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1 Comida: afeto, tradições e direito CONBRAN, 18 de abril de 2018 Maria do Carmo Soares de Freitas Profa. Departamento de Nutrição da UFBA Paulo Gilvane Lopes Pena Prof. Departamento de Medicina Preventiva da UFBA Para uma compreensão do tema Comida e suas relações com o afeto, a tradição e o direito, apresentamos algumas considerações sobre a nutrição enquanto um objeto da cultura e da saúde. Além da racionalidade científica da nutrição, é possível pensar ciência e cultura com a história alimentar, gosto reconhecido, reproduzido e representado a cada dia. Para analisar esta perspectiva partimos de duas premissas: a primeira trata de reflexões sobre nutrição e alimentação e a segunda apresenta uma linha de pensar o assunto por meio da etnonutrição. Com isso, sugerimos valorizar estudos e pesquisas que contemplam os enunciados de diferentes sujeitos em contextos sociais específicos, sobre comer e nutrir-se. Pesquisas estas, de abordagens qualitativas (FREITAS, 2011; GRACIA ARNAIZ, 2005). Para nutricionistas que convivem o dia-dia com os problemas clínicos e sociais da nutrição, sugerimos discutira etnonutrição enquanto método de trabalho; um exercício de observação minuciosa e de análise do discurso do sujeito, o paciente, o comensal, o escolar, o idoso etc., para a prática do cuidado. Etnonutrição é uma tecnologia social tão importante quanto as análises clinicas e bioquímicas que caracterizam a saúde. A ideia de uma etnonutrição está ao lado da dietética, sem separação e possibilita gerar informações

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Comida: afeto, tradições e direito

CONBRAN, 18 de abril de 2018

Maria do Carmo Soares de Freitas

Profa. Departamento de Nutrição da UFBA

Paulo Gilvane Lopes Pena

Prof. Departamento de Medicina Preventiva da UFBA

Para uma compreensão do tema Comida e suas relações com o afeto, a

tradição e o direito, apresentamos algumas considerações sobre a nutrição

enquanto um objeto da cultura e da saúde.

Além da racionalidade científica da nutrição, é possível pensar ciência e

cultura com a história alimentar, gosto reconhecido, reproduzido e representado

a cada dia.

Para analisar esta perspectiva partimos de duas premissas: a primeira trata

de reflexões sobre nutrição e alimentação e a segunda apresenta uma linha de

pensar o assunto por meio da etnonutrição. Com isso, sugerimos valorizar

estudos e pesquisas que contemplam os enunciados de diferentes sujeitos em

contextos sociais específicos, sobre comer e nutrir-se. Pesquisas estas, de

abordagens qualitativas (FREITAS, 2011; GRACIA ARNAIZ, 2005).

Para nutricionistas que convivem o dia-dia com os problemas clínicos e

sociais da nutrição, sugerimos discutira etnonutrição enquanto método de

trabalho; um exercício de observação minuciosa e de análise do discurso do

sujeito, o paciente, o comensal, o escolar, o idoso etc., para a prática do cuidado.

Etnonutrição é uma tecnologia social tão importante quanto as análises

clinicas e bioquímicas que caracterizam a saúde. A ideia de uma etnonutrição

está ao lado da dietética, sem separação e possibilita gerar informações

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humanas, que se relacionam ao comer com afeto, tradições e direito. Direito de

saber o que se come, onde a comida foi produzida, se o alimento é transgênico

ou não, se há outras contaminações químicas como agrotóxicos etc. Conhecer o

que se come é um direito básico.

Teoricamente, entendemos a nutrição como um campo pouco explorado

enquanto fenômeno da cultura e a ser analisado do ponto de vista dos atores

sociais, que discursam sobre o comer bem para o corpo e o espírito. Ou seja, está

junto ao alimento, significados como: o bem, o saudável, o adequado, comida de

verdade (conforme a agroecologia), termos estes, semânticos do comer para o

ser humano, ou manifestações da cultura alimentar. A nosso ver, cultura, nutrição

e contexto social se reúnem na perspectiva teórica compreensiva das ciências

humanas e sociais.

Vamos lembrar que a tradição alimentar da humanidade está direcionada

ao sustento, e os sentidos do comer encontram-se envolvidos em diversos

símbolos em cada sociedade. Com isso, podemos dizer que o ato de comer é

semiótico, pois há muitos sentidos ou sensações, como: textura, cheiros, gostos,

cores, recordações formando quase sempre um conjunto colorido que produz

magia e sedução. Como exemplo no Brasil, lembramos uma moqueca de peixe e

camarão, cuja beleza culinária é impossível, para muitos, resistir. O gosto se

soma ao olhar e ao cheiro, sobretudo a memória afetiva ao recordar.

Do mesmo modo, alguns se lembram do churrasco de domingo, barreado,

frango caipira, pato no Tucupi, pãozinho de queijo, cheiro dos legumes colhidos

na horta, cheiro da terra molhada, do dia de chuva e da comidinha da infância,

como o macarrão colorido de letrinhas da merenda escolar. Há também os que

recordam a falta de comida pela vivência da fome crônica como uma espécie de

cicatriz psíquica para toda a vida.

A estética do comer torna possível o retorno ao passado e inaugura novos

sabores. Ainda assim, para nós, não é possível, nem é científico deixar a

historicidade no esquecimento. Foram 400 anos de escravidão de africanos e

seus descendentes, com uma culinária escrava, dos suplícios de pouca comida e

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muitos castigos. Apesar disso, houve a criação de um receituário das senzalas

com misturas de coco, milho, temperos e dendê.

A despeito de todo sofrimento dos escravos e escravas, a vontade de

potência ou vontade de viver afirmou uma herança importante na culinária

brasileira, como uma manifestação da vida e da liberdade.

Também, a tradição alimentar e cultural apresenta-se como um ritual de

promessa religiosa a exemplo da comida de Santo no Candomblé, o caruru dos

Ibejis (Cosme e Damião), ou tantas apresentações culinárias religiosas com

restrições de alimentos, em que tudo são ideias, representações (como a força e

a fraqueza do alimento) no campo material e imaterial. Estas e outras informações

precisam ser analisadas por nós nutricionistas, com profundo cuidado e

sensibilidade. São valores significativos que agregam aspectos nutricionais e

culturais.

Há tantos exemplos a recordar em nossa história social, na formação dos

hábitos alimentares, que nos faz pensar a importância da comida conjugada às

relações com a afetividade, a tradição e o direito de viver com saúde e liberdade.

Desde a primeira alimentação, àquela naturalizada como tardia, na velhice,

só permanece na memória o que está ligado aos hábitos, a identidade do gosto, a

afeição, sentidos domesticados da cultura alimentar. Assim, a dieta ou a

orientação alimentar será sempre um lugar efêmero se estiver fora dos

significados sociais e culturais.

A prática do nutricionista na dietética moderna é interdisciplinar, pois para

compreender hábitos é necessário contemplar saberes das ciências humanas,

econômicas e biológicas. Creio que também filosóficas e gastronômicas em

muitos momentos.

Da produção de alimentos à comida na mesa, há muito o que pensar.

Natureza e cultura, por exemplo, expressam uma dualidade explicativa para as

atividades culinárias conforme observou Lévi-Strauss (2004). Para este autor,

cru-cozido-podre representa o tripé da transformação natureza versus cultura.

Dessas contradições nascem outras representações conotadas na linguagem.

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A cozinha, então, conjuga natureza e cultura como oposições: comida da roça

e da cidade; fria e quente; faz bem e faz mal etc. A comida é linguagem, a

culinária revela e a nutrição pode acolher.

*

Segundo Josué de Castro na sua obra Geografia da Fome (1946), havia,

entre 1930-40, uma insuficiência de vitaminas e minerais, proteínas e outros

alimentos energéticos principalmente para os mais pobres do Norte e Nordeste

(CASTRO, 1946). No mesmo período, Antônio Candido ressaltou na dieta do

caipira paulista a carência de variações de verduras e frutas além da dificuldade

do consumo de carnes (CANDIDO, 2017). Possivelmente, havia uma composição

uniforme, como uma monotonia alimentar em todas as regiões. Era habitual

comer carne seca e farinha no Norte e Nordeste, pedaço de toicinho rançoso

cozido até desmanchar no feijão, que se misturava com arroz. Era comum feijão

com arroz, independente da classe social; uma comida básica no campo e nas

cidades. As diferenças econômicas estavam fundamentalmente no uso de leite de

vaca e carnes, além de receitas de doces para os de melhor poder aquisitivo. Em

geral, podemos dizer que eram estes os principais hábitos alimentares de grande

parte da população brasileira daquela época.

Dados recentes do Ministério da Saúde (2017) mostram que ainda há

deficiências de micronutrientes na alimentação em geral, e redução do binômio

feijão com arroz no prato do brasileiro. Paradoxalmente, há uma mudança nos

resultados antropométricos, quando se manifesta uma redução da desnutrição e o

aumento do excesso de peso tanto nas populações do campo como nas cidades

(BRASIL, 2017).

Com a histórica desigualdade social e econômica, o Brasil ficou no mapa da

fome crônica mundial até 2012 quando conseguiu reduzir a desnutrição com

políticas públicas e sociais tais como: transferência de renda, e alguma melhoria

do poder aquisitivo da população segundo a Organização das Nações Unidas

(ONU, 2017). Ainda havia fome e pobreza, mas houve melhorias visíveis com um

mínimo de redução da desigualdade social.

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Entretanto, é possível que piores condições retornem agora, com níveis altos

de desempregos com cerca de 13 milhões de pessoas, e déficits de políticas

públicas e sociais (IBGE, 2017).

É dramático viver com tão pouco alimento ou com alimentos provisórios.

Fome é um fenômeno milenar, com cerca de um bilhão de pessoas a viverem

esse drama social e político no mundo. É um fenômeno social presente em

qualquer sociedade com extremas desigualdades de acesso aos alimentos em

quantidade e em qualidade. Permanente insuficiência de macro e micronutrientes

em várias fases da vida.

Conforme nossa observação em um estudo etnográfico, a fome não está

ancorada na dimensão clínico patológica como o termo desnutrição anuncia nas

ciências da saúde. Os famintos referem sentir "uma agonia no peito e não no

estômago”, o peito é o lugar da angustia, da identidade, do eu que sente fome [...]

“E tanto faz ser uma pessoa magra ou gorda, sentir essa dor depende da

natureza da pessoa". Aqui, a natureza do corpo é estar no mundo da vida, onde

sobreviver depende da força e da fraqueza de existir. Há então, uma complexa

associação deste fenômeno fome com mitos, imaginário, realidade cruel que se

misturam com crenças para suportar os sentidos de fome (FREITAS, 2003).

E, apesar das condições precárias de muitas pessoas que vivenciam a

insegurança alimentar, observa-se um esforço e uma criatividade na culinária

rudimentar que se tem acesso, em que o mínimo é temperado com crenças, e o

pensamento joga força no jeito de fazer uma sopa, um mingau para criança, ou

um pirão para levantar as forças humanas (FREITAS, 2003).

Muitas vezes a comida que se tem é um biscoito que incha no estômago; um

macarrão instantâneo, cuscuz com açúcar e garapa, mingau das crianças com

farinha de mandioca cessada com uma pitada de sal e mexida no fogo até dar o

ponto do gosto. Tudo é criação e nem sempre escolhas. Trata-se de acesso ao

alimento. Entra em conexão insegurança alimentar e outras faltas sociais como a

ausência de saneamento básico, falta de terra para plantar segurança alimentar

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para a família, desemprego, baixa renda familiar, meio ambiente inóspito,

contaminação ambiental, falta de escolas e de renda para comer.

*

De fato, para entender os problemas alimentares de uma população é

preciso conhecer a história da produção de alimentos, os problemas

socioeconômicos e a formação de hábitos alimentares.

Assim, necessitamos conhecer os modos de ver e sentir a incerteza social

de alimentar-se para saber como agir na nutrição.

Vale dizer, que a agricultura familiar é uma das mais importantes agendas

públicas de Segurança Alimentar e Nutricional que pode contribuir para manter

trabalhadores e suas famílias no campo. E para contribuir com essa intenção, nós

nutricionistas estamos fortalecendo as políticas públicas que estimulam a compra

da agricultura familiar ao elaborar cardápios para o PNAE, hospitais públicos,

restaurantes universitários e comunitários, quartéis etc. Com isso, pode haver

mais legumes e frutas, farinha e derivados para esta população, na perspectiva

de promover uma alimentação mais saudável e, simultaneamente, fortalecer

práticas econômicas em localidades rurais e pesqueiras. Em síntese, a dieta

prescrita pela nutricionista repercute na economia e na sociedade em geral.

*

Também, há os que têm alimentos e não conseguem comer em suficiência.

Essa é outra questão. Como entender os transtornos alimentares em relação ao

gênero, as culturas de classes sociais, as tradições associadas à comida? Como

entender a anorexia? Que práticas sociais podem superar os distúrbios

alimentares e as pressões corporais que derivam dos mercados da competição

estética? Esses assuntos podem ser também estudados como problemas

filosóficos da ética corporal presente na nutrição e em nossa história política e

social.

Entretanto, o grande paradoxo é a obesidade que também atinge a

pobreza. Nos tempos atuais a comida que os mais pobres têm acesso em geral é

de má qualidade e engordante. Mas, também ricos estão engordando. Há comida

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em abundância e diferentes qualidades de acesso. Notamos uma mudança de

hábitos alimentares nos últimos 40 anos com maior frequência de consumo de

alimentos industrializados ricos em gordura, carboidratos, produtos químicos

(conservantes e outros), associados a expansão do fastfood, bebidas açucaradas

emarketing de estimulo ao consumo excessivo de comida. Isto nos faz lembrar

salas de cinema com enormes baldes de pipocas e refrigerantes, como se o gosto

e a emoção de assistir imagens produzissem um sinergismo de sensações de

prazer entre paladar e olhar (FREITAS et al, 2011).

*

A obesidade é considerada o maior problema de saúde pública desse início

do século XXI, conforme a Organização Mundial da Saúde, a qual a define como

um risco para diabetes, doenças cardiovasculares e câncer, entre outros

problemas de saúde. Os dados da OMS mostram que em 2016 havia no mundo

39% de mulheres e homens com sobrepeso. No Brasil obesidade e sobrepeso

representam 56% (WHO, 2018).

Os dados impressionam. Sobrepeso e obesidade já são comuns em países

como EUA, Brasil, México, Equador, França e outros. E, em vários lugares a

obesidade se associa à condição faminta. Essa é a complexidade. Se a

considerarmos doença, conforme definição biomédica, estamos diante de uma

importante epidemia. Um desafio! Pois, há uma variedade de questões que

cercam a obesidade, como: sedentarismo, ingestão excessiva de alimentos

processados e ultraprocessados, insuficiente ingestão de frutas e verduras na

alimentação diária (IBGE,2009/18); e ainda acrescentamos o predicado moral que

envolve obesidade: A rejeição social. Nesse aspecto, vale destacar a importância

de estudos qualitativos para a análise do campo semiótico da obesidade

enquanto fenômeno biossocial na atual sociedade moderna (ARAÚJO, 2015).

Em geral, as pessoas vivem pressões e modelos corporais distintos,

segundo sua condição social. E para conhecer as vivências de pessoas com

obesidade pensemos em um processo discursivo que nos permita analisar os

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significados biológicos e socioculturais em uma semiologia de imagens corporais

e alimentar.

O corpo como centro de atenção compõe os mercados de esporte, estética,

sexual e outros. Na realidade, trata-se de interesses comerciais, midiáticos das

elites econômicas.

As corporações industriais e farmacêuticas ganham com o fomento de

consumo excessivo de alimentos e com as restrições dietéticas diet, light assim

como se articulam a indústria de atividades de exercícios em academias que se

estendem nas cidades desassistidas de parques e locais para um caminhar livre

sob o sol e a vitamina D.

O capital na busca de lucros sobre o corpo, se acerca de arquétipos

corporais auxiliados por campanhas publicitárias pseudocientíficas que

confundem e ditam modismos para a população. O objetivo da indústria é manter

o corpo em constante tensão entre engordar e emagrecer.

Esse movimento das corporações das indústrias alimentar e farmacêuticas

influenciam modos de consumo e de controle da comida, sacrifícios do obeso

para manter o discurso oficial de um corpo cuja morfologia segue normas

instituídas, sem considerar as perspectivas de controle desta epidemia de

obesidade.

Interessa mais a estética comercial que o bem-estar?

Para os que estão fora dos padrões corporais o estigma contra o obeso

aparece como uma ferida social (ARAÚJO, 2015). Experiências noéticas de

obesos (quer dizer: a disposição de pensar o problema), mostram um duplo

sentido da obesidade: como enfermidade em que o paciente dócil e servil, deve

lutar contra seu corpo; e como processo de vitimização social tem sua integridade

afetada pelo estigma, pois o corpo obeso não é um projeto de corpo do mercado

estético, nem das elites e nem da família (MORENO, 2010).

O estigma começa em casa e a família assume um papel central para o

acolhimento, a compaixão, o cuidado. Mas, o estigma está também no trabalho,

nas ruas, no imaginário de quem vê o corpo a engordar. A população, em geral,

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não é capaz de aceitar a morfologia obesa. Os diagnosticados com obesidade

podem dizer que “não estão doentes” ou que engordam sem comer em excesso.

Para alguns a gordura parece estar fora do corpo, como um miasmaque

contamina; um excedente que atinge a pessoa, como pensam algumas

comerciantes de acarajé em Salvador ao dizer que a gordura está no ar e entra

no corpo (MELLO, 2011). A obesa assim explica sua obesidade sem construir

qualquer vínculo entre boca, excesso de comida e sedentarismo.

No campo moral, há casos em que a obesidade é resultante da indisciplina

corporal que joga o obeso para um conjunto de dietas restrições e humilhações.

Restrito ao campo biomédico a pessoa com obesidade se converte, em uma

carga susceptível de tratamento racional, autocontrole e tensão corporal

(MORENO, 2017). A conquista do próprio corpo é uma inscrição contra a

autoridade da disciplina corporal para o bem-estar da pessoa. Não é preciso

sacrifício, mas autonomia enquanto um princípio ético e bioético.

Em síntese, observamos que a OMS desconsidera o que gera mais

sofrimento na pessoa com obesidade (WHO, 2018). A questão não é a epidemia

da obesidade, apenas. Mas, também a epidemia do estigma da pessoa obesa.

Assim, do individual ao coletivo, questões de gênero e classe social devem ser

discutidas, e os planos terapêuticos dialogar com os determinantes socioculturais.

Nessa perspectiva de abertura, outra vez não podemos separar a nutrição da

cultura.

A relação humana com o alimento é afinidade com os significados que o

sujeito faz de sua comida e seu corpo. Nesse aspecto, o alimento não é somente

bioquímico, mas, repleto de valores culturais. Se não considerarmos essa

dimensão cultural do alimento vamos reduzir a comida à ração química alimentar.

Ou seja, uma condição veterinária e não uma nutrição-humana. Nem o faminto

pode ser condenado a comer ração, pois a falta de comida os humilha. As

pessoas querem refeição e obter nutrição como um direito humano de existir.

Direito a segurança alimentar pois o alimento provisório e de má qualidade pode

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implicar indignação e fome. Então, o direito à alimentação adequada é uma dívida

política da nossa democracia.

Referimos ao direito à diversidade de comer com dignidade nas populações

indígenas, quilombolas, pescadores e pescadoras, áreas rurais e urbanas. Às

tradições miscigenadas indígenas, afro-brasileiras, asiáticas, europeias, no Brasil

são todas estas marcas de identidade sociocultural inscritas na comida.

É possível uma etnonutrição enquanto método de análise intertextual sobre

nutrição e cultura, com o olhar intersubjetivo para garantir um tratamento dietético

construtivista; dialogado com os sujeitos. Isto quer dizer, uma nutrição cultural

aplicada ou uma dietética culturalmente significativa.

Do mesmo modo, é possível discutir Segurança Alimentar e Nutricional -

SAN em um grupo social, uma comunidade com instrumentos do paradigma

qualitativo. Uma etnociência, em particular, a etnonutrição é nossa principal

discussão para a compreensão interdisciplinar da nutrição tanto na singularidade

da dietética, como na pluralidade dos grupos sociais, formando um conjunto

polissêmico de leituras socioculturais.

Este campo de estudo poderia ser ainda mais refletido com a antropologia

da técnica dietética que reunisse fenomenologia e hermenêutica para dar conta

da interpretação de enunciados sobre hábitos e tabus alimentares.

No sentido ontológico, estamos preocupados com o cuidado com o

indivíduo, a coletividade e as futuras gerações.

A etnonutrição é uma estratégia das ciências humanas que possibilita as

nutricionistas interpretarem os grandes desafios do mundo moderno, desde a

fome crônica à obesidade, e a crítica aos excessos da indústria química na

dietética. Trata-se, pois, da complexidade de leituras que envolvem a comida e

suas relações com o afeto, as tradições e o direito de viver.

Bom congresso a todas e todos!

Referências

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