Comentários contextuais acerca do livro o colapso da modernização, de robert kurz

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COMENTÁRIOS CONTEXTUAIS ACERCA DO LIVRO O COLAPSO DA MODERNIZAÇÃO, DE ROBERT KURZ 1 José Arnaldo dos Santos Ribeiro Junior 2 O propósito deste texto é tecer alguns apontamentos críticos ao livro “O Colapso da Modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial”, do filósofo alemão Robert Kurz 3 . O leitor não deve esperar aqui um esquematismo maniqueísta que tenta ver o lado bom ou mal das coisas, tampouco uma análise sistêmica cujo simples enquadramento causal fornece as respostas efetivas. A intenção é estabelecer um diálogo com Kurz na perspectiva da crítica como aproximação apontando seus limites, possibilidades, perspectivas e desdobramentos políticos. Como o próprio título do livro expõe, trata-se da realização de uma análise que busca demonstrar o esgotamento do atual momento econômico para entender como a crise do socialismo é, na visão do autor, manifestação de uma crise econômica a nível mundial uma vez que a mundialização da mercadoria abarca tanto o socialismo, quanto o capitalismo, na medida em que a crise é o “momento” no qual as totalidades contraditórias da produção de mercadorias se esgotam simultaneamente ao processo de acumulação. A audácia de Kurz está em tratar o declínio do socialismo numa perspectiva para além da “vitória” do capitalismo: buscando fugir da dicotomia e de modelos maniqueístas abstratos, como capitalismo versus socialismo, o autor concebe o conjunto da história do sistema mundial como a produção de mercadorias. Assim, para o autor, o aumento da concorrência a nível mundial é o resultado da “vitória capitalista” como consequência do desenvolvimento das forças produtivas. O aumento da produtividade leva ao capital a perder a faculdade de explorar trabalho a partir do momento em que a ciência e a tecnologia se tornaram forças produtivas. 1 Este texto foi produzido originalmente como requisito para obtenção de nota na disciplina Modernização e Contradições Espaço-Temporais, ministrada pelo Prof. Dr. Anselmo Alfredo, no Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo. Agradeço ao geógrafo e doutorando em Geografia Humana (FFLCH/USP) Thiago Araújo Santos pelas inúmeras colaborações, críticas e sugestões. 2 Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestrando em Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Membro do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) e do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Sindicalismo (NEPS). Integrante da Rede Justiça nos Trilhos. 3 Além de filósofo, Kurz é também ensaísta. Ganhou visibilidade com o referido livro aqui comentado, mas também com a publicação do Manifesto contra o trabalho em 1999. Kurz foi membro do Grupo Krisis de 1986 até 2004 quando criaram um novo grupo: EXIT! CRISE E CRÍTICA DA SOCIEDADE DAS MERCADORIAS.

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Este texto foi produzido originalmente como requisito para obtenção de nota na disciplina Modernização e Contradições Espaço-Temporais, ministrada pelo Prof. Dr. Anselmo Alfredo, no Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo. Agradeço ao geógrafo e doutorando em Geografia Humana (FFLCH/USP) Thiago Araújo Santos pelas inúmeras colaborações, críticas e sugestões.

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COMENTÁRIOS CONTEXTUAIS ACERCA DO LIVRO O COLAPSO DA

MODERNIZAÇÃO, DE ROBERT KURZ1

José Arnaldo dos Santos Ribeiro Junior2

O propósito deste texto é tecer alguns apontamentos críticos ao livro “O Colapso da

Modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial”, do

filósofo alemão Robert Kurz3. O leitor não deve esperar aqui um esquematismo maniqueísta

que tenta ver o lado bom ou mal das coisas, tampouco uma análise sistêmica cujo simples

enquadramento causal fornece as respostas efetivas. A intenção é estabelecer um diálogo com

Kurz na perspectiva da crítica como aproximação apontando seus limites, possibilidades,

perspectivas e desdobramentos políticos.

Como o próprio título do livro expõe, trata-se da realização de uma análise que busca

demonstrar o esgotamento do atual momento econômico para entender como a crise do

socialismo é, na visão do autor, manifestação de uma crise econômica a nível mundial uma

vez que a mundialização da mercadoria abarca tanto o socialismo, quanto o capitalismo, na

medida em que a crise é o “momento” no qual as totalidades contraditórias da produção de

mercadorias se esgotam simultaneamente ao processo de acumulação.

A audácia de Kurz está em tratar o declínio do socialismo numa perspectiva para além

da “vitória” do capitalismo: buscando fugir da dicotomia e de modelos maniqueístas abstratos,

como capitalismo versus socialismo, o autor concebe o conjunto da história do sistema

mundial como a produção de mercadorias.

Assim, para o autor, o aumento da concorrência a nível mundial é o resultado da

“vitória capitalista” como consequência do desenvolvimento das forças produtivas. O

aumento da produtividade leva ao capital a perder a faculdade de explorar trabalho a partir do

momento em que a ciência e a tecnologia se tornaram forças produtivas.

1 Este texto foi produzido originalmente como requisito para obtenção de nota na disciplina Modernização e

Contradições Espaço-Temporais, ministrada pelo Prof. Dr. Anselmo Alfredo, no Programa de Pós-Graduação

em Geografia Humana da Universidade de São Paulo. Agradeço ao geógrafo e doutorando em Geografia

Humana (FFLCH/USP) Thiago Araújo Santos pelas inúmeras colaborações, críticas e sugestões. 2 Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestrando em

Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São

Paulo (USP). Membro do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) e

do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Sindicalismo (NEPS). Integrante da Rede Justiça nos Trilhos. 3 Além de filósofo, Kurz é também ensaísta. Ganhou visibilidade com o referido livro aqui comentado, mas

também com a publicação do Manifesto contra o trabalho em 1999. Kurz foi membro do Grupo Krisis de 1986

até 2004 quando criaram um novo grupo: EXIT! CRISE E CRÍTICA DA SOCIEDADE DAS MERCADORIAS.

No entanto, Kurz coloca em cheque a perspectiva da “vitória do capitalismo”

argumentando que tanto a crise do socialismo real quanto o triunfo capitalista fazem parte do

mesmo colapso da modernização. É, indubitavelmente, uma forma de ver o colapso e a crise,

a globalização e o “fim da história4” numa outra perspectiva, de um modo de considerar os

acontecimentos sob outro ponto de vista. E é justamente esta “outridade” do argumento

discursivo de Robert Kurz que torna sua crítica vigorosa e nos convida a pensar a

modernização sob o prisma da crise.

Este pequeno panorama geral sobre a obra, que será mais adiante melhor comentada,

serve para que possa apresentar ao leitor (e julgo ter apresentado) a tese central do livro de

maneira clara e objetiva que justificam o movimento teórico-racional de Kurz no que tange os

termos da análise crítica da igualização socialismo-capitalismo.

Não obstante, uma pergunta paira no ar: não estaria Kurz sendo por demais

pretensioso ao reduzir a crise econômica, a histórica econômica e as relações econômicas

internacionais à centralidade da mercadoria? Outra questão: ao igualizar socialismo e

capitalismo como sistemas de produção de mercadorias Kurz não estaria anuviando as

diferenças que permeiam estes sistemas?

As perguntas podem ter respostas distintas. Proponho-me a oferecer uma resposta para

cada uma. A meu ver, quando Kurz centraliza a crise, a história e as relações internacionais

econômicas na produção de mercadorias ele está autonomizando a lógica econômica da lógica

social total, ou ainda, está subsumindo a lógica social total à lógica econômica. Não podemos

desconsiderar, por exemplo,

[...] o fato de Marx ter explicitado no subtítulo de sua obra maior, O Capital, que não

se tratava de uma obra de economia, mas sim de “crítica da economia política”. Sua

fina e rigorosa análise da formação social que praticamente viu nascer o levou a

perceber que havia uma sociedade que se estruturava reduzindo o homem e tudo que

implicava as relações sociais, natureza incluída, à economia. Com toda razão

dedicou seu primeiro capítulo à análise da mercadoria e seu fetichismo. Fazer a

crítica da economia era o cerne da crítica à sociedade que se organizava em torno

dela e implicava superar a economia como fundamento da sociedade. Em outras

palavras, a crítica da economia política serve para fazer a crítica do capitalismo, mas

não serve para construir outra sociedade. São outros horizontes de sentido para a

vida, para além da economia, que devem ser criados (PORTO-GONÇALVES, 2011:

4).

É o movimento de Kurz que o leva a igualizar capitalismo e socialismo como sistemas

de produção de mercadorias. Essa igualização não permite ver a diferença (já estou na

4 Nas palavras de Fukuyama (apud VESENTINI, 2007: 63): O que testemunhamos [a Perestroika e o colapso da

URSS, a queda do muro de Berlim] não é apenas o final da guerra fria, mas o fim da história como tal, ou seja, o

ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a

forma final do governo humano.

resposta da segunda pergunta) entre a competição5 desenfreada do capitalismo e os ideais

humanísticos do socialismo. Mais ainda: apesar de concordar com a perspectiva anti-

dicotômica do autor, a meu ver, ele não escapa da abordagem de continuum. Explico melhor.

O subtítulo do livro de Kurz é esclarecedor: “Da derrocada do socialismo de caserna à crise

da economia mundial”. Ou seja, ele defende que é justamente o progresso da mercadorização

que responde pelas mudanças expressivas da sociedade, seja ela “socialista de caserna”

(estatista), ou capitalista. Em minha análise, o autor justapõe (ou melhor, aproxima) a

sociedade socialista à sociedade capitalista subsumindo posteriormente todas elas ao sistema

produtor de mercadorias.

Assim, ao analisar a abordagem de continuum de Kurz compreendo que ele não foge

do dualismo na medida em que considera o socialismo de caserna e o capitalismo numa

perspectiva de integração, ou se preferir, modernização da economia mundial. Decorre que,

para o autor, não há contraposição entre o socialismo de caserna e o capitalismo.

Kurz atesta ainda que a novidade da crise está assentada na incorporação da ciência ao

processo produtivo e que, portanto a classe trabalhadora entra em declínio de importância.

Acrescentaria que não apenas a ciência, mas também a tecnologia, se converteram em forças

produtivas. Mas essa conversão não se deve a qualquer entidade sobrenatural, mas sim a seres

sociais concretos que lançam mão dos mais diversos mecanismos (como a ciência e a

tecnologia) para continuar o processo de acumulação.

A metacrítica de Kurz assenta-se na perspectiva que o conflito de sistemas (1992:13)

é pouco relevante. Tampouco o abandono do socialismo e a tese do fim da história possuem

qualquer fundamento.

No verão de 1989, o americano Francis Fukuyama, vice-diretor da equipe de

planejamento do Ministério do Exterior dos Estados Unidos, proclamou

precipitadamente, num artigo para o magazine trimestral National Interest, “o fim da

história” - sentença que se disseminou na velocidade de um raio e tem sido citada a

torto e a direito. Como se isso não bastasse, o autor fundamenta sua tese na ideia de

Hegel de uma “forma definitiva, racional, da sociedade e do Estado” que teria sido

por fim alcançada na figura bastante peculiar do american way of life. [...]

Mas a evidência de uma vitória relativa do mundo ocidental, a bem da verdade, mal

pode ser contestada se vigorarem ainda os critério do conflito de sistemas precedente

e se não se puder pensar numa metacrítica. E esta é precisamente a questão. Pois

será mesmo que o Ocidente agiu com plena consciência e autoconsciência naquele

terreno em que agora presume pisar como vencedor? (KURZ, 1992:14)

5 Cabe assinalar que a noção de competição é uma noção biológica, e implica uma relação desarmônica, ou

seja, uma relação na qual pelo menos uma das espécies é lesada.

Kurz tem uma argumentação forte, poderosa, sofisticada, diria mais: tentadora. Ele nos

desafia a fugir das formações sociais aparentemente opostas (1992:16); cutuca nossa “análise

classista”; advoga um “fetichismo do capital”; aproxima Lênin de Weber:

Em nenhum outro lugar esse ethos protestante do trabalhador abstrato dentro de uma

sociedade transformada numa máquina de trabalho, declarado por Max Weber como

característica constitutiva ideológica e histórica do capitalismo, foi posto em prática

com mais fervor e rigor do que no movimento operário e nas formações sociais do

socialismo real (1992:18).

O socialismo do movimento operário nunca esteve muito distante dessa criação

fetichista da motivação do antigo protestantismo. Enquanto este colocou o trabalho

abstrato a serviço da religião, aquele transformou o trabalho abstrato numa religião

secularizada, a do endeusamento da riqueza nacional, transcendente aos fins

vinculados às necessidades humanas; precisamente para a Rússia, à beira da

modernidade burguesa, o socialismo era um substituto mais ou menos adequado dos

elementos constitutivos religiosos do modo de produção capitalista na Europa

Ocidental, desde a Reforma (1992, p.19).

Mas, se o socialismo e o capitalismo são formações sociais aparentemente opostas isso

significa dizer que em essência capitalismo e socialismo são formações “paralelas”, ou seja,

estão do mesmo lado no jogo mundial de produção de mercadorias? Quando Kurz aproxima

Weber e Lênin não estaria ele negando factualmente o potencial revolucionário do trabalho

como mecanismo de emancipação, por exemplo, das “amarras da natureza”? A meu ver, Kurz

aproxima indevidamente via instrumento analítico (a categoria trabalho) Weber e Lênin. Em

Weber, ou melhor, em sua análise do espírito do capitalismo, a lógica do trabalho está

associada ao ethos da riqueza como ética da vida; já em Lênin, ou melhor, no socialismo, o

trabalho não é um mecanismo igual ao da ética protestante (do trabalho) e do espírito do

capitalismo: isso porque o trabalho é no socialismo, como adverti anteriormente, mecanismo

de emancipação social, meio de desenvolvimento político e de formação de uma consciência

crítica de classe. Kurz parece não ver diferença entre um sistema “político-religioso”

(capitalismo) e um sistema, civilizatório e disciplinador (eu estou ciente disso), que traz em

seu seio ideais humanísticos por excelência como: desenvolvimento social, saúde pública de

qualidade, moradia digna, aposentadoria, estabilidade financeira, condições dignas de

emprego, etc. Kurz parece confundir trabalho a serviço da religião, meio de se atingir riqueza,

salvação divina, ética individualista de vida, com trabalho a serviço da consciência de classe,

do desenvolvimento social (mas também individual) do mundo. É o raciocínio “mais ou

menos constitutivo” que igualiza todo o trabalho, que não percebe as diferenças internas e

externas do trabalho no campo socialista em relação ao habitus capitalista.

Ainda que o trabalho, como labor no sentido antigo, como estafa e moléstia,

ocupasse completamente o horizonte da vida da maioria das pessoas, isso acontecia

por causa do grau de desenvolvimento relativamente baixo das forças produtivas no

“metabolismo entre os homens e a natureza” (Marx); o trabalho era, portanto, uma

necessidade imposta pela natureza, porém precisamente por isso nenhum dispêndio

abstrato de força de trabalho e nenhuma atividade social que traz em si sua própria

finalidade (KURZ, 1992: 21).

O vaivém do meu argumento será inevitável: Kurz não enxerga no trabalho mais do

que uma estafa ou moléstia. Sua “crítica estafante” enxerga no trabalho mais um engenho

alienador; não se permite ver que o fato do homem encontrar-se dependente da Natureza para

realizar a sua vivência e reprodução não o torna escravo do trabalho6.

Após isso, a crítica do autor se concentra no processo histórico da modernidade no

qual dois regimes de produção de mercadorias se relacionam: estatismo e monetarismo. Kurz

argumenta, por exemplo, que o socialismo real é um “regime modernizador protocapitalista

de sociedades burguesas atrasadas” (1992: 28). Nesse sentido, tanto o estatismo do socialismo

real, quanto o estado social e regulador keynesiano se tornam produtos do mercado.

Mas, Kurz ao operar o Estado como resultado do avanço do desenvolvimento do

mercado, em poucas palavras, como produto do próprio mercado, retira o foco, por exemplo,

de aspectos importantes, principalmente de dimensão política. Há de se notar certo “silêncio”

acerca da relação entre Estado e Nação, da Segurança Nacional, isso tudo em virtude de se

focalizar o Estado como produto do mercantilismo. A meu ver, seria interessante pensar o

Estado como a produção de uma escala política de atuação de um determinado segmento

social (a burguesia) como sugeriu o próprio Marx7.

Interessante é a apropriação que Kurz faz de Tocqueville8 (1805-1859) para

demonstrar a conexão e a continuidade despótica entre o Antigo Regime e a Revolução. Para

o autor, Tocqueville é o “Marx da crítica das instituições políticas das democracias modernas,

na base da forma produtora de mercadorias” (1992: 33). Kurz compartilha com Tocqueville a

“ilusão subjetiva burguesa”, “as formas que não tem sujeito”, ou “a vontade do verdadeiro

sujeito constituído na forma mercadoria”, uma “força desconhecida”, “que não pode refrear a

si mesma”.

Sobre a forma-mercadoria é verdade que Marx (2003: 57, grifos meus) disse que “a

riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em ‘imensa

6 Não se trata em Marx, obviamente, de achar que “o trabalho dignifica o homem”. Trata-se sobretudo de

reconhecer o caráter ontológico do trabalho compreensível nos Manuscritos econômico-filosóficos. 7 Todavia, não basta dizer apenas que o Estado é o comitê político da burguesia. O geógrafo marxista David

Harvey (2011, p.68) observou que “uma das maiores lacunas do Manifesto [do partido comunista] é a sua falta

de atenção para a organização territorial”; Além disso, Harvey (idem, ibidem) atesta que “o Estado é só uma das

muitas instituições mediadoras que influi na dinâmica da luta mundial de classes”. 8 O historiador político Alexis de Tocqueville ficou famoso pela obra A democracia na América.

acumulação de mercadorias’, e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma

elementar dessa riqueza”. Todavia, é importante observar também esta passagem:

Não é com seus pés que as mercadorias vão ao mercado, nem se trocam por

decisão própria. Temos, portanto, de procurar seus responsáveis, seus donos.

As mercadorias são coisas; portanto inermes diante do homem. Se não é dócil, pode

o homem empregar força, em outras palavras, apoderar-se dela. Para relacionar essas

coisas, umas com as outras, como mercadorias, têm seus responsáveis de comportar-

se, reciprocamente, como pessoas cuja vontade reside nessas coisas, de modo que

um só se aposse da mercadoria do outro, alienando a sua, mediante o consentimento

do outro, através, portanto, de um ato voluntário. É mister, por isso, que

reconheçam, um nó no outro, a qualidade de proprietário privado (MARX, 2003:

109, grifos meus).

Porém, ainda inquieta-me a assertiva da “ausência de sujeito”. Marx e Engels ao

abordarem a ampliação do raio de mercado pela burguesia a nível mundial atestam muito bem

que esse fenômeno não ocorre de forma natural ou sem sujeito como leva a crer Kurz; pelo

contrário, o ator principal desse fenômeno é sempre evidenciado em suas falas como nesta

notável passagem do Manifesto Comunista:

Através da exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita

à produção e ao consumo de todos os países. [...] as antigas indústrias nacionais

foram destruídas e continuam a ser destruídas a cada dia. [...] Em lugar das velhas

necessidades, satisfeitas pela produção nacional, surgem necessidades novas, que

para serem satisfeitas exigem os produtos das terras e dos climas mais distantes. Em

lugar da antiga auto-suficiência e do antigo isolamento local e nacional desenvolve-

se em todas as direções, um intercâmbio universal, uma universal interdependência

das nações (MARX; ENGELS, 2008: 49).

Após lançar mão de Tocqueville para justificar e “igualizar” revolucionários e

absolutistas para depois subsumi-los ao capital, ao sistema de produção de mercadorias, Kurz

apoia-se agora em Fichte9 (1762-1814) para “abrir mão de Marx” e de sua crítica da economia

política já que todas as características decisivas do socialismo estatal (mercado planejado,

direito ao trabalho e monopólio estatal do comércio exterior) já estavam em Fichte.

Todavia, mais interessante que a apropriação do Estado racional de Fichte é a natureza

dupla do Estado que aparece em Kurz. Por um lado a forma moderna do Estado é parteira do

sistema produtor de mercadorias e, por outro, é componente inextricável deste último, o que

levou Kurz a acertadamente reconhecer que o capitalismo jamais pretendeu a liberdade de

mercado ou ainda o movimento histórico ondulatório (1992: 40), a dominação dialética do

estatismo e do monetarismo. Em suma, para Kurz, o socialismo real repetiu e “realizou” as

ideias mercantilistas tardias de Fichte.

9 O referido filósofo foi um dos expoentes máximos do idealismo filosófico alemão.

Em minha opinião, quando Kurz “abriu mão de Marx” para se apoiar em Fichte e daí

fazer sua crítica do socialismo real, “esqueceu” da crítica que Marx faz do Estado, seja ele

racional ou não, como mecanismo/fator de alienação. Marx tinha bem em mente o que

significava o Estado. Apesar de nunca ter produzido uma teoria do Estado, Marx foi um

ferrenho crítico do Estado, como bem demonstrou em sua obra Crítica da Filosofia do Direito

de Hegel10

: “Como se o povo não fosse o Estado real! O Estado é abstracto; só o povo é

concreto” (MARX, 1983: 44). Como Lallement (2004: 111-112) aponta “[...] longe de ser a

solução para todos os problemas sociais, o Estado é na realidade - inclusive em regimes

democráticos - apenas um fator de alienação”.

É por “desconhecer” estas críticas que Kurz diz:

A teoria de Marx, vulgarizada por interpretações unilaterais até tornar-se

“marxismo”, foi privada de sua crítica decisiva da forma do sistema burguês

moderno de reprodução; a crítica da forma mercadoria que culmina no conceito

do fetichismo, criado por Marx, foi eliminada e empurrada para um além teórico e

histórico, difamada como nebulosa, ou degradada a um fenômeno mental puramente

subjetivo.

No lugar de um conceito de forma do sistema produtor de mercadorias e de sua

condicionalidade histórica aparece, dessa maneira, um conceito reduzido das

“classes em conflitos”, como suposta razão última da socialização; [...]

Desse modo, uma categoria social analítica, a “classe trabalhadora”, transformou-se

numa pessoa coletiva com identidade consistente que, independentemente de

pessoas empíricas, “atua” de forma quase biográfica (1992: 44-45, grifos meus).

Kurz qualifica de “marxismo vulgar” aquele segmento do marxismo que centra suas

análises em torno do materialismo histórico e da luta de classes. Para ele, os marxistas

vulgares não compreenderam que a crítica decisiva de Marx está na forma-mercadoria que

culmina no conceito de fetichismo. O desconhecimento disto, na análise de Kurz, levou a

redução do marxismo ao conceito de luta de classes destituído de pessoas empíricas.

Ora, mas será realmente que a crítica decisiva de Marx está na forma mercadoria ou

isto seria uma transposição particular que Kurz faz do Capital (a obra) para universalizar no

pensamento marxiano? Concordo com Kurz que Marx não pode ser reduzido ao conceito de

luta de classes, mas daí a concluir que a crítica central e decisiva de Marx repousa na forma-

mercadoria é, no mínimo, questionável. As classes sociais não são um sujeito secundário no

10

As concepções marxianas da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, obra do ano de 1843, caracterizam-se

pelas críticas ferozes e contundentes, de Marx, ao endeusamento do Estado, por parte de Hegel, haja vista este

último, subordina ao Estado a Sociedade Civil e a Família na obra Princípios da Filosofia do Direito. Nesta

obra, por exemplo, Hegel vê no monarca o “Homem-Deus”, bem como no autoritarismo do Estado, a

universalização e a expressão da razão. Marx, ao contrário, em sua crítica, ressalta frequentemente a importância

da Sociedade Civil e da Família, pois ambos influenciam simultaneamente o Estado, haja vista são seus

pressupostos. A louvação que Hegel faz junto ao Estado, personificados no monarca e nos funcionários

executivos, os representantes, mais tarde será invertida por Marx quando o proletariado assumirá o papel

principal na sociedade.

pensamento de Marx, se fosse desta forma, o que levaria Marx a escrever o Manifesto

Comunista11

? Se a relação social da mercadoria fosse totalmente ausente de sujeito e as

classes fossem realmente secundárias porque Marx haveria de escrever As lutas de classe em

França? A meu ver, quem mistifica a forma-mercadoria como metassujeito social, quem faz a

ascensão dela aos céus é Robert Kurz. Marx, ao contrário, tem total consciência do poder

revolucionário do proletariado que é sim dotado de indivíduos políticos unidos por uma

totalidade dialética (uma conexão unitária subjetivo-objetiva). Se a contradição, por exemplo,

o motor interno que produz os acontecimentos (CHAUÍ, 2008), em Hegel é do Espírito

consigo mesmo, aparece em Marx e Engels concretamente como luta de classes, como bem

expressa a obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte12

.

Um aspecto chama atenção no que respeita ao sistema produtor de mercadorias. Kurz

deixa claro que o sistema produtor de mercadorias é o próprio capital e que a ele tudo é

subsumido. Mas uma palavra faz toda diferença: sistema. A ideia de sistema para o autor,

pelo menos na minha ótica, leva a uma leitura repetitiva a que nada escapa reproduzindo

sempre o mesmo movimento. Seria um mecanicismo? Exemplo: não há diferença

(significativa) entre a ética do trabalho e o espírito do socialismo; é como se tudo fosse

“trabalho” num movimento hermético que autossubsume; ou quando Kurz escreve que o

socialismo não era uma alternativa histórica ao capitalismo posto que ele é parte do sistema

produtor de mercadorias. Kurz vê o todo, em tudo, em toda parte do mundo; não importa a

condição histórica: a lógica do sistema produtor de mercadorias é simplesmente, pelo menos

na minha leitura de Kurz, intemporal: a condição já está dada, não há “transformação”.

Depois desta crítica “sistemática” um argumento de Kurz chama atenção no seu livro:

a qualidade capitalista da “acumulação socialista primitiva”. O autor provoca o nosso

pensamento e nos incita a pensar uma acumulação primitiva em termos socialistas:

Se sob o regime stalinista foi estabelecida temporariamente a bagatela de uma pena

de morte por simples atrasos, para forçar o adestramento das massas agrárias da

11

Junto, é sempre importante dizer, com o também filósofo alemão e revolucionário comunista Friedrich Engels

(1820-1895). Escreveu, também com Marx, A ideologia alemã e A sagrada família. Dono de vastos

conhecimentos sobre política, economia e filosofia, Engels foi um fervoroso defensor do proletariado

revolucionário e da filosofia materialista. Publicou ainda: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra,

Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã e A origem da família, da propriedade privada e do

Estado. 12

Possivelmente, uma das melhores obras de Marx para se analisar metodologicamente a política enquanto luta

pelo poder. Nesta obra o materialismo histórico é posto em prática para se analisar o golpe de Estado de

Napoleão III (Luís Bonaparte) em França. Marx faz uma análise minuciosa das disputas políticas dos atores

envolvidos (burguesia, camponeses, proletários, o Estado) no espaço da França que é onde se desenrola

(ousamos dizer assim) as principais lutas classistas e sociais. Não é a toa que a França é o foco privilegiado das

análises políticas (enquanto luta pelo poder) de Marx expresso não apenas nessa obra, mas também em Guerra

Civil na França e Lutas de Classes em França.

Rússia, que não estavam acostumadas com as necessidades objetivas da disciplina

fabril, isso não representa apenas uma continuação direta da “militarização da

economia” trotskista do período da guerra civil: representa também um reflexo do

violento processo de modernização levado a cabo por uma acumulação primitiva de

capital, tal como já descrita por Marx, em cores parecidas, ao analisar a

industrialização da Inglaterra (KURZ, 1992: 54, grifos meus).

Minha argumentação em relação à Kurz vai ao sentido do adestramento das massas

agrárias. Não entrarei em discussão sobre a questão do trabalho como forma de emancipação

posto que esse é um ponto de divergência minha em relação ao autor, mas sim na forma como

Kurz (1992, p.56-57) constrói um argumento lógico sobre a acumulação socialista primitiva

(de capital). Mais a frente ratifica:

Enquanto não se trata da “construção do socialismo”, mas da construção

recuperadora do capitalismo, Stálin tem toda razão. Pelo menos uma parte dos

recursos para a histórica acumulação primitiva da Europa ocidental foi obtida

mediante a expansão colonial desde o século XVI (sem esquecer a enorme

quantidade de ouro roubado na América do Sul). Essas possibilidades realmente não

existiam mais para a União Soviética. Mas, se o capital monetário exigido tinha de

ser obtido exclusivamente “dentro do país”, isso significava que o “material

humano” do próprio “país” tinha de ser explorado sem piedade e transformado

rigorosamente em produtores de riqueza abstrata, isto é, em produtores de dinheiro

ou mais-valia.

De fato, estas duas assertivas acima supracitadas são aspectos extremamente profícuos

da crítica da acumulação socialista primitiva de capital e a sua relação com o adestramento

das massas agrárias que Kurz promove acerca da questão do campesinato. Com efeito, o

adestramento das massas agrárias feito na União Soviética dá razão ao autor:

O fim do Estado czarista baseou-se no desenvolvimento de grandes greves

industriais, no fomento da desordem e inquietação dos camponeses e na deserção em

massa do exército em março de 1917 (Primeira Guerra Mundial). A volta dos

soldados camponeses, cansados da guerra, trouxe consigo a revolução do meio rural.

Os camponeses foram obrigados a retornar à comuna, entregando-lhe as terras que

tinham comprado ou que lhes tinham sido cedidas em propriedade pela própria

comuna. No campo o poder passou às mãos dos camponeses soldados, organizados

em soviets camponeses, que não eram mais que os antigos conselhos comunais com

uma nova roupagem revolucionária. A superfície ocupada pelas comunas, entre

1917 e 1918, proveio de uns 76 milhões de hectares de propriedade de camponeses

particulares e 46 milhões de grandes proprietários. Em janeiro de 1918 a terra foi

socializada por meio de Lei. Os bolcheviques viram-se obrigados a permitir que os

camponeses ocupassem a terra, porque assim o desejava a maioria do povo. Com

isto, conseguiram o apoio da massa rural. Os comunistas iniciaram tentativas de

nacionalizar todas as terras expropriadas, enquanto que os camponeses queriam que

a terra e os equipamentos fossem deles e de suas comunas (SANZ-PASTOR,

1988:22 apud OLIVEIRA, 2007, p.74).

É importante destacar que, apesar da ala intelectual do proletariado ter dirigido a

revolução na Rússia, foram os camponeses quem fizeram a revolução numa aliança com o

proletariado. Outro aspecto importante é o fato da propriedade da terra na unidade camponesa

ser familiar (mais precisamente propriedade privada familiar) no qual ele trabalha na terra

junto com sua família. Daí decorre o efeito nefasto da coletivização forçada das terras na

União Soviética. Como bem relatou Oliveira (2007, p. 74):

Iniciou-se assim, um processo de revoltas dos camponeses, que passaram a oporem-

se aos novos métodos adotados pelo poder central soviético e que duraram até 1929.

Deste ano em diante, foi feita a coletivização forçada dos camponeses que provocou

a morte de mais de 12 milhões deles. Pela força o Estado soviético liderado por

Stalin, dominou e passou a planificar sua agricultura. Os camponeses foram sendo

convertidos em uma engrenagem a mais da vontade política do Estado soviético.

Assim, foram obrigados a força a irem para uma forma de cooperativa, o kolkhoz,

ou então, igualmente pela força, uma parte dos camponeses foram transformados em

assalariados de empresas estatais no campo, os solvkozes. Assim, na União

Soviética socialista a terra era propriedade da nação e distribuía-se em: os kolkozes

que eram as fazendas coletivas dadas pelo Estado em usufruto perpétuo aos

camponeses organizados em cooperativas, para cultivo comum; os solvkozes que

eram as fazendas administradas pelo próprio Estado, e onde ele remunerava os

operários agrícolas através de um salário; as parcelas individuais, que eram as

áreas reservadas aos membros do kolkhoz ou do solvkhoz, contíguas à suas casas,

para desfrute familiar de horta, pomar e pequeno criatório; e as fazendas auxiliares,

organizadas por empresas e instituições, a fim de abastecerem, não a comunidade

em geral, porém os próprios obreiros dessas entidades.

Categoricamente, Kurz conhecia esta realidade das massas agrárias russas e as pistas

de seu raciocínio e a sua crítica ao socialismo fazem bastante sentido. O mercado planificado

acabou levando ao totalitarismo soviético dado a necessidade do Estado impor a planificação.

Além disso, percebe-se a tentativa de proletarização forçada das massas agrárias, do

camponês, como consequência de uma política partidária/estatal/revolucionária que concebe o

camponês como resíduo social e que, portanto, vê na proletarização e no antagonismo com a

burguesia a única forma de vencer o capitalismo, uma vez que o desenvolvimento do

capitalismo no campo faria com que o camponês ou se transformasse em um pequeno

capitalista ou se proletarizasse, nos termos de Lênin13

e Kautsky14

.

Essa qualidade capitalista da acumulação socialista primitiva consequentemente levou

ao congelamento do estatismo e a militarização da sociedade. Nesse aspecto, Kurz destaca um

regime estadista de acumulação e faz uma crítica tenaz ao Estado como engrenagem da

mecânica capitalista e não como polo oposto a ele.

Contudo, a crítica do autor, em minha leitura, beira a crítica da direita. Isso porque

raramente Kurz promove uma crítica ao capital ou ao sistema produtor de mercadorias. Pelo

13

Lênin explorou tal questão em seu famoso livro: O desenvolvimento do capitalismo na Rússia: O processo de

formação do mercado interno para a grande indústria. São Paulo: Abril Cultural, 1982. No raciocínio do

revolucionário russo, a desintegração do campesinato por uma diferenciação interna geraria camponeses ricos

(pequenos capitalistas) e camponeses pobres (que inevitavelmente teriam que se assalariar). Ou seja: o próprio

desenvolvimento do capitalismo e de suas relações de produção engendraria o desaparecimento do campesinato. 14

Kautsky, por sua vez, pensava que o desenvolvimento das relações capitalistas no campo levaria a

proletarização do campesinato. Tal análise está desenvolvida em seu livro A Questão Agrária. Trad. C.

IPEROIG. 3ª. ed. São Paulo: Proposta Editorial, 1980.

contrário, ele “apenas” se restringe a subsumir tudo ao capital, retira o foco da análise

marxiana da luta de classes e acusa-a de sociologismo; E mais: privilegia o automovimento do

dinheiro como uma verdadeira entidade da sociedade das mercadorias.

Enfim, o cerne da obra de Kurz, parece-me que já fora entendido. Assim ele prossegue

ao longo do texto defendendo o fim da sociedade do trabalho e mesmo dizendo que o

socialismo será possivelmente lembrado no futuro como “uma nota de rodapé” (1992:85).

Importante, porém, é a crítica que o autor faz da crise ecológica (1992:86) como crise do

capital na medida em que desvela em sua faceta ambiental, pelo menos compreendo dessa

forma, a racionalidade irracional (nesse sentido Kurz discorda de Weber) do sistema produtor

de mercadorias.

No bojo da discussão, a intentona socialista de “planejar racionalmente o mercado”

não passa de uma ilusão em virtude de ser o capital o sujeito automático do processo histórico

de modernização e não a ilusão da vontade política de uma subjetividade burguesa, como diz

Kurz. Daí ele deduzir que o resultado lógico do socialismo real foi a economia de escassez

cuja burocracia estatal mercantil e fechada não foi capaz de compreender o socialismo como

imanente ao capital (1992:111).

Fatalmente, os países socialistas e os de Terceiro Mundo se iludiram tanto

estruturalmente - troca do modelo - quanto que historicamente - acreditando que haveria mais

uma vez o milagre econômico15

. Na realidade, o sistema produtor de mercadorias foi o grande

responsável pela colonização de povos e territórios simultaneamente ao processo da

acumulação primitiva necessário ao processo de produção do capital. Esta dupla articulação,

ao lado da consolidação do estado-nação como elemento integrante do sistema produtor de

mercadorias serviram para a imposição da lógica do capital e, nesse sentido, nem a União

Soviética no dizer de Kurz, escapou da exageração do elemento estatista (1992:179) que

contribuiu para a destruição de sistemas ecológicos fechados e de estruturar tradicionais.

Por isso tudo, o sistema mundial produtor de mercadorias está em crise (KURZ,

1992:185). Logo, tanto os “perdedores” quanto os “vencedores” devem afastar de si próprios

as falsas ilusões posto que o único elemento autoconsciente nesse sistema moribundo é a

forma-mercadoria que sociabiliza criticamente as personas existentes.

Assim, “profetiza” Kurz (1992:187) as revoltas vão aumentar e não diminuir. Isso

como consequência do automovimento do dinheiro o verdadeiro fundamento do processo de

15

A rigor, a intensa e generalizada internacionalização do capital ocorreu no âmbito da intensa e generalizada

internacionalização do processo produtivo. Os “milagres econômicos” que se sucedem ao longo da Guerra Fria e

depois dela são também momentos mais ou menos notáveis dessa internacionalização (IANNI, 2007, p. 62).

modernização cuja “razão mundial burguesa”, as leis históricas destrutivas e regras

democráticas são apenas pura expressão. Como decorrência lógica, a normalidade capitalista é

a forma de ser da anormalidade do sistema produtor de mercadorias, expressa tão bem pela

crise ecológica. Mas essa crise ecológica é ela mesma uma expressão da crise do capital que

se disseminou tal qual um “tumor maligno por metástases em um corpo aparentemente

saudável” (KURZ, 1992:194).

Esse verdadeiro “câncer social” de que nos fala Kurz se expressa, em sua visão, no

colapso do sistema financeiro global e na decadência das estruturas sociais. Após o início da

era das trevas que Kurz profetiza, a necessidade de superação da crise se impõe, mas não pela

administração estatista: “a crise seria apenas superável se um consciente movimento social de

supressão acabasse com a mera administração dessa crise, movimento que teria de derrubar,

com violência maior ou menor, também esses aparatos” (KURZ, 1992: 210). Para o autor,

está claro que o Estado apenas administra a crise principalmente em períodos emergenciais.

A incapacidade que o capitalismo adquiriu de explorar a massa global do trabalho

abstrato produtivamente explorado, a paralisação em número crescente de recursos materiais

em países, a transformação da ciência em força produtiva e o próprio momento crítico do

marxismo, são para Kurz modificações fundamentais que caracterizam a sociedade mundial.

A saída da crise para o autor é a “razão prática, que pode ser imanente, isto é, que se limita à

superação de determinada situação histórica” (KURZ, 1992, p.215-216). Daí decorre, para

Kurz, a incapacidade da razão crítica iluminista de fornecer a saída para a crise do sistema

produtor de mercadorias.

Para finalizar, uma pergunta fica no ar após apreciarmos o julgamento contundente de

Robert Kurz: não seria esta própria razão prática, enfim, a própria crítica do autor, uma forma

de ser da crise do sistema produtor de mercadorias?

REFERÊNCIAS

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HARVEY, David. A geografia do Manifesto. TRAD. G. ONDETTI; L. PEREIRA; L. F.

ALMEIDA. Disponível em http://www4.pucsp.br/neils/downloads/v4_artigo_david.pdf.

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IANNI, Octavio. Teorias da Globalização. 14ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2007.

KAUTSKY, Karl. A questão agrária. Trad. C. IPEROIG. 3ª. ed. São Paulo: Proposta

Editorial, 1980.

KURZ, Robert. O Colapso da Modernização: da derrocada do socialismo de caserna à

crise da economia mundial. TRAD. Karen Elsabe BARBOSA. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

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LALLEMENT, Michel. História das ideias sociológicas: das origens a Max Weber.

2ªed.Trad. Ephraim F. ALVES. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. Partes II e III. pp.85-321.

LÊNIN, Vladimir. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia: O processo de formação

do mercado interno para a grande indústria. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

MARX, Karl Heinrich. O capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. Reginaldo

SANT’ANNA. 21ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Trad. Pietro

NASSETTI. 2ª ed. 1ª reimp. São Paulo: Martin Claret, 2008.

MARX, Karl Heinrich. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. 2ªed. Portugal-Brasil:

Editorial Presença, 1983.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma

Agrária. São Paulo: FFLCH, 2007, 184p.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Ou Inventamos ou Erramos. Encruzilhadas da

Integração Regional Sul-americana. Anais do V Simpósio Internacional de Geografia

Agrária/VI Simpósio Internacional de Geografia Agrária. Belém, UFPA, 7 a 11 de novembro

de 2011.

VESENTINI, J. W. Novas Geopolíticas. 4ª ed. 1ª reimp. São Paulo: Contexto, 2007.