hemingway,

    William Faulkner, Virginia Woolf, Althusser, Edward Munch,

    Paul Gaugin, Antero de Quental. Já ouviu falar de algum

    destes génios criadores? Pois bem: todos eles tinham

    psicose maníaco-depressiva, e a associação entre a doença

    e a genialidade não é pura coincidência. A psicose maníaco-

    depressiva (que agora tem o estúpido nome de doença

    bipolar) não é só a doença dos génios: é também a doença

    que confere a genialidade criativa. Mas desiluda-se o

    leitor. Para lá chegar precisa de pertencer a uma família

    tocada pelo fogo, na feliz expressão de Kay Jamison, ela

    também portadora da doença.

    Provavelmente será uma família ilustre, já que a doença

    facilita a ascenção social. Como, porém, saímos de um

    país rural, algum dos seus antepassados terá sido, pelo

    menos, navegador ou emigrante. Se esse for o caso,

    prepare-se para passar por períodos da sua vida que

    em tudo se parecem, quer à hibernação dos ursos,

    quer à migração das aves. Torpôr, lentidão, apatia, umas vezes,

    energia, vivacidade e decisão, outras vezes. É bem possível que

    todos sejamos um pouco assim, ao ritmo das estações do ano,

    empolgados com a luz do astro Rei, dormentes com o calor do

    sol ou vibrantes com o ar gelado, perturbados com os equinócios

    da primavera ou do outono (o nascer da flor e o cair da folha),

    variáveis com as fases da lua. O problema é que, vá-se lá saber

    porquê , a lgumas pessoas da sua famíl ia exageram.

    Se abrir um livro científico sobre a psicose maníaco-depressiva, vai

    encontrar um rol de teorias que lhe falam de vários neurotransmissores

    que actuam em diversos receptores e assim por diante, uma coisa

    muito complicada. É verdade que isso é para perceber a actuação

    dos medicamentos e talvez para promover a sua venda. Mas, cá para

    nós, que não estamos interessados em comprimidos, mas sim na

    promoção da doença, o problema é bastante mais simples. Numa

    palavra, o que importa é desorganizar os ritmos do seu corpo.

    Este problema não tem que o afligir desde a infância. Pelo contrário,

    o fogo que vem dos seus genes pode fazer de si uma criança brilhante,

    criativa e cheia de actividade. Aquilo que se chama uma pessoa de

    sucesso. Por quanto tempo, é sempre difícil saber, pois a riqueza de

    espírito não dura sempre. O problema é esperar pela primeira

    depressão, que pode chegar aos 15 ou aos 70 anos. E isso depende

    muito da sua vida afectiva, da sua inserção social ou da sua profissão.

    Para chegar à doença, atrevo-me a dar-lhe um conselho: entre em

    roda livre, mas apenas a partir de certa idade. De facto, se você

    tivesse uma vida toda ela bem estruturada e cheia de responsabilidades,

    com horários a cumprir, com tarefas a desempenhar, refeições a

    horas, hora certa de se levantar, arriscava-se a nunca dessincronizar

    o seu relógio corporal nem ter tempo de se dar conta das suas

    angústias internas. Mas é mesmo isso que deverá fazer durante a

    sua infância e juventude, de modo a criar uma imagem de sucesso

    e uma personalidade activa e saudável, e como tal reconhecida pelo

    seu círculo de amigos e familiares, todos eles dispostos a apoiá-lo

    e a desculparem-lhe algumas excentricidades. Assim, tudo irá correr

    bem e, quando começar com problemas, todos reconhecerão que

    é por doença. Pelo contrário, se começasse em roda livre muito

    cedo, entraria facilmente na asneirada, passaria por muitas drogas,

    iria ter dificuldades em estabelecer a sua identidade, e o melhor

    diagnóstico a que poderia aspirar seria o de uma personalidade

    borderline. Coisa demasiado banal, nos dias que correm.

    O problema, portanto, não está em como entrar em roda livre,

    mas sim quando. Para que o seu caso seja típico, aconselho-o a

    fazê-lo na idade adulta. Entretanto deverá tratar da sua formação

    e até mesmo constituir família. Mas à cautela evite demasiadas

    responsabilidades e procure uma profissão onde tenha a possibilidade

    de cumprir os horários que lhe apetecerem. Ou então que lhe

    permita facilmente atrasos, faltas e baixas sem repercussão no seu

    rendimento económico. Depois aguarde por uma situação de

    tensão, conflito ou perda, daquelas que acabam por acontecer a

    toda a gente, contando que viva os anos suficientes. Isso pode

    ocorrer na área profissional, familiar ou afectiva. Qualquer coisa

    que, genuinamente, o desgoste. Mas isto fica entre nós porque, por

    mais grave que o problema tenha sido, você, habituado a resolver

    tudo, vai desvalorizá-lo inicialmente e não vai admitir que está

    triste por isso. Seria demasiado normal.

    Depois, é preciso esperar por uma altura propícia do ano, geralmente

    por volta dos equinócios. Se for para começar com uma depressão,

    aconselho-o o fim da primavera, quando todas as outras pessoas

    começam a renascer com o sol, a olhar para si próprios e para os

    outros. Nessa altura, e contra a corrente, é a ocasião de você se

    declarar inimigo do sol. Tranque-se em casa e feche todas as janelas

    e persianas. Se tiver de se levantar de manhã, faça o mais tardiamente

    possível essa tentativa derradeira, mas reconhecendo que a sua

    disposição para se levantar não é grande. Para isso, arrange qualquerpretexto menor, alguém que não o tratou como merecia, que não

    o cumprimentou, qualquer contratempo assim. Faça cara dechateado e verá que não é difícil arranjar pretextos destes.

    Durante o dia, e logo que possível, tranque-se em casa. Deite-se

    na cama (ou no seu sofá preferido) às escuras, com o objectivode dormitar. Se tiver coisas para fazer, vá-as adiando. Evite contactoscom outras pessoas e deixe de cumprir os compromissos. Até se

    pode entreter a pensar em todas as coisas que terá de resolverdurante a sua vida, e verá como é impossível viver. A solução é

    simples: dormir tanto quanto possível (acabará por descobrir que,apesar de ficar 24 horas por dia deitado, não lhe é possível dormir

    todas essas horas). Faça por isso durante o dia e, sobretudo, depoisde jantar, quando verificar que passou mais um dia vazio. É claro

    que depois, durante a noite, não tem mais sono. Fique a olhar parao ar ou, melhor, para as porcarias da televisão. Depois de um diasonolento, vai passar as noites em branco, mas é assim que vai

    conseguir dessincronizar o relógio do seu corpo.

    Este é apenas o início, porque o ciclo repetir-se-á dias a fio, e cadavez pior. Além de evitar os encontros banais, começa a faltar aos

    compromissos importantes. Esteja-se nas tintas para tudo, quealguém cuidará de si. Se alguém o criticar, melhor. Você sabe quemerece todos os insultos porque se transformou num trapo inútil,

    o ser mais desprezível da humanidade. Fique a curtir a sua culpa e aimaginar os castigos que merece. Perdido por dez, perdido por mil.

    Para si, só a cama, a escuridão, o nada. Muito perto da morte, queseria benvinda. Nem sequer já chora (secaram-lhe as lágrimas): só

    aquela expressão parada, aquela lentidão. Só de pensar num movimentosente um peso de toneladas, para lhe sair uma palavra tem de percorrer

    todo o dicionário. Comida? -Que trabalheira! Sexo? -Que estupidez!A vida? -Um peso impossível! -O futuro? -Um mar de calamidades.

    Ao sentir-se assim, já se encontra tão dessincronizado que o seuorganismo reage com a hibernação. Mas de vez em quando os seus

    astros internos sincronizam e pode sentir, subitamente, umafelicidade efémera. É bem possível que isso lhe comece a acontecer

    para o fim da tarde ou mesmo para a noite. Mas você, tão preocupadoque está com o seu sono, nem dá por isso. À mínima oportunidade

    põe-se a dormir, e o máximo que pode ter são bons sonhos. Paraisso vai mesmo procurar comprimidos para dormir. Mas quantomais os toma mais se dessincroniza, já que o seu organismo se

    habitua a eles e, assim que acaba o efeito, lá começa a insónia... ea angústia. O seu relógio corporal está agora caótico e você merece

    o diagnóstico de depressão major com melancolia. Para acrescentaro máximo da graduação (com componente psicótico), basta sair um

    pouco da realidade e supôr, por exemplo, que já apodreceu, que

    está mesmo morto e esperando pelo enterro (os especialistas

    chamam a isto delírio de Cotard).

    Os três parágrafos anteriores são muito pouco para descrever o

    verdadeiro martírio da depressão. O processo pode prolongar-se por

    meses ou mesmo anos, às vezes melhorando um pouco, na maior

    parte das vezes piorando, já que cada decisão que você tomar é

    sempre em seu desfavor. É claro que existe tratamento para isso, mas

    também não se decide a ir ao psiquiatra. Talvez se entretenha a passar

    por outros especialistas ou alternativos, tomando medicamentos

    irrelevantes ou insuficientes que farão a sua depressão arder em fogo

    lento. Assim vai ter tempo suficiente para pôr em causa toda a sua

    vida e, quem sabe, tomar decisões ruinosas. Algum dia se cansará, mas

    também lhe devo dizer que a verdadeira depressão não dura sempre.

    Se for ao psiquiatra e este o souber tratar (e você aceitar o

    tratamento), pode estar certo que ao fim de três semanas se sentirá

    bem melhor. Se não, terá de aguardar que a natureza (ou talvez os

    astros) dê por findo o seu sofrimento. Num caso e noutro, você

    acordará um dia de manhã, abrirá a janela do quarto e verá como

    é bonito o nascer do sol. Nesse dia sentir-se-á feliz e tudo lhe

    correrá bem. Achar-se-á estúpido pelo estado a que se deixou chegar,

    e pensará em recuperar o tempo perdido. Se continuar em roda

    livre (ou se conquistou esse estatuto com a depressão), pode pôr

    de imediato mãos à obra e preparar-se para a mania.

    Ela pode ou não acontecer. Se não for desta vez, pode esperarpara a próxima. Mesmo assim arrisco-me a dar-lhe alguns conselhospara que se torne maníaco o mais depressa possível. O importanteé manter-se em roda livre e fazer coisas que o entusiasmem. Seantes lhe receitaram antidepressivos, tome-os agora em grandesquantidades.Você renasceu: está satisfeito e fluente, torna-se umverdadeiro sedutor e não lhe é difícil levar os outros à certa. Poroutro lado, torna-se optimista e já não admite que as coisas lhecorram mal. Sente-se cheio de energia e está disposto a arriscar,seja no que fôr. Arrisque: faça projectos, apresente-os às outraspessoas, que elas não resistem ao seu dinamismo. Continue alevantar-se cedo, mas trabalhe muito, sobretudo pela noite fora.Ou seja: durma pouco e, se possível, passe noites em branco. Esteé o verdadeiro teste. Se, depois de umas noites em claro, se sentecom maior energia, você tem direito a uma verdadeira mania.

    Vai continuar a fazer projectos e propostas, e passa de uns paraos outros ao sabor das ocasiões. A sua alegria é contagiante: alegraos outros que, por sua vez, o alegrarão a si. Toma as decisões maistemerárias no que respeita ao amor, à profissão ou aos negócios.Até é natural que muitas coisas lhe corram bem. Se correrem mal,você nem tem tempo para pensar nisso, uma vez que está sempre apassar de uma para outra iniciativa. Fala sem parar, de tal modo que,apesar de uma boa memória, já não se consegue lembrar do que disseantes. Tudo isto sem dormir e, talvez, sem prestar nuita atenção àcomida. Roda livre! Em compensação, a sua energia, que esteveadormecida na depressão, é agora cada vez maior (paradoxos danatureza, ou a lei do pêndulo?). A sexualidade, também em roda livre,não conhece quaisquer freios. É a altura das grandes realizações, depôr em acção as mais escondidas fantasias. Pode fazer discursos àsmassas atónitas debaixo da sua janela, exibir-se como espontâneonum espectáculo de ópera ou tentar roubar um submarino da Marinha.

    Não se esqueça que muitas obras de grandes criadores foramrealizadas numa fase destas, depois de eles terem posto todo o seupassado em causa durante a depressão. É certo que pertenciam aoseleitos, mas estavam pouco interessados em serem doentes mentais.Por isso, mantiveram a sua mania em lume brando, procurando oapoio de psiquiatras, a crítica de amigos e, sobretudo, a disciplina quehaviam adquirido nos seus ofícios. Evitaram entrar em roda livre. Porfavor, leitor, se está genuinamente interessado nos objectivos destelivro, não siga estes exemplos. Faça coisas mais grandiosas e disparatadas,mude de assuntos, vá buscar o seu alimento à falta de sono. Rapidamenteentrará em tal confusão, que alguém o levará, apesar do seu protesto,ao hospital. Aí, não obstante as injecções que ocasionalmente lheconsigam dar, pode continuar o seu engraçado jogo do gato e dorato, ensaiando fugas, recusas, faenas, fintas e seduções. O pior é que,

    hoje, existem medicamentos realmente eficazes.

    O resto da sua carreira depende do modo como vai lidar com

    estes medicamentos. Imagine que existem pessoas que, tratadas

    adequadamente e aceitando o tratamento, apenas têm uma destas

    fases durante a vida que, em todos os aspectos, se torna normal

    ou bem sucedida. Não foi certamente para isso que leu este livro

    e, portanto, vamos ao resto. Por acaso até o aconselho a tomar,

    inicialmente, os medicamentos prescritos. Por um lado, pode ter

    a sorte de apanhar um psiquiatra mal avisado que lhe dê

    medicamentos que apressem o seu próximo episódio, depressivo

    ou maníaco. Por outro lado podem-lhe receitar um simples sal de

    lítio ou outro medicamento normalizador do humor (um anti-

    epiléptico, veja lá!). Com efeito, se tomasse certinho tais

    medicamentos, podia ficar livre de novos episódios. Mas você vai

    apenas tomá-los durante algum tempo para logo os largar

    subitamente. Parece que esta é a melhor maneira de ganhar

    resistência ao tratamento e dessincronizar mais o seu relógio, com

    o adicional bónus de mais episódios maníacos e depressivos.

    A altura de deixar os medicamentos é consigo. Mas pelo que

    conheço dos interessados, a melhor altura é quanto se aproximar

    a época de uma nova mania, talvez no outono. Provavelmente você

    já conhece os sinais de que ela está para chegar: levanta-se bem

    cedo com a sensação de que vai vencer o mundo, adora a luz e

    as cores, sente-se com energia para dar e vender, retoma os velhos

    projectos, trabalha muito, não consegue parar. Esquece-se das horas

    e, sobretudo, da hora de tomar os comprimidos. O seu optimismo

    fá-lo convencer de que já não precisa de se tratar, e aí está a sua

    sensação de (demasiado) bem estar para o provar. Largue a

    medicação e entrará, seguramente, num novo episódio maníaco.

    Depois, já se sabe: deixa de dormir, entra em roda livre, leva ao

    exagero as suas façanhas e alguém (até pode ser a polícia) o levará

    ao hospital para entrar de novo no jogo do gato e do rato.

    Os medicamentos, agora, podem já não pegar tão bem, e o ciclo vai

    recomeçar. É natural que da mania vire para a depressão, uma boa

    ocasião para se arrepender e envergonhar das tolices que fez, sentimentos

    estes sobrepostos à culpa e pessimismo próprios do estado depressivo.

    Agarra-se desesperadamente aos medicamentos antidepressivos,

    convencendo o seu psiquiatra que está na disposição de fazer uma

    medicação certa... até ver. Se ajudar com bebidas alcoólicas, pode baralhar

    mais o esquema dos tratamentos e dos seus altos e baixos.

    A evolução torna-se agora imprevisível. Pode ter um ciclo por ano

    (um episódio maníaco e outro depressivo), ao ritmo da translacção

    da terra, eventualmente com um ou outro ano de folga, ou pode

    funcionar ao ritmo da translacção da lua, com mais de 4 ciclos

    anuais. Naste caso tratar-se-á de uma mania de ciclos curtos, e pareceque o melhor para chegar a ela é abusar dos antidepressivos. Comtodas estas voltas e reviravoltas, a sua vida fai ficar feita num oito.

    Mas os serviços de saúde não se podem negar a cuidar de si

    sempre que seja necessário e nada mais lhe reste. Você está

    verdadeiramente doente.

    Em 1984, os americanos descobriram uma nova doença, a SAD

    (Seasonal Affective Disorder). Como tudo o que vem dos americanos,

    esta invenção tem muito que se lhe diga. SAD parece uma boa

    designação para marketing, mas não diz nada de novo. Primeiro

    porque não se trata de uma doença do afecto, mas sim do humor,

    como são todas as manias e depressões. Em segundo lugar, porque

    todas as manias e depressões têm alguma incidência sazonal. Do

    que se trata então? Pura e simplesmente, de uma depressão que

    ocorre mais frequentemente no inverno, sobretudo nos paises

    longe do Equador (acima e abaixo do paralelo 35). Como o nosso

    país está no limite, também nos pode calhar esta benção.

    Em boa verdade não sei se se trata de uma verdadeira doença ou

    de um estado banal, uma vez que muitos dos doentes envolvidos

    nos primeiros estudos foram convocados por anúncios de jornais

    onde se descreviam os sintomas: tristeza, irritabilidade, pessimismo,

    isolamento e desinteresse sexual, dores, fadiga, lentidão, hipersonolência

    e um especial apetite para hidratos de carbono, com o consequente

    aumento de peso. Como é típico da sociedade de consumo (à qual

    a psiquiatria não faz excepção) foi a oferta que determinou a procura.

    Por isso, se o leitor se sentir assim nos invernos frios e escuros,

    pode-se apresentar ao seu psiquiatra com o diagnóstico já feito.

    Mesmo assim, os sintomas são variáveis e em graus diversos. Decidir

    se se trata de uma doença autónoma, de um estado fisiológico de

    adaptação ao inverno ou de uma depressão clássica com alguns

    sintomas atípicos, pode ser um problema para o psiquiatra.

    Para o leitor praticante vai dar ao mesmo, uma vez que tem uma

    verdadeira oportunidade de tentar a carreira de maníaco-depressivo.Tanto mais que aos sofredores da doença afectiva sazonal lhes é dada

    a possibilidade de terem também episódios maníacos: um no fim do

    episódio depressivo, de Março a Abril, outro antes, de Setembro a

    Outubro. Se estudou bem a carreira dos maníaco-depressivos, já sabe

    como pode forçar os episódios de energia e euforia (e falta de sono).Até pode passar às depressões e manias clássicas, com episódios

    noutras fases do ano. Tudo depende da capacidade de dessincronizar

    o relógio corporal com as várias alternativas que lhe indiquei, incluindo

    a irregularidade da medicação que o psiquiatra fornece.

    De facto, os medicamentos para esta doença são os mesmos das

    outras manias e depressões, embora se especule muito sobre a

    omnipresente serotonina (neste caso ela estará ausente: dizem que

    a procura de chocolates e hidratos de carbono tem a ver com o auto-

    reabastecimento deste neurotransmissor). Mas a doença afectivasazonal tem mais um medicamento eficaz: a luz do sol durante a

    manhã. Várias empresas passaram a fabricar a luz do sol e a disponibilizá-

    la comercialmente de todas as formas e feitios. O último produto

    consiste num boné com uma lâmpada inserida por debaixo da pala.

    Engraçadíssimo e com um bonito design. O leitor pode encontrá-losna Internet se inserir o nome da doença em qualquer motor de busca.

    É possível que a doença afectiva sazonal não seja muito diferente das

    outras depressões e manias. Só que, para a depressão do inverno, não

    é necessário declarar guerra à luz nem trancar-se em casa de portase janelas. Nos paises perto dos polos onde elas acontecem, é o sol

    que nos faz negaça durante boa parte do ano. De qualquer modo, as

    investigações à volta da doença tiveram a vantagem de demonstrar

    que aquilo que comanda os nossos ciclos de energia e, portanto, as

    manias e depressões, são os astros (e sobretudo o Astro-Rei), emrelação com a sincronização do ritmo de produção das nossas

    hormonas. Nada que os antigos (e os astrólogos?) não soubessem.

    Embora tenha dado sugestões para iniciar uma e outra, é mais fácilchegar à depressão do que à verdadeira mania. Se já conseguiu teruma depressão e ela acabou por passar sem chegar à mania, tenteoutra depressão passado algum tempo. Se a primeira resultou, já

    aprendeu com a experiência e já sabe quais as melhores soluções quese adaptam ao seu caso. Estamos a falar de antecedentes, pretextos,

    modos de reagir da sua parte e dos outros. Este útimo pormenor émuito importante, pois nunca se sabe à partida qual vai ser a reacção

    dos outros. Podem-no tratar mal, o que talvez o ajude a melhorar(nunca se sabe) ou a piorar. Mas podem tentar tratá-lo da melhor

    maneira possível, o que pode agravar a sua culpa e portanto pioraro seu estado. Podem finalmente mudar completamente e submeter-se aos seus caprichos, o que lhe dá um enorme poder. Só depois de

    experimentar é que fica a saber o que pode acontecer.

    Acima de tudo já sabe qual é a altura do ano mais propícia à suadepressão, e pode automatizar as rotinas que o levam directamente

    ao agravamento. Há pessoas que aprendem a adivinhá-la através depequenas rotinas do quotidiano. Também já conhece a melhor maneira

    de evitar que o levem ao psiquiatra. Aconselho-o porém a ir lá ao fimde algum tempo para ver se, com os medicamentos, consegue obtera almejada mania. Há quem o consiga apenas por uns dias, depois de

    se tratar com os antidepressivos, mas ela é muito efémera e não chegaa ser uma verdadeira mania. Alguns especialistas podem, neste caso,

    conceder-lhe o diagnóstico de doença bipolar tipo II.

    Se não conseguir chegar à verdadeira mania, tenha persistência,voltando a tentar ano após ano. Enquanto lá não chegar, tem, pelomenos o direito ao diagnóstico de depressão unipolar recorrente.Mas não perca a esperança. Se tiver uma vida longa ainda pode láchegar. Há quem faça uma mania depois de 10 episódios depressivos

    ou apenas aos 80 anos. Se morrer mais cedo ficará apenas com adepressão unipolar. Mas repare que tudo é muito subjectivo. Para

    além do caso da bipolar tipo II, em que não fará grandes asneirasdurante a mania, senão, talvez, umas compras excessivas, é natural

    que, entre as depressões, você ande muito bem disposto e cheiode optimismo, com energia para fazer muitas coisas e talvez comgrande sucesso na vida. Até pode ser que se apaixone depois de

    uma depressão, mas quem é que pode chamar a isto mania? Você,de certeza, não se queixa, e desde que ninguém se queixe de si,

    nunca chegará ao psiquiatra nem ao diagnóstico.

    Chegar ou não ao diagnóstico de mania vai então depender da suaprofissão, do estatuto social, das pessoas que dependem de si (ou

    estão à espera do seu dinheiro), do modo como estavam habituadosa vê-lo (é por isso que aconselhei a iniciar a doença um poucotarde). Mas deixe lá. Depressão unipolar já não é mau, porque lheconfere algumas desculpas e regalias. Experimente, por exemplo,a frase chave: «não me contrariem porque senão fico doente». O

    que importa é que leve a vida o melhor possível e, se isso incluir

    sucesso e uma rara felicidade à custa de alguns episódios de

    sofrimento (que o desculpam socialmente), só lhe posso dar osparabéns. Mas se for essa a sua opção, é melhor conter entusiasmos

    exagerados e, sobretudo, não se dessincronizar com passagem denoites em claro ou horários estapafúrdios.

    Finalmente, há outra maneira de ter uma depressão unipolar,

    embora pouco sofisticada e muito próxima da distimia, quetrataremos no fim deste capítulo. Com a vida difícil e aceleradaque temos, existem muitas coisas que nos desgostam genuinamente.

    Basta ver um telejornal para constatar as tragédias diárias queteimamos em vencer. Mas não é só isso: durante a nossa vida

    existem perdas inevitáveis, que vão desde amores e pessoas queridasaté propriedades, expectativas, sonhos de uma vida ou o próprio

    amor próprio. Claro que isto é perfeitamente natural, e a naturezacolocou ao nosso dispôr os modos de resolver o problema. Aceitar

    a perda, é a primeira coisa. Ficar triste e chorar, a segunda. Como apoio dos outros, vamos aprendendo a defendermo-nos.Aprendemos que cada coisa que se perde pode deixar um vazio

    mas que com o tempo será substituído por outra coisa. Isto é amudança, a aquisição de maturidade e a essência da vida.

    Porém, se o leitor quer ser doente mental à força e não tem

    talento nem nascimento para qualquer outra doença, aproveiteesta oportunidade. Ao primeiro precalce deste tipo, não chorenem faça luto. Aproveite mesmo para não pensar muito no assunto,

    evitando falar com amigos ou parentes. Em vez disso, dirija-se deimediato a um psiquiatra (ou mesmo a um clínico geral) daqueles

    que demoram menos de 10 minutos por consulta. Conte-lhe comose sente e, se ele estiver renitente, acrescente que já pensou em

    morrer (o que pode ser verdade). Sai de lá com uma receita deantidepressivos e um diagnóstico de depressão tout court. Temtambém a possibilidade de obter uma baixa ou mesmo uminternamento, aproveitando esse facto para dessincronizar os seusritmos ou, quem sabe, aprender qualquer outra doença. Em geral,

    melhora ao fim de algum tempo, quando a perda for reparada e,sobretudo, quando largar os medicamentos e voltar à vida normal.

    No entanto, um só episódio não chega para o diagnóstico de depressãounipolar recorrente. Por isso, tem de aproveitar o próximo contratempopara dar os mesmos passos. Também, isso torna-se muito mais fácil,

    porque a única coisa que aprendeu para se defender da tristeza foirecorrer ao circuito médico. Outros ouvem música, lêem ou escrevem,trabalham mais, dedicam-se a outras pessoas, mudam de vida, fazem

    compras, arranjam-se melhor, mas você deita-se a dormir e tomacomprimidos. Tenho apenas um aviso: se quiser atingir este objectivo

    mórbido, nunca vá ao psicólogo. Como ele não pode receitarcomprimidos, até lhe podia ensinar qualquer uma destas defesas.

    Tanto na depressão como na mania, a sua energia anda alternadamente

    para cima e para baixo. Por isso são ambas bipolares. Mas já que

    estão definidas as depressões unipolares, porque não maniasunipolares? Às tantas, tudo depende do que se considera normal.

    Se você for sempre uma pessoa tristonha, circunspecta e pessimista

    (realista e lúcida, como dizem alguns), qualquer periodo de entusiasmo

    (amoroso?) lhe dá direito à posse de, pelo menos, um estado

    maniforme. Os obsessivos e os fóbicos não estão livres disso.

    Fora isto, o problema é que a mania é mais difícil de atingir do que

    a depressão. Se pertencer, verdadeiramente, a uma família eleita,

    talvez consiga entrar directamente numa mania depois de umas

    noites sem dormir ajudado por doppings ou, simplesmente, café. Émuito possível que isso aconteça enquanto anda a estudar, portanto

    bastante cedo. Neste caso, as suas ideias da juventude podem-no

    levar a inventar ideologias pouco habituais, e podem-no tomar como

    esquizofrénico. Outras vezes, mistura-se a tristeza e a euforia, a

    irritabilidade e o bom humor, o pessimismo debitado num discursotorrencial, levando àquilo que se tem chamado mania mista.

    Serve isto para dizer que a mania unipolar, para além de rara,

    também é geralmente atípica. Por isso, não estou muito seguro

    das receitas que lhe dou para a provocar. Pode mesmo acontecerque ela ocorra sem fazer nada por isso (por exemplo, depois de

    um traumatismo craniano acidental) e sem que eu nem ninguém

    saiba porquê. O cérebro ainda está numa caixa fechada que não

    se abre muito facilmente. É certo que hoje existem os meios

    imagiológicos para o estudar, mas convenhamos que não é fácilconvencer um maníaco a meter-se no túnel de uma câmara de

    positrões e estar ali quietinho por vários minutos. De qualquer

    modo, se o leitor quiser passar pelas delícias de uma mania unipolar,

    experimente embriagar-se. Dizem que é o que há de mais parecido.

    Existem hoje no mercado dezenas de antidepressivos diferentes os

    quais, naturalmente, têm de ser vendidos. Por isso também existem

    diversos items da DSMIV que contemplam depressões. Um dos maisabrangentes, e portanto mais fácil de obter, é a distimia, antigamentechamada depressão neurótica. Portanto, se o leitor não tem talentopara qualquer uma das outras secções, e quer à viva força ser doente

    mental, escolha esta variante. Aliás, também a pode atingir depois

    de estar farto das outras carreiras, como a obsessiva, a agorafóbica,

    a da personalidade evitante ou do transtorno de somatização. Até

    é bem possível que um psiquiatra apressado esteja disposto a

    conceder-lhe este diagnóstico em vez de qualquer outro. Com o

    apoio da literatura, ele sabe que o tratamento é simples - comprimidos

    - mas a doença é crónica. Ou seja: você tem de ir várias vezes ao

    seu consultório buscar a receita, embora nunca fique melhor. Talvez

    uma boa designação para esta doença seja «tubo de ensaio», uma

    vez que vai testar os mais diversos medicamentos (em geral as

    últimas novidades do mercado e, portanto, os mais caros).

    Já falámos da distimia aquando da variante da depressão unipolar,

    porque o início é muito semelhante: à menor contrariedade, médico

    com ele. Só que, no caso da distimia, tem de começar muito cedo

    e nunca mais vai largar os medicamentos nem retornar à vida

    normal. E muito menos vai mudar de vida (a não ser a mudança

    para a vida doentia). Por isso, esta especialidade está especialmente

    indicada para quem se meteu em becos sem saída (mais

    frequentemente mulheres), por exemplo, um casamento insatisfatório

    ou qualquer outra dependência social de que não consegue sair.

    Também pode acontecer que, em jovem, tenha feito expectativas

    de vida irrealistas que o quotidiano acabou por frustrar. Ou então,

    que tenha descurado o treino das capacidades mínimas para

    qualquer actividade autónoma relevante. Em qualquer destes casos

    fica presa das suas limitações, ser doente é a única profissão possível,

    e a ida ao médico a única distracção aceite por todos.

    Trata-se pois de uma carreira simples (para si e para o médico que

    o tratar) que pode ser feita sem grande esforço. Ou antes, a essência

    da carreira é não fazer qualquer esforço e transferir toda a

    responsabilidade para os médicos e seus medicamentos. Eles vão

    experimentando um após outro, e pode juntar em casa uma

    verdadeira farmácia. Alguns vão causar novos problemas e até pode

    ter direito a novas doenças organizadas no ambiente apressado do

    médico dos 5 minutos. Até pode ter, lá pelo meio, uma depressão

    mais profunda, com a qual ganhará o direito de ter uma depressão

    dupla. Com pouco esforço ganha medicamentos, atenção, atestadose talvez subsídios. É o melhor que pode arranjar, pois a carreira é

    disponível para quem já não tenha mais nada a ganhar com a vida.

    Repito um conselho final: se o aconselharem a ir a algum psicólogo

    ou um médico sem fé nos medicamentos e que prefira conversar

    sobre os seus problemas, fuja deles. Podiam-lhe propôr outros

    diagnósticos, sugerir terapêuticas alternativas, ajudá-lo a mudar de

    vida. Só ia arranjar problemas com a sua família e talvez tivesse de

    gastar algum dinheiro extra (por exemplo, para comprar alguma

    coisa agradável, mudar de casa, reiniciar estudos, passar férias ou

    inscrever-se na ginástica). É verdade que isto ficaria talvez mais

    barato do que os medicamentos que consome mensalmente. No

    entanto, os medicamentos sempre são subsidiados pelo Estado, e

    as outras coisas não. E a quem, senão ao Estado, compete tomar

    conta de si? No fim de contas, ele é o grande responsável pela vida

    complexa e difícil a que você não se conseguiu adaptar.

    BIBLIOGRAFIA

    Algumas auto-descrições, nomeadamente as de Althusser e Kay

    Jamison, renovaram recentemente o interesse pelas psicoses

    maníaco-depressivas, bem como pelos aspectos mais interessantes

    desta patologia. O mesmo se pode dizer do filme de Mike Figgis,

    Mr. Jones (Tristar pictures), protagonizado por Richard Gere. A

    lista seguinte inclui as auto-descrições e alguns textos de actualização

    ou apoio a alguns aspectos realçados no texto.

    American Psychiatric Association (1996): DSM-IV Manual de Diagnóstico e Estatísticadas Perturbações Mentais. Lisboa: Climepsi Editores.

    Bechman E. E., Leber W. R. (1995): Handbook of Depression, 2nd. Ed. New York: TheGilford Press.

    Halaris A (1987): Chronobiology and Psychiatric Disorders. New York: Elsevier.

    Healy, D., Williams J.M.G. (1989): Moods, Misattributions and Mania: An Interactionof Biological Factors inthe Pathogenesis of Mania. Psichiatric Developments, 1: 49-70.

    Jamison, K. R. (1993): Touched With Fire: Manic-Depressive Illness and the ArtisticTemperament. New York: The Free Press.

    Jamison, K. R. (1996): Uma Mente Inquieta . São Paulo: Martins Fontes.

    Madden, P.A.F., Heath, A.C., Rosenthal, N. M. (1996): Seasonal Changes in Mood andBehaviour: The Role of Genetic Factors. Arch. Gen. Psychiatry, 53: 47-55.

    Pio-Abreu, J. L. (1997): Seasonal Variation in Bipolar Disorder (Letter), Brit. J. Psychiatry,170: 483-484.

    Pio-Abreu, J. L., Biscaia, P. (1980): Luto Patológico: Algumas Considerações a Propósitodo Tratamento de um Caso, Psiquiatria Clínica, 1:33-37.

    Pio-Abreu, J.L., e Pires, I. C. (1985): Incidência Sazonal das Psicoses Afectivas Bipolares,Psiquiatria Clínica, 6:181-8.

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    Wehr, T. A., Rosenthal, N. E. (1989): Seasonality and Affective Disorders. Am. J. Psychiatry,146: 829-839.

    Wright, J. B. D. (1993): Mania Following Sleep Deprivation. Brit. J. Psychiat., 163: 679-680.

    Pese o facto de a esquizofrenia ser um saco onde se pode metermuita coisa diferente, devo alertar o leitor que, mesmo assim, nãoé esquizofrénico quem quer. Ter a capacidade de vir a seresquizofrénico depende de uma constelação de acontecimentosque os cientistas ainda hoje procuram. Essa constelação pode irdesde o nascimento nos meses frios, ter problemas no parto,suportar viroses precoces, até à ocorrência casual de uma certaconstelação de genes. Como andamos a descobrir os genes, devemosdar maior importância a esta última hipótese. Mas não quero iludiro leitor: não vale a pena andar à procura de esquizofrénicos nafamília, porque os genes em causa são vários e, só por si, nãochegam. Mesmo que tivesse os genes iguaizinhos a um esquizofrénico(um clone seu ou um gémeo monozigótico), as suas hipóteses deter a doença estariam apenas entre 30 e 40%, se tirarmos a médiadas várias opiniões desencontradas sobre o assunto.

    Como descobrir então que você pertence aos eleitos? Muita genteanda à procura disso, mas em boa verdade ninguém sabe ao certo.Talvez seja melhor ir lendo as novidades que as revistas trazem.Se levar a sério essa dos genes, comece por olhar para a sua árvoregenealógica, não necessariamente à procura de um esquizofrénico(deve saber como é difícil sairem dois pokers em jogadasconsecutivas), mas antes de alguém bizarro que teime em ser muitoespecial e diferente dos outros, um desconfiado crónico (leia asecção dos paranóides), uma pessoa de difícil trato ou, talvezmesmo, um génio empreendedor. Numa palavra, o que tem deencontrar na sua família é uma dessas pessoas cujo comportamentoe maneira de ser baralhe qualquer um que se encontre com ele.

    Olhe depois para si próprio e verifique se tem dificuldades em contactarcom os outros por nunca saber em que onda eles estão, se a suaconcentração é trabalhosa, se nunca percebe bem o que os outrosquerem dizer. É possível que o seu cérebro não seja bem igual aodeles (imagine que, enquanto o cérebro dos outros é monstruosamenteassimétrico, o seu tem uma simetria perfeita), e que você tenha deter muito trabalho para chegar aos mesmos resultados. Com todoesse trabalho, até se pode tornar um pequeno génio cheio deoriginalidade. De facto, é possível que desenvolva algumas habilidadesadicionais, como reparar em pormenores que ninguém notara antesou saber usar indistintamente as duas mãos para trabalhos que osoutros só fazem com a mão direita (ou esquerda, se forem canhotos).

    O que importa saber é se pertence àquelas 3 em cada 100 pessoasque podem contrair esquizofrenia. Mas isso não chega porque,destas três, só uma delas o consegue. É preciso muito mais trabalho,e é disso que nos vamos ocupar a seguir. Talvez não seja mau revera carreira dos paranóicos porque, no caso de estar premiado coma constelação necessária, esse pode ser um caminho directo paraa doença. Mas existem outras alternativas.

    Nota: os critérios da DSMIV para as perturbações do humor (depressõese manias) são uma grande confusão; nestes quadros fizémos o nossomelhor para os simplificar, enquanto no texto esclarecemos a suarelação com a nomenclatura psiquiátrica mais c lássica.

    A. Actualmente, ou muito recentemente, um episódio maníaco.B. Existiu previamente, pelo menos, um episódio depressivo

    major, episódio maníaco ou misto.C. Os episódios não se sobrepõem a esquizofrenia,

    per tu rbação esqui zo-a fect i v a , per tu rbaçãoesquizofreniforme ou outra perturbação psicótica.

    Objectivos a atingir para a Perturbação Bipolar I,Episódio Maníaco recente (DSMIV)

    VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001

    Controvérsias

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    Controvérsias

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    Controvérsias

    Antes de mais deve estar ciente de que os resultados raramenteaparecem antes dos 18 anos e talvez bastante mais tarde se for

    mulher. Até lá é preciso preparar o terreno. O problema é queninguém sabe exactamente como. Possivelmente, o mais seguro écultivar o isolamento, contactar com o menor número possível de

    pessoas e aprender o menos possível da vida. Deve-se cumprir oque os adultos querem, nomeadamente as obrigações escolares, para

    poder manter a ideia de ser uma pessoa muito especial e, por isso,justificar a falta de envolvimento em actividades lúdicas com os

    amigos. Uma coisa importante é, para já, ter uma vida rotineira demodo a não se confrontar com situações imprevisíveis e tumultuosasonde tenha de pôr à prova as suas emoções. Isso ficará apenas para

    pouco antes do início da doença (uma coisa de cada vez).

    Portanto, para já, vida rotineira e pacata. Fique limitado ao lar, ondeterá muitas oportunidades de se iniciar num tranquilo jogo demal-entendidos. Se a sua família está preparada para o ajudar na

    carreira, melhor. O esquema é o seguinte: ninguém se entendeentre si, mas todos supõem que se entendem maravilhosamente

    e que o vosso pequeno mundo é o melhor de todos. Por exemplo,se você está aborrecido com alguma coisa, a sua mãe pode-lhedizer «filho, tu estás mas é contentíssimo», e di-lo com tal convicção

    que você acredita que está contente, e começa a aprender a viverem dois mundos: o da linguagem falada e lembrada, e o dos seus

    sentimentos caóticos e ocultos. E tudo vai bem, por enquanto.

    Fora de casa, nada de contactos nem confusões, tirando talvez as

    estritas obrigações escolares e, ainda, o contacto com um grupofechado de amigos onde possa fumar umas passas de haxiche (algumas

    drogas, como haxiche, a cocaina, o LSD e as anfetaminas facilitam-lhea carreira, mas as duas últimas podem-lhe proporcionar umaesquizofrenia de empréstimo, vivida sem honra nem glória). Sobretudo,

    nada de namoros e, muito menos, contactos físicos com o outro sexo.Sabe como essas situações podem ser emocionantes, mas você deve

    esforçar-se por nunca aprender a lidar com emoções. Pode apenaspermitir-se a uma ou outra paixão platónica, quanto mais impossívelmelhor. Por exemplo, imagine conversas com o seu amor ou escreva

    cartas que mete na gaveta para se ir deleitando com as respostas queele (que, necessariamente, nunca saberá de nada) lhe poderia escrever.

    O importante é que tudo isto se passe apenas na sua cabeça e quevocê se inicie na proveitosa arte de falar de si para si.

    Falar de si para si é o próximo grande exercício. Para além de umamor imaginado, aconselho-o a fazer uma viagem sozinho pelos

    vários ocultismos que dão sempre a possibilidade de fazer asinterpretações que lhe aprouver. Temos por exemplo a cabala:

    transformam-se as letras das palavras em números, e estes noutras

    letras que formam novas palavras. Por este processo pode adivinharo que quer que seja, e torna-se mestre do universo. Vai ver que as suasintuições lhe aparecem sempre confirmadas, e tudo estava escrito nosastros. Leia muito sobre o assunto, misture tudo, e tire as suas própriasconclusões. Como, nos mal-entendidos familiares, já está habituado àsinterpretações aleatórias, não lhe vai ser difícil. Procure sobretudo ascoincidências que encontrará em pequenos pormenores retirados docontexto (a preparação para esta carreira implica que se estejaborrifando para os contextos). Se assim prosseguir, terá sempre aconfirmação das suas ideias, por mais absurdas que elas sejam. Podecriar um novo sistema oculto ou, quem sabe, uma nova religião.

    O objectivo de tudo isto, é criar curto-circuitos no seu cérebro que,mais dia menos dia, lhe façam fundir alguns fusíveis. Em boa verdade,se cumpriu as indicações anteriores, você já entrou em curto-circuito.Ter uma ideia nova e confirmá-la de imediato é um exercício apaixonanteque fará surgir novas e estranhas ideias que confirmará de seguida.Haverá quem diga que isto é entrar em autismo, mas não lhe ligue.Aliás, o seu exercício é tão apaixonante que não precisa de aprendermais nada nem falar com ninguém. E é bom não falar, porque não ocompreenderão ou põem-se a desdizê-lo. Estão a começar a ficarcontra si. Afaste-se deles, e não haverá mais resistência. As suas ideiascom as confirmações que desenvolverá, você consigo próprio, já seinstalou no curto-circuito. Mas falta-lhe fundir os fusíveis, como é queo vai conseguir? -Só se encontrar alguma energia adicional.Essa energia, espero que a encontre por volta dos 18 anos, quandoa sua personalidade estiver amadurecida e a sua visão do mundotambém. Pode aproveitar uma saída do seio da sua família, umadeslocação para outra terra ou uma grande paixão. Se as três coisasjuntas se propiciarem, ainda melhor. O que importa é, finalmente,levar as emoções ao rubro. Nesse momento, tudo começará a tornar-se estranho, e você entrará num mundo kafkiano. Já não entenderáninguém, nem ninguém o entenderá a si. Mas é você que está nocentro de tudo. Nada será mais como era antes, e tudo lhe diz agorarespeito. A coincidência de pormenores será turbilhonante. Descobriráverdades absolutas que só você conhecerá. As palavras e as coisastransfiguram-se e mudam o significado para lhe confirmarem essasverdades. As pessoas já não falam do mesmo modo, mas por sinaiscodificados que só você compreende. Pode mesmo ouvi-las falarem

    de si por processos estranhos. Todo o mundo gira em sua volta.

    Se deixar as coisas evoluirem, novos acontecimentos estão para

    surgir. O mais engraçado (engraçado para os que estão de fora,porque quem passou por elas diz que não tem graça nenhuma) é

    que o seu eu fica dividido. Pode sentir-se dentro do seu corpo, mas

    simultaneamente encarnando outra pessoa qualquer ou talvez mesmo

    um animal. O seu pensamento, os seus gestos, a sua escrita ou mesmo

    as suas vísceras passam a ser controladas por potências ocultas. Temde fazer um grande esforço para entender isso, mas talvez lhe ocorra

    que, assim como você se passou para outra dimensão, talvez também

    os outros o controlem por esse processo. Se tal lhe ocorrer,

    rapidamente confirmará essa nova verdade, e não se cansará de a

    apregoar. No fim de contas, conseguiu ser o centro do universo.

    As emoções que, durante tanto tempo, foram evitadas, encontram

    agora a oportunidade para se exprimirem copiosamente. Mas são

    de tal modo inadequadas que você, em desespero, fará provavelmente

    alguma asneira, e alguém o levará ao hospital. É a altura de ospsiquiatras lhe devolverem o diagnóstico de surto esquizofrénicoparanóide e montes de comprimidos e injecções.

    É claro que você, a única pessoa no mundo a descobrir a verdade,

    não tem nada que tomar os medicamentos. Se os tomasse, poderiadescobrir que tudo não passara de uma espécie de sonho. Mais

    ainda: se os tomasse muito precocemente, poderia mesmo acontecer

    nunca passar pelas delícias do surto esquizofrénico. Lembre-se

    que os neurolépticos são a grande arma contra esta doença e que,

    quanto mais cedo e mais regularmente os tomar, menor aprobabilidade de continuar com ela. Portanto, vá de evitá-los a

    todo o custo. Argumente com os efeitos secundários (rigidez dos

    músculos, sonolência, aumento de peso) e aproveite para ir

    queimando mais alguns fusíveis. Se o conseguir, nunca mais ficará

    como dantes, e novos surtos estarão no horizonte da sua vida.

    Existem tantos sintomas de esquizofrenia que se tem de optarpor um determinado conjunto. Não se sabe se isso é devido àdoença, ao doente ou a quem o avalia. Se quiser optar pela formahebefrénica (os americanos chamam-lhe desorganizada) temque omitir as verdades que concluiu, bem como as vozes que o

    perseguem (que o seu psiquiatra classificará de alucinações). Pelo

    contrário, você deve evidenciar a confusão que vai nos seuspensamentos e os malentendidos dos seus afectos. Não sei dar-

    lhe as receitas para o conseguir, mas talvez uma condição importante

    seja começar muito cedo, bem antes dos 18 anos.

    A regra é estabelecer uma tal confusão na sua cabeça que nãopossa chegar a conclusão nenhuma nem a qualquer conversa. Vai

    ficar a olhar perplexo para os outros, talvez a repetir o que eles

    dizem, enquanto curte um confuso turbilhão de pensamentos. Se

    lhe ocorre dizer alguma coisa, aquilo que sai é uma salada de

    palavras sem qualquer coerência entre si. A sua cara fica com umar aparvalhado e os seus sentimentos são uma verdadeira lotaria.

    É evidente que tudo aquilo que faz é também disparatado.

    Esta forma está recomendada aos perfeccionistas, pois há quem diga

    que é a mais genuina forma de esquizofrenia. De facto, a formaparanóide tem muito a ver com as paranóias (embora ocorra mais

    cedo, mais súbita e definitivamente, e com mais sintomas) e a catatonia

    pode estar, como veremos, misturada com outras coisas. Tem no

    entanto um pequeno problema: é que o seu comportamento dá

    demasiado nas vistas, pelo que rapidamente o levarão ao médico,e você, de tão confuso que está, fica sem forças para fugir à medicação.

    Há quem diga que a forma catatónica está a reduzir de frequência.No entanto, o quadro catatónico também está disponível para osmaníacos graves. Neste último caso, o segredo é negar-se a tudo,

    incluindo beber água, tal como explicarei mais adiante.

    Se quiser aderir a esta raridade, talvez seja melhor jogar mais com ocorpo do que com as palavras. Não é má ideia ter vocação de bailarino.

    Assim, você sente todos aqueles controlos que acontecem com os

    paranóides e hebefrénicos, mas vai defender-se com as posturas doseu corpo. Se dizem mal de si, erga-se e fungue. Se a voz não é a sua,oriente o pescoço e a cabeça para a voz lhe sair mais límpida. Secontrolam o seu pensamento, incline-se para a esquerda. Se lherepuxam os intestinos, incline-se para a direita... Claro que isto sãomeras sugestões, porque a variedade é infinita. Você pode adoptar asposturas mais bizarras, sendo essa a melhor maneira de mostrar aosoutros que está realmente passado. E fará ainda a alegria dos psiquiatraspor acertarem tão facilmente no diagnóstico de esquizofrenia catatónica.

    Uma condição é não falar, para não mostrar o turbilhão que lhe vai naalma (nem você talvez o conseguisse descrever). Assim, você cala-se e,para acompanhar o mutismo, também pode parar o seu corpo. Transforme-se numa verdadeira estátua! Mantenha-se assim por horas ou dias. Sealgum psiquiatra o mudar de posição, mantenha a nova posição para queele tenha a felicidade suprema de encontrar um caso de «flexibilidadecérea». Para além disto, não fará nada do que os outros lhe pedem, já quevocê está assim para se defender de tudo e de todos. Resistência passiva!

    Claro que os outros se preocupam com as suas atitudes impossíveise, sobretudo, com o facto de estar para ali, sem fazer nada e semcomer nem beber. Mas é a ocasião para levar um pouco mais longea sua resistência passiva: não coma nem beba. Assim, fará umadesidratação hipertónica cujo grande sintoma é a irritabilidade. Sóas crianças, os velhos dependentes e, vamos lá, você, conseguemesta proeza, já que todos os outros sempre encontram alguma águaquando têm sede. Mas você, que baralhou a voz dos seus neurónios(o sódio e os outro iões são a voz dos neurónios) não sente já sedenem cansaço, apenas a irritabilidade que o vai levar a uma agitaçãodestrutiva incessante. Vai ter direito aos seus momentos de violência.Mas cuidado, porque os antigos chamavam, a este quadro, catatoniamortal. Se ninguém o apanhar e lhe meter injecções e soro pelasveias, o melhor é emborcar uma garrafa de água na primeira janelade lucidez. Se não, talvez lhe reste o electrochoque.

    Pode dar-se o caso de você nunca chegar a ter um surto francamente

    psicótico, daqueles que descrevi até agora (paranóide, hebefrénico

    ou catatónico). É possível que isso aconteça porque não se empenhou

    suficientemente na carreira (pode-se ter esquecido, por exemplo,

    de dar largas à expressão das suas emoções no momento propício),

    apesar de ter nascido sob a constelação adequada, ou porque,

    apesar de um empenhamento extremo, não nasceu sob a constelação

    adequada. Num caso ou noutro pode ter direito a uma medalha

    de segunda ordem, a de personalidade esquizot íp ica.

    A ideia não é má, porque não é carne nem é peixe. Torna-se uma

    pessoa singular, um pouco excêntrica, sempre do contra, com ideias

    tão estranhas que podem ter mais audiência que o jornal Insólito, faz

    o que lhe apetece, não conta com os outros nem precisa deles, mas

    a sua vida lá vai andando. Enquanto for jovem, pode mesmo ser apreciado

    por quem vir em si um artista ou um profeta. Pode viver à conta da

    família ou de expedientes ocasionais. Pode vestir a pele de um sem

    abrigo e dirigir-se à assistência social. Vai ficar admirado porque os

    outros se preocupam mais consigo do que você consigo próprio. E se,

    algum dia, tiver problemas, sempre pode exibir a desculpa da doença.

    Se ganhar esta identidade, pode juntar-se ao clube das pessoas estranhas.

    Encontrará muitos outros que não fizeram nada por isso, mas apenas

    nasceram assim. Alguns podem até ser sábios ou cientistas reconhecidos,

    muitas vezes superdotados em lógica, mas que partilham consigo a

    característica de não precisarem das outras pessoas, mesmo das do

    outro sexo. Será um clube de pessoas interessantes mas muito

    monótono nas suas reuniões. Imagine um clube de pessoas parecidas

    por serem deliciosamente bizarras, mas em que cada um se está nas

    tintas para os outros, e principalmente para as bizarrias alheias.

    Desde o princípio deste capítulo que avisei o leitor de que nãopodia ser esquizofrénico quem quisesse, apesar da esquizofrenia

    ser um grande saco onde se pode meter muita coisa. Vamos agoratratar deste saco, especialmente útil para os não eleitos. De facto,

    o diagnóstico de esquizofrenia, ainda que duvidoso, pode-se obterde diversas maneiras. Tudo vai depender da tolerância do psiquiatra

    que o observar. Houve mesmo um grupo de jornalistas que foramà consulta de psiquiatria queixar-se de que ouviam vozes eacreditavam em qualquer coisa bizarra. Foram logo internados e

    tratados, mas tiveram mais dificuldade em sair. O certo é que,quando começaram a dizer que eram jornalistas e que apenas

    foram testar os psiquiatras, mais sintomas acrescentavam ao seurol. O leitor pode tentar a mesma experiência, mas tenha muito

    cuidado: quem não quiser ser lobo não lhe deve vestir a pele.

    Outra possibilidade é seguir, enviezadamente, pela carreira dosparanóicos. Haverá sempre psiquiatras apressados que estão dispostosa não dar ouvidos às suas razões e a passarem-lhe o rótulo de

    esquizofrénico. Isso não importa para eles (e, para si, talvez tambémnão) porque o tratamento farmacológico vai dar no mesmo. E, a

    propósito de fármacos e drogas, não se esqueça que elas semprepodem alterar os seus neurónios e produzir-lhe sintomas que, à

    falta de melhor, podem entrar no saco da esquizofrenia. Por exemplo,o LSD tem efeitos imediatos, enquanto que as anfetaminas osproduzem a longo prazo. O recurso é especialmente útil para quem

    tiver qualquer outro quadro mórbido, mas queira também obteruma pós-graduação nesta área, embora limitada no tempo.

    Existem de facto sub-especialidades da esquizofrenia que se prestam

    a tudo. Uma delas é a chamada perturbação esquizo-afectiva, umaespécie de mistura entre esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva.

    Outra é a perturbação esquizofreniforme, outra a psicose delirante.Algumas pessoas chegam a qualquer uma destas situações semdarem por isso nem se procuparem com a carreira. Há coisas, no

    cérebro, que aparecem por acaso e, muitas vezes, ninguém as chegaa descobrir. Mas se quiser baralhar os psiquiatras, uma vez iniciada

    qualquer carreira, ou mesmo sem ela, ingira irregularmente, masem altas doses, os medicamentos que eles lhe disponibilizam, bem

    como as drogas que consegue arranjar por aí. Faça-o em segredo.E, segredo por segredo, não se esqueça de ir esvaziando

    secretamente as garrafas de whisky escondidas no seu bar.

    Se obtiver um destes diagnósticos, pode estar seguro que o psiquiatra

    já dificilmente se entende com o seu tratamento. Por isso, tem direitoa uma constelação caótica de medicamentos que ajudam a baralhar

    mais os seus neurónios. Se quiser, vá-se passeando de médico em

    médico, só para ver o desatino que grassa entre os entendidos!

    BIBLIOGRAFIA

    A bibliografia sobre as esquizofrenias é imensa e crescente. O

    tema é desafiante mas resiste ao entendimento. De vez em quando

    surgem lampejos de descoberta, mas logo se volta à costumadaignorância. Por isso não exultamos excessivamente com a mais

    recente investigação imagiológica patrocinada pelos neurolépticos

    da nova geração. Por ser desnecessário incluirmos aqui uma longa

    lista das diferentes linhas de investigação actual, remetemo-nos a

    autores clássicos, por vezes bastante esclarecedores mas poucolidos, bem como a textos de revisão recente, sobretudo os que

    apoiam algumas ideias expostas.

    Bleuler, E. (1950): Dementia Praecox or The Group of Schizophrenias. New York: InternationalUniversity Press.

    Conrad, K. (1971): La Esquizofrenia Incipiente: Intento de un Análisis de la Forma delDelírio, Ed. Alhambra, Madrid, México.

    Haley, J. (1965): El Arte de ser Esquizofrénico, Voices. Repr. in Tácticas de Poder deJesucristo y Otros Ensayos. Buenos Aires: Ed. Tiempo Contemporâneo, pp.147-177.

    Hall, W., Solowij (1997): Long Term Cannabis Use and Mental Health. Brit.J. Psychiat.,171: 107-108.

    Kales, A., Stefanis, C. N., Talbott, J. (1990): Recent Advances in Schizophrenia. New York:Springer Verlag.

    Mayer-Gross, Slater e Roth (1960): Psiquiatria Clínica. São Paulo: Editora Mestre Jou.

    Pio-Abreu, J. L. (2000): Clínica e Investigação da Esquizofrenia: Um DesafioContemporâneo. Saúde Mental, II, 3: 9-15.

    Wyatt R. J. (1995): Early intervention for schizophrenia: Can the course of the illnessbe altered?, Biol. Psychiatry, 38: 1-3.

  • VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001

    42

    VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001

    Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias Controvérsias

    J. L. Pio Abreu

    Médico Psiquiatra dosH.U.C.

    Professor da Faculdadede Medicina daUniversidade deCoimbra

    Como tornar-sedoente mental - V

    A razão desta série de artigos foi explicada em números

    anteriores. Grosso modo, são um ensaio de solução

    do paradoxo dos psiqu iatras: grande parte dos

    verdadeiros doentes (com diagnóstico a preceito) nãoaceitam tratar-se, enquanto um sem número de pessoas

    sem diagnóstico claro procura uma doença e o seu

    miraculo so trata mento. Espero, com este ensaio,

    contentar uns e outros, contr ibuindo assim para

    terminar com o jogo do gato e do rato que se travafrequentemente nos consultórios psiquiátricos. Dado

    porém o possível efeito prejudicial destes artigos,

    aconselho a que a sua leitura seja reservada a pessoas

    inteligentes e com espírito de humor.

    Terminamos esta série com as doenças sagradas da

    Psiquiatria: a psicose maníaco-depressiva e a esquizofrenia.

    Muitos entendidos dirão que estas doenças estão escritas

    nos astros (ou no destino, ou nos genes) e, portanto,

    não se pode fazer nada para as ter. Discordo. Todos osclínicos sabem que existem certas pessoas, tantas vezes

    familiares de doentes assumidos, que manifestam

    sintomas incipientes mas que, nada tendo feito para os

    agravar, passam uma vida normal e nem sequer se dão

    ao trabalho de se queixarem aos psiquiatras. Muitosoutros procuraram cedo os psiquiatras e fazem, desde

    o prin cípio, um tratamento correcto e sensat o,

    arriscando-se a fazer igualmente uma vida normal.

    Evidente mente , não aderir am à minha proposta.

    Para os aderentes, estão aqui vários truques que aprendi

    com aqueles que, de um modo ou doutro, tiram partido

    da doença e não resistem a complicá-la. Admito que

    alguns deles tenham obtido uma preciosa ajuda de

    psiquiatras ou psicólogos, ou mesmo dos malentendidosda ciência do seu tempo. São coisas que acontecem,

    e também não é seguro que, hoje, saibamos tudo sobre

    o assunto. Mas parece-me que, com todas as

    oportunidades que a sociedade actual põe à nossa

    disposição, tanto nos circuitos legais como não legais,

    qualquer pessoa será capaz, se não de exibir uma

    verdadeira doença deste tipo, ao menos adquirir uma

    imitação. Por isso, leitor aderente, tenha fé e persistência.

    Como tornar-se maníaco-depressivo

    Lord Byron, Schuman, Beethoven, Balzac, Hemingway,

    William Faulkner, Virginia Woolf, Althusser, Edward Munch,

    Paul Gaugin, Antero de Quental. Já ouviu falar de algum

    destes génios criadores? Pois bem: todos eles tinham

    psicose maníaco-depressiva, e a associação entre a doença

    e a genialidade não é pura coincidência. A psicose maníaco-

    depressiva (que agora tem o estúpido nome de doença

    bipolar) não é só a doença dos génios: é também a doença

    que confere a genialidade criativa. Mas desiluda-se o

    leitor. Para lá chegar precisa de pertencer a uma família

    tocada pelo fogo, na feliz expressão de Kay Jamison, ela

    também portadora da doença.

    Provavelmente será uma família ilustre, já que a doença

    facilita a ascenção social. Como, porém, saímos de um

    país rural, algum dos seus antepassados terá sido, pelo

    menos, navegador ou emigrante. Se esse for o caso,

    prepare-se para passar por períodos da sua vida que

    em tudo se parecem, quer à hibernação dos ursos,

    quer à migração das aves. Torpôr, lentidão, apatia, umas vezes,

    energia, vivacidade e decisão, outras vezes. É bem possível que

    todos sejamos um pouco assim, ao ritmo das estações do ano,

    empolgados com a luz do astro Rei, dormentes com o calor do

    sol ou vibrantes com o ar gelado, perturbados com os equinócios

    da primavera ou do outono (o nascer da flor e o cair da folha),

    variáveis com as fases da lua. O problema é que, vá-se lá saber

    porquê , a lgumas pessoas da sua famíl ia exageram.

    Se abrir um livro científico sobre a psicose maníaco-depressiva, vai

    encontrar um rol de teorias que lhe falam de vários neurotransmissores

    que actuam em diversos receptores e assim por diante, uma coisa

    muito complicada. É verdade que isso é para perceber a actuação

    dos medicamentos e talvez para promover a sua venda. Mas, cá para

    nós, que não estamos interessados em comprimidos, mas sim na

    promoção da doença, o problema é bastante mais simples. Numa

    palavra, o que importa é desorganizar os ritmos do seu corpo.

    Este problema não tem que o afligir desde a infância. Pelo contrário,

    o fogo que vem dos seus genes pode fazer de si uma criança brilhante,

    criativa e cheia de actividade. Aquilo que se chama uma pessoa de

    sucesso. Por quanto tempo, é sempre difícil saber, pois a riqueza de

    espírito não dura sempre. O problema é esperar pela primeira

    depressão, que pode chegar aos 15 ou aos 70 anos. E isso depende

    muito da sua vida afectiva, da sua inserção social ou da sua profissão.

    Para chegar à doença, atrevo-me a dar-lhe um conselho: entre em

    roda livre, mas apenas a partir de certa idade. De facto, se você

    tivesse uma vida toda ela bem estruturada e cheia de responsabilidades,

    com horários a cumprir, com tarefas a desempenhar, refeições a

    horas, hora certa de se levantar, arriscava-se a nunca dessincronizar

    o seu relógio corporal nem ter tempo de se dar conta das suas

    angústias internas. Mas é mesmo isso que deverá fazer durante a

    sua infância e juventude, de modo a criar uma imagem de sucesso

    e uma personalidade activa e saudável, e como tal reconhecida pelo

    seu círculo de amigos e familiares, todos eles dispostos a apoiá-lo

    e a desculparem-lhe algumas excentricidades. Assim, tudo irá correr

    bem e, quando começar com problemas, todos reconhecerão que

    é por doença. Pelo contrário, se começasse em roda livre muito

    cedo, entraria facilmente na asneirada, passaria por muitas drogas,

    iria ter dificuldades em estabelecer a sua identidade, e o melhor

    diagnóstico a que poderia aspirar seria o de uma personalidade

    borderline. Coisa demasiado banal, nos dias que correm.

    O problema, portanto, não está em como entrar em roda livre,

    mas sim quando. Para que o seu caso seja típico, aconselho-o a

    fazê-lo na idade adulta. Entretanto deverá tratar da sua formação

    e até mesmo constituir família. Mas à cautela evite demasiadas

    responsabilidades e procure uma profissão onde tenha a possibilidade

    de cumprir os horários que lhe apetecerem. Ou então que lhe

    permita facilmente atrasos, faltas e baixas sem repercussão no seu

    rendimento económico. Depois aguarde por uma situação de

    tensão, conflito ou perda, daquelas que acabam por acontecer a

    toda a gente, contando que viva os anos suficientes. Isso pode

    ocorrer na área profissional, familiar ou afectiva. Qualquer coisa

    que, genuinamente, o desgoste. Mas isto fica entre nós porque, por

    mais grave que o problema tenha sido, você, habituado a resolver

    tudo, vai desvalorizá-lo inicialmente e não vai admitir que está

    triste por isso. Seria demasiado normal.

    Depois, é preciso esperar por uma altura propícia do ano, geralmente

    por volta dos equinócios. Se for para começar com uma depressão,

    aconselho-o o fim da primavera, quando todas as outras pessoas

    começam a renascer com o sol, a olhar para si próprios e para os

    outros. Nessa altura, e contra a corrente, é a ocasião de você se

    declarar inimigo do sol. Tranque-se em casa e feche todas as janelas

    e persianas. Se tiver de se levantar de manhã, faça o mais tardiamente

    possível essa tentativa derradeira, mas reconhecendo que a sua

    disposição para se levantar não é grande. Para isso, arrange qualquerpretexto menor, alguém que não o tratou como merecia, que não

    o cumprimentou, qualquer contratempo assim. Faça cara dechateado e verá que não é difícil arranjar pretextos destes.

    Durante o dia, e logo que possível, tranque-se em casa. Deite-se

    na cama (ou no seu sofá preferido) às escuras, com o objectivode dormitar. Se tiver coisas para fazer, vá-as adiando. Evite contactoscom outras pessoas e deixe de cumprir os compromissos. Até se

    pode entreter a pensar em todas as coisas que terá de resolverdurante a sua vida, e verá como é impossível viver. A solução é

    simples: dormir tanto quanto possível (acabará por descobrir que,apesar de ficar 24 horas por dia deitado, não lhe é possível dormir

    todas essas horas). Faça por isso durante o dia e, sobretudo, depoisde jantar, quando verificar que passou mais um dia vazio. É claro

    que depois, durante a noite, não tem mais sono. Fique a olhar parao ar ou, melhor, para as porcarias da televisão. Depois de um diasonolento, vai passar as noites em branco, mas é assim que vai

    conseguir dessincronizar o relógio do seu corpo.

    Este é apenas o início, porque o ciclo repetir-se-á dias a fio, e cadavez pior. Além de evitar os encontros banais, começa a faltar aos

    compromissos importantes. Esteja-se nas tintas para tudo, quealguém cuidará de si. Se alguém o criticar, melhor. Você sabe quemerece todos os insultos porque se transformou num trapo inútil,

    o ser mais desprezível da humanidade. Fique a curtir a sua culpa e aimaginar os castigos que merece. Perdido por dez, perdido por mil.

    Para si, só a cama, a escuridão, o nada. Muito perto da morte, queseria benvinda. Nem sequer já chora (secaram-lhe as lágrimas): só

    aquela expressão parada, aquela lentidão. Só de pensar num movimentosente um peso de toneladas, para lhe sair uma palavra tem de percorrer

    todo o dicionário. Comida? -Que trabalheira! Sexo? -Que estupidez!A vida? -Um peso impossível! -O futuro? -Um mar de calamidades.

    Ao sentir-se assim, já se encontra tão dessincronizado que o seuorganismo reage com a hibernação. Mas de vez em quando os seus

    astros internos sincronizam e pode sentir, subitamente, umafelicidade efémera. É bem possível que isso lhe comece a acontecer

    para o fim da tarde ou mesmo para a noite. Mas você, tão preocupadoque está com o seu sono, nem dá por isso. À mínima oportunidade

    põe-se a dormir, e o máximo que pode ter são bons sonhos. Paraisso vai mesmo procurar comprimidos para dormir. Mas quantomais os toma mais se dessincroniza, já que o seu organismo se

    habitua a eles e, assim que acaba o efeito, lá começa a insónia... ea angústia. O seu relógio corporal está agora caótico e você merece

    o diagnóstico de depressão major com melancolia. Para acrescentaro máximo da graduação (com componente psicótico), basta sair um

    pouco da realidade e supôr, por exemplo, que já apodreceu, que

    está mesmo morto e esperando pelo enterro (os especialistas

    chamam a isto delírio de Cotard).

    Os três parágrafos anteriores são muito pouco para descrever o

    verdadeiro martírio da depressão. O processo pode prolongar-se por

    meses ou mesmo anos, às vezes melhorando um pouco, na maior

    parte das vezes piorando, já que cada decisão que você tomar é

    sempre em seu desfavor. É claro que existe tratamento para isso, mas

    também não se decide a ir ao psiquiatra. Talvez se entretenha a passar

    por outros especialistas ou alternativos, tomando medicamentos

    irrelevantes ou insuficientes que farão a sua depressão arder em fogo

    lento. Assim vai ter tempo suficiente para pôr em causa toda a sua

    vida e, quem sabe, tomar decisões ruinosas. Algum dia se cansará, mas

    também lhe devo dizer que a verdadeira depressão não dura sempre.

    Se for ao psiquiatra e este o souber tratar (e você aceitar o

    tratamento), pode estar certo que ao fim de três semanas se sentirá

    bem melhor. Se não, terá de aguardar que a natureza (ou talvez os

    astros) dê por findo o seu sofrimento. Num caso e noutro, você

    acordará um dia de manhã, abrirá a janela do quarto e verá como

    é bonito o nascer do sol. Nesse dia sentir-se-á feliz e tudo lhe

    correrá bem. Achar-se-á estúpido pelo estado a que se deixou chegar,

    e pensará em recuperar o tempo perdido. Se continuar em roda

    livre (ou se conquistou esse estatuto com a depressão), pode pôr

    de imediato mãos à obra e preparar-se para a mania.

    Ela pode ou não acontecer. Se não for desta vez, pode esperarpara a próxima. Mesmo assim arrisco-me a dar-lhe alguns conselhospara que se torne maníaco o mais depressa possível. O importanteé manter-se em roda livre e fazer coisas que o entusiasmem. Seantes lhe receitaram antidepressivos, tome-os agora em grandesquantidades.Você renasceu: está satisfeito e fluente, torna-se umverdadeiro sedutor e não lhe é difícil levar os outros à certa. Poroutro lado, torna-se optimista e já não admite que as coisas lhecorram mal. Sente-se cheio de energia e está disposto a arriscar,seja no que fôr. Arrisque: faça projectos, apresente-os às outraspessoas, que elas não resistem ao seu dinamismo. Continue alevantar-se cedo, mas trabalhe muito, sobretudo pela noite fora.Ou seja: durma pouco e, se possível, passe noites em branco. Esteé o verdadeiro teste. Se, depois de umas noites em claro, se sentecom maior energia, você tem direito a uma verdadeira mania.

    Vai continuar a fazer projectos e propostas, e passa de uns paraos outros ao sabor das ocasiões. A sua alegria é contagiante: alegraos outros que, por sua vez, o alegrarão a si. Toma as decisões maistemerárias no que respeita ao amor, à profissão ou aos negócios.Até é natural que muitas coisas lhe corram bem. Se correrem mal,você nem tem tempo para pensar nisso, uma vez que está sempre apassar de uma para outra iniciativa. Fala sem parar, de tal modo que,apesar de uma boa memória, já não se consegue lembrar do que disseantes. Tudo isto sem dormir e, talvez, sem prestar nuita atenção àcomida. Roda livre! Em compensação, a sua energia, que esteveadormecida na depressão, é agora cada vez maior (paradoxos danatureza, ou a lei do pêndulo?). A sexualidade, também em roda livre,não conhece quaisquer freios. É a altura das grandes realizações, depôr em acção as mais escondidas fantasias. Pode fazer discursos àsmassas atónitas debaixo da sua janela, exibir-se como espontâneonum espectáculo de ópera ou tentar roubar um submarino da Marinha.

    Não se esqueça que muitas obras de grandes criadores foramrealizadas numa fase destas, depois de eles terem posto todo o seupassado em causa durante a depressão. É certo que pertenciam aoseleitos, mas estavam pouco interessados em serem doentes mentais.Por isso, mantiveram a sua mania em lume brando, procurando oapoio de psiquiatras, a crítica de amigos e, sobretudo, a disciplina quehaviam adquirido nos seus ofícios. Evitaram entrar em roda livre. Porfavor, leitor, se está genuinamente interessado nos objectivos destelivro, não siga estes exemplos. Faça coisas mais grandiosas e disparatadas,mude de assuntos, vá buscar o seu alimento à falta de sono. Rapidamenteentrará em tal confusão, que alguém o levará, apesar do seu protesto,ao hospital. Aí, não obstante as injecções que ocasionalmente lheconsigam dar, pode continuar o seu engraçado jogo do gato e dorato, ensaiando fugas, recusas, faenas, fintas e seduções. O pior é que,

    hoje, existem medicamentos realmente eficazes.

    O resto da sua carreira depende do modo como vai lidar com

    estes medicamentos. Imagine que existem pessoas que, tratadas

    adequadamente e aceitando o tratamento, apenas têm uma destas

    fases durante a vida que, em todos os aspectos, se torna normal

    ou bem sucedida. Não foi certamente para isso que leu este livro

    e, portanto, vamos ao resto. Por acaso até o aconselho a tomar,

    inicialmente, os medicamentos prescritos. Por um lado, pode ter

    a sorte de apanhar um psiquiatra mal avisado que lhe dê

    medicamentos que apressem o seu próximo episódio, depressivo

    ou maníaco. Por outro lado podem-lhe receitar um simples sal de

    lítio ou outro medicamento normalizador do humor (um anti-

    epiléptico, veja lá!). Com efeito, se tomasse certinho tais

    medicamentos, podia ficar livre de novos episódios. Mas você vai

    apenas tomá-los durante algum tempo para logo os largar

    subitamente. Parece que esta é a melhor maneira de ganhar

    resistência ao tratamento e dessincronizar mais o seu relógio, com

    o adicional bónus de mais episódios maníacos e depressivos.

    A altura de deixar os medicamentos é consigo. Mas pelo que

    conheço dos interessados, a melhor altura é quanto se aproximar

    a época de uma nova mania, talvez no outono. Provavelmente você

    já conhece os sinais de que ela está para chegar: levanta-se bem

    cedo com a sensação de que vai vencer o mundo, adora a luz e

    as cores, sente-se com energia para dar e vender, retoma os velhos

    projectos, trabalha muito, não consegue parar. Esquece-se das horas

    e, sobretudo, da hora de tomar os comprimidos. O seu optimismo

    fá-lo convencer de que já não precisa de se tratar, e aí está a sua

    sensação de (demasiado) bem estar para o provar. Largue a

    medicação e entrará, seguramente, num novo episódio maníaco.

    Depois, já se sabe: deixa de dormir, entra em roda livre, leva ao

    exagero as suas façanhas e alguém (até pode ser a polícia) o levará

    ao hospital para entrar de novo no jogo do gato e do rato.

    Os medicamentos, agora, podem já não pegar tão bem, e o ciclo vai

    recomeçar. É natural que da mania vire para a depressão, uma boa

    ocasião para se arrepender e envergonhar das tolices que fez, sentimentos

    estes sobrepostos à culpa e pessimismo próprios do estado depressivo.

    Agarra-se desesperadamente aos medicamentos antidepressivos,

    convencendo o seu psiquiatra que está na disposição de fazer uma

    medicação certa... até ver. Se ajudar com bebidas alcoólicas, pode baralhar

    mais o esquema dos tratamentos e dos seus altos e baixos.

    A evolução torna-se agora imprevisível. Pode ter um ciclo por ano

    (um episódio maníaco e outro depressivo), ao ritmo da translacção

    da terra, eventualmente com um ou outro ano de folga, ou pode

    funcionar ao ritmo da translacção da lua, com mais de 4 ciclos

    anuais. Naste caso tratar-se-á de uma mania de ciclos curtos, e pareceque o melhor para chegar a ela é abusar dos antidepressivos. Comtodas estas voltas e reviravoltas, a sua vida fai ficar feita num oito.

    Mas os serviços de saúde não se podem negar a cuidar de si

    sempre que seja necessário e nada mais lhe reste. Você está

    verdadeiramente doente.

    Em 1984, os americanos descobriram uma nova doença, a SAD

    (Seasonal Affective Disorder). Como tudo o que vem dos americanos,

    esta invenção tem muito que se lhe diga. SAD parece uma boa

    designação para marketing, mas não diz nada de novo. Primeiro

    porque não se trata de uma doença do afecto, mas sim do humor,

    como são todas as manias e depressões. Em segundo lugar, porque

    todas as manias e depressões têm alguma incidência sazonal. Do

    que se trata então? Pura e simplesmente, de uma depressão que

    ocorre mais frequentemente no inverno, sobretudo nos paises

    longe do Equador (acima e abaixo do paralelo 35). Como o nosso

    país está no limite, também nos pode calhar esta benção.

    Em boa verdade não sei se se trata de uma verdadeira doença ou

    de um estado banal, uma vez que muitos dos doentes envolvidos

    nos primeiros estudos foram convocados por anúncios de jornais

    onde se descreviam os sintomas: tristeza, irritabilidade, pessimismo,

    isolamento e desinteresse sexual, dores, fadiga, lentidão, hipersonolência

    e um especial apetite para hidratos de carbono, com o consequente

    aumento de peso. Como é típico da sociedade de consumo (à qual

    a psiquiatria não faz excepção) foi a oferta que determinou a procura.

    Por isso, se o leitor se sentir assim nos invernos frios e escuros,

    pode-se apresentar ao seu psiquiatra com o diagnóstico já feito.

    Mesmo assim, os sintomas são variáveis e em graus diversos. Decidir

    se se trata de uma doença autónoma, de um estado fisiológico de

    adaptação ao inverno ou de uma depressão clássica com alguns

    sintomas atípicos, pode ser um problema para o psiquiatra.

    Para o leitor praticante vai dar ao mesmo, uma vez que tem uma

    verdadeira oportunidade de tentar a carreira de maníaco-depressivo.Tanto mais que aos sofredores da doença afectiva sazonal lhes é dada

    a possibilidade de terem também episódios maníacos: um no fim do

    episódio depressivo, de Março a Abril, outro antes, de Setembro a

    Outubro. Se estudou bem a carreira dos maníaco-depressivos, já sabe

    como pode forçar os episódios de energia e euforia (e falta de sono).Até pode passar às depressões e manias clássicas, com episódios

    noutras fases do ano. Tudo depende da capacidade de dessincronizar

    o relógio corporal com as várias alternativas que lhe indiquei, incluindo

    a irregularidade da medicação que o psiquiatra fornece.

    De facto, os medicamentos para esta doença são os mesmos das

    outras manias e depressões, embora se especule muito sobre a

    omnipresente serotonina (neste caso ela estará ausente: dizem que

    a procura de chocolates e hidratos de carbono tem a ver com o auto-

    reabastecimento deste neurotransmissor). Mas a doença afectivasazonal tem mais um medicamento eficaz: a luz do sol durante a

    manhã. Várias empresas passaram a fabricar a luz do sol e a disponibilizá-

    la comercialmente de todas as formas e feitios. O último produto

    consiste num boné com uma lâmpada inserida por debaixo da pala.

    Engraçadíssimo e com um bonito design. O leitor pode encontrá-losna Internet se inserir o nome da doença em qualquer motor de busca.

    É possível que a doença afectiva sazonal não seja muito diferente das

    outras depressões e manias. Só que, para a depressão do inverno, não

    é necessário declarar guerra à luz nem trancar-se em casa de portase janelas. Nos paises perto dos polos onde elas acontecem, é o sol

    que nos faz negaça durante boa parte do ano. De qualquer modo, as

    investigações à volta da doença tiveram a vantagem de demonstrar

    que aquilo que comanda os nossos ciclos de energia e, portanto, as

    manias e depressões, são os astros (e sobretudo o Astro-Rei), emrelação com a sincronização do ritmo de produção das nossas

    hormonas. Nada que os antigos (e os astrólogos?) não soubessem.

    Embora tenha dado sugestões para iniciar uma e outra, é mais fácilchegar à depressão do que à verdadeira mania. Se já conseguiu teruma depressão e ela acabou por passar sem chegar à mania, tenteoutra depressão passado algum tempo. Se a primeira resultou, já

    aprendeu com a experiência e já sabe quais as melhores soluções quese adaptam ao seu caso. Estamos a falar de antecedentes, pretextos,

    modos de reagir da sua parte e dos outros. Este útimo pormenor émuito importante, pois nunca se sabe à partida qual vai ser a reacção

    dos outros. Podem-no tratar mal, o que talvez o ajude a melhorar(nunca se sabe) ou a piorar. Mas podem tentar tratá-lo da melhor

    maneira possível, o que pode agravar a sua culpa e portanto pioraro seu estado. Podem finalmente mudar completamente e submeter-se aos seus caprichos, o que lhe dá um enorme poder. Só depois de

    experimentar é que fica a saber o que pode acontecer.

    Acima de tudo já sabe qual é a altura do ano mais propícia à suadepressão, e pode automatizar as rotinas que o levam directamente

    ao agravamento. Há pessoas que aprendem a adivinhá-la através depequenas rotinas do quotidiano. Também já conhece a melhor maneira

    de evitar que o levem ao psiquiatra. Aconselho-o porém a ir lá ao fimde algum tempo para ver se, com os medicamentos, consegue obtera almejada mania. Há quem o consiga apenas por uns dias, depois de

    se tratar com os antidepressivos, mas ela é muito efémera e não chegaa ser uma verdadeira mania. Alguns especialistas podem, neste caso,

    conceder-lhe o diagnóstico de doença bipolar tipo II.

    Se não conseguir chegar à verdadeira mania, tenha persistência,voltando a tentar ano após ano. Enquanto lá não chegar, tem, pelomenos o direito ao diagnóstico de depressão unipolar recorrente.Mas não perca a esperança. Se tiver uma vida longa ainda pode láchegar. Há quem faça uma mania depois de 10 episódios depressivos

    ou apenas aos 80 anos. Se morrer mais cedo ficará apenas com adepressão unipolar. Mas repare que tudo é muito subjectivo. Para

    além do caso da bipolar tipo II, em que não fará grandes asneirasdurante a mania, senão, talvez, umas compras excessivas, é natural

    que, entre as depressões, você ande muito bem disposto e cheiode optimismo, com energia para fazer muitas coisas e talvez comgrande sucesso na vida. Até pode ser que se apaixone depois de

    uma depressão, mas quem é que pode chamar a isto mania? Você,de certeza, não se queixa, e desde que ninguém se queixe de si,

    nunca chegará ao psiquiatra nem ao diagnóstico.

    Chegar ou não ao diagnóstico de mania vai então depender da suaprofissão, do estatuto social, das pessoas que dependem de si (ou

    estão à espera do seu dinheiro), do modo como estavam habituadosa vê-lo (é por isso que aconselhei a iniciar a doença um poucotarde). Mas deixe lá. Depressão unipolar já não é mau, porque lheconfere algumas desculpas e regalias. Experimente, por exemplo,a frase chave: «não me contrariem porque senão fico doente». O

    que importa é que leve a vida o melhor possível e, se isso incluir

    sucesso e uma rara felicidade à custa de alguns episódios de

    sofrimento (que o desculpam socialmente), só lhe posso dar osparabéns. Mas se for essa a sua opção, é melhor conter entusiasmos

    exagerados e, sobretudo, não se dessincronizar com passagem denoites em claro ou horários estapafúrdios.

    Finalmente, há outra maneira de ter uma depressão unipolar,

    embora pouco sofisticada e muito próxima da distimia, quetrataremos no fim deste capítulo. Com a vida difícil e aceleradaque temos, existem muitas coisas que nos desgostam genuinamente.

    Basta ver um telejornal para constatar as tragédias diárias queteimamos em vencer. Mas não é só isso: durante a nossa vida

    existem perdas inevitáveis, que vão desde amores e pessoas queridasaté propriedades, expectativas, sonhos de uma vida ou o próprio

    amor próprio. Claro que isto é perfeitamente natural, e a naturezacolocou a