Como 'Mad Men' Reconciliou o Escritor Vila-Matas e as Formas Breves — Brasil.elpais

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Como 'Mad Men' reconciliou oescritor Vila-Matas e as formasbreves

by Ediciones El País • March 28, 2015 • 7 min read • original

Lembro-me da intensidade com que acompanhei muitas cenas dosprimeiros capítulos e de minha felicidade ao descobrir que todastinham entidade própria, um interesse por si só. Dava-me conta deque se, em vez de uma série, Mad Men tivesse sido um monumentalromance, teria sido possível dizer dela que era composto por unidadesde contos, por fragmentos que, por sua vez, eram formados porinstantes intensos.

Valor supremo do instante. Em certa ocasião lembro-me de terescrito: “Cada momento é um lugar onde nunca estivemos”.

Valor supremo, por outra parte, do fragmento, essa espécie deinterrupção que rompe o texto contínuo, porque o fragmento é o querompe, quebra e diferencia, aniquilando as ilusões da plenitude, ovínculo, a repetição mimética.

Desfrutei muito daqueles fragmentos que, por ter uma entidadeindependente do contexto geral, aniquilavam as ilusões da plenitudedo século XIX. Tanto desfrutei que decidi tomar as cenas de Mad Mencomo lições para me reconciliar com o encanto de se dedicar àsformas breves, de escrever contos, em suma. Reconciliei-me com aarte de contar pelo prazer mesmo de contar: uma atividade da qual,sem querer, vinha me afastando nos últimos tempos, possivelmentepor dedicar cada dia mais atenção ao ensaístico.

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Comecei a ver cenas de episódios de Mad Men como quem entra nasala de aula de uma escola todos os dias para recordar o que é narrar.Nessas sessões, o que mais aprendi foi desfrutar do momento, mastambém, de passagem, aprofundar em uma história que li de RafaelSánchez Ferlosio sobre uma manhã no final de 1959 quando,passeando com sua filha por um parque de Madri, ao cruzar o trechoque separava o coreto de uma velha escadaria, de repente ouviu vozesque vinham de entre as árvores, e nelas reconheceu o falsetecaracterístico dos atores de teatro de fantoches. Depois de seperguntar se devia aproximar sua filha daquela apresentação – umapeça cômica – , finalmente, optou por levá-la até ali: a obra já estavamais que começada, o que não foi problema para que sua filhaentrasse imediatamente no clima, “sem um pingo de assombro, emseu próprio ser, rindo já com a primeira frase da maneira mais naturaldo mundo, como se não considerasse necessário perguntar a seu paiabsolutamente nada. A menina ria com cada passo – ou frase – comouma unidade que se bastasse a si mesma sem um contexto de sentidode que tomasse significação; uma unidade completa dentro de si, quenão se cumpria como um elo dentro de uma cadeia causal com umantes e um depois. Isso não comportava para ela nenhuma deficiênciaou insuficiência, mas, pelo contrário, uma autossuficiência dasignificação, do puro dizer em si, emancipado de qualquer implicaçãoem um campo de sentido”.

Se, em vez de uma série, Mad Men tivesse sido um monumentalromance, teria sido possível dizer que era composto por fragmentos

Se o narrativo em minha escrita tinha ido passando a um indesejadosegundo plano, o retorno ao prazer de escutar e contar histórias –acompanhado do minucioso estudo analítico, quase escolar, dosfragmentos e dos instantes de fragmentos de Mad Men – ajudou-me arecuperar uma antiga felicidade que hoje relaciono ao fato nadacasual de que, para Matthew Weiner, o criador de Mad Men, sua formafavorita de escrita seja o conto, o relato curto, e John Cheever seu

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autor preferido (“Seus contos funcionam como episódios de televisão,não chegam a repetir nenhuma informação sobre os personagens.Fisgam você desde o primeiro momento”).

Não que não conheça o episódio das risadas do Richard Price,showrunner da série The Wire, durante sua entrevista coletiva emMadri, quando um jornalista descreveu Mad Men como “o equivalenteaudiovisual dos romances de John Cheever”. E já sei que VíctorLenore em Indies, hipsters y gafapastas considerou que a resposta dePrice foi categórica: “Se Cheever fosse os Beatles, Mad Men seria abeatlemanía. Parece-me uma série para os amantes de ternos emobília”.

Conheço o episódio de Price, mas penso que ele exibe aí umaconvicção de cego. Não se equivoca se pensar que The Wire é televisãopura, e Mad Men, cinema com fundo literário. Mas esse fundo temmuito pouco de ruim, porque Matthew Weiner, para além do design edo tabaco, é um mestre da cena breve, do relato curto; não só temtalento para os diálogos e para capturar o espectador em cada cena,mas por trás de seus roteiros, sem que isso signifique um lastro,adivinha-se a sensibilidade de um leitor furiosamentecontemporâneo. Está além, portanto, dos ternos e dos móveis e douísque dos escritórios.

Afinal muitos dos grandes romances do século XX são construídoscom a lógica do fragmento, como se seu verdadeiro coração fosse orelato

Agora recordo que em uma entrevista televisiva ouvi Weiner dizer queera fascinado pela estrutura de Coração das Trevas, de JosephConrad, onde o narrador sai em busca de Kurtz, mas no caminho seenvolve em incontáveis digressões, e, na realidade, essas digressõessão – dizia Weiner – o relato em si. E agora me lembro que, ao ouvirisso, pensei que de algum modo era aí que eu queria chegar:

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possivelmente o século XIX foi o dos “grandes romances”, e o XX, poroutro lado, a era do fragmento, o reencontro do narrativo com suaessência, com o conto, com o relato breve.

Depois de tudo, muitos dos grandes romances do século XX sãoconstruídos com a lógica do fragmento, como se seu verdadeirocoração fosse o relato, algo que, obviamente, não é fácil dedemonstrar, embora possa chegar a ser quando se atenta para o ditadodaquela Tese sobre o conto em que Ricardo Piglia afirma que um relatosempre conta duas histórias. O conto, diz Piglia, é um relato queencerra um relato secreto, é construído para fazer aparecerartificialmente algo que estava oculto: reproduz a busca semprerenovada de uma experiência única que nos permita ver, sob asuperfície opaca da vida, uma verdade secreta. “A visão instantâneaque nos faz descobrir o desconhecido, não em uma longínqua terraincógnita, mas no próprio coração do imediato”, dizia Rimbaud.

A tese de Piglia me faz pensar que se a densa trajetória do romance doséculo XX contivesse alguma história secreta, esta giraria em torno dahábil camuflagem do texto breve, do fragmento, da unidade de contono interior da alma central de seu grande labirinto. Conrad, Cheever,já citados aqui, junto a Nabokov, Walser, Kafka, Ballard, Philip K.Dick, Sebald, Beckett e outros, seriam então alguns dos praticantesmais brilhantes de uma grande simulação que consiste em reabilitarsecretamente o conto sob a falsa aparência de estar criando romances,ou seja, situá-lo o em uma linha de continuidade com relação aosgrandes romances do século XIX.

Uma grande simulação que se compreende melhor quando se aplica atese das duas histórias de Piglia, onde se explica que a variantefundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu emfazer da construção cifrada, da história que vai por baixo dasupostamente principal, o tema do relato.

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Observe-se que Borges costumava narrar histórias que contavam asmanobras de alguém que construía com perversidade uma tramasecreta com os materiais de uma história visível.

Precisamente, Borges foi pioneiro em comentar um problema que seapresentaria a muitos autores do século XX na hora de narrar, quandose dessem conta de que qualquer um que tentasse emular um giganteliterário do século anterior, ao monumental Tolstói, por exemplo,ficaria sempre abaixo do monstro e, portanto, levaria a cabo umesforço ao mesmo tempo titânico e inútil. Como se sabe, certamentepor causa desse problema, Borges nunca escreveu um romance. Fezmuito bem, sem dúvida. Afinal, não era obrigado a escrevê-lo, e, menosainda, a dar a vida por essa ideia. Deve ter pensado: espero não ser tãoestúpido a ponto de passar a vida tentando melhorar Tolstói, Flaubertou Stendhal; não vou ser tão idiota de tentar algo assim quando, alémdisso, o máximo que poderia obter, no improvável caso de lutar contraeles em campo aberto e superá-los, seria dar um mínimo passo maisadiante. E mesmo supondo que o desse, deveria dedicar a esseminúsculo “passo adiante” um esforço desumano e o tremendosacrifício de toda uma vida?

Nas cenas de Mad Men vi que ele também operava do modo borgiano

Borges não escreveu um só romance e, além disso, esquivou-se dodilema de escrevê-lo ou não: “Continuamente me perguntam quandovou escrever um romance, mas me consolo pensando que em outrotempo perguntavam aos escritores: ‘E você, quando vai escrever umaepopeia?’ ou ‘quando vai escrever um drama de cinco atos?’, eatualmente essa pergunta caiu em desuso. Acredito, além do mais, queo conto é um gênero mais antigo que o romance e talvez possasobreviver ao romance”.

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Nas cenas de Mad Men que tão a fundo espiei sentado na caseira salade aula de minha escola secreta fui lentamente entrando em contatocom o modo de trabalhar de Weiner e vi que também ele operava aomodo borgiano, isto é, que a história que em Mad Men ia por baixo dasupostamente principal – a história aparentemente secundária ousegundona da batalhadora Peggy Olsen (Elisabeth Moss) e suascolegas de escritório – era na realidade a trama secreta, o centro danarrativa, o eixo verdadeiro de tudo. E também percebia que,acontecesse o que acontecesse, no fundo da cena sempre estava Peggy.Cheguei a me acostumar a vê-la com tanta frequência em todos osfragmentos que, em certa ocasião, em uma sequência de uma festahippie, tive a impressão de vê-la cantando no fundo da sala.

Peggy sempre canta ao fundo, pensei. E me disse também que ela eranão só a trama secreta, mas também o gênero segredo oculto nopróprio eixo da narrativa. Então Peggy é um conto? Acredito que sim,que ela é a trama secreta, mas também – porque essa trama estárepleta de unidades de contos – o próprio gênero camuflado dentro daestrutura geral de romance, o verdadeiro gênero utilizado para anarrativa global posta em marcha por Weiner.

Se fosse assim, Madame Bovary representaria o romance, o gêneropor excelência do século XIX, enquanto nossa Peggy, a “secretáriaascendente”, estaria inserida no interior de um tipo de narrativa quejá não seria do século de Flaubert e na qual ela, como anti-Bovary,encarnaria um conto intenso, um fragmento camuflado em umlabirinto narrativo que só na aparência recordaria os do passado.

Exato. Peggy, vista – nesta tarde enquanto termino estas linhas –como um fragmento que rompe, quebra e acaba cantando ao fundo dealguma sala, aniquilando qualquer possível última ilusão antiquada deplenitude do século XIX.