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28 se na varanda. Tocou-se sino. A noitinha incendiou-se de repente a casa, sozinha. O fogo durou dias, consumindo-se o morto em cinzas. COMENTÁRIOS: O conto é narrado em terceira pessoa, mas o narrador coloca-se dentro da narrativa aludindo seu parentesco com o protagonista, Tio Man’Antônio. O texto é iniciado a partir de uma referência aos contos de fadas, o protagonista poderia ter sido rei ou príncipe. A temática prende-se à loucura, já que as atitudes do protagonista não são compreendidas. A prisão aos bens materiais parecia estar ligada apenas à segurança da família. Morta a mulher, Tio Man Antônio procurou destruir tudo que ela gostava, uma vez que não estava mais ali para gostar. Suas atitudes são movidas pelo seu “fazer de conta”, que acaba por realizar os desejos de seus empregados. 13) O CAVALO QUE BEBIA CERVEJA Numa chácara que ficava escondida, morava um estrangeiro, um italiano que tinha atitudes estranhas: comia caramujo, rã e braçadas de alface dentro de um balde de água. Comia sentado na soleira da porta, o balde entre as grossas pernas. Pedia sempre ao narrador que comprasse cerveja, que não bebia à vista das pessoas. Dizia que era para O cavalo. Não conseguia dizer o nome do rapaz que buscava cervejas para ele: Reivalino Belarmino. Chamava-o Irivalíni. O estrangeiro despertava raiva e nojo no rapaz. A mãe de Reivalino era estimada por seo Giovânio, o estrangeiro. A chácara era escurecida pelas árvores, em grande número em volta da casa, O homem tinha vários cães graúdos, para vigiarem a moradia, O menos bem tratado, de nome Mussulino, não saía do pé dele. Quando a mãe de Reivalino morreu, o rapaz foi trabalhar com o italiano. Na casa não se entrava, nem para comer, nem para cozinhar. Mesmo o homem poucas vezes lá se introduzia. Tudo se passava do lado de fora das portas. Reivalino foi chamado por seo Priscílio, subdelegado, para falar com dois homens vindos da capital. Eram autoridades. Queriam informações sobre o estrangeiro. Diziam ser homem muito perigoso. Queriam saber se vivia lá sozinho. Reivalino não deu informações. Prometeu ver se ele tinha numa perna sinal velho de coleira, argolão de ferro, de criminoso fugido de prisão. J J O O Ã Ã O O G G U U I I M M A A R R Ã Ã E E S S R R O O S S A A T T e e r r c c e e i i r r ã ã o o 2 2 0 0 1 1 0 0

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se na varanda. Tocou-se sino. A noitinha incendiou-se de repente a casa, sozinha. O fogo durou dias, consumindo-se o morto em cinzas.

COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em terceira pessoa, mas o narrador coloca-se dentro da narrativa aludindo seu parentesco com o protagonista, Tio Man’Antônio.

O texto é iniciado a partir de uma referência aos contos de fadas, o protagonista poderia ter sido rei ou príncipe. A temática prende-se à loucura, já que as atitudes do protagonista não são compreendidas. A prisão aos bens materiais parecia estar ligada apenas à segurança da família. Morta a mulher, Tio Man Antônio procurou destruir tudo que ela gostava, uma vez que não estava mais ali para gostar. Suas atitudes são movidas pelo seu “fazer de conta”, que acaba por realizar os desejos de seus empregados.

13) O CAVALO QUE BEBIA CERVEJA

Numa chácara que ficava escondida, morava um estrangeiro, um italiano que tinha atitudes estranhas: comia caramujo, rã e braçadas de alface dentro de um balde de água. Comia sentado na soleira da porta, o balde entre as grossas pernas. Pedia sempre ao narrador que comprasse cerveja, que não bebia à vista das pessoas. Dizia que era para O cavalo. Não conseguia dizer o nome do rapaz que buscava cervejas para ele: Reivalino Belarmino. Chamava-o Irivalíni. O estrangeiro despertava raiva e nojo no rapaz. A mãe de Reivalino era estimada por seo Giovânio, o estrangeiro.

A chácara era escurecida pelas árvores, em grande número em volta da casa, O homem tinha vários cães graúdos, para vigiarem a moradia, O menos bem tratado, de nome Mussulino, não saía do pé dele.

Quando a mãe de Reivalino morreu, o rapaz foi trabalhar com o italiano. Na casa não se entrava, nem para comer, nem para cozinhar. Mesmo o homem poucas vezes lá se introduzia. Tudo se passava do lado de fora das portas.

Reivalino foi chamado por seo Priscílio, subdelegado, para falar com dois homens vindos da capital. Eram autoridades. Queriam informações sobre o estrangeiro. Diziam ser homem muito perigoso. Queriam saber se vivia lá sozinho. Reivalino não deu informações. Prometeu ver se ele tinha numa perna sinal velho de coleira, argolão de ferro, de criminoso fugido de prisão.

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BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA

João Guimarães Rosa não foi uma pessoa comum, dessas que se conhece pelo mundo e se esquece no grotão seguinte da passagem pelo viver. Deixou pegadas de mágico-mistério nas entrelinhas da literatura brasileira, marcas que não podem ser substituídas de vez em vez por aqueles que fazem da leitura mais do que um ganha-pão, mas um ato de (sobre) viver. Vamos marcar passo no comum e dizer que foi único, e pronto, afinal nada mais seria necessário acrescentar. Sua paixão viva pelo mundo do sertão das geraes consubstanciou-se no amor crescente de muitos leitores. Fez-se mistério vivo do verbo que renasce e conforta. Em suas próprias palavras: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”. Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, em 1908, pequena cidade situada entre Curvelo e Sete Lagoas, Minas Gerais. Foi menino nessa região de gado vacum, de onde saiu aos dez anos para estudar no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte. Já não era um menino comum, pois gostava de botânica, zoologia e literatura. Lera seu primeiro livro em francês aos seis anos. Por causa de sua figura circunspecta e estranhíssima, ganara no colégio o apelido de “boi sonso”. Uma vez terminado o colégio, ingressou na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Os anos dedicados ao curso e, depois, ao exercício da Medicina em Itagurara, município de Itaúna, não lhe tiraram o gosto pela literatura. Já, naquela época, fora premiado várias vezes por seus contos no concurso promovido pela revista O Cruzeiro. Mas eram textos que ainda não definiam seu estilo e sua linguagem. Serviu como médico voluntário, em 1932 e depois como concursado. Em 1936, foi premiado pelo livro de poemas Magma no concurso da Academia Brasileira de Letras, livro que ainda permanece inédito. Em 1937, concorreu com o livro Contos ao prêmio - Humberto de Campos, obra que se transformaria mais tarde em Sagarana. Sua paixão por vários idiomas levou-o a prestar exame para o Itamarati em 1934. Em 1938, foi nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo. Chegou a ser internado em Baden-Baden como preso de guerra, tendo sido trocado por diplomatas alemães. Em 1946, foi nomeado chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura. No mesmo ano, estreou com a publicação de Sagarana, obra que lhe rendeu vários prêmios importantes da literatura brasileira. Em 1952, fez viagem pelo sertão de Minas Gerais com um grupo de vaqueiros.

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Guimarães Rosa nota-se nítida presença de questionamento metafísico.

O conto dá-nos mostra da experiência pessoal do autor em rituais iniciáticos, pois fazia parte de sociedades esotéricas e partilhava de experiências místicas. A consulta de sua biblioteca particular comprova tal versão, bastando para tanto ler Caos e Cosmos de Suzi Frankl Sperber (Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1976).

12) NADA E A NOSSA CONDIÇÃO

Tio Man’Antônio era fazendeiro. Era proprietário da fazenda Torto-Alto. Tinha boas terras e um boa sede. Era casado com Tia Liduína. Mas, com a morte da mulher, o seu comportamento passou a causar estranheza a todos que o conheciam. Parecia negar a morte da companheira, pedindo a todos que fizessem de conta que ainda estava viva.

Inesperadamente, passou a melhorar ainda mais a fazenda, derrubando os matos. Cortou as árvores que tanto agradavam Tia Liduína. Mudou o aspecto do lugar. Aumentou seus pastos, como se previsse que aumentaria o preço do gado. Para comemorar o dia de Tia Liduína, propôs uma festa, como se ela ainda fosse viva. As filhas concordaram. Vieram moços, primos. As três filhas noivaram e casaram, tendo todas partido com os maridos. Ele ficou.

“Tão próspero em seus dias, podia larguear, tinha o campo coberto de bois - tudo se inestimava, porém, para Tio Man’Antônjo, ali, onde, tudo o que não era demais, eram humanas fragilidades.” (p.79)

Um dia resolveu doar e distribuir suas terras para os empregados. Tudo feito em silêncio, para não despertar cobiça. Ele mesmo, de seu dinheiro, fingia estar vendendo as terras e pagava, mandando a parte das filhas e dos genros. Tudo era deixado por escrito para garantir os futuros proprietários. De seu, só conservou a sede, a enorme casa.

Ninguém entendia porque não ia embora o “caduco maluco estafermo, espantalho”. Como não queria que perdessem as terras, queria que progredissem, vigiava os empregados, administrava-os - gestor, capataz, rendeiro.

Um dia foi encontrado morto na rede do quarto menor, sozinho de amigo ou amor. Acenderam as grandes velas. Foi vestido num terno de sarja cor de ameixa com botas pretas e colocado na mesa da maior sala da casa. Avisaram pessoas e parentes. Chorou-

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capacidade de concentração. Prosseguiu em suas tentativas, até que olhou num espelho e não se viu. Não viu nada.

“Só o campo, liso às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era - o transparente contemplador?... Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.” (p.70)

Questiona se seria ele um des-almado. Continua seus exercícios com insistência, até que, aos

poucos, percebe um tênue começo de uma luz, uma débil cintilação. Acaba vendo-se novamente, mas era um rostinho de menino.

“Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica - ou pelo menos parte - exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o ‘salto mortale”... - digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidos.. E o julgamento-problema, podendo sobreviver com a simples pergunta: - ‘Você chegou a existir?’ “(p. 72)

COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em primeira pessoa, empregando a forma do monólogo, o que supõe a existência de um interlocutor. Tal técnica foi anteriormente empregada por Gimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, através do personagem-narrador Riobaldo.

O presente conto, um dos mais complexos do livro, alude a um episódio insólito e místico. Algumas correntes esotéricas empregam métodos de iniciação através do uso de espelhos planos, pois através deles pode-se contemplar o grau de evolução de um indivíduo. No caso em questão, percebe-se a presença da epifania, ou seja, da ruptura do cotidiano banal e da normalidade através da presença de um instante de súbita revelação. A epifania é estabelecida no instante que o narrador vê um estranho ser, que é ele mesmo, refletido no espelho. Desencadejase a partir desse momento o processo metafísico. O narrador procura descobrir-se e perde a visão de seu “eu” exterior, conduzindo-se depois ao mecanismo de descoberta da própria existência. Surge aí a pergunta: “Você chegou a existir?”, passando-se do existencial para o metafísico.

Não há como não reconhecer aproximações entre o texto de Guimarães Rosa e o conto homônimo de Machado de Assis. Em ambos encontramos elementos existenciais, mas em João

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O chefe da comitiva era Manuel Nardes, o Manuelzão, vaqueiro conhecido e respeitado nos ermos das geraes, a quem coube introduzir Guimarães Rosa nos mistérios e vivências das passagens sertanejas. Manuelzão transformou-se depois no personagem central da novela Uma História de Amor, que faz parte do livro Corpo de Baile (atualmente, Manuelzão e Miguilim). Em 1953, tornou-se chefe da divisão de Orçamento do Itamarati. Em 1956, publicou Corpo de Baile, coletânea de novelas. No mesmo ano, consagrou sua carreira literária com a publicação de sua obra-prima: Grande Sertão: Veredas. Em 1958, foi promovido a ministro de primeira classe (diplomata). Em 1962, assumiu a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras. No mesmo ano, publicou Primeiras Estórias. Em 1963, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, mas só resolveu tomar posse quatro anos depois. Escolheu para a posse a data do aniversário de seu antecessor, João Neves da Fontoura, no dia 16 de novembro. O discurso de posse foi premonitório, causando espanto em todos que o conheciam. Aos 19 de novembro daquele ano de 1967, tornava-se encantado João Guimarães Rosa. BIBLIOGRAFIA: A) CONTOS: Sagarana (1946); Primeiras Estórias (1962); Tutaméia

(Terceiras Estórias) (1967); Estas Estórias (1969). B) ROMANCES: Grande Sertão: Veredas (1956). C) NOVELAS: Corpo de Baile (1956) - obra posteriormente

desmembrada em três livros: Manueizão e Miguilim (1964); No Urubuquaquá, no Pinhém (1965); Noites do Sertão (1965).

D) REPORTAGEM POÉTICA: Com o Vaqueiro Mariano (1947). E) Diversos: Ave, Palavra (1970).

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INTRODUÇÃO Publicada pela primeira vez em 1962, Primeiras Estórias constitui uma das obras que melhor possibilitam o conhecimento da produção literária de Guimarães Rosa. E uma espécie de livro introdutório da mágica prosa roseana, não pela aparente simplicidade absoluta, o que não seria de forma alguma verdade, mas pela variedade temática e linguística. Os 21 contos que formam a presente obra, caracterizam-se como narrativas iniciadoras do leitor nos mistérios de prosa tão incomum. São contos mais assimiláveis que os contos e novelas de Sagarana (1946), por exemplo, ou a narrativa densa e apaixonante de Grande Sertão: Veredas (1956). O título da obra justifica sua classificação na categoria do conto, já que configuram narrativas curtas, de caráter fictício, mero relato de acontecimentos que se pretendem reais sobre a vida de pessoas ou de lugarejos perdidos na mesma remota Minas Gerais de outras produções de Guimarães Rosa. A grande magia do título é o fato de que após as Primeiras Estórias não surgem as segundas estórias, como seria de pressupor-se, mas Tutaméia (Terceiras Estórias) (1967). Não nos cabe aqui, entretanto, discutir os porquês que levaram o autor a tal decisão. Ainda prevalece o mistério de certas atitudes tomadas pelo prosador, e muitas são as tentativas de análise por parte da crítica. Parece-nos louvável, entretanto, lembrar que a presente coletânea de contos reúne as primeiras narrativas curtas, portanto estórias, de Guimarães Rosa. A justificativa transparece em vários contos do livro, que deixam no leitor o sabor de coisa contada, verdadeiros “causos”, como se diz no interior. O elo entre os contos que formam Primeiras Estórias são os acontecimentos que geram a ação central de cada narrativa, formando uma variedade temática e uma multiplicidade de sentidos. As personagens mergulham nas situações a partir de tais acontecimentos, deixando-se levar pelas circunstâncias ou lutando contra elas. Os acontecimentos decorrentes dessa ação das personagens é que espantam o leitor, acostumado que está a esperar um final determinado apenas pelas circunstâncias. Em Primeiras Estórias isto não ocorre, pois o clímax de cada conto nem sempre apresenta a situação esperada ou prevista. Podemos dizer que o previsível torna-se imprevisto, o que nem sempre desconcerta ou desagrada o leitor. Primeiras Estórias é, sem dúvida, um grande livro. Não deixa muito a desejar em comparação com algumas obras-primas publicadas anteriormente pelo autor, pois mantém a qualidade estética e a força da linguagem criativa de Guimarães Rosa, ainda que não se assemelhe à densidade de algumas delas.

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escapava sempre. Fugiu da “Pedra” de madrugada, de propriedade de Seo Rigério. Seu filho resolveu levar em brio e buscar a vaquinha pitanga.

A vaca ia sempre na frente. Ele seguia no intuito de encontrá-la e trazê-la de volta, mas nunca a alcançava. A vaquinha tinha horas de diferença de frente, O rapaz se irritava. Pensou em desistir, mas, se voltasse sem ela, passaria vergonha na frente dos outros.

A vaquinha chegou até o Pãodolhão, do Major Quitério, antes do rapaz. Atravessaram pela porteira-mestra dos currais, O rapaz começou a subir a escada, tanto tinha de explicar. Era bem-chegado. Na casa do Major Quitério havia quatro moças. Ficou conhecendo a que era mais alta, amável. Os dois apaixonaram-se, o que mudava todo o acontecido. Nem teve o que explicar. Deu a vaca de presente para a moça, já que fora graças à vaquinha que chegara até ali.

COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em terceira pessoa. A temática do texto está ligada à predestinação. A vaca representa o fio condutor para a realização do destino, que se cumpre quando o casal fica se conhecendo.

11) O ESPELHO

Um indivíduo vê-se diante de uma insólita situação. Mira-se num espelho plano num lavatório de edifício público e enxerga uma figura de perfil humano, porém repulsiva e hedionda, Sentiu náuseas, pois aquele ser causava-lhe ódio e susto, enchendo-o de pavor. Descobriu, no entanto, tratar-se dele mesmo.

“Fixemo-nos no concreto, O espelho, são muitos, captando-lhes as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas - que espelho? Há-os “bons” e “maus”, os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não.” (p.65)

“Desde aí, comecei a procurar-me - ao eu por detrás de mim - à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara.” (p.67)

O indivíduo percebe que cada pessoa se parece com um bicho, e que seu sósia inferior era uma onça. Começou a empregar métodos esotéricos para encontrar-se novamente no espelho. Usou Ioga e exercícios espirituais dos jesuítas, aprofundando sua

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revólveres a pontaria. Costumava dizer que “a vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível, O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio.”

Zé Centeralfe mudou-se de Pai-do-Padre para o arraial do Amparo para ver-se livre do Herculinão, mas não adiantou o bandido foi atrás. Zé saiu de lá com a mulher à escondida, viajando para lá. Onde ia, o homem atravessava sua frente.

“Aqui é cidade, diz-se que um pode puxar pelos seus direitos. Sou pobre, no particular. Mas eu quero é a lei...” (p.57) “Meu Amigo” encara a carabina, nela firmando a vista, rabeando com os olhos para o lado do homenzinho, que parecia não entender o que ele queria dizer, O homenzinho chegou a perguntar o que fazer. Até que compreendeu o que o outro queria dizer. “Meu amigo” ofereceu café ou cachaça, mas o homenzinho respondeu que aceitava depois. Meu amigo perguntou se preferia coronha ou cano; consultou o tambor para ver se estava cheio e disse “sigamos o nosso carecido Aquiles...”.

O homenzinho ia-se. “Meu amigo” e o narrador seguiram-no. De repente lá vinha o Herculinão. Três tiraram as armas, mas só dois tiros foram ouvidos. O Herculinão não teve tempo. Levou uma bala no olho e outra no coração. “Meu Amigo” disse: Tudo não está escrito e previsto?” “Mas.., a necessidade tem mãos de bronze ...“ “Resistência à prisão, constatada. Convidou-nos para almoçar, principalmente ao Zé Centeralfe. “Meu Amigo” meditava: “Esta nossa Terra é inabitada. Prova-se, isto...”. (p. 59)

COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em primeira pessoa. O texto é anedótico e procura estabelecer laços com a tendência de Guimarães Rosa que procura mostrar que os caminhos do homem estão ligados pelo fio do destino, bem como percebe-se o crescimento do personagem (o narrador insiste em tratá-lo de homenzinho) no desenlace, O personagem “Meu amigo” é fatalista e procura explicar sua filosofia de vida a partir dessa corrente.

10) SEQÜÊNCIA

Uma vaca fugira da fazenda de Seo Rigério. Por onde o

animal passava, todos viam tratar-se de rés fujona que sentiu saudade e procura retornar às origens. A vaca atravessou os espaços das fazendas, dos pastos, dos riachos. Parou para beber no riachinho do Gonçalves. As pessoas tentaram detê-la, mas ela

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ENREDO E ANÁLISES DOS CONTOS 1) AS MARGENS DA ALEGRIA O Menino ia passar alguns dias com os tios num lugar onde se construía uma cidade. Viajaram de avião. Tudo era descoberta e curiosidade. Davam-lhe toda a atenção, até mostrando no mapa o ponto onde estavam. “E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades. Davam-lhe balas, chicles, à escolha. Solícito de bem-humorado, o Tio ensinava-lhe como era reclinável o assento - bastando a gente premer manivela. Seu lugar era o da janelinha, para o móvel mundo, EllLrcgavarnihe revistas, de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde.” (p. 7) O menino espiava o azul, as roças, os campos, a montanha, Os homens, os meninos e os cavalos pareciam insetos. Pareciam voar. Ele vivia sua alegria. A tia oferecia sanduíches. O tio fazia promessas das coisas que fariam: brincadeiras e passeios. “Enquanto mal vacilava a manhã. A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão: a mágica monotonia, os diluídos ares. O campo de pouso ficava a curta distância da casa - de madeira, sobre estações, quase penetrando na mata. O Menino via, vislumbrava. Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido - as novas tantas coisas - o que para os seus olhos se pronunciava.” (p. 8) A casa era pequena, feita de madeira sobre estações, próxima da mata. “Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão - brusco, rijo, - se proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e .ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto - o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruziou outro gluglo. O Menino riu, com todo O coração. Mas só bisviu. Já o chamavam, para passeio.” (pp. 8 e 9)

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Foram passear de jipe onde ia ser o sítio do Ipê. O Menino descortinava a paisagem, repetindo o nome de cada planta e animal. Tudo era estranho e desconhecido, motivo para descoberta. Sentia-se nos ares. Enquanto voltavam, pensava no peru. Pensava só um pouco para não gastar o calor daquela descoberta que estava guardada para ele no terreirinho das árvores bravas. Só pudera ver o peru por um instante. Pensava se haveria um daqueles em cada casa.

Tinha fome. Seu pensamento misturava os barulhos do almoço e a lembrança do peru. Mal comeu dos doces. Saiu, impaciente de revê-lo. Não chegou a ver o peru imediatamente. “A mata é que era tão feia de altura.” Mas só restavam algumas penas, restos, no chão. O peru foi sacrificado para comemorar o aniversário do doutor. “Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru - aquele. O peru seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o Menino recebia em si um miligrama de morte.” (p. 10) Já o chamavam para conhecer onde seria o lago da cidade. Não se agradou do passeio. Teve vergonha de falar do peru. Sua fadiga formava um medo secreto: “descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada madeia.” “De volta, não queria sair mais do terreirinho, lá era uma saudade abandonada, um incerto remorso. Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantâr. E - a nem espetaculosa surpresa - viu-o, suave inesperado” o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugrulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua chegada e presença, em todo o caso, um pouco consolavam.” (p. 11) O peru foi até a beira da mata e começou a bicar a cabeça do outro peru, morto na véspera. Movia-o um ódio. Bicava feroz aquela outra cabeça. “O Menino não entendia.” O mundo parecia mergulhar num negrume. Mas o surgimento da luzinha verde um vaga-lume trouxe de volta a claridade e a alegria, devolvendo a beleza, o contentamento. “Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vaga-lume. Sim, o vaga-lume, sim, era

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mãe beijou-o. O menino disparou a chorar e gritou aos pais: “Vocês não sabem de nada, de nada, ouviram?! Vocês já se esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam! (p.54) Eles abaixaram a cabeça e estremeceram.

“Porque eu desconheci meus Pais - eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?” (p.54)

COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em terceira pessoa, mas o foco do narrador onisciente misturasse com ponto de vista do Menino. Há presença do discurso indireto livre e o Menino chega a tomar a palavra no final. Percebe-se que a posição do narrador é ocupada pelo próprio protagonista, um menino, que procura reviver pela memória um instante da infância. Estão presentes o amor, a morte e a loucura.

O conto mostra mais uma vez a presença da criança na literatura roseana O menino do conto não é um menino comum. A convivência dele num lugar estranho e com pessoas muito estranhas acaba conduzindo-o à maturidade precoce, fazendo lembrar o personagem Miguilim de Campo Geral. A experiência do mundo toma-o muito rapidamente, conduzida que é pela presença da velhinha que representa o contato vivo com a morte, pela presença da Moça e do Moço que indicam o conhecimento do amor na sua concepção platônica, e pelo Homem Velho, que sabe que está desenganado pela doença e prefere conviver entre flores, distanciando-se dos seres humanos, A reação final do protagonista mostra claramente que não podia mais aceitar a imaturidade dos pais, que desaprenderam o verdadeiro amor, já que ele, Menino, amadurecera rapidamente com tudo que presenciara. A recordação dos fatos vividos é feita apenas pela memória, daí a falta de clareza completa em algumas passagens.

9) FATALIDADE

Um homenzinho procura o “Meu Amigo” para pedir providências contra Herculinão Socó. Este valentão não deixava em paz sua mulher, que nem podia mais botar os pés fora da porta. O homenzinho era Zé Centeralfe, um caipira de uns vinte-e-muitos anos e trinta anos, ordeiro e obediente à lei.

O amigo do narrador era um homem estranho, dono de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento de cavalaria e delegado de polícia. Gostava de exercitar com carabinas e

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precisar. O mundo é revelado aos olhos do Menino lentamente: o escritório da mansão, as revistas com figuras coloridas, as pessoas. Ele não sabia ler, mas era como se estivesse relendo no colorido das figuras, no cheiro delas. No quarto que servia de escritório, tomou contato com um homem sem aspecto, já entrado em anos. Era o dono da fazenda e pai da Moça, que era linda e recôndita. A Moça fazia raiar uma luz extraordinária e lembrava o que está detrás da palavra paz. Tratava-se do ano de 1914. Havia também um Moço, de quem o menino sentia ciúmes. Através do olhar dos dois, percebia-se que ele e a moça amavam-se.

A estada do Menino na casa era esperada para mais curta do que foi, porque tentaram esconder o que havia num determinado quarto. O segredo acabou sendo desfeito. Ali ficava uma mulher, uma velhinha, velhíssima, pequenina como uma criança. Ficava na cama e era cuidada pela Moça, com amor. Não se sabia de onde tinha vindo ou mesmo se era parenta. A Moça levou o Menino para conhecer a velhinha. Ela não estava morta, não era assombração, como o Menino podia ter imaginado. Chamava-se Nenha. O Menino quis saber se ela havia bela-adormecido. Foi impedido pela Moça de brincar com Nenha, que não reconhecia ninguém. Lá fora ouvia-se o rumor da tesoura grande que podava as roseiras. O Homem Velho só queria ficar entre as flores, vê-las, cuidá-las.

A Moça repetia tantas coisas ao Moço. Falava sobre o pai dela, que estava desenganado por causa da doença. Pedia ao Moço que esperasse até a hora da morte. Não a morte do pai ou da velhinha, mas a morte deles. O moço não podia entender. A Moça dizia: “Se eu, se você gosta de mim... E como saber se é o amor certo, o único? Tanto é o poder errar, nos enganos da vida... Será que você seria capaz de se esquecer de mim, e, assim mesmo, depois e depois, sem saber, sem querer, continuar gostando? Como é que a gente sabe?” (p.52)

O Moço falava que era um simples homem, são em juízo para não tentar a Deus, mas para seguir o viver comum, por seus meios, pelos caminhos normais. A Moça não concordou, olhava com enorme amor para o.Moço, que lhe deu as costas. O Menino acompanhou o Moço, que lhe pegou as mãos. Caminharam juntos. O Moço escreveu um bilhete para a Moça. Partia para sempre, levando consigo o Menino, O Homem velho fazia-lhes sinais de adeus na distância, O Moço disse: “Será que posso viver sem dela me esquecer, até à grande hora? Será que em meu coração ela tinha razão’? (pp. 53 e 54)

O Menino não respondeu e pensou que ele também. Viu-se finalmente em casa. Nunca mais soube do Moço. Reparou o pai. A

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lindo! - tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria.” (p. 12) COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em terceira pessoa, mas denota envolvimento do narrador que parece dividir com o protagonista (o Menino) o deslumbramento e a dor. O psicológico está presente, representado pela descoberta e aprendizado das coisas através da ótica de um menino. Seu limitado conhecimento do mundo capta a novidade através da figura de um peru - primeira margem da alegria. A morte do peru, ao inverso, desencanta a descoberta e abre a perspectiva inusitada do conhecimento da morte, da transitoriedade de todas as coisas. A visão-de-mundo do menino abre-se para o metafísico. A segunda margem da alegria surge com a descoberta do vaga-lume, espécie de subterfúgio para suprir a carência do peru morto. O conto é de perfil psicológico. 2) FAMIGERADO O médico chega até a janela atraído por um tropel. Um grupo de estranhos cavaleiros chegara a sua casa. Um dos cavaleiros está muito armado e parece chefiar os outros três homens. Estes parecem ter vindo coagidos pelo homem armado, que só poderia ser um bravo sertanejo, jagunço perigoso e mau. O líder é convidado a desmontar e entrar. Recusado o convite, termina por afirmar que não está doente, nem veio em busca de receita ou consulta. “Sei desse tipo de valentão que nada alardeja, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou: “ Eu vim preguntar a vosmecé uma opinião sua explicada...” Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu.” (p. 14) O homem desceu do cavalo, reteve no pulso a ponta do cabresto, o chapéu sempre na cabeça. A fisionomia e os modos do cavaleiro impunham temores ao médico, que só teria se acalmado se o outro tivesse entrado e aceitado um café. O homem apresentou-se como Damázio, dos Siqueiras. A suspeita confirmou-se, pois era homem de muitas mortes. Estava

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vindo da Serra, onde ultimamente compareceu um moço do Governo, um rapaz meio estrondoso. “... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado...” A conversa era lenta. Damázio pensava, pensava, sem encarar o interlocutor, que tinha de “entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios.” Finalmente, disse de golpe: “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?“ (p. 15)

Alguém poderia ter feito fofoca e atribuído ao médico tal ofensa, o que o deixou assustado. Damázio poderia estar a exigir vexatória satisfação. Damázio disse ter procurado outras pessoas para saber da palavra, mas era tudo gente para informação torta, já que não tinham o livro que ensina as palavras (dicionário), o legítimo. Era gente que fingia menos ignorância. Podia ter procurado o padre, mas não se dava com padres, que logo o enganavam. Pediu que falasse no aperfeiçoado. O que é o que já lhe perguntara. O narrador repetiu a palavra famigerado. Damázio confirmou, repetindo alto várias vezes e olhando interpelador. O médico usou de preâmbulos, olhou para os três outros cavaleiros. Ao que Damázio: “Vosmecê declare. Estes ai são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho...” “ Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”... (p. 18) Damázio desculpa-se pela ignorância e quer saber se é desaforado, caçoável, coisa de arrenegar, farsância, nome de ofensa. “ Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...” “ Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?” “ Famigerado? Bem. E: “importante”, que merece louvor, respeito...” “ Vosmecé agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?” “Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:

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de viajar. Seu pai, que era deputado, estava à morte no Rio de Janeiro. O Ataulpa saiu com Surubim, O narrador tomou seu lugar, porque sabia de cor todos os papéis. Vestiu o fraque do Doutor Famoso, que ficou um pouquinho largo.

Diante do público, o narrador recordou-se de que Ataulpa deveria recitar uns versos que falavam da Virgem Padroeira e da Pátria. Acontece que ele não sabia recitar os versos. Ficou parado no palco em silêncio. Todos riram dele. Os padres faziam gestos: O padre Prefeito mandou baixar o pano. O garoto gritou “viva a Virgem e viva a Pátria. Ressoaram aplausos. O padre Prefeito insistia para que baixassem o pano, mas este não descia. Virou uma confusão generalizada. Surgiram vaias, mios, assovios... Zé Boné entrou no palco e começou a representar a estória do Gamboa. Ressoaram muitas palmas. Todos os participantes começaram a contracenar com o Zé Boné.

No princípio, tudo era um disparate, mas depois cada um foi assumindo a sua parte. A platéia aplaudia. A peça tomava sentido, tornando-se bela. “Ah, a gente: protagonistas, outros atores, as figurantes figuras, mas personagens personificantes.” (p. 4-6)

Foi um verdadeiro sucesso. O narrador, entretanto, temia por não saberem como terminar aquilo tudo, já que não tinha começo nem fim. Chegou para a frente e deu uma cambalhota, de propósito, despencou e caiu. O mundo se acabou.

“Ao menos, o daquela noite. Depois, no outro dia, eu são, e glorioso, no recreio, então o Gamboa veio, falou assim: - “Eh, eh, hem? Viu como era que a minha estória também era a de verdade? Pulou-se, ferramos fera briga.” (p.46)

COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em primeira pessoa. O texto mostra a presença da ficção dentro da própria ficção, já que os atores da peça ensaiada acabam criando uma “sobrepeça”. Assim, o texto, o papel da personagem e do ator são comungados nas figuras dos participantes. O arrebatamento final é resultado da euforia de estarem criando sua própria estória, de improviso. Uma estória que não poderia ser representada por outros, uma vez que ninguém a tinha escrito. O texto mostra tendência metalingüística.

8) NENHUM, NENHUMA

Um Menino convive com pessoas de comportamento estranho numa casa-de-fazenda que fica num lugar difícil de

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rio e suas duas margens simbolizam o conhecido, e a terceira margem, o desconhecido, pois não é física, mas metafísica. 7) PIRLIMPSIQUICE Um grupo de garotos ensaiava uma peça teatral no colégio. Eram dirigidos pelo sisudo e circunspecto Dr. Perdigão e supervisão do padre Prefeito. A peça em cinco atos era “Os Filhos do Doutor Famoso” Dr. Perdigão procurava entusiasmar os garotos com citações arcaicas sobre o comportamento teatral. Durante o primeiro encontro do grupo, apenas leram textos. Zé Boné deu risadas. Ataulpa e Darcy, líderes da turma, estavam brigados, mas acabaram fazendo as pazes. Eram os mais decididos e pegaram com ordens dizendo que ninguém deveria contar aos Outros sobre o drama. Tinham medo, entretanto, que Zé Boné não guardasse o segredo. Zé Boné gostava de varar os períodos de recreio reproduzindo fitas de cinema. Todos temiam que os outros garotos se juntassem e fizessem-no contar à força a estória do drama. Tãozão e Mão-na-Lata tiveram a idéia de inventarem uma outra estória para ser contada, O Zé Boné teria que ser vigiado de perto por algum deles. Mas, ao contrário do que se esperava, Zé Boné nada contou. A estória por eles tramada prosseguia, aumentava, nunca terminava, pois acrescentavam-se sempre novos fatos. Todos ouviam e gostavam. Até mesmo o Alfeu, filho da cozinheira e aleijado. Ele voltava arrastando com rapidez para escutar. Entre os participantes, no entanto, criava-se a preferência pela estória inventada em lugar da estória verdadeira do drama. “Todas as tardes, a partir do recreio de depois do jantar, subia-se para o ensaio, demorado, livrando-nos dos estudos da noite sob o duplo olhar do Surubim; essa vantagem, também, os outros nos invejavam,” (p. 41) A estória inventada tornou-se de domínio público, tendo mesmo surgido uma segunda versão, completa e bem aprontada, mas de todo mentirosa. Foi espalhada pelo Gamboa, Os participantes do grupo juraram uma surra nele, quando passasse a festa da estréia. Tinham que combater essa estória, que os deixava humilhados Procuravam então repetir a estória do grupo com sinceridade, mas ficavam sempre alguns partidários de uma ou outra estória.

Na hora da apresentação, esperavam pela imensa vaia da turma dos Gamboa, Alfeu estava vestido de marinheiro. Quase na hora de começar, Surubim procurou o Ataulpa dizendo que ele tinha

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Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado - bem famigerado, o mais que pudesses (p. 16) Damázio disse exultante: ““ Ah, bem!...” Dispensou os acompanhantes, depois de dizer que escutaram a boa descrição. Os cavaleiros partiram rapidamente. Damázio chegou à janela e aceitou um copo d’água. Afirmou que não havia como as grandezas machas duma pessoa instruída. Achava melhor que o moço do Governo fosse embora. Sorriu, mostrando que apagaram suas inquietações. “Disse: “A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca...” Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.” (p. 17) COMENTÁRIOS:

O conto trabalha com a metalinguagem, já que discute o significado da palavra famigerado. Guimarães Rosa procura trabalhar com os dois níveis do discurso: o significante fica por conta das várias formas empregadas por Damázio para comunicar a palavra famigerado (fasmisgerado, faz-me-gerado, falmisgeraldo, familhas-gerado), enquanto o significado está inserido no aspecto semântico produzido pelo narrador, que procura contornar o sentido popular dado ao termo, que é aplicado a malfeitores. O narrador usa de malícia e conhecimento da expressão para evitar o sentido negativo, aludindo apenas o positivo (célebre, famoso, notório) evitando o perigo de uma reação por parte do interlocutor.

O conto é narrado em primeira pessoa por um médico e mantém nítido caráter anedótico, apelando para um certo suspense, no que se refere ao temor enfrentado pelo narrador diante da figura do jagunço Damázio. Este representa o indivíduo oculto, ignorante, mas que respeita o poder de uma pessoa instruída e seu conhecimento da língua. 3) SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA

O carro tinha vindo com o expresso do Rio para seguir com o trem do sertão às onze horas e quarenta e cinco minutos. Era um vagão novo, com grades, feito as de cadeia. Ia servir para levar duas mulheres para longe, para sempre.

Havia muitas pessoas na beira do carro para esperar. Conversavam para não se entristecerem. Estavam no fim da

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esplanada, perto do curral de embarque de bois, dos empilhados de lenha, O povo procurava jeito de ficar debaixo da sombra dos cedros.

Sorôco ia trazer a mãe e a filha para seguirem com o vagão especial. A mãe tinha para mais de setenta anos, Sorôco era viúvo e só tinha aquela filha. Dele não se conhecia outro parente. Era um homem brutalhudo de corpo, de cara grande e usava uma barba encardida em amarelo e cheia. Calçava alpergatas. As duas mulheres eram loucas mansas. Não, faziam mal a ninguém, mas Sorôco não conseguia mais tomar conta delas. Iam ser mandadas para tratamento no manicômio de Barbacena.

A moça tinha pegado a cantar, levantando os braços. A canção não fazia sentido no dizer das palavras. Ela punha os olhos no alto como os santos e os espantados. Vinha enfeitada de disparates, com panos e papéis, de diversas cores. A velha estava de preto, com um fichu1. Ela batia a cabeça nos seus delírios. Mesmo diferentes, elas se assemelhavam. Sorôco estava dando o braço a elas. Parecia entrada em igreja a num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro.

“Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco - para não parecer pouco caso.” (p. 19)

Nesse dia, Sorôco estava calçado de botinas, de paletó e chapéu grande. Usava sua melhor roupa. Estava humilde e agradecia a todos que lhe diziam seus respeitos de dó:

“Deus vos pague essa despesa.” Todos diziam que Sorôco tinha tido muita paciência, que não ia sentir falta das pobrezinhas, que era até um alívio. Aquilo não tinha cura, elas não iam voltar nunca mais.

Sorôco tinha repassado muitas desgraças de morar com as duas. Elas pioravam, e ele já não dava mais conta. Foi preciso chamar ajuda. O Governo pagava tudo. Tinha até mandado carro.

A velha soltou do braço de Sorôco e foi sentar no degrau da escadinha do carro. Sorôco disse ao agente que ela não fazia nada, que não acudia chamando. A moça tornava a cantar virada para o povo. Representava grandezas de outrora. A velha olhou para ela com amor extremoso e pegou de cantar também a mesma cantiga que ninguém entendia. Não paravam de cantar.

Estava chegando a hora da partida. Tinham que fazer as duas entrarem no carro. Sem despedida nenhuma, que elas nem

1 Cobertura para a cabeça.

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O pai escutou. Ficou em pé. Rumou para onde estava o filho, O filho começou a tremer de repente. O pai havia feito um gesto, o primeiro depois de tantos anos. Mas o filho fraquejou de medo. Correu; fugiu.

“Porquanto ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave fio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.” (p. 37).

COMENTÁRIO: O conto é narrado em primeira pessoa e aborda a temática do metafísico, da transcendência. Está presente ainda o tema da loucura. A figura do Pai representa a Consciência que assume seus próprios valores e anseios, negando-se a atender os apelos do mundo material. Ele segue sua sina pela “terceira margem” do rio, que simboliza a enunciação do mistério e a passagem para o metafísico, O abandono dosvalores mais caros ao indivíduo e o entregar-se à inócua tarefa de remar para sempre e para o nada indica o ritual iniciático dos místicos, O ir e vir pela terceira margem (mistério do irrevelado) indica a transferência para um plano mais elevado, uma nova vida. A morte física é conseqüência do passar do tempo, já que, para os seus familiares, exceto para o filho, já estava morto há muito. O narrador carrega em si a culpa de não ter substituído o pai na tarefa de remar pela eternidade. Ele não teve consciência suficiente e força de vontade para assumir-se, ser em plenitude Teve medo diante do “fantasma” do pai. Afirma: “Sou o que não foi, o que vai ficar calado”, Resta-lhe apenas a consciência de ter falhado com o pai, deixando para os leitores a função de depositá-lo no fundo de uma canoinha após sua morte, já que não pôde fazê-lo por sua própria vontade. O comportamento estranho do pai pode ser explicado apenas diante de uma visão existencial, através da afirmação “eu sou o que sou”. Tal circunstância só foi possível com o abandono da família, dos presentes, Mesmo os apelos do padre, dos soldados e dos jornalistas não tiveram suficiente força para atraí-lo de volta, negando-se à missão que deveria realizar. A natureza concreta do

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aguentar o ir e vir debaixo de qualquer tempo. Não desembarcava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisava mais em chão nem capim. Comia quase nada. Resistia no ato de remar mesmo na correnteza durante as enchentes.

A irmã do narrador casou-se e teve um filho. Quis mostrá-lo ao pai. Chamaram por ele, mas ele não apareceu. Ela chorou. Todos choraram. A irmã mudou-se com o marido. O irmão foi para uma cidade. A mãe terminou indo também morar com a filha. Apenas o narrador ficou por ali. “Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei na vagação, no rio no ermo - sem dar razão de seu feito.” (pp. 35 e 36)

O narrador tenta descobrir que motivos levaram o pai àquela atitude, mas tudo que conseguiu ouvir foram falsas conversas, sem senso. Percebeu que não podia condenar o pai e que já lhe estavam também apontando uns fios de cabelos brancos. Tenta descobrir do que sente culpa. Percebe que já sofre o começo da velhice e não consegue entender como é que o pai não fraqueja e deixa a canoa virar. “Sou homem de tristes palavras. De que era eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio - pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice - esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse7, ou que bubuiasse8 sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma9 e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro10. Soubesse - se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.” (p. 36)

O filho resolveu substituir o pai na empresa de remar pelo rio, O pai devia estar muito velho e não conseguiria mais remar. Foi até o rio e chamou pelo pai. Esperou. O pai apareceu, um vulto. Estava sentado à popa. O filho chamou várias vezes. Ele falou: “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” (p.36)

7 Entrasse na foz do rio. 8 Flutuasse. 9 Corrente fluvial forte e duvidosa. 10 Íntimo.

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podiam mesmo entender. Viajariam com Nenêgo e José Abençoado. Subiram também no carro uns rapazinhos com trouxas e malas, também as coisas de comer. Nenêgo apareceu na plataforma para os gestos de que tudo ia em ordem. Não dariam trabalho.

Só escutavam o canto das duas do lado de fora. “Sorôco. Tomara aquilo se acabasse, O trem chegando, a máquina

manobrando sozinha para vir pegar o carro, O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre.

Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo - o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: - “O mundo está dessa forma...” Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco.” (pp. 20 e 21)

Sorôco sacudiu-se de um jeito diferente e virou-se para ir embora. Estava voltando para casa como se estivesse indo para muito longe. Parou de forma estranha como se fosse perder o rumo. De repente, começou a cantar forte, mas sozinho para si. Era a mesma cantiga da mãe e da filha. As pessoas esfriaram, afundaram. E, sem combinação, todos começaram a cantar junto com ele, de dó de Sorôco. Seguiam atrás dele, caminhando junto. As pessoas levaram Sorôco para casa.

“Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.

A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.” (p. 21)

COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em terceira pessoa por um narrador-testemunha (“Agora, mesmo, a gente só escutava...”), ou seja, a narrativa segue em terceira pessoa até quase o final, quando então o narrador, envolvido pela dor coletiva, posiciona-se em primeira pessoa como um dos membros do povo.

O conto revela um processo de identificação das pessoas com a dor individual de Sorôco, que manda mãe e filha para tratamento num manicômio, O estado de loucura parece dominar toda a população local a partir do desenlace, quando Sorôco, tomado pela danação da loucura familiar, recomeça a cantiga

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entoada por sua mãe e sua filha, O insólito desencadeia-se a partir desse canto sem nexo. Todos principiam a cantar junto com Sorôco, irmanados pela dor e pela magia do canto.

Cabe ainda lembrar que o fato de conduzirem Sorôco para casa, já que este havia perdido o rumo, é significativo. Apesar da alucinação coletiva despertada pelo protagonista, à população coube conduzi-lo para casa. Este voltar para casa tem amplo sentido, uma vez que a dominação exercida pela loucura das familiares não possibilitava a Sorôco ver em sua casa um lar. Agora estaria voltando finalmente para a casa que é dele. A passagem final comprova tal afirmativa: “A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade.”

4) A MENINA DE LÁ

A casa da Menina ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo, num lugar chamado o Temor-de-Deus. Morava com o pai, um pequeno sitiante, e a Mãe, urucuiana que não tirava o terço da mão mesmo para matar galinhas ou para passar descompostura em alguém. Maria, ou Nhinhinha, como era chamada, nascera miúda e cabeçudota, com olhos enormes. Não brincava como as outras crianças. Ficava sentadinha, quieta. Pouco se mexia. Ninguém entendia o que falava. Quando perguntava, eram coisas sem sentido: “Ele xurugou?”, “Tatu não vê a lua...” Contava estórias absurdas, vagas, tudo muito curto.

Não incomodava ninguém com seus nem quatro anos. Nem se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, pela imobilidade e pelo silêncio. Não gostava ou desgostava especialmente de coisa ou pessoa nenhuma. Comia o que lhe dessem, o que fosse mais gostoso ou atraente primeiro, o resto depois. Quando lhe perguntavam o que estava fazendo, respondia moduladamente: “Eu... to-u... fa-a-zendo”. Chamava o pai de “menino pidão”, quando ele pedia à mãe que coasse café. A mãe, dirigia-se desse jeito: “Menina grande... Menina grande...”.

Nhinhinha não se importava com os acontecimentos. Nada a intimidava. Ninguém tinha real poder sobre ela. Não havia como puni-la, nem motivo. O respeito que tinha por Mãe e Pai, parecia uma engraçada espécie de tolerância. Gostava do narrador, com quem conversava.

Tinha frases estranhas e recriava as palavras conforme ouvia: “estrelinhas pia, piá”, “A gente não vê quando o vento acaba”, “Alturas de urubu não ir”, jaboticaba de vem-me-ve... “Eeu Tou

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“Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou5 o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida6, mascou o beiço e bramou: - “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: - “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a benção, com gesto me mandando para trás.” (p. 33)

O Pai não voltou. Não tinha ido a parte nenhuma. Permanecia naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar nunca mais.

Os parentes achavam que era doideira, mas não falaram. Outros pensaram em promessa ou doença brava, daí ele querer ficar perto e longe da família. As pessoas traziam notícias de que nunca descia à terra. Ele subia e descia o rio. A mãe e os parentes acreditavam que voltaria para casa quando o mantimento que tivesse, acabasse. Mas estavam enganados. O filho levava comida furtada e depositava num oco de pedra do barranco. A mãe parecia fingir não saber.

“Enxerguei nosso Pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos, a fora.” (pp. 33 e 34)

A mãe mandou vir um tio, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir mestre para os filhos. Incumbiu o padre de esconjurar e clamar ao marido para desistir da idéia. Vieram dois soldados. Nada deu certo. O marido passava ao largo, avistado ou invisível. Os homens do jornal trouxeram lancha e queriam tirar o retrato dele. Não conseguiram. O pai desaparecia para a outra banda. Escondia-se com a canoa no brejão que só ele conhecia.

As pessoas acostumaram-se com aquilo. O filho sentia-se cada vez mais ligado ao pai (“Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos.”). Só não entendia como o pai podia

5 Colocou. 6 Alva de pálida: figura, pleonasmo.

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Três homens pegaram o caixão de cada lado. Liojorge pegou na alça à frente, da banda esquerda, por indicação dos irmãos. Os três irmãos estavam armados. O cortejo seguiu, a multidão acompanhava à espera do que não podia deixar de acontecer. Bastava baixar o caixão e atirariam em Liojorge. A chuvinha já abrandava. Não passaram pela igreja, pois no lugar não havia padre.

As pessoas ajuntavam-se à beira do buraco; muitos, mais atrás, preparavam o foge-foge. Não houve despedida, nem falas. Desceram o caixão. Liojorge esperava. Dismundo e Derval pareciam esperar uma ordem de Doricão,que viu de súbito Liojorge em meio ao que acontecia. Olhou-o curtamente. Levou a mão ao cinturão. Era o que se previa. Mas só disse: “Moço, o senhor vá, se recolha. Sucede que o meu saudoso irmão é que era um diabo de danado...” Dito isto, virou-se para os presentes. Seus irmãos também. Agradeciam a todos. Sacudiam dos pés a lama. Limpavam as caras do respingado. Com pressa, Doricão completou: “A gente, vamosembora, morar em cidade grande... o enterro estava acabado. E outra chuva começava.” (p.3 1)

COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em terceira pessoa. A perspectiva da vingança da morte de Damastor Dagobé pelos irmãos mantém o suspense do texto. O narrador arma o clímax do conto durante toda a narrativa, mas, inesperadamente, os irmãos não vingam o morto, contrariando a expectativa das pessoas presentes ao velório e ao enterro. O leitor também é envolvido pelo clima de suspense, mas não se decepciona com o final imprevisto. A temática central do conto é a expectativa da violência que seria gerada pela própria violência inicial.

6) A TERCEIRA MARGEM DO RIO

O Pai abandona tudo e sai numa canoinha que mandara construir em pau de vinhático. Nela cabia apenas o remador. O Pai era homem cumpridor dos deveres, ordeiro e positivo. Era um homem quieto. Quem mandava e ralhava com os filhos (o narrador, uma irmã e um irmão) era a Mãe.

A canoa foi feita para durar uns vinte ou trinta anos. O pai não era homem de vadiar em pescarias. Por que teria mandado construir a canoa?

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fazendo saudade”, “vou visitar eles”, quando falava dos parentes mortos.

De repente Nhinhinha começou a fazer milagres. Tudo que falava, acontecia, O Pai e a Mãe não perceberam. Tiantônia é que descobriu numa manhã, quando a Menina disse que queria que o sapo fosse até ali. Pensaram que fosse invenção dela, mas entrou na sala uma bela rã brejeira, verdissíma. Nhinhinha disse que a rã estava trabalhando um feitiço. Todos ficaram calados e assustados.

Dias depois queria pamoinha de goiabada. Uma dona de longe chegou e trazia pãezinhos de goiaba enrolada ria palha. Ninguém entendia. A Mãe ficou doente, mas ninguém conseguia fazer a Nhinhinha falar a cura. Só dizia: “Deixa... Deixa...”. Abraçou a Mãe, e beijou. A Mãe, com fé estarrecida, sarou num minuto.

“Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gente maldosa interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina, levá-la para sério convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber. Também, o Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queriam versar conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão.” (p.24) Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queriam versar conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão.” (p.24)

Nhinhinha fez chover numa epóca de muita seca. Naquele dia fez o que nunca se vira: pulou e correu pela casa e quintal. Tiantônia repreendeu a menina, o que não causou gosto ao Pai e à Mãe. Nhinhinha tornou a ficar sentadinha ainda mais imóvel. Nhinhinha adoeceu e morreu.

A Mãe desfiava o terço gemendo a frase da menina: “Menina grande... Menina grande...”. O Pai alisava com a mão o tamboretinho onde ela se sentava tanto.

Na hora de mandarem recado para fazer o caixão, Tiantônia tomou coragem e contou o que acontecera quando repreendeu a menina. Nhinhinha dissera que queria um caixãozinho cor-de-rosa com enfeites verdes brilhantes. Por isso a tia ralhara com a menina. O Pai não queria consentir na encomenda do caixão que a menina tinha querido, pois era como ajudar a filha a morrer. A Mãe queria. Discutiram.

“A Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, no mais choro se serenou – o sorriso tão bom, tão grande - suspensão num pensamento que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! - pelo milagre, o de sua filhinha em glória Santa Nhinhinha.” (p. 28).

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COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em primeira pessoa e mostra profundo envolvimento emocional do narrador com a protagonista, Nhinhinha (“E Nhinhinha gostava de mim”). O envolvimento maior fica por conta a beatitude da criança, dotada de poderes estranhos, e do desenlace (morte da protagonista).

Nhinhinha representa a personagem infantil na obra de Guimarães Rosa. Sua aguda sensibilidade e seus poderes contrastam com as atitudes esperadas de uma criança. Seu comportamento causa estranheza - ela não brinca como as outras crianças, não corre, está sempre desligada do mundo, contemplativa, comporta-se como imbecil, fala com a natureza através de resumidas frases. Foi capaz de adivinhar sua própria morte. A infância é um estágio de iniciação do aprendizado do mundo, um momento de receptividade, mas simboliza ainda a sabedoria inata, conduzindo à harmonia com o Cosmos.

O conto está inserindo na categoria do insólito e do fantástico. O final mostra a conversão dos pais à crença nos milagres produzidos pela filha, já que, com certeza, não precisariam encomendar nem explicar o caixãozinho, pois seria da maneira que a filha previra.

5) OS IRMÃOS DAGOBÉ

“Enorme desgraça. Estava-se no velório de Damastor Dagobé, o mais velho dos quatro irmãos, absolutamente facínoras. A casa não era pequena; mas nela mal cabiam os que vinham fazer quarto. Todos preferiam ficar perto do defunto, todos temiam mais ou menos os três vivos.” (p. 27)

Damastor, o pior dos quatro irmãos, foi morto por Liojorge. Este era um rapaz pacífico e honesto, um joão-ninguém, que fora ameaçado por Damastor de ter as orelhas cortadas. Quando Damastor viu Liojorge, avançou para ele com um punhal. Liojorge arranjara uma garrucha. Atirou por cima do coração do inimigo.

Estavam todos espantados pelo fato dos irmãos do morto ainda não terem vingado o acontecido. Liojorge permanecia no arraial. Resignado e sem ânimo, para fugir.

Os Dagobés organizaram o velório do irmão. Fizeram as devidas honras aos visitantes, desculpando-se mesmo dos maus tratos. Doricão, o mais velho, mostrava-se solene sucessor de Damastor e dizia “deus há-de-o-ter!”. Dismundo, o do meio, punha devoção sentimental e dizia: “Meu bom irmão...”. Os três pareciam

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sentir sinceramente e perda do irmão. Mas todos sabiam que Damastor, além de mandão e cruel, era avaro2 e havia deixado boa quantia de dinheiro.

Causava estranheza a calma com que os irmãos conduziam o velório. Todos achavam que os Dagobé queriam ir por partes. Depois do cemitério, por certo pegariam Liojorge.

“Pelo que, aqueles Dagobés; brutos só de assomos, mas treitentos3, também, de guardar brasas em pote e os chefes de tudo, não iam deixar uma paga em paz: se via que estavam de tenção feita. Por isso mesmo, era que não conseguiam disfarçar o certo solerte contentamento. perto de rir. Saboreavam já o sangrar. Sempre a cada podido momento, em sutil tornavam a juntar se, num vão de janela, no miúdo confabulejo4. Bebiam. Nunca um dos três se distanciava dos outros; o que era, que se acautelavam? E a eles se chegava, vez pós vez, algum comparecente, mais compadre, mais confioso - trazia notícias, segredava.” (pp.28 e29)

Os comparecentes traziam notícias de Liojorge, que estava sozinho em sua morada. Não tinha experiência para aproveitar e escapar. Decerto não adiantaria, já que o pegariam onde quer que fosse. “Já era alma para sufrágios.”

Alguém trouxe recado que Liojorge afirmava não ter querido matar o irmão de cidadão cristão nenhum. Puxara o gatilho no último instante para livrar-se. Matara com respeito. “E que, por coragem de prova, estava disposto a se apresentar, desarmado, ali perante, dar a fé de vir, pessoalmente, para declarar sua falta de culpa, caso tivessem lealdade.” (p.29)

Os presentes observavam Dismundo, Derval e Doricão. De receio, tomavam mais cachaça queimada. Tinha chovido de novo. Chegavam outros embaixadores para conciliar as pazes. Traziam notícia de que Liojorge oferecia-se para ajudar a carregar o caixão. Doricão tomou a palavra e autorizou que viesse depois do caixão fechado. Os presentes ficaram ainda mais assustados.

Pela manhã o defunto já fedia um pouco. Fechou-se o caixão, sem graças. Os Dabogés olhavam com ódio, talvez do Liojorge, como se supunha. Todos esperavam pela vinda do Liojorge, que chegou e dirigiu-se aos três:

“Com ]esus!” - ele, com firmeza. E? - aí. Derval, Dismundo e Doricão - o demônio em modo humano. Só falou o quase: - “Hum... Ah!” Que coisa” (p. 30)

2 Pão duro. 3 Que arrumam confusão. 4 Expressão popular para confabulação, conversa.

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Reivalino ficou à espreita da casa, mas parecia que seo Giovânio desconfiava. Chamou o rapaz para entrar. Deixou-o olhar pela casa, que fedia a coisa fechada. Reivalino desconfiou do que se escondia nos quartos, já que não entrou em todos eles. Pressentiu presença. Desconfiava que ali dentro havia mesmo um cavalo escondido.

Reivalino foi chamado outra vez pelo subdelegado e contou tudo o que sabia aos homens de fora. Foi pago pelas informações.

O seo Priscíljo apareceu, ralou com o italiano, queria saber das estórias. Seo Giovânio despejou cerveja numa gamela. Mandou buscar o cavalo alazão canela clara, O animal bebeu tudo, com gosto. O subdelegado foi embora.

Quando os de fora tornaram a vir, Reivalino especulou que havia alguma coisa nos quartos da casa. Seo Priscíljo foi com um soldado e disse que queria revistar os cômodos. Seo Giovânio abriu a casa. Num dos quartos havia um cavalão branco empalhado. Não examinaram os outros quartos da casa, o que aumentou a suspeita e a curiosidade de Reivalino. Seo Giovânjo conversou com o rapaz e convidou-o para comer. Lastimou seus infortúnios

“Sendo que foi de repente. Seo Giovânio abriu de em par a casa. Me chamou: na sala, no meio do chão, jazia um corpo de homem, debaixo de lençol. - “Josepe, meu irmão”... - ele me disse, embargado. Quis o padre, quis o sino da igreja para badalar as vezes dos três dobres, para o tristemente (...) Mas, aí, se viu só o horror, de nós todos, com caridade de olhos: o morto não tinha cara, a bem dizer - só um buracão, enorme, cicatrizado antigo, medonho, sem nariz, sem faces - a gente devassava alvos ossos, o começo da goela, gargomilhos, golas. - “Que esta é a guerra...” - seo Giovânio explicou - boca de bobo, que se esqueceu de fechar, toda doçuras.” (p. 87 e 88)

Reivalino não quis mais ficar por ali. Despediu-se de seo Giovânio, não o abraçando para não chorar, O estrangeiro abriu uma cerveja; tomaram. Seo Giovânio pediu que levasse o cavalo bebedor de cerveja e o cachorro Mussulino, Reivalino não mais avistou o patrão. Soube que morreu, deixando a chácara para ele. Mandou vendê-la, não sem antes cortar as árvores e enterrar o cavalo èmpalhado.

“Eu, Reivalino Belarmino capisquei. Vim bebendo mas garrafas todas, que restavam, faço que fui eu que tomei consumida a cerveja, toda daquela casa, para fecho de engano.“(p. 89)

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COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em primeira pessoa por Reivalino Belarmino.

O texto tende para o insólito pela estranheza de alguns acontecimentos, mas mantém evidente ligação com o conto de suspense, O narrador procura despertar a curiosidade do leitor pelo que se esconde por detrás das atitudes do personagem seo Giovânio. Há mistérios quanto a sua pessoa e ao que ele esconde nos quartos da casa, sempre trancada.

14) UM MOÇO MUITO BRANCO

“Na noite de 11 de novembro de 1872, na comarca do Serro Frio, em Minas Gerais, deram-se fatos de pavoroso suceder, referidos na folhas da época e exarados nas Efemérides. Dito que um fenômeno luminoso se projetou no espaço, seguido de estrondos, e a terra se abalou, num terremoto que sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas, remexeu vales, matou gente sem conta; saiu outrossim medonho temporal, com assombrosa e jamais vista inundação, subindo as águas de rio e córregos a sessenta palmos da plana. (p. 90)

Surgiu no pátio da Fazenda do Casco, de Hilário Cordeiro, um coitado fugitivo da catástrofe. Não vestia roupa, estava coberto apenas por uma manta de cobrir cavalos, Foi avistado por detrás do cercado das vacas. Era tão branco que parecia ter dentro da pele uma segunda claridade. Não se parecia com nenhum outro.

Hilário Cordeiro deu-lhe hospedagem, arrumando-lhe roupas e botinas, O moço parecia ter perdido a memória e o uso da fala. As pessoas foram à fazenda para vê-lo e gostaram dele. Quem mais se aproximou dele foi José Kakende, escravo meio alforriado de um músico sem juízo, ele mesmo tinha a mente meio conturbada, e vivia a pronunciar advertências e doidices. José Kakende queria tornar verdade a aparição que teria enxergado nas margens do Rio do Peixe, na véspera da catástrofe. Só não se afeiçoou ao moço Duarte Dias, malfeitor por reputação e pai da mais bela moça, Viviana.

O moço foi levado à missa, onde não mostrou gostar ou desgostar. José Kakende procurava impor às pessoas sua visão: “O rojo de vento e grandeza de nuvem, em resplandor11, e nela, entre fogo, se movendo uma artimanha amarelo-escura, avoante trem, chato e redondo, com redoma de vidro sobreposta, azulosa, e que,

11 Expressão popular para resplendor.

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pequena multidão.”; “... terminado o interminável.”; “No mais, mesmo, da mesmice, sempre a novidade.”

d) emprego de aliterações: “... o fúfio fino borrifo”; “A moça estava paralela, lá, longe...”; “...seu tênue tambor taquigráfico.”

e) Uso dos onomatopéias e prosopopéias: “a chuvinha no bruaar” “chégochégochego” “Crrée!”

f) Emprego de repetições binárias ou ternárias:. “mumumudos”; “A luz e a longa-longa-longa nuvem.”; “dançandoando”.

g) Criação de neologismos: “diligentil”; “bela-adormeceu”; “excelentriste”; “psiquiartista”; “redesimportância”; “poetista”; “controversioso-culposo”; “perpensava”.

Outro aspecto importante que vale ressaltar, é o emprego por Guimarães Rosa de excesso de pontuação, principalmente o uso de vírgulas, ampliando as pausas, aproximando-se assim da oralidade e criando um ritmo agradável para a leitura em voz alta de seus textos.

PRINCIPAIS TEMAS Vários são os temas apresentados pelos contos de

Primeiras Estórias, dos quais destacamos: a) A presença da loucura como elemento desencadeador do

insólito, do cômico ou do dramático. b) A magia despertada pelo ato de criar através da palavra. c) A problemática da morte. d) Valorização da superstição. e) A presença de valentões. f) A valorização da criação como ser em busca do

aprendizado do viver. g) A presença do viver sertanejo. h) O sofrimento como elemento desencadeador do

aprendizado da criança. i) O amor como elemento unificador e cósmico. i) Presença do inexplicável e do absurdo l) Valorização da psicológica universal através da psicologia

individual. m) Presença do metafísico. n) Presença do esotérico.

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querer resolução (O Cavalo que Bebia Cerveja, A Menina de Lá, A Terceira Margem do Rio, Tarantão, meu Patrão).

ESTILO DE ÉPOCA Guimarães Rosa pertence à terceira fase do modernismo

brasileiro, ou seja, ao Neomodernismo iniciado a partir de 1945. Podemos destacá-lo como um dos mais importantes escritores de toda a nossa literatura. Sua obra Primeiras Estórias é um livro de contos inserido nas perspectivas do instrumentalismo, pois tem na palavra seu instrumento de constantes pesquisas. Cabe, ainda, a classificação dos presentes contos na tendência criada por Guimarães Rosa que chamamos universalismo regionalizante, uma vez que sua leitura do mundo regional faz-se a partir de ‘~um prisma universal.

ESTILO DE ÉPOCA Guimarães Rosa é um escritor único dentro da literatura

brasileira, principalmente por causa dos recursos renovadores que sua prosa regionalista apresentou, dando vigor e maturidade ao modernismo de terceira fase. Podemos dizer que renovou o conto e o romance através de uma linguagem criativa, fruto de suas constantes pesquisas do mundo regional mineiro. Não nos cabe dizer que inventou uma nova língua brasileira, como exageradamente pretendem alguns críticos mais afoitos, mas que recriou a língua literária brasileira através de expressões linguísticas nascidas no meio regional e colhidas por sua inventividade.

Vejamos, então, alguns desses recursos empregados em Primeiras Estórias.

a) Ruptura da linearidade da narrativa através da utilização de provérbios modificados ou não pelo autor: “... pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos bois”; “De manhã, todos os gatos nítidos nas pelagens”; “... quem, assado e assim,...”; “Ah...e quase, quaseinho. . .quasezinho, quase...”; “... só, dera ali o ar de sua desgraça.”

b) emprego de trocadilhos: “E, pois que há razões e rasões, os padioleiros...”

c) emprego de antíteses e paradoxos: “... pensou assim: jamais, jamenos..”; “Porque estourou manso o milagre,...”; “... o que não era o certo, exato: mas, que era mentira por verdade.”; “... uma

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pousando, de dentro desceram os Arcanjos, mediante todas, labaredas e rumores.” (p. 92)

Hilário Cordeiro e José Kakende traziam o moço para casa. Este viu o cego Nicolau e olhou-o demoradamente e acabou “dando-lhe rápida partícula, tirada da algibeira”, O cego; vendo que não era moeda, levou à boca, mas foi advertido pelo menino guia de que não seria artigo de comer, mas espécie de caroço de árvore, O cego Nicolau guardou por vários meses a semente que, plantada, deu um azulado pé de flor, da mais rara e inesperada, que tinha várias flores numa única, mas que não produziu outras sementes.

Duarte Dias veio acompanhado na exigência de levar consigo o moço, que seria um de seus parentes desaparecido, pois só poderia ser dos Rezendes, por causa de sua aparência. Hilário Cordeiro contestou, quase tornando tudo em desavença.

Hilário começou a ter sorte, “quer na saúde e paz, em sua casa”, prosperou nos negócios, O moço não trabalhava, ficava a passear pelo lugar. “Ele andava muito na lua”. Espiava as estrelas. Gostava de acender fogueiras. Contou-se que ele e o preto Kakende apareceram na casa da moça Viviana, que era bonita, mas que não se divertia como as outras moças. Ele chegou, muito gentil, e pôs a palma da mão no seio dela, delicadamente Ela viu transformar sua tristeza. O pai, Duarte Dias, exigia que o moço se casasse, pois difamara a filha. O padre Bayão e outros mais velhos mostraram descabida a fúria e que era insensatez, Viviana despertou para a alegria para todo o restante de sua vida.

No dia da Dedicação de Nossa Senhora das Neves e da vigília da Dedicação, 5 de agosto, Duarte Dias foi à Fazenda do Casco pedindo para falar com Hilário. Suplicou para levar o moço para sua casa. Não era por ambição ou impostura, mas por afeição. O moço pegou-o pela mão junto com o preto Kakende e conduziu-o pelos campos, terras do próprio Duarte Dias, Mostrou onde deveria cavar, tendo sido encontrada uma grupiara12 de diamantes ou um panelão de dinheiro, segundo o que diversamente se contava, Daí em diante, Duarte Dias tornou-se um homem sucinto, virtuoso e bondoso.

No dia da veneranda Santa Brígida, soube-se novamente do moço. Safra na véspera pelos altos, Era tempo de trovoadas secas. José Kakende conta que o ajudara a acender nove fogueiras e que vira nuvens, chamas, ruídos, redondos, rodas, geringonça e entes, “Com a primeira luz do sol, o moço se fora, tidas asas.”

12 Mesmo que gupiara, depósito de diamantes.

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COMENTÁRIOS:

O Conto é narrado em terceira pessoa. O texto mostra características de uma narrativa de ficção científica. Tudo indica que o homem muito branco veio do espaço. A descrição feita pelo personagem José Kakende da chegada do que parece ter sido uma nave espacial confirma tal afirmação. Gimarães Rosa, mostrando suas inúmeras variantes, criou neste conto um texto de ficção científica dentro de uma linguagem tipicamente regional, A chegada do moço muito branco trouxe mudanças nas pessoas que com ele conviveram, Seu poder de fazer milagres também exercia forte atração nas pessoas, fazendo com que todos gostassem dele, Sua partida trouxe tristeza e dor aos que o conheceram,

15) LUAS-DE-MEL

O velho fazendeiro Joaquim Norberto, dono da fazenda Santa-Cruz-da-Onça, acabou recebendo, por recomendação de Seo Seotaziano, um casal de noivos para proteção.

O fazendeiro foi procurado por um certo sujeito, de nome Baldualdo, que trazia uma mensagem de Seo Seotaziano A princípio acharam tratar-se de perigoso jagunço com más intenções, mas não havia perigo, já que o capataz da fazenda, José Satisfeito, foi antes Zé Sipío, antigo jagunço. Seo Seotazjano pedia na carta: “Para um moço e uma moça, lhe peço forte resguardo13 o mais se verá, mais tarde.”

Sa-Maria Andreza, mulher do fazendeiro, preparou tudo para acomodar os hóspedes, O fazendeiro mandou o filho, Seo Fifino, e o capataz trazerem certos homens do retiro do Meio, do Munho e das roças. Baldualdo ofereceuse para ficar por uns dias, O fazendeiro ficou preparado para qualquer reação, uma vez que percebeu tratar-se de doidices de amor do casal esperado.

Todos estavam prevenidos quando os dois chegaram em meia-noite. Ainda não eram casal. A moça recolheu-se com recato, O moço quis arranchar na casa-de-engenho. Tinham viajado sozinhos. Depois chegou outro sujeito, que vinha protegendo o casal na distância, sem que os noivos soubessem.

O fazendeiro acordou antes do sol. Tudo estava em paz. Por precaução, o fazendeiro montou guarda de jagunços armados. Chegaram mais homens da Fazenda Congonha, da Lagoa-dos-cavalos quando anoiteceu.

13 Proteção, cuidado.

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C) PERSONAGENS: Os personagens de Primeiras Estórias nem sempre são seres humanos comuns. Alguns representam seres de exceção, seja pela loucura que parece tomar conta de seus atos e falas, seja pela inteligência e maturidade que a pouca idade não parece explicar. Em geral, predominam personagens ligadas à infância ou à loucura. Nem sempre Guimarães Rosa procura nomeá-los, são denominados apenas pela função que ocupam ou pelo papel que desempenham dentro do texto (Menino, Moça, Moço, Homem Velho, Tio Tia, Mãe, etc), o que não lhes tira uma identidade toda própria, pois parecem superar a ausência de individualidade nominal ao desempenharem enormemente seu papel na trama.

Nem todos, contudo, saem do comum, pois são tipos populares, valentões, gente da roça, médicos, mendigos. Gente que, aparentemente, passaria despercebida aos menos avisados. A exceção está interligada aos seus atos diante dos acontecimentos.

D) FOCO NARRATIVO: Os contos da presente obra são

narrados em primeira ou terceira pessoas. Entretanto, o ponto de vista do narrador constitui em Guimarães Rosa elemento para discussão mais aprofundada e merecedor de atenção por parte dos leitores. Através do ponto de vista de alguns contos, podemos ampliar nossa compreensão das narrativas. Assim, as perspectivas passadas pelos narradores em Primeiras Estórias são variadas, o que cria maior riqueza de possibilidades no plano da leitura.

Nas narrativas de primeira pessoa (onze ao todo), a personalidade do narrador vai sendo revelada no mesmo ritmo da ação dramática. A descoberta de seu interior é lenta e progressiva, mas reveladora de outros sentidos e significados até então não explicitados pelo texto. Podemos mesmo dizer que se cria uma espécie de história do “eu” do personagem-narrador.

Nas narrativas em terceiras pessoa, “é muito difícil determinar os limites entre narrador e narrativa, porque não existe entre eles uma distância crítica”, como constatou Lenira Marques Covizzi in O Insólito em Guimarães Rosa. O narrador posiciona-se normalmente de forma onisciente e/ou onipresente, não raro como membro de uma multidão (Sorôco, sua Mãe, sua Filha), ainda como consciência crítica dos membros de uma comunidade para quem fala (A Benfazeja), ou como decifrador dos pensamentos infantis (As Margens da Alegria e Os Cimos), misturando-se com o próprio protagonista no final (Nenhum, Nenhuma).

A ambivalência da postura de alguns narradores amplia o mistério e situa o insólito em níveis de enigma que parece não

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Vejamos alguns contos narrados em terceira pessoa: As Margens da Alegria; Sorôco, sua mãe, sua filha; A Menina de Lá, etc.

Podemos ainda separar os contos a partir de certas temáticas centrais:

a) Infância: As Margens da Alegria, A Menina de Lá, Pirlimpsiquice, Nenhum, Nenhuma, Partida do Audaz Navegante, Os Cimos.

b) Loucura: Sorôco, sua Mãe, sua Filha; Nenhum, Nenhuma; Nada e a Nossa Condição; Darandina e Tarantão, meu Patrão.

c) Violência: Famigerado, Os irmãos Dagobé, Fatalidade e Benfazeja.

d) Amor: Seqüência, Luas-de-mel, Substância e Nenhum, Nenhuma.

Cabe-nos ainda ressaltar que um dos contos apresenta micronarrativa que se emparelha com a narrativa principal do texto, recurso já empregado por Guimarães Rosa em O Burrinho Pedrês e Conversa de Bois, ambos do livro Sagarana (1946). Pode-se, assim, citar Partida do Audaz Navegante, onde se cria, paralelamente à estória principal, a estória de um marinheiro que vai sendo ampliada ou modificada pela menina Brejeirinha.

A) TEMPO: A maioria das narrativas apresenta o tempo

mais voltado ao psicológico do que ao cronológico. No entanto, destacaríamos Um moço muito branco, que focaliza com precisão cronológica a noite de 11 de novembro de 1872. Também o conto Nenhum, Nenhuma estabelece o tempo cronológico, só que de maneira um tanto imprecisa, citando o ano de 1914, já que a narrativa é feita a partir da memória do protagonista e não do narrador.

B) ESPAÇO: De forma diferenciada das obras anteriores de

Guimarães Rosa, cujo espaço é precisado de maneira minuciosa, a maioria dos contos de Primeiras Estórias passa-se numa região não muito bem delineada. Sabe-se que predomina o cenário de Minas Gerais, mas nem sempre sabemos exatamente onde. Estão presentes, entretanto, algumas fazendas (Pãodolho, Casco, Torto Alto, Santa Cruz, Congonha, Lagoa dos Cavalos) e arraiais, vilarejos ou pequenas cidades (Breberá, M’ engano, Temor de Deus, Pai-do-Padre, Amparo, Serro Frio, etc.

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No dia seguinte, uma segunda-feira, vieram mais dois homens enviados por Seo Seotaziano Chegaram ainda o sacristão e o padre. Era um padre moço, armado de um rifle curto, O fazendeiro arrumouse para o casamento com sua melhor roupa. Sa-Maria Andreza arrumou o altar, estava bem vestida. A moça era filha do Major João Dioclécio, O moço era parente de Seo Seotaziano,

Veio o banquete. Todos comeram, mas sempre alertas para o que poderia acontecer:

“A frente, a um passo da morte, valentes, juntos, tantos, bastantes. Ninguém vinha. A Noiva sorria para o Noivo, em fofos: essas núpcias. E eu com mente erradamente, de quem se acha em estado de armado. Com o que outro míngua, eu me sobejo. Minha Sa-Maria Andreza, mulher, me sorria.” (p. 101)

Nessa noite ninguém viria, O Noivo retirou-se com a Noiva, Outros já dormiam, O fazendeiro resolveu revezar vigias. Olhou para a mulher com fogo de amor, dizendo “Vamos dormir abraçados...”.

Na manhã seguinte, surgiu um recado dos Dioclécios de que um patrão viria visitar de passagem, amistosamente, Decidiram então afastar o grosso dos homens por um espaço de meia-légua, O homem era o irmão da Noiva, conhecido do fazendeiro, Não vinha fazer escândalos. o fazendeiro Joaquim Norberto convidou-o para almoçar. Chamou os noivos para a mesa.

O irmão da Noiva cumprimentou o Noivo, Comeram e conversaram sobre vários assuntos, Convidou os noivos para irem com ele receber a benção dos pais e para uma festa. Todos já sabiam do casamento. Convidou também o fazendeiro e a mulher, Joaquim Norberto não pôde ir, devido às circunstâncias, mas mandou o filho como representante, Os Noivos despediram-se, agradecendo, o fazendeiro fez questão de dizer que era padrinho deles no casamento e que seria padrinho do primeiro filho; falava direto para o irmão da Noiva, para precaver-se de qualquer acontecimento.

“Sempre era bom, E ele não ia me entender? Pouquinha dúvida, Esta vida tem de ser declarada e assinada, O mais, no mais, senão as carabinas.” (p. 103).

“Tudo tão determinado, de repente, se me se diz, tudo quitado, Nem guerra, nem mais lua-de-méis, regalo não regalado!” (p.103) Todos se foram. Joaquim Norberto abraçou a mulher. Ambos com os olhos limpos.

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COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em primeira pessoa pelo protagonista, o fazendeiro Joaquim Norberto. A temática central do conto é o amor, simbolizado pela chegada do casal de noivos fugitivos enviado por Seo Seotaziano para proteção de Joaquim Norberto. O fogo do amor e do sexo parecem renovar a disposição do narrador, reacendendo o amor arrefecido por sua companheira, Sa-Maria Andreza. A visão que o marido tem da mulher vai sendo alterada com o transcorrer da narrativa: “Sa-Maria Andreza, minha santa e meio passada mulher, ia ferver um chá...“(p. 96); “Minha Sa-Maria Andreza bem vestida, figuro também que até corada.” (p. 99); “Olhei minha sadia Sa-Maria Andreza - contemplada.” (p. 100); “Eu, feliz, olhei minha Sa-Maria Andreza; fogo de amor, verbigrácia.” (p.101) “Entre as duas luas-de-mel que se comunicam, uma nascendo da outra, uma gerando a outra, eros cumpre o seu ciclo cósmico, unindo o princípio e o fim, o primeiro e o último termo de uma trajetória, o amor carnal ao espiritual, as bodas dos corpos às núpcias da alma.” (Benedito Nunes - O dorso do tigre)

16) PARTIDA DO AUDAZ NAVEGANTE

Numa manhã que chuviscava, estavam em casa, perto do fogo, Mamãe, Ciganinha, Pele, Brejeirinha e Zito. Mamãe mandava Maria Eva estrelar ovos com torresmos e descascar mamões maduros. As meninas brincavam com bonecas. Zito era primo das meninas. A cachorra Nurka dormia. Brejeirinha era a menor e fazia muitas artes. Ciganinha e Zito estavam brigados. Brejeirinha dizia frases cheias de mistério e pureza: “Eu sei porque é que o ovo se parece com um espeto”; “Eu hoje estou com a cabeça muito quente”; “Eu vou saber geografia”; “Eu queria saber o amor” ou “Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes?”. Pele respondia que Brejeirinha não sabia nem ler o catecismo. Brejeirinha argumentava que tinha lido as trinta e cinco palavras no rótulo da caixa de fósforos.

Zito sentia vontade de ir embora debaixo da chuva. Brejeirinha, apreendendo o que ele pensava, disse: “Zito, você podia ser o pirata inglório marujo, num navio muito intacto, para longe, loõ-onge no mar, navegante que o nunca-mais, de todos?”. Ciganinha estremeceu e segurou mais forte o livro. Brejeirinha tomava ímpeto

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ESTRUTURA DA OBRA

O livro Primeiras Estórias apresenta 21 contos curtos. Essas narrativas parecem confirmar a tendência de Guimarães Rosa para a pesquisa permanente da linguagem regional. Seu instrumentalismo não se vê descaracterizado sequer pela presença de um conto urbano (Darandina), uma vez que emprega linguagem de teor regionalizante. Também não há perda da verossimilhança em tal conto, pois o mundo regional está presente dentro da perspectiva urbana e do universal. A verossimilhança dá-se pelo elemento catalisador, que é o universal do homem.

Há variadas formas de agruparmos os 21 contos do livro. Devemos, primeiramente, ressaltar que grande parte dos contos está ligada à presença do insólito, sensação permanente do inverossímel, do impossível. O inusitado de tais situações cria forte estado de tensão nas personagens. A sensação de estranheza é causada não sç5 por acontecimentos desniveladores da normalidade, mas também pelo comportamento das personagens, que parecem sempre seres de exceção. O fio narrativo que parece ligar tais personagens, coloca em processo a existência de atitudes inesperadas diante do que se esperava delas frente às circunstâncias ditadas pelo mundo e pelos fatos. Tornam-se criaturas de exceção a partir da idade, pelas ações que desempenham, pelas transgressão das regras sociais ou jurídicas, por anormalidades físico-psíquicas, pela maneira que captam o mundo e os acontecimentos, O insólito está, assim, presente em vários contos.

Há, no entanto, vários tipos de contos: psicológicos (Nenhum, Nenhuma, O Espelho, As Margens da Alegria, Substância, Os Cimos, etc), fantásticos (A Menina de Lá, Um Moço Muito Branco), anedóticos (Fatalidade; Darandina e Tarantão, meu patrão), satíricos (Darandina), de suspense (O Cavalo que Bebia Cerveja; Os irmãos Dagobé; Famigerado) e metalinguísticos (Famigerado; Pirlimpsiquice e Partida do Audaz Navegante) e insólitos (Sorôco, sua Mãe, sua Filha; A Menina da Lá; A Terceira Margem do Rio). Outra maneira de separarmos os contos é através da estrutura narrativa. O livro apresentam um uso especial do foco narrativo. Os contos são escritos em primeira ou terceira pessoas. “Das vinte e uma narrativas de Primeiras Estórias, onze vêm na primeira pessoa.” O narrador é protagonista em dois contos: O Espelho e Pirlimpsiquice; nos demais é um espectador que presencia a ação e relata suas impressões ou uma das personagens de menor importância.

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O Desmedido Momento

O Menino espiava da janelinha as nuvens, com uma saudade das coisas que deixara para trás: o tucano, o amanhecer, tudo, a casa, a mata, o jipe, a poeira, as ofegantes noites.

Agonizou-se ao descobrir que o bonequinho macaquinho não estava mais no seu bolso. Chorou. Perdera o bonequinho. “Mas, então, o moço ajudante do piloto veio trazer-lhe, de consolo, uma coisa: “Espia, o que foi que eu achei, para Você” - e era, desamarrotado, o chapeuzinho vermelho de alta pluma...” (p. 159)

Não pôde mais atormentar-se de chorar. Percebeu que o “companheirinho Macaquinho não estava perdido”. “Decerto, ele só passeava por lá, porventura e porvindouro, na outra-

parte, aonde as pessoas e as coisas sempre iam e voltavam.” (p. 159). O Menino sorriu. Por um instante, sonhou estar com a Mãe naquele lugar, vivendo novamente tudo. Todas as imagens paradas. “Só aquilo. Só tudo.”

“- “Chegamos, afinal!” - o Tio falou. -“Ah, não. Ainda não...” - respondeu o Menino. Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. Vinha a vida.” (p.

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COMENTÁRIOS:

Conto narrado em terceira pessoa. Guimarães Rosa retoma neste conto a temática da criança e sua iniciação no aprendizado do viver. O Menino toma contato com a dolorosa experiência da vida através da doença da mãe. Sua fé manifesta-se na negação da doença materna. Quanto mais as reações do tio parecem confirmar o estado de agravamento da doença, mais inclinado está o Menino a acreditar que a mãe nada tem e está boa. Sua confiança nesse estado de melhoria parece obter resultados, pois, quando tudo parece perdido e a fé do tio acabada, a mãe reestabelece-se, e o Menino volta para casa.

Nota-se, ainda, a tendência presente na obra de não nomear os personagens e tratá-los através de substantivos iniciados pelo uso de maiúsculas.

O final do conto é enigmático, uma vez que a viagem não parece ter terminado para o Menino. Pode-se explicar o sentido pretendido pelo fato de que a viagem pelo aprendizado não termina nunca. A do Menino havia apenas iniciado.

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de contar mais estórias e foi montando a estória do “Aldaz14 Navegante”.

As meninas começaram a discutir. Mamãe também estava brava, porque Brejeirinha topara o pé na cafeteira e outras coisas. O tempo melhorou. O céu tornava azul. Mamãe ia visitar a mulher do colono Zé Pavio, que estava doente. Brejeirinha quis saber se iam junto. Mamãe criticou o jeito de falar da filha. Pediram licença à Mamãe para irem espiar o riachinho cheio. Mamãe deixava se Zito fosse junto para não deixá-las chegar perto da água.

Por causa da chuvinha, levaram dois guarda-chuvas. Brejeirinha e Pele foram debaixo de um, Zito e Ciganinha no outro. De braços dados. Já estavam em pé de paz. Para eles o passeio era um fato sentimental. Todos tomavam cuidado para não pisarem nas poças de lama e no “bovino”, que era como Brejeirinha chamava as rodelas de estrume de boi. Brejeirinha levou um tombo. Agora não precisava mais ter cuidado. Correu com a cachorra pela encosta inferior, no verdinho do pasto.

Finalmente, chegaram ao riachinho. Brejeirinha disse que a cachoeirinha era uma parede de água. Falou sobre a ilha que havia no rio. Era a Ilhazinha dos Jacarés, mas lá não havia nenhum jacaré. Brejeirinha retoma a estória do “Aldaz Navegante”. Ciganinha e Zito gostaram da referência ao amor na estória. Pele voltou com uma porção de flores e perguntou se o assunto ainda não tinha parado. Pele passa a intimar Brejeirinha para saber a continuação da estória, afirmando de que não valia inventar personagem novo no final da estória. Acabou por apontar um “bovino” e dizer que aquele era o “aldaz navegante”: “Olhou-se. Era: aquele - a coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-ressequida, obra pastoril no chão de limugem, e às pontas dos capins - chato, deixado. Sobre sua eminência, crescera um cogumelo de haste fina e flexuosa, muito longa: o chapeuzinho branco, lá em cima, petulante se bamboleava. O embate e orla da água, enchente, já o atingiam, quase.” (p. 109)

Brejeirinha fez careta. Depois, vendo que o ramalhete de Pele desmanchara, apanhou as flores amarelas e as outras e espetou-as no “Aldaz Navegante”. Colocou ainda folhas de bambu, raminhos e gravetos. O “bovino” se transformava.

Começou a trovejar. Ciganinha aproximou-se mais de Zito. Pele pediu que a estória fosse continuada. A água já se acercava do “Aldaz Navegante”.

14 A palavra audaz adquire um valor neológico: aldaz. A intenção parece ter sido

lembrar que Brejeirinha não sabia ler ou escrever.

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Ciganinha e Zito conversaram sobre a partida do menino. Ela queria saber se ele voltaria sempre ali. Ele disse que se Deus quisesse viria.

Brejeirinha aumenta os adornos do “Aldaz Navegante” antes dele ser levado pela água. Ciganinha sugeriu que mandassem por ele um recado, enviando alguma coisa para o mar. Zito pôs uma moeda; Pele, um chicle, Ciganinha, um grampo, e Brejeirinha um cuspe. Ciganinha completou a estória, dizendo que agora sabia que o “Aldaz Navegante” não tinha idg sozinho na viagem. Embarcou com a moça que ele amava.15

Trovejou. Todos vieram em socorro de Brejeirinha, que se assustara. Mamãe chegou. Pele anunciou que lá se ia o “Aldaz Navegante”. Todos se comoveram. A chuva voltava. Abriram com pressa os guarda-chuvas.

COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em terceira pessoa, mas o foco narrativo mostra um narrador envolvido por completo na própria narrativa. Ele não participa diretamente da ação, no entanto percebe-se sua presença na própria maneira de tratar a mãe das meninas por mamãe. Seu envolvimento afetivo denuncia que possa ser uma das referidas meninas, mas já adulta. Esse mesmo recurso foi também empregado por Guimarães Rosa na novela Campo Geral.

O conto está ligado à temática da criança na obra roseana. A pureza e inocência das relações infantis é representada pela personagem Brejeirinha, que inventa sua própria linguagem para contar uma estória sobre um audaz navegante. Sua linguagem é marcada pelo “nonsense”, ou seja, pelo sem sentido: “Ele foi um navio, também, falcatruas.”; “Mas ele embarcou com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto.”. Em outra passagem, percebemos a malícia infantil: “Você já viu jacaré lá? - caçoava Pele. - Não. Mas você também nunca viu o jacaré-não-estar_lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar...” (p. 108) Outra tendência comum em Guimarães Rosa é a narrativa principal servindo de eixo para micronarrativas. A estória contada pela menina segue dentro da narrativa principal, só que sua estória vai sendo feita e refeita até o final, seguindo o fluxo de sua criatividade. Mesmo dando a estória por terminada, ainda retoma-a para colocar outro final.

15 É interessante notar que Ciganinha, envolvida sentimentalmente com Zito, dá à

história inventada por Brejeirinha um final de amor.

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O Menino não conseguia dormir. Olhava as nuvens que ensaiavam esculturas efêmeras. Apegava-se ao macaquinho que estava tão sem mãe, sozinho. Se soubesse que a mãe ia adoecer, teria ficado sempre junto dela. Nem teria brincado. “O Menino sofria sofreado.17”

Aparecimento do Pássaro

Na casa, não queria brincar. Também não tinha vontade de

sair do jipe, com o Tio. Tinha medo de ficar doente longe da mãe. A noite, não conseguia dormir por causa da Mãe. Transformara-se o bonequinho macaquinho no camarada, no travesseiro. O macaquinho era um muito velho menino.

Ao amanhecer, avistou um tucano numa das árvores. Tão perto. Ninguém falava, todos tentando segurar o instante. O Menino estava quase para chorar. “Molhou todas as pestanas”. O tucano voou. O sol saía. “Agora, era a bola de ouro a se equilibrar no azul de um fio”. “O Menino nem exclamava.” O Trabalho do Pássaro

O Menino tinha medo de pedir notícias da Mãe. Não conseguia ligar o pensamento. “A mãe da gente era a Mãe da gente, só; mais nada.” Esperava pelo tucano, que vinha sem falta pintar a aurora. Fazia mais de um mês que a cena repetia-se. De dia o tucano não voltava lá.

O tio recebeu um telegrama. Mostrou a cara apreensiva. “Mas, então, fosse o que fosse, o Menino, calado consigo,

teimoso de só amor,precisava de se repetir: que a Mãe estava sã e boa, a Mãe estava salva!” (p. 158)

“O Tio, entanto, diante dele, parou sem a qualquer palavra. O Menino não quis entender nenhum perigo. Dentro do que era, disse, redisse: que a Mãe nem nunca tinha estado doente, nascera sempre sã e salva! O vôo do pássaro habitava-o mais.” (p.158)

No quarto dia após o primeiro, o Tio recebeu outro telegrama e sorriu com força. “A Mãe estava bem, sarada!” Voltariam para casa no dia seguinte, depois do derradeiro sol do tucano”.

17 Fig.: pleonasmo.

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meu esmarte Patrão, com seu trato excelentriste - lô João-de-Barros-Diniz-Robertes. (p. 151)

COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em primeira pessoa por Vaga-lume, empregado do protagonista da estória. O texto é anedótico e paródico não apenas pelo tratamento do tema, mas pela própria recriação do personagem D. Quixote, de Cervantes. O protagonista é quixotesco, possui rompantes de heroísmo e bravura, empolgado pela própria loucura que parece dar-lhe direito de sobrepor-se aos homens e ao mundo. A loucura apodera-se dele, tornando-o capaz de atos heróicos e cavalheirescos. Com o fim do delírio, parece esvaziar-se, tornando-se, quieto, encolhido. O final do conto parece sugerir a morte de Tarantão: senão física, pelo menos enquanto personagem já que passara o ímpeto. “Agora, podendo daqui para sempre se ir, com direito a seu inteiro sossego. Dei um soluço cortado.” O protagonista mostra-se ridículo, mas termina por cativar o leitor, daí tornar-se apenas cômico. Vemos aqui mais um personagem que se aproxima da galeria quixotesca, comparável inclusive ao Capitão Vitorino do romance Fogo Morto de José Lins do Rego.

21) OS CIMOS

O Inverso Afastamento

O Menino viajava para o lugar onde milhares de pessoas

construíram a grande cidade. Ia com o tio, de avião. Fingia sorrir quando lhe falavam. A Mãe estava doente. Por isso era mandado para fora. Trazia um bonequinho macaquinho, de calças pardas e chapéu vermelho de pluma alta. O Menino tinha maior medo quando se mostravam mais bondosos para ele. Se pensasse na Mãe, choraria.

“A mãe e o sofrimento não cabiam de um vez no espaço de instante, formavam avesso - do horrível do impossível. Nem ele isso entendia, tudo se transformando então em sua cabecinha. Era assim: alguma coisa, maior que todas, podia, ia acontecer?” (p. 152)

O Menino sentia remorso de ter no bolso o bonequinho macaquinho. Devia jogá-lo fora? Mas também o macaquinho não merecia ser maltratado. Jogou apenas o chapeuzinho com a pluma. “E o Menino estava muito dentro dele mesmo, em algum cantinho de si. Estava muito para trás. Ele, o pobrezinho sentado.”

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17) A BENFAZEJA

A mulher era guia do cego Retrupé. Chamavam-na de Mula-Marmela porque ninguém sabia seu nome. Cometera um crime há muitos anos. Matara o próprio marido, Mumbungo. Este era um homem mau, que matava e afligia as pessoas. Diziam que esfaqueava rasgado, só pelo prazer de ver a vítima fazer caretas. Todos temiam-no. Diziam que era louco. Só se dava bem com a mulher. Amava-a. “O amor é a vaga, indecisa palavra.” Só a Mula-Marmela amedontrava-o. Talvez ele soubesse que só ela poderia destruí-lo.

Depois que matou o marido, a Mula-Marmela passou a cuidar do filho dele, o Retrupé, que naquele tempo ainda não era cego. Pressentia-se nele as mesmas maldades do pai. Cegou de ambos os olhos graças ao poder de leites, pós, plantas ou venenos empregados pela Mula-Marmela. Tornou-se um ser inofensivo às pessoas do lugar.

O cego Retrupé pedia esmolas de forma rude. Xingava e dava com o bordão nas portas das casas e no balcão das vendas. As pessoas tinham respeito por ele. Não o censuravam, desatendiam ou ralhavam. Talvez percebessem nele um mando de alma, uma certa qualidade de poder. Tinha cara de matador de gente. Carregava um facão com a bainha presa a um barbante na cintura. Retrupé tinha medo da Mula-Marmela, que o chamava com uma simples sílaba. Ela não o deixava beber cachaça.

“Não, não há ódio; engano. Ela, não. Ela cuida dele, guia-o, trata-o - como a um mais infeliz, mais feroz, mais fraco. Desde que morreu o homem-marido, o Mumbungo, ela tomou conta deste. Passou a cuidá-lo, na reobriga, sem buscar sossego. Ela não tinha filhos. “Ela nunca pariu...” - vocês culpam-na.” (p. 118)

As pessoas diziam que a Mula-Marmela e Retrupé eram amantes, mas não era verdade. Ela mesma conduzia-o às mulheres da vida e esperava-o do lado de fora, zelando para que não o maltratassem.

Certa vez Retrupé quis matar a Mula-Marmela. Ele tinha febre. Tinha sentado na beira da rua. De repente, levantou-se e começou a gritar exaltado. Sacou o facão e avançou às cegas. Ela não se moveu, não se intimidou. Ele não conseguiu acertá-la, O Retrupé temeu, sentiu-se desamparado. O facão caiu das mãos. Chamou-a de mãe, “minha mãe”. Ela apanhou o chapéu dele, limpou, tornou a pôr na cabeça. Trouxe também o facão e colocou-o na velha bainha. Chamou-o “meu filho”. Os dois ficaram até o

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anoitecer naquela solidão próxima, numa beira de cerca. O Retrupé morreu naquela madrugada, estrangulado. Havia marcas de unha e dedos da Mula-Marmela no pescoço.

“Só não a acusaram e prenderam, porque maior era o alívio de a ver partir, para nunca, daí que, silenciosa toda, como era sempre, no cemitério, acompanhou o cego Retrupé às consolações. Vocês, distantemente, ainda a odiavam?” (p. 121)

A Mula-Marmela partiu sem que ninguém se despedisse dela. “... quando ia a partir, ela avistou aquele um cachorro morto, abandonado e meio já podre, na ponta-da-rua, e pegou-o às costas, o foi levando-se para livrar o logradouro e lugar de sua pestilência perigosa, se para piedade de dar-lhe cova em terra, se para com ele ter com quem ou quê se abraçar, na hora de sua grande morte solitária? Pensem, meditem nela, entanto.” (p. 122)

COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em terceira pessoa, e o narrador procura empregar os próprios moradores do local onde ocorre a ação como interlocutores. Durante toda a narrativa ele procura cobrar os moradores por suas atitudes em relação à personagem Mula-Marmela. A temática do texto prende-se à abordagem pelo autor de personagens valentões e que espalham medo e desespero pelas pequenas comunidades do interior, bem como mostrar o crescimento de certos personagens diante de momentos e circunstâncias de risco. O caráter heróico da personagem não é reconhecido pela população que ela visa proteger com suas atitudes. Apenas o narrador reconhece sua bondade e seu mérito. O título do conto indica o caráter caridoso e bondoso da personagem, apesar da ação narrativa parecer desmentir o título. Sua bondade, entretanto, está na ação de livrar a cidade do mal, ainda que para isto ela precise matar e cegar. A ação final de levar consigo o cão morto comprova a sua bondade e seu intuito de proteger a população de todo o mal.

18) DARANDINA

O narrador está fora do portão, ainda em serviço, à espera do menino com os jornais. Vê passar por ele um senhor, rápido, aparentemente impoluto. Ouve um grito. Pensa ter visto o senhor ser apunhalado, mas enxergara demais, pois foi apenas um afanador16 de carteiras. O chofer do dr. Bilolô disse que roubaram a caneta

16 Ladrão.

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No arraial do Breberê, havia uma festa de Santo. O patrão de Vaga-lume achou que os foguetes eram para ele, que o estavam saudando. Ninguém podia discordar dele. Entraram no arraial. O velho atirou várias moedas ao chão. As pessoas se embolavam tentando pegá-las. O velho caminhou para o padre à porta da igreja, dobrou o joelho para ser abençoado. O velho convidou o vizinho do padre para vir junto, que aceitou para ir segurar a vela, já que devia favores à famflia do velho. Foi junto também o rapaz Jiló, por ganância. O padre tranquilizou-os com outra benção. Os sinos ainda tocavam quando deixaram o povoadinho.

Encontraram no caminho um bando de ciganos. O velho convocou, e um quis entrar para o grupo. Era o cigano Pé-de-Moleque. Depois vieram outros: Gouveia “Barriga-Cheia, o vagabundo “Corta-Pau”. Já eram onze, treze, quatorze.

“Mato sujos e safados!”... - o velho. Os cavalos, cavaleiros. Galopada. A gente: treze... e quatorze. A mais um outro moço, o “Bobo”, e a menos um “João-Paulino”. Aí, o chamado “Rapa-pé”, e um amigo nosso por nome anônimo; e, por gostar muito de folguedos, o preto de Gorro-Pintado. Todos vindos, entes, contentes, por algum calor de amor a esse velho.” (p. 149)

O narrador, Vaga-lume, percebe a grandeza do que vai se formando:

“Me passei para o lado do velho, junto. - ... tapatrão, tapatrão... tarantão... tarantão... – e ele me disse: nada. Seus olhos, o outro grosso azul, certeiros, esses muito se mexiam. Me viu mil. - “Vaga-lume!” - só, só, cá me entendo, só de se relancear o olhar. - “João é João, meu Patrão... “Aí: e - patrapão, tampatrão, tarantão... - cá me entendo. Tarantão, então... - em nome em honra, que se assumiu, já se vê. Bravos! Que na cidade já se ia chegar, maiormente, à estrupida dos nossos cavalos, desbestada.” (p. 149).

Chegaram à cidade. Foram para a bela casa do médico. Estava cheia para o batizado da filha do Magrinho. Todos entraram sem temores. A família ficou assombrada de ver o velho parecendo ressuscitado. O velho pediu a palavra e falou com voz grandiosa, mas sem que se pudesse entender.o que dizia. A família ficou emocionada, todos se abraçavam, festejavam. O velho fez questão de comer com os seus cavaleiros em volta. O velho sorria para seus seguidores. “Com alegrias. Não houve demo. Não houve mortes.”

O velho parou em suspensão, sozinho em si, apartado mesmo de nós, parece, que. Assaz assim encolhido, em pequenino e tão em claro: quieto como um copo vazio, O caseiro Sô Vicêncio não ia ver, nunca mais, à doidiva, nos escuros da fazenda. Aquele

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polvilho, é também a luz do amor que envolve o casal. Eles estão fundidos na plenitude de seus seres (“coraçãomente”,”pensamor”) e transmitem a todas as coisa em volta essa luminosidade. O polvilho adquire no texto a simbologia alquímica da pedra filosofal. Sua alvura simboliza a purificação, que reafirma a pureza do amor nascido silenciosamente. Cabe ainda destacar que o silêncio de Sinésio, a linguagem muda do amor, é rompida no final, O diálogo surgido nesse momento serve de compromisso nupcial entre os amantes.

20) TARANTÃO, MEU PATRÃO

Vaga-lume era empregado de João-de-Barros-Diniz-Robertes, que ia sair, fugindo sem a companhia de ninguém. O patrão era homem de idade, sem muito juízo, e com os dias contados por causa de uma doença dos intestinos. Quando Vaga-lume desceu apressadamente, mal tendo tempo de apertar os cintos, o velho já estava selando o cavalo. O caseiro Sô Vicêncio pediu que não largasse o velho, mas foi repelido pelo patrão, que disse não estar precisando de nada.

O velho ia pegar o Magrinho, acabar com ele. O Magrinho era o doutor, sobrinhoneto de Iô João de Barros. A vingança era por causa das injeções e da lavagem intestinal que o médico aplicara no velho, que... “estava crente, pensava que tinha feito o trato com o Diabo”. Saíram. O velho, esporeando o cavalo, ironiza Vaga-lume pela sua lentidão, perguntando se pensava que iam sair por aí para fazer crianças.

Iô João de Barros usava uma botina amarela e outra preta, colete abotoado sem paletó, calças sujas de brim sem cor e um colete enfiado no braço que ele falava que era a sua toalha de se enxugar. Só estava armado de um faca de mesa gasta e enferrujada. Pensava-se capaz contra o sobrinho. Queria que Vaga-lume voltasse, pois não o queria fazer enfrentar riscos terríveis.

No Breberê, um homem com aparência de criminoso juntou-se ao grupo, não sem antes o velho tê-lo intimado e depois garantido que se viesse com ele lhe daria defesa. Pouco depois, ajudou uma mulher muito pobre com uma criança e um feixinho de lenha, fazendo-a montar em seu cavalo. O filho da mulher, um certo “Felpudo”, por agradecimento ao gesto, juntou-se ao grupo. No povoadinho do Mengano, Curucutu, primo de Vaga-lume, foi chamado para juntar-se ao bando. Vaga-lume aproveita para contar ao leitor como é chamado: João Dosmeuspés Felizardo. Seu nome verdadeiro é João Tomé Pestana.

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tinteiro da lapela do homem. O ladrão vara pela praça aos gritos de “pega”. No meio da praça, há uma palmeira-real, a maior de todas. O sujeito sobe nela sem sequer tirar os sapatos. Sobe até o alto. Os perseguidores ficam surpresos, como o narrador. O ajuntamento cresce debaixo da palmeira-real. Os que estão embaixo dizem insultos ao ladrão, clamando “do demo e aqui-da-polícia,” perguntando até por arma de fogo. Um camelô oferece canetas-tinteiro.

Adalgiso chama pelo narrador. Ambos são enfermeiros de plantão num manicômino. Adalgiso quer saber como fugiu do hospício o homem da árvore. Eles querem saber como recapturá-lo. Adalgiso percebe não se tratar de um hóspede deles. O homem disse ser normal, mas ao ver a multidão querendo pegá-lo, inventa a decisão de internar-se, garantindo-se do que vier a acontecer. Ele procurou o Adalgiso antes para preencher a ficha. E reconhecido pelo Sandoval como o Secretário das Finanças Públicas.

A turba cala-se diante do que é dito. Adalgiso manda o Sandoval chamar o dr. Diretor, a Polícia, o Palácio do Governo. O sujeito grita do alto que nunca se entendeu por gente, que eles o sabiam era de mentira. O povo ri. Vêm o Diretor e a polícia, padioleiros, os enfermeiros, o Capelão, o dr. Enéias e o dr. Bilolô. Trazem camisa-de-força. O Diretor disse não ser nada, ao que se opôs o professor Dartanhã, dizendo tratar-se de “psicose paranóide hebefrênica, dementia praecox”. O dr. Diretor declina o título do sujeito. O professor Dartanhã emenda, dizendo tratar-se de transitória perturbação, a qual em nada deixará afetada a capacidade civil.

O homem grita do alto que viver é impossível. Consegue da multidão total silêncio toda vez que fala. Sete peritos o estudam lá de baixo. O Diretor promete que já vêm os bombeiros. Recebe uma vaia e é chamado de demagogo. O dr. Bilolô diz que o homem é um gênio, porque o povo o sente e aplaude.

O homem atira um pé do sapato, depois o outro. E aplaudido. A sirene dos bombeiros interrompe a comemoração. O homem percebe o movimento da escada dos bombeiros e ameaça só sair de lá morto. A praça toda grita que “não” em favor do homem.

O Chefe-de-Polícia chega com o Chefe-de-Gabinete do Secretário. Este não reconhece o homem da árvore através do binóculo, mas prefere calar-se.

O Diretor arruma um alto-falante, mas as pessoas impedem-no de falar. Ele passa o instrumento ao narrador e instruiu sobre o que falar. Mas o narrador também nada consegue. De repente, chega o verdadeiro Secretário das Finanças Públicas. Sobe no carro

Page 26: COMENTÁRIOS - repositorio.geracaoweb.com.brrepositorio.geracaoweb.com.br/images/201007261141primeirasestorias... · Chorou-26 capacidade de concentração. Prosseguiu em suas tentativas,

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de bombeiros para desmanchar a confusão, pois teme a existência de um sósia. Fala às pessoas que ali está ele, que não é aquele em cima da árvore, que tudo não passa de embuste dos adversários.

O homem começa a despir-se lá em cima. Desrespeita o público. Adalgiso afirma ser um caso de “Síndrome exofrênico de Bleuler”. Jornalistas, repórteres e fotógrafos já se mexem por ali. Filmam. O homem sobe ainda mais. Balança-se no alto. Chegam os estudantes, abrindo espaço por acharem que se trata de um deles. Foi um custo contê-los. A turba vai sendo contagiada. O Secretário da Justiça e Segurança promete tudo que os estudantes quiserem e é aplaudido.

No meio da confusão, o homem passa a gritar por socorro. Ele quer falar, mas a voz enfraquece e mistura-se. Seu equilíbrio voltara. O acesso chegara ao termo. As pessoas ~bramem, querendo linchá-lo.

Antes de descer pela escada dos bombeiros, proclama um “Viva a lutal Viva a Liberdade”, que reconquista os presentes. Faz-se momumental desfecho. O homem é carregado nos ombros e levado. “Ninguém poderia deter ninguém, naquela desordem do povo pelo povo”. A praça esvazia. Só fica a palmeira-real.

COMENTÁRIOS:

Conto narrado em primeira pessoa. O narrador é enfermeiro num manicômio e presencia acontecimentos estranhos numa praça próxima ao seu local de trabalho, O texto é uma sátira de teor cômico e político. Está centrada no ditado popular de “quem conta um conto, aumenta um ponto”, já que os presentes procuram dar a sua versão dos fatos, distorcendo a versão original. O ladrão chega a ser confundido com o Secretário das Finanças Públicas. O diagnóstico de um dos médicos do hospital psiquiátrico muda em função do cargo mencionado. Desfeita a confusão, o final termina dentro do que aparentemente se espera: o ladrão sai carregado pela multidão, já que conquistou a simpatia popular e ninguém mais sabe exatamente o que ele tinha feito. Cabe lembrar que “Darandina” é o único conto urbano do livro e ainda assim mantém linguagem de teor regionalizante. O título é uma expressão popular que significa louco, enlouquecido.

19) SUBSTANCIA

Sinonésio trouxe Maria Exita ainda menina para a fazenda do Samburá. Ele plantava roças de mandioca para a produção de

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polvilho. Sua farinha de polvilho era famosa na regiao. Trouxe a menina por piedade. Ela era feiosinha, magra, cheia de desgraças na vida. Foi trazida para servir na fazenda. A mãe era leviana e desaparecera de casa. Um irmão era assassino e estava preso. O outro, tão feroz quanto o primeiro, estava foragido. O pai estava com lepra e ninguém sabia de seu paradeiro. A menina foi acolhida pela compaixão de Nhatiaga, peneireira na lida com o polvilho. A Maria Exita foi dado o ingrato serviço de quebrar polvilho nas lajes com as mãos.

Maria Exita era agora uma mulher bonita. Não reclamava do serviço, até gostava. Sionésio sentia-se reconfortado só pela presença da moça por ali. Gostava de ir vê-la no serviço. Estava apaixonado por ela, mas não se dava a declarar tal amor. Podia haver outro no coração da moça. Temia mais ainda pela lepra do pai, que podia ter ficado na herança; pela falta de juízo da mãe; pelos irmãos assassinos que poderiam querer vingar sua virtude. Sionésio já não suportava mais, queria Maria Exita.

Finalmente, decidiu perguntar-lhe se tinha vontade de confirmar o rumo da vida dela. Ela respondeu que “só se for já” e riu clara e fortemente. “Mas, de repente, ele se estremeceu daquelas ouvidas palavras. De um susto vindo de fundo: e a dúvida. Seria ela

igual à mãe? - surpreendeu-se mais. Se a beleza dela - a frutice, da pele, tão fresca, viçosa - só fosse por um tempo, mas depois condenada e engrossar e se escamar, aos tortos e roxos da estragada doença?” (p. 142)

O amor era grande e repentino. Sionésio veio para junto de Maria Exita e estendeu as mãos também para o polvilho. O ato de quebrá-lo era gostoso, parecia um brinquedo de menino. Perguntou se ela queria não mais se separarem, se ela vinha e ia com ele. Ela respondeu que ia demais, desatando num sorriso. Ele nem viu o sorriso da moça, ambos não viam nada.

“Sionésio e Maria Exita - a meios-olhos, perante o refulgir, o todo branco. Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só o um-e-outra, um em-si-juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor. Alvor. Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros.” (p. 142)

COMENTÁRIOS:

O conto é narrado em terceira pessoa. A temática central é o amor na sua concepção cósmica (neoplatonismo), como a leitura do final do texto pode confirmar. A luz que provém do sol refletindo no