Como Falar Com Garotas Em Festas (Neil-Gaiman)

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Como Falar Com Garotas Em Festas “Vamos lá,” disse Vic. “Vai ser ótimo.” “Não, não vai,” eu respondi, embora já tivesse perdido essa briga horas atrás, e eu sabia disso. “Vai ser demais,” disse Vic, pela centésima vez. “Garotas! Garotas! Garotas!” Ele sorriu com dentes brancos. Nós dois estudávamos em uma escola só para rapazes no sul de Londres. E embora fosse uma mentira dizer que não tínhamos experiência nenhuma com garotas – Vic parecia ter tido várias namoradas, enquanto eu havia beijado três amigas da minha irmã – seria, creio eu, perfeitamente verdadeiro dizer que nós dois só conversávamos, interagíamos e realmente conseguíamos nos relacionar, basicamente, com outros garotos. Bem, pelo menos eu. É complicado falar por outra pessoa, e eu não vejo Vic faz 30 anos. E não tenho certeza se eu saberia o que dizer a ele agora se o visse. Estávamos andando pelos becos que costumavam ficar embaçados pela névoa espessa atrás da estação de East Croydon – um amigo havia contada a Vic sobre uma festa, e Vic estava determinado a ir queira eu gostasse ou não. E eu não gostava. Mas meus pais estavam fora naquela semana para uma conferência e eu era hóspede na casa de Vic, então estava tendo que acompanhá-lo. “Vai ser como sempre é,” eu disse. “Depois de uma hora você vai estar em algum canto se agarrando com a garota mais gata da festa e eu vou estar na cozinha ouvindo a mãe de alguém falando sobre política, poesia ou coisa assim.” “Você só precisa conversar com elas,” ele disse. “Eu acho que é provavelmente aquela rua ali no fim”. Ele gesticulou alegremente, balançando a sacola onde estava a garrafa. “Você não sabe onde é?” ” A Allison me explicou como chegar e eu escrevi num pedaço de papel, mas eu deixei na mesinha do corredor. Mas não tem problema, eu consigo encontrar.” “Como?” A esperança começou a crescer lentamente dentro de mim. “A gente desce a rua,” disse ele, como se estivesse falando com uma criança idiota. ” E procuramos pela festa. Fácil.” Eu procurei, mas não vi festa alguma: apenas casas estreitas com carros ou bicicletas enferrujando nos quintais de concreto, e bancas de jornal com vidro empoeirado, que cheiravam a temperos estrangeiros e vendiam de tudo, de cartões de aniversário e gibis de segunda mão até revistas tão pornográficas que eram vendidas ainda seladas no plástico. Eu havia estado lá quando Vic me passou uma daquelas revistas por debaixo do seu suéter, mas o jornaleiro o pegou na calçada e o fez devolver. Chegamos ao final da rua e viramos em uma ruazinha estreita de casas com terraço. Tudo parecia muito parado e vazio naquela noite de verão. “Pra você tudo bem,” eu disse. “Elas gostam de você. Você não precisa nem falar pra valer com elas”. Era verdade: um sorrisinho do Vic e ele poderia escolher quem quisesse no salão. “Nah, não é assim. Você só precisa conversar.” Nas vezes em que eu havia beijado as amigas da minha irmã, não havia falado com elas. Elas estavam por ali enquanto minha irmã estava fazendo alguma coisa em outro lugar, e foram atraídas até a minha órbita, então as beijei. Não me lembro de nenhuma conversa. Eu não sabia o que dizer a garotas, e disse isso a ele. “São apenas garotas,” disse Vic. “Elas não vêm de outro planeta.” Enquanto contornávamos a curva da rua seguinte, minhas esperanças de que a festa se provasse impossível de encontrar começaram a desaparecer: um baixo ruído pulsante, de música abafada por paredes e portas, podia ser ouvido de uma casa um pouco a frente. Eram oito da noite, não tão cedo assim se você ainda não tem nem 16 anos, e nós não tínhamos. Não mesmo. Eu tinha pais que gostavam de saber onde eu estava, mas não acho que os pais do Vic se importavam muito. Ele era o mais novo de cinco rapazes. Isso por si só parecia mágico para mim: eu apenas tive duas irmãs, ambas mais novas que eu, e sempre me senti tanto único quanto solitário. Eu quis um irmão desde que consigo me lembrar. Quando fiz treze anos, parei de desejar para estrelas cadente ou para a primeira estrela do céu, mas na época em que eu fazia isso, um irmão era tudo que eu tinha desejado. Nós atravessamos o caminho do jardim, que nos levava ao largo de uma cerca viva e uma solitária roseira até uma entrada. Tocamos a campainha e a porta foi aberta por uma garota. Eu não poderia dizer quantos anos ela tinha, o que era uma das coisas a respeito de garotas que eu havia começado a odiar: quando somos crianças, somos apenas meninos e meninas, atravessando o tempo na mesma velocidade. E todos temos cinco, ou sete, ou onze anos juntos. Até que um dia acontece uma guinada e as garotas meio que disparam para o futuro na nossa frente, e elas sabem sobre tudo, e elas tem menstruação e seios e maquiagens e sabe-Deus-o-que-mais – porque eu, certamente, não sabia. Os diagramas nos livros de biologia não representavam, num sentido realmente verdadeiro, jovens adultos. E as meninas de nossa idade sim. Vic e eu não éramos jovens adultos, e eu estava começando a suspeitar que mesmo quando eu precisasse me barbear diariamente, em vez de a cada duas semanas, eu ainda estaria bem atrás. A garota atendeu com um tom interrogativo. “Oi?” Vic disse, “Nós somos amigos da Alison.” Havíamos conhecido Alison, sardenta de cabelos laranja e um sorriso safado, em Hamburgo, em um intercâmbio na Alemanha. Os organizadores do intercâmbio enviaram algumas garotas conosco, de um colégio local para meninas, afim de distribuir melhor os gêneros. As garotas, mais ou menos da nossa

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  • Como Falar Com Garotas Em Festas Vamos l, disse Vic. Vai ser timo. No, no vai, eu respondi, embora j tivesse perdido essa briga horas atrs, e eu sabia disso. Vai ser demais, disse Vic, pela centsima vez. Garotas! Garotas! Garotas! Ele sorriu com dentes brancos. Ns dois estudvamos em uma escola s para rapazes no sul de Londres. E embora fosse uma mentira dizer que no tnhamos experincia nenhuma com garotas Vic parecia ter tido vrias namoradas, enquanto eu havia beijado trs amigas da minha irm seria, creio eu, perfeitamente verdadeiro dizer que ns dois s conversvamos, interagamos e realmente conseguamos nos relacionar, basicamente, com outros garotos. Bem, pelo menos eu. complicado falar por outra pessoa, e eu no vejo Vic faz 30 anos. E no tenho certeza se eu saberia o que dizer a ele agora se o visse. Estvamos andando pelos becos que costumavam ficar embaados pela nvoa espessa atrs da estao de East Croydon um amigo havia contada a Vic sobre uma festa, e Vic estava determinado a ir queira eu gostasse ou no. E eu no gostava. Mas meus pais estavam fora naquela semana para uma conferncia e eu era hspede na casa de Vic, ento estava tendo que acompanh-lo. Vai ser como sempre , eu disse. Depois de uma hora voc vai estar em algum canto se agarrando com a garota mais gata da festa e eu vou estar na cozinha ouvindo a me de algum falando sobre poltica, poesia ou coisa assim. Voc s precisa conversar com elas, ele disse. Eu acho que provavelmente aquela rua ali no fim. Ele gesticulou alegremente, balanando a sacola onde estava a garrafa. Voc no sabe onde ? A Allison me explicou como chegar e eu escrevi num pedao de papel, mas eu deixei na mesinha do corredor. Mas no tem problema, eu consigo encontrar. Como? A esperana comeou a crescer lentamente dentro de mim. A gente desce a rua, disse ele, como se estivesse falando com uma criana idiota. E procuramos pela festa. Fcil. Eu procurei, mas no vi festa alguma: apenas casas estreitas com carros ou bicicletas enferrujando nos quintais de concreto, e bancas de jornal com vidro empoeirado, que cheiravam a temperos estrangeiros e vendiam de tudo, de cartes de aniversrio e gibis de segunda mo at revistas to pornogrficas que eram vendidas ainda seladas no plstico. Eu havia estado l quando Vic me passou uma daquelas revistas por debaixo do seu suter, mas o jornaleiro o pegou na calada e o fez devolver. Chegamos ao final da rua e viramos em uma ruazinha estreita de casas com terrao. Tudo parecia muito parado e vazio naquela noite de vero. Pra voc tudo bem, eu disse. Elas gostam de voc. Voc no precisa nem falar pra valer com elas. Era verdade: um sorrisinho do Vic e ele poderia escolher quem quisesse no salo. Nah, no assim. Voc s precisa conversar. Nas vezes em que eu havia beijado as amigas da minha irm, no havia falado com elas. Elas estavam por ali enquanto minha irm estava fazendo alguma coisa em outro lugar, e foram atradas at a minha rbita, ento as beijei. No me lembro de nenhuma conversa. Eu no sabia o que dizer a garotas, e disse isso a ele. So apenas garotas, disse Vic. Elas no vm de outro planeta. Enquanto contornvamos a curva da rua seguinte, minhas esperanas de que a festa se provasse impossvel de encontrar comearam a desaparecer: um baixo rudo pulsante, de msica abafada por paredes e portas, podia ser ouvido de uma casa um pouco a frente. Eram oito da noite, no to cedo assim se voc ainda no tem nem 16 anos, e ns no tnhamos. No mesmo. Eu tinha pais que gostavam de saber onde eu estava, mas no acho que os pais do Vic se importavam muito. Ele era o mais novo de cinco rapazes. Isso por si s parecia mgico para mim: eu apenas tive duas irms, ambas mais novas que eu, e sempre me senti tanto nico quanto solitrio. Eu quis um irmo desde que consigo me lembrar. Quando fiz treze anos, parei de desejar para estrelas cadente ou para a primeira estrela do cu, mas na poca em que eu fazia isso, um irmo era tudo que eu tinha desejado. Ns atravessamos o caminho do jardim, que nos levava ao largo de uma cerca viva e uma solitria roseira at uma entrada. Tocamos a campainha e a porta foi aberta por uma garota. Eu no poderia dizer quantos anos ela tinha, o que era uma das coisas a respeito de garotas que eu havia comeado a odiar: quando somos crianas, somos apenas meninos e meninas, atravessando o tempo na mesma velocidade. E todos temos cinco, ou sete, ou onze anos juntos. At que um dia acontece uma guinada e as garotas meio que disparam para o futuro na nossa frente, e elas sabem sobre tudo, e elas tem menstruao e seios e maquiagens e sabe-Deus-o-que-mais porque eu, certamente, no sabia. Os diagramas nos livros de biologia no representavam, num sentido realmente verdadeiro, jovens adultos. E as meninas de nossa idade sim. Vic e eu no ramos jovens adultos, e eu estava comeando a suspeitar que mesmo quando eu precisasse me barbear diariamente, em vez de a cada duas semanas, eu ainda estaria bem atrs. A garota atendeu com um tom interrogativo. Oi? Vic disse, Ns somos amigos da Alison. Havamos conhecido Alison, sardenta de cabelos laranja e um sorriso safado, em Hamburgo, em um intercmbio na Alemanha. Os organizadores do intercmbio enviaram algumas garotas conosco, de um colgio local para meninas, afim de distribuir melhor os gneros. As garotas, mais ou menos da nossa

  • idade, eram bagunceiras e divertidas, e tinha namorados quase adultos, com carros, motos, empregos e no caso de uma garota com dente torto e um casaco de guaxinim, que falou meio triste sobre isso comigo no fim de uma festa em Hamburgo, obviamente na cozinha at esposa e filhos. Ela no est aqui, disse a garota da porta. Nada de Alison. No tem problema, disse o Vic, com um sorrisinho. Eu sou Vic. Esse o Enn. Em um instante a garota j sorria de volta para ele. Vic tinha uma garrafa de vinho branco na sacola plstica, roubada do bar dos pais dele. Onde a gente coloca isso ento? Ela abriu espao para que a gente entrasse. Tem uma cozinha l atrs, ela disse. Coloca l na mesa, junto das outras garrafas. Ela tinha um cabelo dourado ondulado, e era absolutamente linda. O corredor estava meio escuro, mas dava pra perceber que ela era linda. Qual o seu nome? perguntou Vic. Ela disse que era Stella, e ele sorriu seu sorriso de dentes tortos e disse a ela que aquele deveria ser o nome mais bonito que ele j havia ouvido. Filho da me bajulador. E o pior era que ele falava como se realmente achasse aquilo. Vic foi deixar o vinho na cozinha e eu olhei para a sala maior, de onde a msica estava vindo. Tinha gente danando l. Stella entrou e comeou a danar, se movendo ao som da msica sozinha, e eu a olhava. Isso aconteceu nos primeiros dias do punk. Nas nossas vitrolas ns tocaramos Adverts and the Jam, os Stranglers, The Clash e Sex Pistols. Nas festas de outras pessoas voc ouviria ELO ou 10cc ou ainda Roxy Music. Talvez um pouco de Bowie, se tivesse sorte. Durante o intercmbio na Alemanha, o nico LP que todos gostavam em comum era o Harvest, do Neil Young, e sua cano Heart of Gold rolou durante a viagem como um refro: Eu atravessei o oceano por um corao de ouro A msica que tocava na sala no era nada que eu reconhecesse. Soava um pouco como um grupo alemo de pop eletrnico chamado Kraftwerk, e um pouco como um LP que me deram no meu ltimo aniversrio, com uns sons esquisitos feitos pela Oficina Radiofnica da BBC. A msica tinha uma batida e, embora meia dzia de garotas naquela sala estivessem se movendo gentilmente junto dela, eu s conseguia olhar para Stella. Ela brilhava. Vic me empurrou, entrando na sala. Ele segurava uma lata de cerveja. Tem birita l na cozinha, me falou. Foi at Stella e comeou a conversar com ela. No consegui ouvir o que eles falavam por causa da msica, mas sabia bem que no havia lugar para mim naquele papo. Eu no gostava de cerveja. No naquela poca. Sa para ver se achava algo que eu quisesse beber. Na mesa da cozinha tinha uma garrafa de Coca-Cola e eu me servi em um copo descartvel, sem ousar falar nada para as duas garotas que estavam conversando em um canto pouco iluminado. Elas estavam animadas e absolutamente adorveis. Cada uma delas tinha a pele bem escura e cabelo brilhoso e roupas como as de estrelas de cinema, e tinham sotaque estrangeiro, e ambas eram muita areia pro meu caminhozinho. Sa andando com a Coca na mo. A casa era maior do que parecia, e mais complexa do que a arquitetura que eu tinha imaginado. Os cmodos tinham pouca iluminao duvido que houvesse alguma lmpada com mais de 40 watts na casa e cada um deles em que entrei tinha gente: na minha memria, apenas garotas. No fui ao segundo andar. Uma garota era a nica ocupante da sala de msica. Seus cabelo de to loiro chegava a ser branco, e era longo e liso. E ela sentava em uma mesa com tampo de vidro, com as mos apertadas uma na outra, olhando para o jardim l fora, na nvoa. Ela parecia ansiosa. Voc se incomoda se eu sentar aqui? perguntei, gesticulando com meu copo. Ela assentiu com a cabea e em seguida encolheu os ombros, indicando que para ela tanto fazia. Eu sentei. Vic passou perto da porta das ala de msica. Estava falando com Stella, mas olhou para mim, sentado naquela mesa cheio de timidez e constrangimento, e fez um sinal abrindo e fechando sua mo, para que eu falasse com ela. Conversar. Tudo bem. Voc de algum lugar por aqui? perguntei garota. Ela balanou a cabea. Ela estava com um decote, e tentei no ficar encarando os peitos dela. Eu perguntei, Qual o seu nome? Me chamo Enn. Wain da Wain ela respondeu, ou algo que soou como isso. Eu sou uma segunda. Isso , hm, isso um nome diferente.

  • Ela me encarou, com olhar inconstante. Isso indica que minha progenitora tambm se chamava Wain, e que eu sou obrigada a me reportar a ela. Eu talvez no procrie. Ah. Bem, meio cedo para isso, de qualquer forma. No ? Ela soltou as mos, levantou acima da mesa e esticou os dedos. Voc v? O mindinho da sua mo esquerda estava meio torto e bifurcado no alto, se dividindo em duas pequenas pontas do dedo. Uma pequena deformidade. Quando eu fui concluda, uma deciso foi necessria. Seria eu mantida ou eliminada? Eu tive sorte que a deciso era por minha conta. Agora eu viajo, enquanto minhas irms mais perfeitas continuam em casa, em inrcia. Elas eram primeiras. Eu sou uma segunda. Em breve devo retornar Wain e contra a ela tudo que vi. Todas as minhas impresses desse seu lugar. Eu no moro de verdade aqui em Croydon, eu disse. Eu no vendo daqui. Eu estava imaginando se ela era americana. No tinha a menor idia do que ela estava falando. Como voc diz, ela concordou, nenhum de ns vem daqui. Ela dobrou sua mo esquerda, a de 6 dedos, por trs da direita, como se estivesse tirando de vista. Eu esperava que fosse maior, mais limpo e mais colorido. Mas ainda assim, uma jia. Ela bocejou e cobriu a boca com a mo direita, apenas por um instante, antes de colocar na mesa novamente. Eu estou cansando de viajar, e s vezes gostaria que isso acabasse. Numa rua do Rio durante o Carnaval, e os vi em uma ponte, dourados e altos, com olhos de inseto e asas, e eu quase corri alegre para saud-los, at que eu vi que eram apenas pessoas fantasiadas. E perguntei Hola Colt, Por que eles tentam tanto parecer como a gente? e ela respondeu, Porque eles odeiam a si prprios, todas as tonalidades de rosa e marrom, to pequenas. o que reparo, at mesmo eu, que no sou crescida. como um mundo de crianas, ou de elfos. A ela sorriu e disse, Foi uma coisa boa que nenhum deles pudesse ver Hola Colt. Hm, eu disse, voc quer danar? Ela balanou a cabea imediatamente. No permitido, disse. Eu no posso fazer nada que possa causar danos propriedade. Eu sou uma Wain. Quer beber alguma coisa, ento? gua, ela disse. Eu voltei cozinha e me servi com mais Coca, e enchi um copo com gua do filtro. Da cozinha at o corredor, e de l at a sala de msica, que agora estava vazia. Imaginei se a garota tinha ido ao banheiro, e se ela mudaria de idia sobre danar mais tarde. Fui de volta ao salo principal e o encarei. O lugar estava enchendo. Havia mais garotas danando, e vrios rapazes que eu no conhecia e que pareciam alguns anos mais velhos que eu e Vic. Os rapazes e garotas mantinham uma certa distncia, mas Vic estava segurando a mo de Stella enquanto danavam, e quando a msica terminou, ele colocou o brao em volta dela, quase como se fosse sua propriedade, para ter certeza que ningum interferiria. Me perguntei se a garota com quem conversei na sala de msica estaria agora no segundo andar, j que ela parecia no estar no trreo. Fui at a sala de estar, que era do outro lado do corredor, e sentei no sof. J havia uma menina sentada l. Ela tinha cabelo escuro, curto e meio espetado, e um jeito meio nervoso.

    Conversar, eu pensei. Hm, esse copo est sobrando, eu disse a ela, se voc quiser Ela assentiu e esticou a mo para pegar o copo, com muito cuidado, como se no estivesse acostumada a pegar coisas, e como se no confiasse nem em sua viso nem em suas mos. Eu adoro ser uma turista, ela disse, e sorriu hesitante. Ela tinha uma fenda entre os dois dentes da frente, e bebeu a gua em pequenos goles, como se fosse um adulto tomando um vinho fino. Na ltima excurso, fomos at o sol, e nadamos no fogo solar com as baleias. Ouvimos suas histrias e nos arrepiamos com o frio dos lugares distantes, e a nadamos mais para o fundo, onde o calor nos aqueceu e confortou. Eu queria voltar. Dessa vez, eu queria. Tinha tanta coisa que eu no havia visto. Mas em vez disso, viemos para esse mundo. Voc gosta? Gosto do que? Ela gesticulou vagamente para o cmodo o sof, as poltronas, cortinas, lamparinas. legal, eu acho. Eu disse a eles que no queria visitar esse mundo, ela falou. Meu pai-professor no se comoveu. Voc tem muito a aprender, disse. Eu falei, Poderia aprender mais no sol, de novo. Ou nas profundezas. Jessa teceu redes entre galxias. Eu queria fazer isso. Mas no havia discusso, e

  • acabei vindo para o mundo. Pai- professor me cercou e aqui eu estava, incorporada nessa maaroca de carne pendurada em uma moldura do clcio. Assim que eu encarnei, senti coisas bem dentro de mim, fluindo e bombando e esguichando. Foi minha primeira experincia empurrando ar pela boca vibrando as cordas bocas no percurso, e eu costumava dizer ao pai-professor que desejava que eu tivesse morrido, o que era uma conhecida estratgia de sada desse mundo. Haviam pulseiras de contas enroladas no pulso dela, e ela brincava com elas enquanto falava. Mas existe conhecimento l, na carne, disse, e eu resolvi aprender com ela. Ns estvamos sentados prximos no centro do sof agora. Eu decidi que devia colocar o brao ao redor dela, mas casualmente. Estenderia o brao pelas costas do sof e eventualmente o baixaria, quase imperceptivelmente, at toc-la. Ela disse, Aquela coisa com o lquido nos olhos, quando o mundo fica borrada. Ningum me explicou, e eu no entendo. Eu toquei as dobras do Sussuro e pulsei e flutuei com os cisnes de Tachyon, e ainda assim no entendo. Ela no era a menina mais bonita ali, mas parecia ajeitada o suficiente, e era uma garota, de qualquer forma. Eu deixei meu brao deslizar um pouco, cuidadosamente, de forma que eu fizesse contato com seu ombro e ela no me dissesse para tirar. Vic me chamou naquela hora, da porta. Ele estava em p com o brao em torno de Stella, acenando para mim. Eu tentei faz-lo perceber, balanando minha cabea, que eu estava no meio de algo, mas ele chamou meu nome e eu, relutantemente, levantei do sof e fui at a porta. O que foi? Err olha. A festa, disse Vic, em tom de desculpa. No a que eu achei que fosse. Eu estava conversando com Stella e cheguei a essa concluso. Bem, ela meio que explicou pra mim. Ns estamos em uma festa diferente. Caramba. E estamos ferrados? Vamos ter que ir embora? Stella negou com a cabea. Ele reclinou e a beijou, gentilmente, nos lbios. Voc est apenas feliz de me ter aqui, no est, querida? Voc sabe que estou, ela respondeu. Ele olhou das costas dela at mim, e sorriu seu sorriso branco: inescrupuloso, adorveis, meio Artful Dodger, com uma pitada de Prncipe Encantado. No se preocupe. Elas so todas turistas aqui de qualquer forma. Um intercmbio estrangeiro, saca? Como da vez que fomos todos pra Alemanha. Ah, ? Enn, voc precisa falar com elas. E isso significa que precisa ouvi-las tambm. Voc entendeu? Eu entendi. E j conversei com duas delas. Est chegando a algum lugar? Eu estava, at voc me chamar. Foi mal por isso.Olha, eu s queria te inteirar das coisas. Tudo bem? E deu um tapinha no meu brao, se afastando com Stella. A, juntos, os dois subiram as escadas. Entenda, todas as garotas da festa, meia-luz, eram adorveis; tinham rostos perfeitos, mas, mais importante que isso, tinham uma certa proporo de estranheza, uma esquisitice ou humanidade que tornam uma beleza maior do que a de um manequim. Stella era a mais bonita de todas, mas ela, claro, era do Vic, e eles estavam subindo juntos, e isso era simplesmente como as coisas sempre seriam. Haviam vrios pessoas sentadas no sof agora, conversando com a garota com abertura no dente. Algum contou uma piada e todos riram. Eu teria que forar a barra para sentar do lado dela novamente, e no parecia que ela estivesse me esperando de volta, ou se importasse que eu tivesse sado, e ento eu vaguei de volta at o corredor. Espiei as pessoas danando e me peguei imaginando de onde a msica estava vindo. Eu no conseguia ver nenhuma vitrola ou caixas de som. De l voltei cozinha. Cozinhas so sempre uma boa em festas. Voc nunca precisa de uma desculpa para estar ali e, no lado positivo, nessa festa no havia nenhum sinal de alguma me presente. Eu dei uma olhada em vrias garrafas e latas na mesa, e me servi com dois dedos de Pernod no copo plstico, o qual completei com Coca. Botei mais dois cubos de gelo e tomei um gole, saboreando o doce acentuado da bebida. O que voc est bebendo? Era uma voz de garota. Pernod, eu contei. Tem gosto de anis, s que alcolico. Eu no disse que s experimentei porque ouvir algum na multido pedir por um Pernod num LP ao vivo do Velvet Underground. Posso tomar um? Eu servi outro Pernod com Coca e passei a ela. Seu cabelo era um ruivo cobreado, e caa em cachos por sua cabea. No um penteado que voc v muito hoje em dia, mas era bem comum naquela poca. Qual seu nome? perguntei. Triolet, ela respondeu.

  • Nome bonito, eu disse a ela, embora no tivesse certeza de que fosse. Mas ela era bonita, no entanto, uma estrofe, ela disse orgulhosa. Como eu. Voc um poema? Ela sorriu e olhou para baixo e para os lados, talvez tmida. O perfil dela era quase reto um nariz perfeitamente grego, que desceu de sua testa em uma linha reta. Ns fizemos Antgona no teatro do colgio no ano anterior. Eu era o mensageiro que levava a Creonte as notcias da morte de Antgona. Usvamos mscaras que nos fazia parecer assim. Eu lembrei da pea, olhando para o rosto dela, na cozinha, e tambm lembrei dos desenhos femininos de Barry Smith nos gibis do Conan: cinco anos depois eu teria pensado em Pr-Rafaelitas, em Jane Morris e Lizzie Siddal. Mas eu s tinha quinze anos ali. Voc um poema? repeti. Ela mordeu seu lbio inferior. Se voc quiser, eu sou um poema, ou sou um padro, ou uma corrida de pessoas cujo mundo foi tragado pelo mar. No difcil ser trs coisas ao mesmo tempo? Qual o seu nome? Enn Ento voc Enn, ela disse. E voc macho. E voc bpede. No difcil ser trs coisas ao mesmo tempo? Mas no so coisas diferentes. Quer dizer, no so coisas contraditrias. Era uma palavra que eu havia lido vrias vezes, mas nunca tinha dito em voz alta antes daquela noite, e eu coloquei nfase nas slabas erradas. Contraditrio. Ela usava um vestido fino feito de um tecido branco sedoso. Os olhos eram de um verde plido, uma cor que me faria agora pensar em lentes de contatos; mas isso foi trinta anos atrs; as coisas eram diferentes ento. Eu lembro de imaginar sobre Vic e Stella, l em cima. A essa hora, tinha certeza que estavam em um dos quartos, e eu invejei tanto Vic que quase doa. Ainda assim, eu estava conversando com essa garota, e mesmo que estivssemos falando baboseiras, e mesmo que o nome dela no fosse realmente Triolet (minha gerao no tinha nomes hippies: todos os Arcos-ris, Raios-de-Sol e Luas tinham apenas seis, sete ou oito anos naquela poca). Ela disse, Ns sabamos que acabaria logo, ento colocamos tudo em um poema, para contar ao universo sobre quem fomos, e porque estivemos aqui, e o que dissemos e fizemos e pensamos e sonhamos e ansiamos. Embrulhamos nossos sonhos em palavras e padres de palavras de forma que eles vivessem para sempre, inesquecveis. E a enviamos o poema como um padro de fluxo, para esperar no corao de uma estrela, irradiando a mensagem em pulsos e exploses e ondas ao redor do espectro eletromagntico, at a hora em que, em mundos a mil sis de distncia, o padro seria decodificado e lido, e se tornaria um poema uma vez mais. E o que aconteceu? Ela me olhou com os olhos verdes, e era como se me encarasse a partir da sua mscara de Antgona; mas como se seus olhos verdes plidos fossem diferente, mais profundos, parte da mscara. Voc no pode ouvir um poema sem que ele mude voc, disse. Eles ouviram, e ele os colonizou. Os herdou e os habitou, com seu ritmo se tornando parte da forma como eles pensavam; suas imagens permanentemente transformando suas metforas; seus versos, sua perspectiva e suas aspiraes se tornando suas vidas. Em uma gerao seus filhos nasceram j sabendo o poema, e cedo ou tarde, como as coisas so, no haviam mais crianas para nascendo. Isso no era necessrio, no mais. Havia apenas o poema, que tomou forma e andou e se esticou atravs da vastido do conhecimento. Eu me aproximei bem dela, de forma que podia sentir minha perna pressionando a dela. Ela parecia receptiva a isso: colocou sua mo no meu brao, afetivamente, e eu senti um sorriso se alargando em meu rosto. Existem lugares onde somos bem-vindas, disse Triolet, e lugares onde somos consideradas ervas daninhas, ou doenas, ou algo que deve ficar em quarentena e ser eliminado. Mas onde o contgio termina e a arte comea? No sei, eu disse, ainda sorrindo. Eu conseguia ouvir a msica estranha enquanto pulsava, dispersava e estourava no salo. Ela se inclinou at mim e suponho que fosse um beijo suponho. Ela pressionou seus lbios nos meus lbios, de qualquer forma, e a, satisfeita, recuou, como se tivesse me marcado como seu. Voc gostaria de ouvir? perguntou, e eu assenti, incerto do que ela estava me oferecendo, mas com a certeza de que eu precisava de qualquer coisa que ela estivesse disposta a me dar.

  • Ela comeou a sussurrar algo no meu ouvido. a coisa mais estranha a respeito de poesia voc consegue notar que poesia at mesmo se voc no fala o idioma. Pode ouvir a Ilada de Homero sem entender uma nica palavra, e ainda assim sabe que poesia. J ouvira poesia polonesa e poesia esquim. E eu sabia o que era, sem saber na verdade. O sussurro dela era como isso. Eu no conhecia a lngua, mas as palavras mergulhavam atravs de mim perfeitamente, e na minha mente eu vi torres de cristal e diamante/ e pessoas com olhos do verde mais plido; e, sem parar, por trs de cada slaba, eu podia sentir o implacvel avano do oceano. Talvez eu a tenha beijado adequadamente. No lembro. S sei que eu quis. E a Vic estava me sacudindo violentamente. Vamos l! ele estava gritando. Rpido. Vamos l! Na minha cabea, comecei a voltar de milhares de quilmetros de distncia. Seu idiota, vamos l. Vamos andando logo, ele disse, e me xingou. Havia fria na sua voz. Pela primeira vez naquela noite, eu reconheci uma das msicas tocadas no salo principal. Um lamento triste no saxofone seguido de uma sequncia de corda e uma voz de homem cantando uma letra sobre os filhos da era silenciosa. Eu queria ficar e ouvir a msica. Ela disse, Eu no terminei. Ainda tem mais de mim. Desculpa, amor, disse Vic, mas ele no sorria mais. Vai ter outra hora, e me agarrou pelo ombro e me puxou, me forando para fora do cmodo. No resisti. Eu sabia por experincia prpria que Vic poderia me espancar se colocasse isso na cabea. Ele no o faria a menos que estivesse chateado ou emputecido, mas ele estava bem puto agora. Corredor da frente. Enquanto Vic puxava a porta para abrir, olhei para trs uma ltima vez, por cima do ombro, esperando ver Triolet na porta da cozinha, mas ela no estava l. Vi Stella, no entanto, no alto das escadas. Ela estava olhando para Vic, e eu vi seu rosto. Isso tudo aconteceu trinta anos atrs. Eu esqueci de muita coisa, e vou esquecer de ainda mais, e no fim vou esquecer de tudo; no entanto, se eu tenho qualquer certeza sobre a vida aps a morte, tudo se resume no a salmos ou hinos, mas apenas nessa coisa: eu no posso acreditar que eu algum dia esquecerei esse momento, ou esquecerei a expresso no rosto de Stella enquanto ela via Vic se apressando para longe dela. At na morte eu lembrarei disso. Suas roupas estavam dessarumadas, e tinha a maquiagem manchada pela face, e seus olhos - Voc no gostaria de deixar um univers0 bravo. E eu aposto que um universo bravo olharia voc com olhos assim. Ns corremos ento, eu e Vic, para longe da festa dos turistas e da escurido. Corremos como se uma tempestade de raios estivesse atrs da gente, como se uma houvesse uma grande confuso nas ruas, atravessando um labirinto, e no olhamos para trs, e no paramos at que no pudssemos respirar; e a paramos e tomamos flego, incapazes de correr mais. Estvamos com dor. Nos seguramos em um muro e Vic vomitou, bastante e por muito tempo, na sarjeta. Ele limpou sua boca. Ela no era uma- Ele parou. Balanou a cabea. E a disse, Voc sabe eu acho que tem uma coisa. Quando voc vai at onde voc ousa. E se voc vai um pouco alm, voc no mais voc mesmo? Voc a pessoa que fez aquilo? Os lugares onde voc simplesmente no pode ir Eu acho que isso aconteceu comigo essa noite. Eu acho que sabia do que ele estava falando. Comer ela, voc diz? eu falei. Ele me socou com fora na tmpora, e rodei violentamente. Me indaguei se teria que brigar com ele e perder mas depois de um momento, ele baixou a mo e se afastou de mim, fazendo um barulho baixo, engolindo a seco. Eu olhei para ele curioso, e percebi que estava chorando: seu rosto estava vermelho, com ranho e lgrimas rolando pelas bochechas. Vic estava soluando na rua, como um garotinho desprotegido e de corao partido. Ele se afastou de mim ento, com ombros pesando, e se apressou pela rua de forma que ele estivesse bem a frente e eu no pudesse mais ver seu rosto. Me indaguei do que pudesse ter acontecido naquele quarto l em cima para faz-lo agir assim, para assust-lo tanto, e no tinha a menor idia de por onde comear a imaginar. As luzes da rua se acenderam, uma a uma; Vic tropeava a frente, enquanto eu andava devagar atrs dele no anoitecer, minhas passadas seguindo a mtrica do poema que, por mais que eu tentasse, no poderia lembrar propriamente, e jamais seria capaz de repetir.