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1 COMENTÁRIOS CONTEXTUAIS ACERCA DO TEXTO “CULTURA Y CULTURAS: DESDE LA COLONIALIDAD DEL PODER Y DESDE LOS PUEBLOS INDÍGENAS1 José Arnaldo dos Santos Ribeiro Junior 2 1 IDENTIFICAR O AUTOR E SUA OBRA Com o intuito de estabelecer um diálogo com a, até então, desconhecida obra de Rodrigo Montoya Rojas, escolhi como interlocutora do estudo a antropóloga Selma Baptista que é atualmente professora da Universidade Federal do Paraná cujas pesquisas e orientações tem tido como temática, dentre outros aspectos, as discussões sobe Antropologia na América Latina. De acordo com Baptista (2002), Rodrigo Montoya Rojas é um antropólogo e novelista peruano que retoma a concepção de socialismo mágico presente de forma incipiente no pensamento do também antropólogo e novelista José Maria Arguedas. Tanto Arguedas, quanto Rojas possuem como linha de pensamento as contribuições deixadas por José Mariátegui que combina uma tradição de esquerda (marxista) com a questão étnica. O antropólogo e novelista Rodrigo Montoya Rojas decidiu estudar Antropologia depois de um encontro com José Maria Arguedas, que era amigo do seu pai. Serrano de Puquio, chegou em Lima nos anos sessenta, para frequentar a Universidade de San Marcos. Seguiu uma carreira acadêmica de muito êxito sendo atualmente professor emérito da referida universidade. Em 1994, já afastado da militância política desde 1978, trouxe aos círculos intelectuais um trabalho de síntese da questão étnica e política de ressonâncias muito diretas com a obra de Arguedas e de Mariátegui (BAPTISTA, 2002, p.64). Depreende-se que o objetivo de Rojas é sintetizar a questão étnica e política na medida em que a politização étnica resolve a contradição existente entre a etnicidade, definida por padrões linguísticos e culturais no território social, e a política enquanto luta pelo poder e imposição de limites. Por isso: Além da intenção explícita de fazer um balanço ideológico das tendências políticas do país, contando a história de uma exclusão fundante da sociedade peruana, 1 Texto produzido originalmente como requisito para obtenção de nota na disciplina Globalização e Cultura, ministrada pela Profa. Dra. Zilda Márcia Grícoli Iokoi, no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo. Agradeço ao geógrafo e doutorando em Geografia Humana (FFLCH/USP) Thiago Araújo Santos por suas inúmeras colaborações. 2 Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestrando em Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Membro do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) e do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Sindicalismo (NEPS). Integrante da Rede Justiça nos Trilhos.

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COMENTÁRIOS CONTEXTUAIS ACERCA DO TEXTO “CULTURA Y

CULTURAS: DESDE LA COLONIALIDAD DEL PODER Y DESDE LOS PUEBLOS

INDÍGENAS”1

José Arnaldo dos Santos Ribeiro Junior2

1 IDENTIFICAR O AUTOR E SUA OBRA

Com o intuito de estabelecer um diálogo com a, até então, desconhecida obra de

Rodrigo Montoya Rojas, escolhi como interlocutora do estudo a antropóloga Selma Baptista

que é atualmente professora da Universidade Federal do Paraná cujas pesquisas e orientações

tem tido como temática, dentre outros aspectos, as discussões sobe Antropologia na América

Latina.

De acordo com Baptista (2002), Rodrigo Montoya Rojas é um antropólogo e novelista

peruano que retoma a concepção de socialismo mágico presente de forma incipiente no

pensamento do também antropólogo e novelista José Maria Arguedas. Tanto Arguedas,

quanto Rojas possuem como linha de pensamento as contribuições deixadas por José

Mariátegui que combina uma tradição de esquerda (marxista) com a questão étnica.

O antropólogo e novelista Rodrigo Montoya Rojas decidiu estudar Antropologia

depois de um encontro com José Maria Arguedas, que era amigo do seu pai. Serrano

de Puquio, chegou em Lima nos anos sessenta, para frequentar a Universidade de

San Marcos. Seguiu uma carreira acadêmica de muito êxito sendo atualmente

professor emérito da referida universidade. Em 1994, já afastado da militância

política desde 1978, trouxe aos círculos intelectuais um trabalho de síntese da

questão étnica e política de ressonâncias muito diretas com a obra de Arguedas e de

Mariátegui (BAPTISTA, 2002, p.64).

Depreende-se que o objetivo de Rojas é sintetizar a questão étnica e política na medida

em que a politização étnica resolve a contradição existente entre a etnicidade, definida por

padrões linguísticos e culturais no território social, e a política enquanto luta pelo poder e

imposição de limites. Por isso:

Além da intenção explícita de fazer um balanço ideológico das tendências políticas

do país, contando a história de uma exclusão fundante da sociedade peruana,

1 Texto produzido originalmente como requisito para obtenção de nota na disciplina Globalização e Cultura,

ministrada pela Profa. Dra. Zilda Márcia Grícoli Iokoi, no Programa de Pós-Graduação em História Social da

Universidade de São Paulo. Agradeço ao geógrafo e doutorando em Geografia Humana (FFLCH/USP) Thiago

Araújo Santos por suas inúmeras colaborações. 2 Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestrando em

Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São

Paulo (USP). Membro do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) e

do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Sindicalismo (NEPS). Integrante da Rede Justiça nos Trilhos.

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apresenta sua proposta de um socialismo mágico: um projeto de transformação,

agora realmente ligado ao entendimento da diversidade étnica e cultural, postulando-

o como a única saída para uma sociedade democrática (Montoya,1994). Desta

maneira, a idéia de uma utopia andina, formulada originalmente por Manuel Burga

e Alberto Flores Galindo, reaparece vários anos depois como utopia da diversidade

(BAPTISTA, 2002, p.64).

Assim, o socialismo mágico é a combinação de uma sociedade organizada

democraticamente no qual há um controle da produção (pelo proletariado?) junto com o

componente étnico-cultural que marca forte presença não só na realidade peruana, mas

também na América Latina de modo geral. Todavia, não se trata de uma simples operação

matemática de adicionar ao socialismo científico os elementos étnico-culturais das diversas

sociedades existentes, mas sim de uma construção do socialismo desde abajo3, ou seja, um

socialismo capaz de reconhecer e incorporar dialeticamente as diversas formações

socioculturais na luta contra o capitalismo enquanto modo de produção e sistema civilizatório.

Trabalhando com a questão étnica ele aponta a profunda relação entre

messianismo/milenarismo e a política, que no Peru não seria uma atividade profana

e sim profundamente condicionada pelo fator religioso. Na realidade, esta seria a

chave para a compreensão do que Montoya chama de horizonte utópico, ou seja,

uma combinação de utopia andina e socialismo, fruto de um processo de mitificação

da história incaica e sua apropriação pela política.

A questão que se põe é: como articular política e religião sem (se isso for possível) ter

uma visão religiosa da política? A meu ver a resposta que Montoya oferece, a partir da leitura

de Baptista, é a politização da religião isto é, por a religião como um fator político enquanto

luta pelo poder. Dessa forma, a politização da religião é um mecanismo de defesa da

etnicidade e simultaneamente de uma busca de emancipação, de uma utopia.

Ao mesmo tempo, Montoya vê na utopia andina uma resposta totalizadora ao

localismo, enquanto resquício do Império Incaico, projetando a idéia de um homem

andino enquanto uma totalidade de traços comuns, expressando uma história

imaginada ou desejada e não a realidade de um mundo fragmentado. Seria, desta

maneira, o conjunto de projetos para enfrentar esta realidade, o ponto de encontro

entre a memória e o imaginário. O que parece importante salientar é que esta utopia

necessita da existência, real ou imaginária, desta pluralidade/diversidade, enquanto

ao mesmo tempo precisa postular uma andinidade que dê unidade às suas

proposições. Enfim, o localismo pode ser compreendido como fonte identitária e, ao

mesmo tempo, como aquilo que precisa ser superado (BAPTISTA, 2002, p.65).

Todavia, o problema da totalidade/fragmentação que se põe complexifica o debate.

Para Montoya, a partir da leitura de Baptista, a utopia andina é uma resposta ao localismo

3 Esta locução expressa substantivamente a produção de conhecimento a partir de matrizes de racionalidades

indígenas, afro-americanas (quilombolas, negras) e camponesas. É uma qualificação muito utilizada pelo

Geógrafo e Professor Dr. Carlos Walter Porto-Gonçalves para trabalhar o conflito social como categoria

geográfica. Em seus textos (Porto-Gonçalves, 2006a; 2006b), Carlos Walter tem chamado atenção para a

geograficidade do social na construção de uma cartografia de poder, indicando que o conflito é o lado prático da

abstração e imanente às relações sociais, assim como é o lugar do epistemológico.

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fragmentador. No entanto, ao propor um homem andino, Montoya transformou a

fragmentação (andino) em totalidade (homem). A menos que tal andinidade seja um

momento necessário para a superação, como me parece entender o autor, o discurso da

diversidade atrelado ao direito da diferença pode desembocar numa fragmentação reacionária

e pós-moderna, reafirmando o localismo e não o combatendo.

De qualquer forma, para fazer um contraponto à perspectiva do autor analisado é

importante recuperar o filósofo húngaro György Lukács (1885-1971) e seu esforço (bem

sucedido, diga-se de passagem) de por o debate no plano ontológico da especificidade do ser

social. Com efeito, o homem que existe é o homem em sua totalidade, um ser que se objetiva

historicamente, posto que a história é a produção e a reprodução das objetivações (NETTO,

2004). Ou seja, o debate antropológico é posto no sentido lato de uma Humanidade4, assim

mesmo, em maiúsculo. Parece que a nossa interlocutora e estudiosa do autor analisado tem

ciência desta possibilidade:

Na realidade, a ideia de uma diversidade/pluralidade étnica está naturalmente ligada

à uma concepção espacial específica: grupos diversos, ligados aos seus lugares de

origem ou, pelo menos, aos locais que lhes foram destinados para viver. Portanto,

localismo ligado à diversidade pressupõe fragmentação. Daí a necessidade de

superá-lo numa concepção unitária de identidade que seja capaz de manter a ideia de

diversidade/pluralidade, atrelada a uma concepção espacial que independa do

contexto real. A recriação de uma identidade étnica numa metrópole como Lima, por

exemplo, passa a supor que ela seja capaz de lidar simultaneamente com a diluição

de um localismo geográfico enquanto suporte de identidade, e a recriação de espaços

concretos e/ou imaginários onde ancorá-la. Neste caso, interpretar a história peruana

apresenta-se como a própria caracterização desta utopia da diversidade a qual, por

razões óbvias, encontra em Arguedas sua mais autêntica expressão (BAPTISTA,

2002, p.65).

Indubitavelmente, na visão de Montoya está posto a totalidade e a fragmentação,

sendo esta um momento necessário para àquela. Assim a fragmentação liga-se ao espaço local

em contraposição a uma história universal. No entanto, tal perspectiva abre espaço,

literalmente, para a realização da vida no espaço (de origem, como diz a interlocutora) mais

do que tomar o espaço (o mundo) como realização da vida, da existência. Ora, se

concordarmos com Lukács para quem a história é o processo de produção e reprodução das

objetivações (NETTO, 2004), perde o sentido advogar uma defesa extremada de uma

diversidade e um localismo geográfico: tomar-se-ia, então, como aspecto central as

objetivações humanas em sentido lato, acumuladas em processo.

4 Que na visão do geógrafo Milton Santos (2008) nunca houve, apenas estão começando os primeiros ensaios.

Quando analisamos tal observação vemos que Milton pôs a discussão sobre humanidade em seu sentido mais

amplo, no plano da totalidade do homem.

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Estamos diante de um impasse: pode o homem objetivar-se no espaço? O espaço pode

ser também uma produção e reprodução da objetivação do homem? Na visão de Marinho

(2010) existe uma relação de objetivação entre homem e lugar no plano da existência. Assim,

Rojas, ao falar do Peru, do seu tempo e do seu espaço, encontra também na atividade literária

um caminho para objetivar-se5:

Hoy, treinta años después, el ritual de tomar la mochila, la libreta de campo, la

grabadora y la câmara fotográfica para descubrir um nuevo lugar del Peru, es um

pequeno fragmento que instantânea y fragilmente se confunde com lo que suele

llamarse felicidad (ROJAS, 1994, apud BAPTISTA 2006).

Dessa forma, a nossa interlocutora encerra seu artigo dizendo que:

Segundo Montoya, nas palavras do discurso “No soy un aculturado” está toda a

inspiração para se compreender a possibilidade da coexistência do socialismo e do

pensamento mágico, ou seja, da tradição com a modernidade. E é neste sentido que

caminha sua concepção de um socialismo mágico, no qual existe um encontro

impostergável entre a política e os inúmeros movimentos sociais, entre o respeito

pela diferença e a luta pela autodeterminação (BAPTISTA, 2002, p.65).

De fato, se pensarmos bem o simples fato de dizermos que “não somos aculturados” já

implica em reconhecer a interiorização de uma cultura exterior. Dessa forma, o autor e a nossa

interlocutora reproduzem os pares da dicotomia, caso de tradição e modernidade6. Ora, eu

apenas tenho ciência do que é tradicional se sei o que é moderno. Sendo assim modernidade e

tradição co-agem, ou seja, um constitui o outro dialeticamente. Como resolver a contradição?

O socialismo mágico parece ser uma resposta salutar na medida em que afirma uma

identidade, mas negando a sua essencialização, concebendo como um momento necessário

para a conquista da igualdade.

2 RELACIONAR O TEXTO COM AS LEITURAS REALIZADAS NO CURSO

O texto do antropólogo Rodrigo Rojas de imediato chama atenção pelo seu título:

Cultura y culturas: desde la colonialidad del poder y desde lós pueblos indígenas. Quais

questões se põem quando a cultura é pluralizada? Qual a função da colonialidade do poder? E

quanto aos povos indígenas, que papel desempenham?

5 O mesmo vale para a obra literária do jornalista português Fernando Monteiro de Castro Soromenho (1910-

1968). A partir da leitura do texto de Mourão (1978) pude perceber como Castro Soromenho objetivava a

problemática colonial em virtude de a colonização trazer consigo a sua determinação negativa: a descolonização,

a libertação, emancipação. A especificidade do ser social para Castro Soromenho põe-se, assim, no nível

cultural. 6 Mourão (1993) condenou as análises socioantropológicas que partem da nefasta dicotomia entre tradicional e

moderno. A seu ver, tais análises ora privilegiam um, ora privilegiam outro, afastando-se de uma análise

realística global (p.66).

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Para responder tais questões Rojas promove uma extensa citação do seu compatriota, o

sociólogo peruano Aníbal Quijano7 para mostrar como a constituição da América traz em seu

bojo a colonialidade do poder, marca que identifica a modernidade, o par contraditório da

colonialidade.

Neste sentido, para Quijano (2005), a colonialidade do poder remete a um processo

constitutivo da América Latina e do capitalismo como um novo padrão de poder mundial. O

recuo histórico de Quijano, endossado por Rodrigo Rojas, é intencional e estratégico: busca

identificar o nascimento do capitalismo com a colonização da América Latina.

A historiadora Maria Yedda Linhares também reconhece a modernidade (que ela

chama de Tempos Modernos) atrelada ao nascimento do capitalismo e a colonização da

América:

Os chamados Tempos Modernos que, para os países do Mediterrâneo ocidental e da

orla atlântica do continente europeu, nasceram da crise do sistema feudal e da

gestação do capitalismo, conheceram o primeiro momento de expansão

transoceânica da história ocidental. Com o descobrimento dos caminhos marítimos,

para o controle do comércio oriental, e a colonização na América, formaram-se os

impérios mercantilistas dos séculos XVI, XVII e XVIII. A revolta dos colonos

ingleses (as Treze Colônias) da América do Norte foi o início dessa primeira

“descolonização”, que se concluiu com a liquidação dos impérios coloniais ibéricos

na América Central e Meridional (LINHARES, 1981, p.34-35).

Reconhece-se, portanto, que há semelhanças e diferenças entre os dois autores. Ambos

concordam com a existência de um colonialismo. No entanto, para Quijano o colonialismo

que identifica a modernidade (daí colonialidade) tem como espaço-tempo a América Latina

(numa clara distinção para com a América do Norte); Já para Linhares, a concepção de

colonialismo engloba também a América do Norte (alusão às Treze Colônias, por exemplo) e,

além disso, a historiadora dá mais destaque aos processos descoloniais em Ásia e África

(LINHARES, 2000).

Todavia, nada que cause algum tipo de constrangimento na leitura dos dois

intelectuais.

Quijano, segundo Rojas, vai destacar dois processos associativos que fundamentaram

o padrão de poder colonial: 1) a ideia de raça; e 2) o controle do trabalho, dos recursos e dos

produtos em torno do capital e do mercado mundial.

Para Quijano (2005), a ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história

conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças

7 Este pensador foi o responsável por desenvolver o conceito de colonialidade do poder no campo dos estudos

pós-coloniais.

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fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo

foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos.

Estamos diante, portanto de uma construção categorial, um artifício do colonizador,

que objetiva subjugar as diferenças sociais para assim identificar fenotipicamente os

conquistados como índios e/ou negros. Tal mecanismo colonizatório implicou o não-

conhecimento do outro como igual na diferença, ou seja, o establishment moderno-colonial

remeteu a subordinação da identidade a uma relação social na qual o outro (alter, daí vem

alteridade) é dependente.

Isso está em total acordo com aquilo que Octávio Ianni (2004) chamou de racialização

das relações sociais. Para o sociólogo brasileiro, “a ideia de raça tornou-se uma categoria

fundamental utilizada pra classificar indivíduos e coletividades, por meio da qual procura-se

distinguir uns e outros, nativos e estrangeiros, conhecidos e estranhos, naturais e exóticos,

amigos e inimigos” (IANNI, 2004, p. 158).

Racializar, por conseguinte, é tornar racial, o que, de fato, antes não era. Esse vir a ser

é justamente o modo pelo qual as estruturas que ensejam a dominação constroem as práticas

coloniais transformando um habitus (BOURDIEU, 2004a) social em um habitus racial.

“O habitus é um sistema de disposições adquiridas na relação com um determinado

campo [...] é ao mesmo tempo um sistema de esquemas de produção de práticas e um sistema

de esquemas de percepção e apreciação das práticas” (BOURDIEU, 2004b, pp. 130 e 158).

De acordo com o sociólogo francês é importante compreender como as estruturas dos

discursos e a construção das práticas se forjam, conduzem representações de um determinado

grupo/classe social inserem-se em diversos campos (político, econômico, simbólico, material,

epistêmico, cultural) se intra-articulando e inter-articulando de maneira heterogênea numa

verdadeira disputa pelo poder (político).

Mas essa disputa pelo poder político que articula representações sociais de

determinados grupos ou classes joga um papel importante no campo da economia política do

capitalismo.

Creio que essa é uma questão que não pode ser posta de lado e, ao que tudo indica,

Rojas em seu diálogo com Quijano possui clareza deste aspecto. Como disse anteriormente, a

ideia de raça foi uma construção categorial que o colono lançou mão para transmutar relações

sociais em relações de dominação. Dominar implica em controlar. Dominar índios, negros e

mestiços equivalia a subjugá-los e controlar a sua força de trabalho. Ocorre então que na

gestação do capitalismo as condições gerais de produção como força de trabalho (escrava

indígena e negra da América e da África) e matérias-primas eram produzidas por uma forma

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não-capitalista de produção, ou seja, que não se centralizam na relação capital-trabalho

assalariado. Assim o sistema capitalista nascente articulou a violência, conquista,

escravização8, rapina, assassinato e a destruição para se impor socialmente. Como diz Karl

Marx (2011, p.864):

As descobertas de ouro e prata da América, o extermínio, a escravização das

populações indígenas, forçadas a trabalhar no interior das minas, o início da

conquista e pilhagem das Índias Orientais e a transformação da África num vasto

campo de caçada lucrativa são os acontecimentos que marcam os albores da era da

produção capitalista.

No plano da economia política capitalista o ouro e a prata da América se

transformaram em elementos do capital constante (MARX, 2011), ou seja, a parte do capital

que se converte em meios de produção, em matéria-prima, materiais acessórios e meios de

trabalho cuja magnitude do valor não muda no processo de produção (daí o nome constante).

Não obstante, a escravização indígena (mas também africana) transformou tal força de

trabalho em capital variável. Some-se a isso a expropriação dos camponeses, o saque dos bens

da Igreja Católica, a violência jurídica, o nascimento de uma bancocracia, a privatização de

terras comuns, a força do Estado9, a dissociação entre manufatura e agricultura, o sistema

colonial, o cristianismo, em suma, todos os fatores que Marx levantou no lendário capítulo da

acumulação originária10

, e temos um conjunto de fatores confluindo simultaneamente a

diferentes ritmos para o nascimento e posterior desenvolvimento do capitalismo.

Destarte, estariam os povos indígenas subsumidos à colonialidade do poder e à cultura

universal do sistema capitalista? Para Rodrigo Montoya Rojas esta pode até ser a visão de

executivos, gestores e funcionário do poder colonial, mas para o antropólogo peruano os

8 Cabe destacar que como ressaltou Munanga (1993, p.109) ao lado exploração externa (os conquistadores)

caminhava ao lado uma “exploração interna, uma pilhagem sistemática do continente por seus próprios filhos.

Esta começou no século XVI com o tráfico negreiro e a escravidão dos africanos nas Américas”. É claro que isto

não justifica as práticas coloniais, mas também serve para que o debate político acerca de uma africanidade, não

seja romantizado. 9 Se pensarmos bem, até o final da Guerra Fria (1945-1991), podemos distinguir um Welfare State no chamado

Primeiro Mundo, um Estado “Socialista” no Segundo Mundo e um Estado Desenvolvimentista no dito Terceiro

Mundo. Não objetivamos aqui fazer uma análise pormenorizada sobre tais classificações. O que cabe destacar é

que, como ressaltou o sociólogo espanhol Manuel Castells (2002), na África subsaariana do fim do milênio

formou-se um Estado predatório, ou seja, uma forma estatal que destrói o próprio povo, ou parcelas desse povo

(se eximirmos as elites). Indubitavelmente, como expõe Castells, esta forma-Estado está atrelada diretamente a

práticas nefastas como corrupção, aparelhamento privado, prebendalização, militarização e pilhagem. 10

Benko (1996) ao conceituar acumulação chamou atenção para o ambiente macroinstitucional. Em outras

palavras, para o autor além de um regime de acumulação designar uma forma de alocação das riquezas sociais é

importante que hajam, ou estejam se formando, macroinstituições que possam organizar a sociedade, econômica

e politicamente, no intuito de normatizar o território para atender aos objetivos das próprias formas

institucionais. De fato, como pensar o capitalismo e sua mais recente fase, a globalização neoliberal, sem o

Estado, Bancos (BIRD, Banco Mundial), Organizações Multilaterais (ONU, FMI), a industrialização da

agricultura (complexos alimentícios) e, até mesmo, o avanço do protestantismo (enquanto instituições religiosas

marcadamente modernas)?

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povos indígenas tem um potencial político capaz de subverter a ordem posta em direção ao

socialismo mágico. Para além da submissão das culturas indígenas ao sistema capitalista,

Rojas menciona a formação no Peru da Asociación Inter étnica para el Desarrollo de La

Selva Peruana (AIDESEP). Tal organização social da Amazônia peruana reivindica os

direitos dos povos indígenas a defender seus territórios, línguas, culturas, o direito à diferença,

e autodeterminação. Constata-se então uma elevada politização da cultura. Rojas destaca

ainda que os levantes indígenas do Equador em 1990, a Marcha pela Dignidade e Território

dos povos do oriente boliviano em 1993 e o Exército Zapatista de Libertação Nacional em

1994 foram feitos decisivos que situaram os movimentos políticos indígenas como sujeitos

coletivos no cenário político latinoamericano.

Particularmente, penso que é importante a emergência desses atores como sujeitos

políticos. Todavia, tais movimentos sempre correm o risco de, sem terem a pretensão de ser

revolucionários, caracterizarem-se pelo romantismo, por uma “alteridade autêntica” como

bem qualificou o geógrafo marxista David Harvey (2004). Além dos exemplos supracitados

pode ser incluído nessa categoria o movimento “Chipko no Nepal, Chico Mendes e os

seringueiros na Amazônia ou ainda os americanos nativos nos Estados Unidos” (HARVEY,

2004, p. 106). Por um lado é legítimo que tais povos acionem politicamente sua cultura, sua

língua, sua diferença; Por outro, o apelo ao pluralismo, à diversidade, não pode anuviar que a

luta se põe numa variedade de escalas controladas (nunca totalmente, é bom dizer) pelo

sistema capitalista e seus acólitos defensores. Dessa forma, é necessário, como diz Harvey

(2004), desvelar o conteúdo de classe, sem cair na criação de uma “pessoa socialista

homogênea e unificada” (HARVEY, 2004, p.118) muito menos num “relativismo

incontrolado e num ecletismo pós-moderno” (idem, ibidem).

Pelo que foi analisado até aqui, Rodrigo Montoya Rojas tem ciência da complexidade

resultante da globalização do capitalismo neoliberal em especial as questões que cercam o

debate sobre particularidade e universalidade, colonialidade e modernidade, igualdade e

diferença. Por isso ressalta o papel que lideres intelectuais indígenas possuem com sua

realidade cultural, linguística e sociopolítica. Rojas ressalta ainda que tais líderes apresentam

propostas políticas e que a ação primeira é a da tentativa de cooptação. Rojas menciona que

alguns líderes aceitam serem cooptados e outros não. As organizações que cooptam os lideres

são o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Governos

Nacionais e Organizações Não-Governamentais (ONG). Tais organizações são o exemplo

cabal da institucionalização da globalização. Se dantes era a globalização do capital que

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ensejava tais instituições, hoje, as instituições mais do que nunca respondem pela manutenção

da ordem capitalista mundial, sua evolução e desenvolvimento escalar.

Rojas, por fim, levantou uma questão importante e crucial: qual o papel do intelectual?

Quando lemos as obras de intelectuais como Kabegele Munanga, Fernando Augusto

Albuquerque Mourão, Georges Benko, Manuel Castells, Maria Yedda Leite Linhares, Octavio

Ianni e Pierre Bourdieu, nos interrogamos: têm desempenhado os intelectuais seu papel de

forma socialmente satisfatória?

Particularmente, penso que todos estes intelectuais supracitados, assim como outros

mobilizados neste texto (Mariátegui, Arguedas, Rojas, Harvey, Marx) buscaram e ainda tem

buscado formar um amplo espaço de diálogo e de esperança, mas também de representação,

e, sobretudo, de mobilização política, nos quais os atores envolvidos, ao transcenderem as

escalas de suas regiões e nações, criam novas formas de luta pelo poder promovendo a defesa

de um meio ambiente sadio, denunciando violações de direitos humanos, exigindo

transparência nos desenvolvimento de projetos, fiscalizando os agentes envolvidos,

responsabilizando os governos, enfim, buscando a todo instante estratégias de enfrentamento

que possam satisfazer as necessidades pelo aquilo que se luta.

Por fim, sem me eximir do debate, destaco também que o geógrafo e autor deste texto,

no que tange ao seu caráter de pesquisador social e humano, com sua missão, herdada desde a

Geografia Crítica dos anos 1970, objetiva promover estudos e lutar para que suas pesquisas

possam contribuir politicamente/concretamente para a melhoria das sociedades

desfavorecidas, principalmente aquelas que não são contempladas com as benesses da

globalização capitalista neoliberal.

3 COMO ESSAS REFLEXÕES REORIENTAM SEU PROJETO DE PESQUISA?

É impossível responder a pergunta-título sem antes dedicar algumas linhas para contar

um pouco da história do projeto de pesquisa.

No início, a ideia original de pesquisa para o mestrado era identificar e analisar os

projetos financiados pelo BNDES no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento

(PAC) na Amazônia Maranhense e a conjuntura dos conflitos socioambientais, bem como os

impactos territoriais resultantes. Essa foi a proposta de pesquisa apresentada à, até então,

possível orientadora Profa. Dra. Marta Inez Medeiros Marques, do Departamento de

Geografia da Universidade de São Paulo.

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Após a aprovação no mestrado, e das consequentes reuniões do campo em

movimento11

, foi reavaliado o projeto cujo escopo de análise ainda estava amplo para os

planos de um mestrado, em virtude da grandeza dos projetos financiados pelo BNDES12

, da

complexidade de se analisar um plano nacional de desenvolvimento (PAC) e ainda os

conflitos ambientais. Nada como uma reunião com a orientadora para reavaliar nossas

especulações e nos mostrar limites e possibilidades.

Cientes disso, trocamos ideias, Marta e eu, cruzando os debates nos quais estávamos

envolvidos e que nos preocupavam mais imediatamente. Ela me enviou seu projeto de

pesquisa junto ao CNPq13

para que eu refletisse sobre as suas inquietudes e os fundamentos

teóricos bem como na esperança de que de algum modo me auxiliasse na definição do projeto.

Além do mais, em caso positivo, ou seja, se eu aceitasse sua proposta, isso aproximar-nos-ia

mais ainda dos estudos e os diálogos seriam mais frequentes ainda. No entanto, Marta deu-me

a liberdade de aceitar ou não sua proposta.

Após ler o projeto de pesquisa a inquietação de Marta tornou-se a minha inquietação.

Promover uma análise geográfica da Suzano no território maranhense era absolutamente

tentador e instigante. Eu poderia me envolver diretamente com o referencial teórico marxiano

(além do próprio Marx, caso dos geógrafos David Harvey e Neil Smith) além de me

aprofundar na literatura geográfica da Ariovaldo Umbelino de Oliveira em associação com os

estudos sociológicos de José de Souza Martins.

Aceita a empreitada começaram os diálogos com Marta para afinarmos a sensibilidade

da pesquisa cujo entendimento imediato remetia a uma reflexão marxiana da realidade.

Encerrava (parcialmente) o ciclo de estudos de 3 anos acerca da Companhia Vale do Rio

Doce14

e me preparava para uma nova jornada. As ideias centrais de desenvolvimento e

conflito ambiental forma mantidas e foi recortado como universo empírico as comunidades

camponesas em Santa Quitéria no Maranhão. As mudanças, no entanto, em relação à

graduação eram visíveis: 1) a transição de um referencial foucaultiano/pós-colonial para um

marxiano, 2) em vez da análise do discurso, do campo e do habitus, põe-se a compreensão do

11

Grupo de orientados da Profa. Dra. Marta Marques vinculado ao Laboratório de Geografia Agrária do

Departamento de Geografia (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP). 12

A título de ilustração cabe citar: a Duplicação da Estrada de Ferro Carajás, a Usina Hidrelétrica de Estreito, a

Usina Termelétrica Porto do Itaqui e a fábrica de celulose da Suzano. 13

MARQUES, Marta Inez Medeiros. Análise geográfica da expansão recente da indústria de papel e

celulose no campo brasileiro, o caso do Grupo Suzano Papel e Celulose. Projeto de Pesquisa apresentado ao

CNPq - Universidade de São Paulo, Departamento de Geografia, Agosto de 2011. 14

Que culminou na monografia: O discurso de responsabilidade socioambiental empregado pela Vale no

período pós-privatização (1997-2010) em São Luís - MA. Monografia (graduação) - Universidade Federal do

Maranhão, Curso de Geografia, 2011.132p.

Page 11: Comentários contextuais acerca do texto “cultura y culturas desde la colonialidad del poder y desde los pueblos indígenas” texto

11

processo de territorialização, e 3) no lugar de perceber a responsabilidade socioambiental,

compreender os conflitos e impactos com os camponeses, enquanto classe social do

capitalismo.

Assim, veio à tona o projeto de pesquisa intitulado “O papelão da Suzano:

Desenvolvimento, Conflitos Ambientais e Impactos sobre comunidades camponesas em Santa

Quitéria (MA)” visando compreender o processo de territorialização da empresa Suzano Papel

e Celulose no município maranhense de Santa Quitéria, bem como os impactos

socioambientais oriundos do desenvolvimento de suas atividades sobre territórios

camponeses. Sob a orientação da professora Marta, busco analisar a trajetória recente da

Suzano com o intuito de conhecer suas principais estratégias de acumulação e

territorialização. Tais estratégias passam pela integração de capitais (fusões e incorporações),

pela maior integração técnica da cadeia produtiva, pela busca de maior participação no

mercado mundial, pela expansão das áreas cultivadas e sua maior tecnificação e mecanização,

pelo amplo emprego de mão-de-obra terceirizada, pela implantação de novas plantas fabris e

infraestrutura de transporte, por novas formas de privatização e produção da

natureza15

(MARQUES, 2011). Com efeito, o estudo a ser empreendido concebe a Suzano

como um poderoso agente econômico monopolista que transforma o território a partir de

relações sociais capitalistas de produção com o intuito de realizar os seus objetivos (aumento

do lucro, da receita, da valorização do mercado). Dessa forma, o processo de territorialização

da Suzano em Santa Quitéria (MA) será analisado de maneira multiescalar como produtor de

conflitos e resultado de geometrias assimétricas de poder no âmbito do desenvolvimento

geográfico desigual do capitalismo. Esta pesquisa tem caráter qualitativo e lança mão de

levantamento de material bibliográfico, documental, cartográfico, imagens, bem como

identificação e seleção de áreas para trabalho de campo. Além disso, dados estatísticos de

órgãos do Estado e de entidades representativas do setor serão trabalhados de maneira

complementar. Contextualizada a pesquisa podemos agora partir para a resposta da pergunta

que intitula o capítulo.

De maneira geral, os debates e as leituras até agora travados no âmbito da disciplina

Globalização e Cultura, tendo como mediadora e facilitadora da discussão a Profa. Dra. Zilda

Iokoi, sinalizam para pensar, no âmbito da globalização neoliberal como as culturas, em sua

15

Utiliza-se o conceito de produção da natureza tal como proposto por Smith (1988; 1996), que toma como

ponto de partida a ideia de que a distinção entre primeira e segunda natureza é hoje irrelevante. Para ele, a

produção da natureza é um processo tanto cultural como econômico e diz respeito a como as naturezas dadas são

transformadas. Smith nos alerta para o fato de o capitalismo construir e reconstruir paisagens como valores de

troca sob o imperativo do lucro e também para o fato de que ele determina constelações particulares de produtos

“naturais” em lugares particulares (MARQUES, 2011).

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12

forma plural, se relacionam com os processos de acumulação capitalista. Por exemplo: como

as sociedades camponesas em Santa Quitéria têm resistido aos processos perversos de

territorialização da Suzano Papel e Celulose? Elas têm manejado o direito à diferença ou tem

se comportado socialmente como classe16

frente aos acólitos defensores do desenvolvimento

capitalista (Estados, Organizações Multilaterais, Empresas)?

Compreender, destarte, o processo histórico que desembocou nesse estado

globalizador e reprodutor de relações sociais desiguais é de fundamental importância para se

analisar não só como a mundialização do capital monopolista e, mais precisamente hoje, o

capital financeiro, reordena o território não mais como palco da realização da vida e da

existência, mas como espaço de poder econômico-político. Isso implica, indubitavelmente,

numa busca de referencial marxiano17

.

O que isso sinaliza para o projeto? Um diálogo entre a perspectiva marxiana e a

abordagem pós-colonial. A disciplina tem caminhado nesse sentido (mais proximamente é

verdade da corrente pós-colonial), na medida em que os diálogos atestam tanto a permanência

de um referencial marxista, exemplificados pela a utilização de categorias marxianas como

luta de classes, mais-valia, comunismo; mas também a percepção de que as relações históricas

e os movimentos sociais que surgem com caráter marcadamente étnico-cultural apontam para

uma nova conjuntura do tecido social multiescalar. A dificuldade reside justamente nisso: em

saber o que afirmar, o que negar e o que sintetizar. Um modelo claro de tal dificuldade é a

própria noção de conflito que, dependendo do referencial analítico, pode ser tanto a forma da

luta de classes, como também o campo da disputa cognitiva.

A reflexão até agora produzida sobre a mundialização do capital tem trazido

simultaneamente sua contradição, ou seja, a emergência de identidades fortemente vinculadas

ao território local que se põe como possibilidades de resistência frente à ordem hegemônica.

Seja pelo âmbito propriamente científico das humanidades18

ou pela crítica literária19

o

caminho que é traçado tem alertado para a superação da colonialidade.

Uma pergunta surge: práticas (neo)coloniais são detectáveis na pesquisa até o

momento? Talvez a resposta mais prudente seja atestar que a Suzano tem lançado mão de

novos mecanismos pra acumulação.

16

O direito à diferença sugere de imediato um diálogo com pensadores pós-coloniais; por outro lado, o

comportamento social enquanto classe implica num referencial marxista de análise. 17

Nomes como David Harvey, Neil Smith, François Chesnais, Michael Löwy, Theodor Shanin, José de Souza

Martins, Ariovaldo Umbelino de Oliveira. 18

Por exemplo, a Sociologia de Castells, Ianni e Quijano; A Geografia de Benko, Milton Santos e David Harvey. 19

Notadamente o fenômeno estético (os romances de Castro Soromenho) e a problemática colonial (analisados

sociologicamente por Fernando Mourão).

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Harvey (2010) menciona que além dos mecanismos tradicionais da acumulação

primitiva, tais como mercadificação e privatização da terra, expulsão de populações

camponesas, privatização dos direitos de propriedade (transformação de terras comuns,

coletivas e devolutas em propriedade privada) mercadificação da força de trabalho, supressão

de alternativas à produção capitalista, processos (neo)coloniais/imperiais de apropriação de

recursos sociais (elementos da natureza), comércio de escravos, sistema de crédito, dentre

outros, foram criados uma série de novos mecanismos de acumulação por espoliação, dentre

os quais destacamos aqueles que têm repercussão direta sobre a reprodução da vida e da

produção no campo: o patenteamento e licenciamento de material genético ou pilhagem do

estoque mundial de recursos genéticos; e a mercadificação por atacado da natureza em todas

as suas formas, exemplificada pela privatização de bens coletivos ou públicos e, em geral,

administrados pelo Estado como a água, a terra, as florestas (MARQUES, 2011).

Quais desses mecanismos de acumulação por espoliação podem ser detectados até

agora na pesquisa? Apropriação de terras antes dedicadas a produção camponesa

(leguminosas, arroz, milho, por exemplo), a degradação de mananciais em virtude da

irrigação dos plantios, aquisição da empresa de biotecnologia FuturaGene, associação ao

capital financeiro20

, práticas empresariais ilegais de aquisição de terras da Suzano via o

mecanismo de grilagem que tem lesado os agricultores camponeses nos municípios

maranhenses de Anapurus e Santa Quitéria, por exemplo21

.

Como se percebe, a luta contra o (neo)colonialismo é uma luta contra o capitalismo

enquanto modo de produção e sistema civilizatório. Marx, Lênin, Kautsky, entre tantos

outros, foram questionadores do imperialismo no plano da economia política; Já os

pensadores pós-coloniais aqui citados põem a questão no campo epistemológico, a produção

de um conhecimento que descolonize o saber. O referencial classista, enquanto recorte

político-ideológico não perdeu seu sentido e validade, mas hoje se relaciona com o conceito

de raça, etnia ou grupo social, por exemplo.

Contudo, um problema se põe ao pensamento pós-colonial. Exemplifiquemos com o

julgamento contundente do conceito de raça promovido por Aníbal Quijano. Como

apontamos anteriormente, tratou-se de uma construção categorial, um artifício do

20

A Suzano recorreu ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e solicitou um

empréstimo de R$ 2,7 bilhões a serem pagos em 138 meses para justamente viabilizar a instalação de sua

unidade fabril no Maranhão. 21

Cabe destacar, no entanto, que a prática da grilagem de terras no Leste Maranhense não é nova. Shiraishi Neto

(1995, pp. 68-77) realizou levantamento nos Cartórios de Registro de Imóveis das Microrregiões de Chapadinha

e do Baixo Parnaíba Maranhense e demonstrou tal prática de irregularidade e fraudulência que viabiliza para as

empresas a aquisição de vastas extensões de terra. Como se vê, a terra-mercadoria é central na questão agrária e

o mecanismo de grilagem serve como mais uma artimanha do processo de espoliação capitalista.

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14

colonizador para racializar as relações sociais. Isto é fato. Todavia, se ainda opera-se

analiticamente com a categoria raça, que é uma invenção colonial, isso não mostraria que o

pensamento pós-colonial é na verdade, uma forma de ser do próprio pensamento colonizado?

Surge uma hipótese que merece uma investigação aprofundada para além destas linhas.

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