COMENTÁRIO TEOLÓGICO À MENSAGEM DE FÁTIMA

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  • 8/9/2019 COMENTRIO TEOLGICO MENSAGEM DE FTIMA

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    COMENTRIO TEOLGICO MENSAGEM DE FTIMA Card. Ratzinger 26 de Junho de 2000

    Quem l com ateno o texto do cha-mado terceiro segredo de Ftima, quedepois de longo tempo, por disposiodo Santo Padre, aqui publicado inte-gralmente, ficar presumivelmentedesiludido ou maravilhado depois detodas as especulaes que foram feitas.No revelado nenhum grandemistrio; o vu do futuro no rasgado.Vemos a Igreja dos mrtires destesculo que est para findar, representadaatravs duma cena descrita numalinguagem simblica de difcildecifrao. isto o que a Me doSenhor queria comunicar cristandade, humanidade num tempo de grandesproblemas e angstias? Serve-nos deajuda no incio do novo milnio? Ouno sero talvez apenas projeces domundo interior de crianas, crescidasnum ambiente de profunda piedade, massimultaneamente assustadas pelas tem-pestades que ameaavam o seu tempo?Como devemos entender a viso, o quepensar dela?

    Revelao pblica e revelaes priva-das o seu lugar teolgico

    Antes de encetar uma tentativa deinterpretao, cujas linhas essenciaispodem encontrar-se na comunicaoque o Cardeal Sodano pronunciou, nodia 13 de Maio deste ano, no fim daCelebrao Eucarstica presidida peloSanto Padre em Ftima, necessrio daralguns esclarecimentos bsicos sobre omodo como, segundo a doutrina daIgreja, devem ser compreendidos nombito da vida de f fenmenos como ode Ftima. A doutrina da Igreja distin-gue revelao pblica e revelaesprivadas; entre as duas realidades

    existe uma diferena essencial, e noapenas de grau. A noo revelaopblica designa a aco reveladora deDeus que se destina humanidadeinteira e est expressa literariamente nasduas partes da Bblia: o Antigo e oNovo Testamento. Chama-se revela-o, porque nela Deus Se foi dando aconhecer progressivamente aos homens,at ao ponto de Ele mesmo Se tornarhomem, para atrair e reunir em Si pr-prio o mundo inteiro por meio do Filhoencarnado, Jesus Cristo. No se trata,portanto, de comunicaes intelectuais,mas de um processo vital em que DeusSe aproxima do homem; naturalmentenesse processo, depois aparecem tam-bm contedos que tm a ver com a

    inteligncia e a compreenso do mist-rio de Deus. Tal processo envolve ohomem inteiro e, por conseguinte, tam-bm a razo, mas no s ela. Uma vezque Deus um s, tambm a histriaque Ele vive com a humanidade nica,vale para todos os tempos e encontrou asua plenitude com a vida, morte e res-surreio de Jesus Cristo. Por outraspalavras, em Cristo Deus disse tudo deSi mesmo, e portanto a revelao ficouconcluda com a realizao do mistriode Cristo, expresso no Novo Testa-mento. OCatecismo da Igreja Catlica ,para explicar este carcter definitivo epleno da revelao, cita o seguinte textode S. Joo da Cruz: Ao dar-nos, comonos deu, o seu Filho, que a sua Palavra e no tem outra , Deus disse-nostudo ao mesmo tempo e de uma s veznesta Palavra nica (...) porque o queantes disse parcialmente pelos profetas,revelou-o totalmente, dando-nos o Todoque o seu Filho. E por isso, quemagora quisesse consultar a Deus oupedir-Lhe alguma viso ou revelao,no s cometeria um disparate, masfaria agravo a Deus, por no pr osolhos totalmente em Cristo e buscar forad'Ele outra realidade ou novidade(CIC , n. 65; S. Joo da Cruz, A Subida

    do Monte Carmelo , II, 22).O facto de a nica revelao de Deusdestinada a todos os povos ter ficadoconcluda com Cristo e o testemunhoque d'Ele nos do os livros do NovoTestamento vincula a Igreja com oacontecimento nico que a histriasagrada e a palavra da Bblia, quegarante e interpreta tal acontecimento,mas no significa que agora a Igrejapode apenas olhar para o passado,ficando assim condenada a uma estrilrepetio. Eis o que diz oCatecismo da

    Igreja Catlica : No entanto, apesar dea Revelao ter acabado, no quer dizerque esteja completamente explicitada. Eest reservado f crist apreender gra-dualmente todo o seu alcance no decor-rer dos sculos (n. 66). Estes doisaspectos o vnculo com a unicidadedo acontecimento e o progresso na suacompreenso esto optimamenteilustrados nos discursos de despedida doSenhor, quando Ele declara aos disc-pulos: Ainda tenho muitas coisas paravos dizer, mas no as podeis suportaragora. Quando vier o Esprito da Ver-dade, Ele guiar-vos- para a verdadetotal, porque no falar de Si mesmo

    (...) Ele glorificar-Me-, porque h-dereceber do que meu, para vo-lo anun-ciar ( Jo 16, 12-14). Por um lado, oEsprito serve de guia, desvendandoassim um conhecimento cuja densidadeno se podia alcanar antes porque fal-tava o pressuposto, ou seja, o da ampli-do e profundidade da f crist, e que tal que no estar concluda jamais. Poroutro lado, esse acto de guiar rece-ber do tesouro do prprio Jesus Cristo,cuja profundidade inexaurvel se mani-festa nesta conduo por obra do Esp-rito. A propsito disto, oCatecismo citauma densa frase do Papa GregrioMagno: As palavras divinas crescemcom quem as l (CIC , n. 94; S. Greg-rio Magno, Homilia sobre Ezequiel 1, 7,8). O Conclio Vaticano II indica trscaminhos essenciais, atravs dos quais oEsprito Santo efectua a sua guia daIgreja e, consequentemente, o cresci-mento da Palavra: realiza-se por meioda meditao e estudo dos fiis, pormeio da ntima inteligncia que experi-mentam das coisas espirituais, e pormeio da pregao daqueles que, com asucesso do episcopado, receberam ocarisma da verdade ( Dei Verbum , n.8).

    Neste contexto, torna-se agora possvelcompreender correctamente o conceitode revelao privada, que se aplica atodas as vises e revelaes verificadasdepois da concluso do Novo Testa-mento; nesta categoria, portanto, se devecolocar a mensagem de Ftima. Oua-mos o que diz oCatecismo da IgrejaCatlica sobre isto tambm: Nodecurso dos sculos tem havido revela-es ditas privadas, algumas das quaisforam reconhecidas pela autoridade daIgreja. (...) O seu papel no (...) com-pletar a Revelao definitiva de Cristo,mas ajudar a viv-la mais plenamentenuma determinada poca da histria (n.67). Isto deixa claro duas coisas:

    1. A autoridade das revelaes privadas essencialmente diversa da nica reve-lao pblica: esta exige a nossa f; defacto, nela, o prprio Deus que nosfala por meio de palavras humanas e damediao da comunidade viva da Igreja.A f em Deus e na sua Palavra distintade qualquer outra f, crena, opiniohumana. A certeza de que Deus quefala, cria em mim a segurana deencontrar a prpria verdade; uma cer-teza assim no se pode verificar em

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    mais nenhuma forma humana de conhe-cimento. sobre tal certeza que edificoa minha vida e me entrego ao morrer.

    2. A revelao privada um auxlio paraesta f, e manifesta-se credvel precisa-mente porque faz apelo nica revela-o pblica. O Cardeal Prspero Lam-bertini, mais tarde Papa Bento XIV,afirma a tal propsito num tratado cls-sico, que se tornou normativo a prop-sito das beatificaes e canonizaes:A tais revelaes aprovadas no devida uma adeso de f catlica; nemisso possvel. Estas revelaes reque-rem, antes, uma adeso de f humanaditada pelas regras da prudncia, queno-las apresentam como provveis ereligiosamente credveis. O telogoflamengo E. Dhanis, eminente conhece-dor desta matria, afirma sinteticamenteque a aprovao eclesial duma revelaoprivada contm trs elementos: que arespectiva mensagem no contm nadaem contraste com a f e os bons costu-mes, que lcito torn-la pblica, e queos fiis ficam autorizados a prestar-lhede forma prudente a sua adeso [E.Dhanis,Sguardo su Fatima e bilanciodi una discussione , em: La CiviltCattolica , CIV (1953-II), 392-406,especialmente 397]. Tal mensagempode ser um vlido auxlio para

    compreender e viver melhor oEvangelho na hora actual; por isso, nose deve transcurar. uma ajuda que oferecida, mas no obrigatrio fazeruso dela.

    Assim, o critrio para medir a verdade eo valor duma revelao privada a suaorientao para o prprio Cristo.Quando se afasta d'Ele, quando se tornaautnoma ou at se faz passar por outrodesgnio de salvao, melhor e maisimportante que o Evangelho, ento elacertamente no provm do EspritoSanto, que nos guia no mbito do Evan-gelho e no fora dele. Isto no excluique uma revelao privada realce novosaspectos, faa surgir formas de piedadenovas ou aprofunde e divulgue antigas.Mas, em tudo isso, deve tratar-se sem-pre de um alimento para a f, a espe-rana e a caridade, que so, para todos,o caminho permanente da salvao.Podemos acrescentar que frequente-mente as revelaes privadas provm dapiedade popular e nela se reflectem,dando-lhe novo impulso e suscitandoformas novas. Isto no exclui que aque-las tenham influncia tambm na pr-pria liturgia, como o demonstram por

    exemplo a festa do Corpo de Deus e ado Sagrado Corao de Jesus. Numadeterminada perspectiva, pode-se afir-mar que, na relao entre liturgia e pie-dade popular, est delineada a relaoentre revelao pblica e revelaes pri-vadas: a liturgia o critrio, a formavital da Igreja no seu conjunto alimen-tada directamente pelo Evangelho. Areligiosidade popular significa que a fcria razes no corao dos diversospovos, entrando a fazer parte do mundoda vida quotidiana. A religiosidadepopular a primeira e fundamentalforma de inculturao da f, que devecontinuamente deixar-se orientar e guiarpelas indicaes da liturgia, mas que,por sua vez, a fecunda a partir do cora-o.

    Desta forma, passmos j das especifi-caes mais negativas, e que eram pri-mariamente necessrias, definiopositiva das revelaes privadas: Comopodem classificar-se de modo correcto apartir da Escritura? Qual a sua catego-ria teolgica? A carta mais antiga de S.Paulo que nos foi conservada e que tambm o mais antigo escrito do NovoTestamento, a primeira Carta aos Tes-salonicenses, parece-me oferecer umaindicao. L, diz o Apstolo: Noextingais o Esprito, no desprezeis as

    profecias. Examinai tudo e retende oque for bom (5, 19-21). Em todo otempo dado Igreja o carisma da pro-fecia, que, embora tenha de ser exami-nado, no pode ser desprezado. A estepropsito, preciso ter presente que aprofecia, no sentido da Bblia, no signi-fica predizer o futuro, mas aplicar avontade de Deus ao tempo presente econsequentemente mostrar o rectocaminho do futuro. Aquele que prediz ofuturo pretende satisfazer a curiosidadeda razo, que deseja rasgar o vu queesconde o futuro; o profeta vem emajuda da cegueira da vontade e do pen-samento, ilustrando a vontade de Deusenquanto exigncia e indicao para opresente. Neste caso, a predio dofuturo tem uma importncia secundria;o essencial a actualizao da nicarevelao, que me diz respeito profun-damente: a palavra proftica ora advertncia ora consolao, ou ento asduas coisas ao mesmo tempo. Nestesentido, pode-se relacionar o carisma daprofecia com a noo sinais do tempo,redescoberta pelo Vaticano II: Sabeisinterpretar o aspecto da terra e do cu;como que no sabeis interpretar otempo presente? ( Lc 12, 56). Por

    sinais do tempo, nesta palavra deJesus, deve-se entender o seu prpriocaminho, Ele mesmo. Interpretar ossinais do tempo luz da f significareconhecer a presena de Cristo em cadaperodo de tempo. Nas revelaes pri-vadas reconhecidas pela Igreja eportanto na de Ftima , trata-se distomesmo: ajudar-nos a compreender ossinais do tempo e a encontrar na f a justa resposta para os mesmos.

    A estrutura antropolgica das revela-es privadas

    Tendo ns procurado, com estas refle-xes, determinar o lugar teolgico dasrevelaes privadas, devemos agora,ainda antes de nos lanarmos numainterpretao da mensagem de Ftima,esclarecer, embora brevemente, o seucarcter antropolgico (psicolgico). Aantropologia teolgica distingue, nestembito, trs formas de percepo ouviso: a viso pelos sentidos, ou seja,a percepo externa corprea; a percep-o interior; e a viso espiritual (visiosensibilis , imaginativa , intellectualis ). claro que, nas vises de Lourdes,Ftima, etc, no se trata da percepoexterna normal dos sentidos: as imagense as figuras vistas no se encontram forano espao circundante, como est l, porexemplo, uma rvore ou uma casa. Isto bem evidente, por exemplo, no caso daviso do inferno (descrita na primeiraparte do segredo de Ftima) ou entona viso descrita na terceira parte dosegredo, mas pode-se facilmentecomprovar tambm noutras vises,sobretudo porque no eram captadas portodos os presentes, mas apenas pelosvidentes. De igual modo, claro queno se trata duma viso intelectualsem imagens, como acontece nos altos

    graus da mstica. Trata-se, portanto, dacategoria intermdia, a percepo inte-rior que, para o vidente, tem uma forade presena tal que equivale manifes-tao externa sensvel.

    Este ver interiormente no significa quese trata de fantasia, que seria apenasuma expresso da imaginao subjec-tiva. Significa, antes, que a alma recebeo toque suave de algo real mas que estpara alm do sensvel, tornando-a capazde ver o no-sensvel, o no-visvel aossentidos: uma viso atravs dos senti-dos internos. Trata-se de verdadeirosobjectos que tocam a alma, emborano pertenam ao mundo sensvel quenos habitual. Por isso, exige-se uma

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    vigilncia interior do corao que, namaior parte do tempo, no possumospor causa da forte presso das realidadesexternas e das imagens e preocupaesque enchem a alma. A pessoa levadapara alm da pura exterioridade, onde tocada por dimenses mais profundas darealidade que se lhe tornam visveis.Talvez assim se possa compreender porque motivo os destinatrios preferidosde tais aparies sejam precisamente ascrianas: a sua alma ainda est poucoalterada, e quase intacta a sua capaci-dade interior de percepo. Da bocados pequeninos e das crianas de peitorecebeste louvor: esta foi a resposta deJesus servindo-se duma frase doSalmo 8 (v. 3) crtica dos sumossacerdotes e ancios, que achavam ino-portuno o gritohossana das crianas( Mt 21, 16).

    Como dissemos, a viso interior no fantasia, mas uma verdadeira e prpriamaneira de verificao. F-lo, porm,com as limitaes que lhe so prprias.Se, na viso exterior, j interfere o ele-mento subjectivo, isto , no vemos oobjecto puro mas este chega-nos atravsdo filtro dos nossos sentidos que tm deoperar um processo de traduo; naviso interior, isso ainda mais claro,sobretudo quando se trata de realidades

    que por si mesmas ultrapassam o nossohorizonte. O sujeito, o vidente, tem umainfluncia ainda mais forte; v segundoas prprias capacidades concretas, comas modalidades de representao econhecimento que lhe so acessveis. Naviso interior, h, de maneira ainda maisacentuada que na exterior, um processode traduo, desempenhando o sujeitouma parte essencial na formao daimagem daquilo que aparece. A imagempode ser captada apenas segundo as suasmedidas e possibilidades. Assim, taisvises no so em caso algum a foto-grafia pura e simples do Alm, mastrazem consigo tambm as possibilida-des e limitaes do sujeito que asapreende.

    Isto patente em todas as grandesvises dos Santos; naturalmente valetambm para as vises dos pastorinhosde Ftima. As imagens por eles delinea-das no so de modo algum meraexpresso da sua fantasia, mas frutoduma percepo real de origem superiore ntima; nem se ho-de imaginar comose por um instante se tivesse erguido aponta do vu do Alm, aparecendo oCu na sua essencialidade pura, como

    esperamos v-lo na unio definitiva comDeus. Poder-se-ia dizer que as imagensso uma sntese entre o impulso vindodo Alto e as possibilidades disponveispara o efeito por parte do sujeito que asrecebe, isto , das crianas. Por talmotivo, a linguagem feita de imagensdestas vises uma linguagem simb-lica. Sobre isto, diz o Cardeal Sodano:No descrevem de forma fotogrfica osdetalhes dos acontecimentos futuros,mas sintetizam e condensam sobre amesma linha de fundo factos que seprolongam no tempo numa sucesso edurao no especificadas. Esta sobre-posio de tempos e espaos numanica imagem tpica de tais vises,que, na sua maioria, s podem ser deci-fradas a posteriori . E no necessrioque cada elemento da viso tenha depossuir uma correspondncia histrica

    concreta. O que conta a viso comoum todo, e a partir do conjunto das ima-gens que se devem compreender osdetalhes. O que efectivamente constituio centro duma imagem s pode ser des-vendado, em ltima anlise, a partir doque o centro absoluto da profeciacrist: o centro o ponto onde a viso setorna apelo e indicao da vontade deDeus.

    Uma tentativa de interpretao do

    segredo de Ftima

    A primeira e a segunda parte dosegredo de Ftima foram j discutidasto amplamente por especficas publica-es, que no necessitam de ser ilustra-das novamente aqui. Queria apenaschamar brevemente a ateno para oponto mais significativo. Os pastorinhosexperimentaram, durante um instanteterrvel, uma viso do inferno. Viram aqueda das almas dos pobres pecado-

    res. Em seguida, foi-lhes dito o motivopelo qual tiveram de passar por esseinstante: para salv-las para mos-trar um caminho de salvao. Isto faz-nos recordar uma frase da primeiraCarta de Pedro que diz: Estais certosde obter, como prmio da vossa f, asalvao das almas (1, 9). Comocaminho para se chegar a tal objectivo, indicado de modo surpreendente parapessoas originrias do ambiente culturalanglo-saxnico e germnico - a devooao Imaculado Corao de Maria. Paracompreender isto, deveria bastar umabreve explicao. O termo corao, nalinguagem da Bblia, significa o centroda existncia humana, uma conflunciada razo, vontade, temperamento e sen-

    sibilidade, onde a pessoa encontra a suaunidade e orientao interior. O cora-o imaculado , segundo o evangelhode Mateus (5, 8), um corao que a par-tir de Deus chegou a uma perfeita uni-dade interior e, consequentemente, v aDeus. Portanto, devoo ao Imacu-lado Corao de Maria aproximar-sedesta atitude do corao, na qual o fiat seja feita a vossa vontade setorna o centro conformador de toda aexistncia. Se porventura algumobjectasse que no se deve interpor umser humano entre ns e Cristo, lembre-se de que Paulo no tem medo de dizers suas comunidades: Imitai-me (cf.1Cor 4, 16;Fil 3, 17;1 Tes 1, 6;2 Tes 3,7.9). No Apstolo, elas podem verificarconcretamente o que significa seguirCristo. Mas, com quem poderemos nsaprender sempre melhor do que com a

    Me do Senhor?

    Chegamos assim finalmente terceiraparte do segredo de Ftima, publicadoaqui pela primeira vez integralmente.Como resulta da documentao anterior,a interpretao dada pelo CardealSodano, no seu texto do dia 13 de Maio,tinha antes sido apresentada pessoal-mente Irm Lcia. A tal propsito, elacomeou por observar que lhe foi dada aviso, mas no a sua interpretao. A

    interpretao, dizia, no compete aovidente, mas Igreja. No entanto,depois da leitura do texto, a Irm Lciadisse que tal interpretao correspondequilo que ela mesma tinha sentido eque, pela sua parte, reconhecia essainterpretao como correcta. Sendoassim, limitar-nos-emos, naquilo quevem a seguir, a dar de forma profundaum fundamento referida interpretao,partindo dos critrios anteriormentedesenvolvidos.

    Do mesmo modo que tnhamos indenti-ficado, como palavra-chave da primeirae segunda parte do segredo, a frasesalvar as almas, assim agora a pala-vra-chave desta parte do segredo otrplice grito: Penitncia, Penitncia,Penitncia! Volta-nos ao pensamento oincio do Evangelho: Pnitemini et credite evangelio ( Mc 1, 15). Perceberos sinais do tempo significa compreen-der a urgncia da penitncia, da conver-so, da f. Tal a resposta justa a umapoca histrica caracterizada por gran-des perigos, que sero delineados nassucessivas imagens. Deixo aqui umarecordao pessoal: num colquio que aIrm Lcia teve comigo, ela disse-me

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    que lhe parecia cada vez mais clara-mente que o objectivo de todas as apari-es era fazer crescer sempre mais naf, na esperana e na caridade; tudo omais pretendia apenas levar a isso.

    Examinemos agora mais de perto asdiversas imagens. O anjo com a espadade fogo esquerda da Me de Deuslembra imagens anlogas do Apoca-lipse: ele representa a ameaa do juzoque pende sobre o mundo. A possibili-dade que este acabe reduzido a cinzasnum mar de chamas, hoje j no aparecede forma alguma como pura fantasia: oprprio homem preparou, com suasinvenes, a espada de fogo. Emseguida, a viso mostra a fora que secontrape ao poder da destruio: obrilho da Me de Deus e, de algummodo proveniente do mesmo, o apelo penitncia. Deste modo, sublinhada aimportncia da liberdade do homem: ofuturo no est de forma alguma deter-minado imutavelmente, e a imagemvista pelos pastorinhos no , absoluta-mente, um filme antecipado do futuro,do qual j nada se poderia mudar. Narealidade, toda a viso acontece s parachamar em campo a liberdade e orient-la numa direco positiva. O sentido daviso no , portanto, o de mostrar umfilme sobre o futuro, j fixo irremedia-

    velmente; mas exactamente o contrrio:o seu sentido mobilizar as foras damudana em bem. Por isso, h que con-siderar completamente extraviadasaquelas explicaes fatalistas dosegredo que dizem, por exemplo, queo autor do atentado de 13 de Maio de1981 teria sido, em ltima anlise, uminstrumento do plano divino predispostopela Providncia e, por conseguinte, nopoderia ter agido livremente, ou outrasideias semelhantes que por a andam. Aviso fala sobretudo de perigos e docaminho para salvar-se deles.

    As frases seguintes do texto mostramuma vez mais e de forma muito clara ocarcter simblico da viso: Deus per-manece o incomensurvel e a luz queest para alm de qualquer viso nossa.As pessoas humanas so vistas comoque num espelho. Devemos ter conti-nuamente presente esta limitao ine-rente viso, cujos confins esto aquivisivelmente indicados. O futuro vistoapenas como que num espelho, demaneira confusa (cf.1 Cor 13, 12).Consideremos agora as diversas ima-gens que se sucedem no texto dosegredo. O lugar da aco descrito

    com trs smbolos: uma montanhangreme, uma grande cidade meia emrunas e finalmente uma grande cruz detroncos toscos. A montanha e a cidadesimbolizam o lugar da histria humana:a histria como rdua subida para o alto,a histria como lugar da criatividade econvivncia humana e simultaneamentede destruies pelas quais o homemaniquila a obra do seu prprio trabalho.A cidade pode ser lugar de comunho eprogresso, mas tambm lugar do perigoe da ameaa mais extrema. No cimo damontanha, est a cruz: meta e ponto deorientao da histria. Na cruz, a des-truio transformada em salvao;ergue-se como sinal da misria da hist-ria e como promessa para a mesma.

    Aparecem l, depois, pessoas humanas:o Bispo vestido de branco (tivemos opressentimento que era o Santo Padre),outros bispos, sacerdotes, religiosos ereligiosas e, finalmente, homens emulheres de todas as classes e posiessociais. O Papa parece caminhar frentedos outros, tremendo e sofrendo portodos os horrores que o circundam. Eno so apenas as casas da cidade que jazem meio em runas; o seu caminho ladeado pelos cadveres dos mortos.Deste modo, o caminho da Igreja des-crito como umaVia Sacra , como um

    caminho num tempo de violncia, des-truies e perseguies. Nesta imagem,pode-se ver representada a histria dumsculo inteiro. Tal como os lugares daterra aparecem sinteticamente represen-tados nas duas imagens da montanha eda cidade e esto orientados para a cruz,assim tambm os tempos so apresenta-dos de forma contrada: na viso, pode-mos reconhecer o sculo vinte comosculo dos mrtires, como sculo dossofrimentos e perseguies Igreja,como o sculo das guerras mundiais ede muitas guerras locais que ocuparamtoda a segunda metade do mesmo, tendofeito experimentar novas formas decrueldade. No espelho desta viso,vemos passar as testemunhas da f dedecnios. A este respeito, oportunomencionar uma frase da carta que aIrm Lcia escreveu ao Santo Padre nodia 12 de Maio de 1982: A terceiraparte do segredo refere-se s palavrasde Nossa Senhora: Se no, [a Rssia]espalhar os seus erros pelo mundo,promovendo guerras e perseguies Igreja. Os bons sero martirizados, oSanto Padre ter muito que sofrer,vrias naes sero aniquiladas.

    Na Via Sacra deste sculo, tem umpapel especial a figura do Papa. Nardua subida da montanha, podemossem dvida ver figurados conjuntamentediversos Papas, comeando de Pio X atao Papa actual, que partilharam ossofrimentos deste sculo e se esforarampor avanar, no meio deles, pelo cami-nho que leva cruz. Na viso, tambm oPapa morto na estrada dos mrtires.No era razovel que o Santo Padre,quando, depois do atentado de 13 deMaio de 1981, mandou trazer o texto daterceira parte do segredo, tivesse lidentificado o seu prprio destino?Esteve muito perto da fronteira damorte, tendo ele mesmo explicado a suasalvao com as palavras seguintes:Foi uma mo materna que guiou a tra- jectria da bala e o Papa agonizantedeteve-se no limiar da morte (13 de

    Maio de 1994). O facto de ter havido luma mo materna que desviou a balamortfera demonstra uma vez mais queno existe um destino imutvel, que a fe a orao so foras que podem influirna histria e que, em ltima anlise, aorao mais forte que as balas, a fmais poderosa que os exrcitos.

    A concluso do segredo lembra ima-gens, que Lcia pode ter visto em livrosde piedade e cujo contedo deriva de

    antigas intuies de f. uma visoconsoladora, que quer tornar permevel fora sanificante de Deus uma histriade sangue e de lgrimas. Anjos reco-lhem, sob os braos da cruz, o sanguedos mrtires e com ele regam as almasque se aproximam de Deus. O sangue deCristo e o sangue dos mrtires so vistosaqui juntos: o sangue dos mrtiresescorre dos braos da cruz. O seu mart-rio realiza-se solidariamente com a pai-xo de Cristo, identificando-se com ela.Eles completam em favor do corpo deCristo o que ainda falta aos seus sofri-mentos (cf.Col 1, 24). A sua prpriavida tornou-se eucaristia, inserindo-seno mistrio do gro de trigo que morre ese torna fecundo. O sangue dos mrtires semente de cristos, disse Tertuliano.Tal como nasceu a Igreja da morte deCristo, do seu lado aberto, assim tam-bm a morte das testemunhas fecundapara a vida futura da Igreja. Destemodo, a viso da terceira parte dosegredo, to angustiante ao incio,termina numa imagem de esperana:nenhum sofrimento vo, e precisa-mente uma Igreja sofredora, uma Igrejados mrtires torna-se sinal indicadorpara o homem na sua busca de Deus.

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    No se trata apenas de ver os quesofrem acolhidos na mo amorosa deDeus como Lzaro, que encontrou agrande consolao e misteriosamenterepresenta Cristo, que por ns Se quisfazer o pobre Lzaro; mas h algo mais:do sofrimento das testemunhas derivauma fora de purificao e renova-mento, porque a actualizao do pr-prio sofrimento de Cristo e transmite aotempo presente a sua eficcia salvfica.

    Chegamos assim a uma ltima pergunta:O que que significa no seu conjunto(nas suas trs partes) o segredo deFtima? O que nos diz a ns? Em pri-meiro lugar, devemos supor, comoafirma o Cardeal Sodano, que osacontecimentos a que faz referncia aterceira parte do segredo de Ftimaparecem pertencer j ao passado. Osdiversos acontecimentos, na medida emque l so representados, pertencem jao passado. Quem estava espera deimpressionantes revelaes apocalpti-cas sobre o fim do mundo ou sobre ofuturo desenrolar da histria, deve ficardesiludido. Ftima no oferece taissatisfaes nossa curiosidade, como,alis, a f crist em geral que no pre-tende nem pode ser alimento para anossa curiosidade. O que permanece dissemo-lo logo ao incio das nossas

    reflexes sobre o texto do segredo a exortao orao como caminhopara a salvao das almas, e nomesmo sentido o apelo penitncia e converso.

    Queria, no fim, tomar uma vez maisoutra palavra-chave do segredo que justamente se tornou famosa: O meuImaculado Corao triunfar. Que sig-nifica isto? Significa que este Coraoaberto a Deus, purificado pela contem-plao de Deus, mais forte que as pis-tolas ou outras armas de qualquer esp-cie. O fiat de Maria, a palavra do seuCorao, mudou a histria do mundo,porque introduziu neste mundo o Salva-dor: graas quele Sim, Deus pdefazer-Se homem no nosso meio e talpermanece para sempre. Que o malignotem poder neste mundo, vemo-lo eexperimentamo-lo continuamente; tempoder, porque a nossa liberdade se deixacontinuamente desviar de Deus. Mas,desde que Deus passou a ter um coraohumano e deste modo orientou a liber-dade do homem para o bem, para Deus,a liberdade para o mal deixou de ter altima palavra. O que vale desde ento,est expresso nesta frase: No mundo

    tereis aflies, mas tende confiana! Euvenci o mundo ( Jo 16, 33). A mensa-gem de Ftima convida a confiar nestapromessa.

    Joseph Card. Ratzinger

    Prefeito da Congregao para a Dou-trina da F