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A | GESTÃO • COMO FILTRAR MODISMOS

COMO FILTRAR MODISMOS

AS SOLUÇÕES PROPOSTAS SÃO VOLUNTARISTAS, ABRANGENTES E URGENTES? CUIDADO! ESSAS TRÊS LENTES PODEM AUXILIAR OS GESTORES A

DESEMARANHAR O NOVELO DOS NOVOS FIGURINOS DA ADMINISTRAÇÃO.

| POR CLAU SGANZERLA

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A moda é um fenômeno contraditório. Liberta o poder de invenção do estilista, mas aprisio-na o consumidor a determinadas formas, co-res e estilos. A moda é também polivalente. Enquanto a alta-costura define as tendências com seus modelos sob medida para os salões,

o fast fashion reproduz e propaga, infiel, mas habilmente, os lançamentos para as ruas.

Há surpreendente paralelismo entre a indústria da moda e os modismos da administração. De fato, a metáfora é utili-zada há pelo menos três décadas, quando Eric Abrahamson dissecou o processo de criação, seleção, produção e disse-minação dos modismos na gestão. Porém, pouco se anali-sou como os gestores podem identificar e, mais importan-te, reagir aos modismos – que não necessariamente devem ser descartados a priori. Proponho, neste artigo, um filtro com três lentes para auxiliar os gestores a desemaranhar o novelo dos novos figurinos da administração.

A LÓGICA DO SISTEMAO escritor, designer e curador britânico Colin McDowell

revela os componentes do sistema da moda. Um grupo de criadores determina os padrões para uma massa de consumi-dores. Essa massa vai ser premiada em função de sua ade-rência a esses padrões, tendo em vista os atributos implícitos de sucesso, importância, atratividade e desejo. Estabelece-se assim uma nova referência de poder e status. Esses compo-nentes do sistema da moda podem ser transpostos para os modismos da administração (veja quadro).

Conforme mostram os acadêmicos Paul J. DiMaggio e Walter W. Powell, quanto mais incertas são as tecnologias ou ambíguas as metas, mais as organizações tendem a imi-tar outras organizações, em vez de buscarem a melhor es-tratégia ou modelo de negócio aplicável ao seu contexto. É ambiente propício para que gurus criem (ou requentem) conceitos, modelos, receitas de sucesso e check lists – al-guns menos, outros mais exuberantes – que prometem a apoteose para as empresas. Segmentos da alta consultoria e da academia também criam e aplicam as novidades, sob medida. Apresentam-se as últimas criações nos salões dos conselhos de administração – já que se trata da última ten-dência, para que evidências? Quem ousa questionar o artista?

Para o gestor, não resta outra alternativa senão vestir o fi-gurino recomendado. Ao implementar a nova ideia, ele pode até não conseguir alcançar o nirvana do desempenho, mas não será punido por não ter tentado – em muitas situações,

será premiado apenas por adotar o modismo, independen-temente do resultado final. Não desfilar com a peça da esta-ção, no mínimo, é certeza de bullying gerencial. No âmbito do fast management, um infindável número de manuais, pa-lestras, cursos e cultos, ajuda a pregar as boas-novas para a média gerência e os estudantes mais desavisados.

Os modismos do mundo da administração mais críveis são oriundos de algum lugar reverenciado. Para os fast follo-wers mais entusiasmados, a possibilidade de tocar e sentir in loco as novidades que já estão sendo aplicadas pelos first movers garante longas viagens de benchmarking. Hoje, ares de Paris exalam do Vale do Silício e de Israel. Temos assim uma lógica sistêmica.

AS PERGUNTASA criação, seleção, produção e disseminação tanto da moda

quanto dos modismos da administração são um fenômeno sistêmico e cíclico, e se renovam com estímulos externos (condições de mercado, incerteza tecnológica, sucessão de novos estilos) e internos (frustração com tentativas passa-das de inovar, desejo de diferenciação). Quanto aos resul-tados, inexiste evidência científica da relação causa e efeito entre a adoção de modismos e o aumento de desempenho das empresas.

Diante desse cenário, o bom gestor deve ser capaz de:• qualificar os modismos, separando o joio do trigo;• decidir aplicar, ou não, as novas soluções e técnicas de

gestão após adaptação ao contexto da organização e ao problema específico a ser tratado.

O filtro com três lentes proposto a seguir instrumentaliza o gestor nessas duas tarefas. Cada lente ajuda a entender a

QUANTO MAIS VOLUNTARISTA, MAIOR O RISCO DE O MODISMO ESTAR ALINHADO A ESCOLHAS INDIVIDUAIS E POLÍTICAS, EM

QUE O AMBIENTE TEM POUCA INFLUÊNCIA, E MENORES AS CHANCES DE QUE CRITÉRIOS

TÉCNICOS SEJAM OBSERVADOS.

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Perguntas para graduar os modismos na lente da NATUREZA: a novidade surge como uma visão autôno-ma de um patrocinador central enérgico? É tratada como verdade absoluta? Há pouco espaço para se discutir o pro-blema a ser tratado e a melhor forma de tratá-lo? O mo-tivador principal da adoção é a vontade explícita de fazer, deixando em segundo plano os resultados finais espera-dos? Declarar a adoção é tão importante quanto aderir a ela? A comunicação da novidade tem de ser high-profile, estridente? A discussão dos trade-offs entre os custos de implementação e a expectativa de retorno é superficial?

essência e a plausibilidade do que o modismo propõe, bem como a avaliar a aplicabilidade e, por consequência, a chan-ce de sucesso em caso de adoção da nova técnica.

A primeira lente é a natureza do modismo. Essa lente mede o nível de voluntarismo, ou seja, quanto o modis-mo proposto se baseia na vontade dos atores para mudar o curso dos acontecimentos, numa clara primazia da von-tade sobre o intelecto. Quanto mais voluntarista, maior o risco de o modismo estar alinhado a escolhas individuais e políticas, em que o ambiente tem pouca influência, e menores as chances de que critérios técnicos sejam ob-servados, como nos ensinam os pesquisadores Graham Astley e Andrew Van de Ven.

Lógica sistêmica da modaComponentes sistêmicos dos modismos da administração

“Um grupo de ditadores da moda deter-mina padrões de consumo...

Gurus; consultorias; segmentos da academia

...para uma massa de consumidores ou seguidores...

Conselho de administração; diretoria; gerên-cia; subgurus; palestrantes; imprensa; editoras

...que acompanha um padrão de compor-tamento baseado em regras com recom-pensas apropriadas em função da aderên-cia aos padrões ou penalidades para os transgressores...

Estabelecimento de metas de adoção do mo-dismo independentes daquelas de desempe-nho; bullying para quem não adere

...com um manifesto implícito que quali-fica e define sucesso, importância, atra-tividade e desejos...

Declarações estratégicas; prioridade na agen-da corporativa; novos perfis para recrutamento; ações e programas institucionais

...e que dá as referências de poder e status.”

Mudança da estrutura organizacional; nova nomenclatura de cargos; funções e proces-sos; posts no LinkedIn

OS SISTEMAS SIMILARES DA MODA E DOS MODISMOS DA ADMINISTRAÇÃO

QUANTO MAIS ABRANGENTE, MAIOR O RISCO DE O MODISMO SER COMPLEXO, CUSTOSO, DE RESULTADOS

INCERTOS E DE NEGLIGENCIAR AS ESPECIFICIDADES DE CADA ORGANIZAÇÃO E DO SEU CONTEXTO.

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CLAU SGANZERLA > Doutorando do Doctorate in Business Administration (DBA) da FGV EAESP > [email protected]

PARA SABER MAIS:− Eric Abrahamson. Management Fashion. Academy of Management Review, v.21, n.1,

1996. Disponível em: https://doi.org/10.5465/amr.1996.9602161572− Miguel P. Caldas e Thomaz Wood Jr. Indigestão Antropofágica. GVexecutivo, v.1, n.1, 2002.

Disponível em: http://dx.doi.org/10.12660/gvexec.v1n1.2002.34757− Margaret Brindle e Peter Stearns. Facing Up to Management Faddism: A New Look at an

Old Force, 2001.− Jennifer Craik. The Face of Fashion: Cultural Studies in Fashion, 1993.

Perguntas para graduar os modismos na lente da URGÊNCIA: é necessário aderir já, senão a perda de competitividade será imediata? Há descasamento entre a urgência para aderir e o timing da captura dos bene-fícios, ou seja, “implemente-se já, mas os retornos virão apenas lá na frente”? A nova técnica propõe substituir integral e imediatamente a anterior, ou seja, é do tipo “esqueça tudo o que você sabe sobre...”?

A segunda lente é a abrangência do escopo do modismo. Essa lente mede a amplitude e a profundidade da transfor-mação que o modismo propõe. Quanto mais abrangente, maior o risco de o modismo ser complexo, custoso, de re-sultados incertos e que negligencie as especificidades de cada organização e do seu contexto.

AS RESPOSTASCaso as respostas tendam mais para SIM, cuidado!

“Novas” ideias que não aceitam nem estimulam pensa-mento crítico, que evitam se comprometer com metas cla-ras em prazos adequados, que reforçam exacerbadamente a urgência e que prometem (ou pressupõem) profundas e abrangentes transformações organizacionais são candidatas a modismos exuberantes, passageiros e inefetivos. Tendem a ter alto impacto retórico, acarretar altos custos e entregar pouco resultado. Contribuirão para colocar a empresa nas manchetes e seus líderes nas altas rodas da administração, porém com muito sacrifício, potencialmente gerando im-pactos negativos profundos e de difícil reversão. É neces-sário questionar, criticar e desafiar o conteúdo proposto. Caso a adoção seja inevitável, é prudente fazê-la de forma faseada, estabelecer metas objetivas e avançar conforme os resultados forem sendo atingidos.

Caso as respostas tendam mais para “não”, talvez a reco-mendação seja potencialmente útil e efetivamente ilumine a solução de um problema ou melhore o desempenho da organização. As técnicas de gestão propostas podem estar no caminho certo quando não prometem a solução de to-dos os problemas; reconhecem as dificuldades, os custos e os trade-offs da adoção, ponderando os benefícios espe-rados; conciliam o timing de implementação com o alcan-ce dos resultados; e podem ser executadas em fases ou em pilotos. Como as próprias perguntas das lentes sugerem, é importante ter um diagnóstico preciso da situação a ser re-mediada e entender como as ações propostas pela novidade contribuem para solucionar o problema.

Para andar na moda sem dar vexame, o bom gestor deve exagerar no bom senso e abusar do espírito crítico, sempre ornado com um adequado repertório teórico da administra-ção. As três lentes (natureza, abrangência e urgência) podem ajudar nessa empreitada.

A terceira e última lente é a urgência proposta para a im-plementação. Essa lente mede o nível de ansiedade sugestio-nado para empresas e gestores. Quanto maior for a urgência proposta, maior será a pressão sobre a tomada de decisão. Nessas circunstâncias, os indivíduos perdem capacidade de orientação temporal e tendem a adotar postura mimética (imi-tação) e a escolher, de modo enviesado, mudança em detri-mento de continuidade.

Perguntas para graduar os modismos na lente da ABRANGÊNCIA: é necessária mudança

muito ampla (englobando várias áreas e funções) e muito profunda (afetando valores, cultura, jeito de ser e de fazer da empresa)? A solução proposta é apli-cável a empresas em qualquer nível de maturidade, segmento de atuação e modelo de negócio? A nova técnica de gestão é geral, não seletiva, aplicável a tudo e a todos, indiscriminadamente? Para legitimar a adoção ampla e profunda, é necessário criar novos nomes (como os atuais agile, scrum, sprint e simila-res) para conceitos já há muito tempo conhecidos?