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1 ONDE ESTÃO AS PRETAS? MOVIMENTANDO-SE PARA FORA. PATRÍCIA TEIXEIRA ALVES 1 RESUMO Durante todo século XIX, além das questões politicas, raciais e sexistas estavam as questões biológicas que após o fim da escravidão, regiam todas as outras. A necessidade de tornar a população negra em degenerada e humanamente inferior, produzindo verdades e conceitos racializadores estavam por toda parte, nesse bojo estava à mulher negra, que tinha sua identidade fixada pelo sexismo, pelo racismo logo, pelas teorias raciais. O artigo procura apresentar o deslocamento homogêneo da mulher negra para o plural das mulheres negras no decorrer do pós-abolição, apresentando suas desterritorializações que perpassaram do século XX para XXI, apontando a contribuição do feminismo negro e suas relações com os processos de subjetivação e como tiveram seus territórios repatriados. Palavras-chave: Feminismo Negro, subjetivação e desterritorialização. INTRODUÇÃO A população majoritariamente negra no Brasil possui locais de atuação distintos no que se referem a questões políticas e sociais. Essas demandas foram se tornando homogêneas com a finalidade de “reparar” as mazelas provocadas pelos séculos de escravidão e pelas teorias raciais que embalaram os séculos pós-escravidão, onde se encontra a mulher negra. A mulher tem em seu processo de constituição uma pluralidade de eu’s e pertencimentos, ao mesmo tempo em que apresentam polaridades construídas pelas relações sociais, raciais e sexistas. Essa polissemia de sujeitos gera códigos de condutas próprios a cada lugar de pertencimento que ordenam as relações sociais. No caso específico da mulher negra, esses códigos vão sendo reescritos nos territórios repatriados 2 ao longo dos anos, como 1 Mestranda em História Cultural, Pós-graduação IFCH, da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP. Bolsista pelo CAPES, orientanda de Professora Doutora Luana Saturnino Tvardovskas. 2 Espaços reconquistados e ressignificados, que antes eram territórios de apresamento havendo um limite de atuação dos sujeitos, proibindo autonomia, noutros momentos, foram espaços negados que não poderiam ser ocupados pelas mulheres negras. No entanto no processo de reconstrução de suas subjetividades, no fosso entre

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ONDE ESTÃO AS PRETAS? MOVIMENTANDO-SE PARA FORA.

PATRÍCIA TEIXEIRA ALVES1

RESUMO

Durante todo século XIX, além das questões politicas, raciais e sexistas estavam as questões

biológicas que após o fim da escravidão, regiam todas as outras. A necessidade de tornar a

população negra em degenerada e humanamente inferior, produzindo verdades e conceitos

racializadores estavam por toda parte, nesse bojo estava à mulher negra, que tinha sua

identidade fixada pelo sexismo, pelo racismo logo, pelas teorias raciais. O artigo procura

apresentar o deslocamento homogêneo da mulher negra para o plural das mulheres negras no

decorrer do pós-abolição, apresentando suas desterritorializações que perpassaram do século

XX para XXI, apontando a contribuição do feminismo negro e suas relações com os processos

de subjetivação e como tiveram seus territórios repatriados.

Palavras-chave: Feminismo Negro, subjetivação e desterritorialização.

INTRODUÇÃO

A população majoritariamente negra no Brasil possui locais de atuação distintos no

que se referem a questões políticas e sociais. Essas demandas foram se tornando homogêneas

com a finalidade de “reparar” as mazelas provocadas pelos séculos de escravidão e pelas

teorias raciais que embalaram os séculos pós-escravidão, onde se encontra a mulher negra.

A mulher tem em seu processo de constituição uma pluralidade de eu’s e

pertencimentos, ao mesmo tempo em que apresentam polaridades construídas pelas relações

sociais, raciais e sexistas. Essa polissemia de sujeitos gera códigos de condutas próprios a

cada lugar de pertencimento que ordenam as relações sociais. No caso específico da mulher

negra, esses códigos vão sendo reescritos nos territórios repatriados2 ao longo dos anos, como

1 Mestranda em História Cultural, Pós-graduação IFCH, da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP.

Bolsista pelo CAPES, orientanda de Professora Doutora Luana Saturnino Tvardovskas. 2 Espaços reconquistados e ressignificados, que antes eram territórios de apresamento havendo um limite de

atuação dos sujeitos, proibindo autonomia, noutros momentos, foram espaços negados que não poderiam ser

ocupados pelas mulheres negras. No entanto no processo de reconstrução de suas subjetividades, no fosso entre

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as relações entre mulheres brancas e mulheres negras, mulheres negras e homens brancos ou

negros, e consequentemente entre a mulher negra e as mulheres negras.

Nesse contexto, a homogeneização de sujeitos poliformes passa a ser questionada,

pois, começa a incomodar levando pessoas a se perguntarem, sobre o que há de fato para se

falar a respeito das mulheres negras. Durante muito tempo a resposta foi bem objetiva na

mesma medida, castradora, a indiferença da invisibilidade do ‘nada’ soava entre a vibração de

um silêncio censitário de uma naturalização da ausência como resposta, segundo Werneck,

“as mulheres negras não existiam” (2010: 151). Prática que pode ser constatada ao se observar

o levante dos Movimentos Sociais como Feminismo e Movimento Negro, o apagamento das

Mulheres Negras em ambos, no que tange às demandas politico-sociais ao protagonismo de

suas ações, era eficaz. Mas o que mudou nessas últimas décadas? Por onde as pretas andam?

As mulheres negras contemporâneas juntamente com o Feminismo Negro estão

criando novas epistemologias do ser, mulher negra, partindo da singularidade de seus locais

de atuação para a pluralidade das mulheres negras, rompendo com os estigmas do matriarcado

da miséria, do mito da supermulher, dos silenciamentos compulsórios e colocando no lugar,

novas escritas de si, produzidas de próprio punho sobre os territórios repatriados, por suas

ações de subjetivação e das desteritorializações, novas epistemologias.

MULHERES NEGRAS: RACISMO, SEXISMO E TEORIAS RACIAIS.

O processo de reação das mulheres negras foi gerado por acontecimentos em cadeia, a

luta pelos seus direitos deu-se concomitante as lutas contra as teias raciais, sexistas, a

retomada de reconhecimento de si enquanto sujeito, da apropriação de si para fora das normas

institucionalizadas que as lançavam à margem do sistema através da homogeneidade. A

regulamentação de seu status quo de capital servil e propriedade sexual do sistema patriarcal,

ser negra e mulher, fora refazendo outras formas de se tornarem mulheres negras, ampliando as ocupações dos

territórios de atuação reconfigurando-os, ao mesmo tempo em que ocupavam os novos, como um ser único

embora coletivo, construindo novas epistemologias do ser “mulher negra”.

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além do seu silenciamento frente a todos esses códigos que regiam suas práticas de conduta,

deram espaço as conquistas sociais e políticas, por suas ações, em territórios repatriados.

Nesse sentido, quando Foucault ao falar sobre a institucionalização da ordem do

discurso padrão, como verdadeiro que uniformiza o sujeito e suas ações, as mulheres negras

conhecem bem de perto a façanha segregadora dessa conduta. A luz de um consenso sexista e

racial reconhecido como verdadeiro a partir do sujeito uniformizado, caricaturado como

inferior se recodificou. Uma vez que, os processos históricos perpetrados pelas feministas nos

século XX no Brasil e a herança das feministas negras norte americanas abriram espaço para

releituras sobre a atuação desses sujeitos. Sobretudo, ao falar de racismo e misoginia, na

década de 1980, Bell Hooks é questionada: “O que há para se dizer sobre as mulheres

negras?” (HOOKS, 1990). Havia um misto de escárnio e desdém que não impunimente foram

construídos nessas relações entre as mulheres negras e o restante da sociedade. O que

possibilitou reflexões e respostas nas publicações que se seguiram, uma voz que não se ouvia,

passou a ecoar de maneira firme, irrevogável e polissêmica.

Baseando-se em parte nos trabalhos inovadores construídos por Toni Cade

Bambara, Ntozake Shange, Angela Davis, Toni Morrison, June Jordan, Alice

Walker, Audre Lorde e outras mulheres negras que “quebraram o silêncio”

na década de 1970, as mulheres afro-americanas nos anos de 1980 e 1990

desenvolveram uma “voz”, um ponto de vista autodefinido e coletivo sobre a

feminilidade negra (Collins, 1990). Além disso, as mulheres negras usaram

esse ponto de vista para responder à representação das mulheres negras nos

discursos dominantes (Hooks, 1989). Como resultado dessa luta, as ideias e

experiências das mulheres afro-americanas conseguiram uma visibilidade

impensável em comparação ao passado. (COLLINS,2017: .53)

Sendo assim, para se compreender a trajetória de visibilidade e dos territórios

repatriados pelas mulheres negras, assim como o feminismo negro conseguiu se firmar a

partir da década de 1980 no Brasil, há de ser recuar na história para o contexto das mulheres

negras norte-americanas que contribuíram significativamente como elo, teórico e inspiração

acadêmica para a formação dos feminismos negros brasileiros nas últimas décadas.

As mulheres negras norte-americanas acreditavam, ou ao menos boa parte delas cria,

que suas demandas estavam diretamente ligadas às demandas dos homens negros, as

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demandas do povo negro. Foram ensinadas a permanecer em silêncio com relação às questões

sexistas, essa reclamação, era vista como forma de atenuar ou mesmo abafar as lutas sobre a

raça. Portanto, em solidariedade aos homens negros, suas reivindicações com relação as

feminilidade foram silenciadas. “Nós éramos uma nova geração de mulheres negras que

tinha sido ensinada a submeter, a aceitar a inferioridade sexual e a ser silenciada” (HOOKS,

1990: 1). Havia uma pressão do movimento encabeçado pelos homens negros que pleiteava

direitos políticos como o voto, sendo assim, as mulheres negras deveriam aceitar seu caráter

de inferioridade sexual sem questionar, em apoio às demandas da população masculina.

As mulheres negras contemporâneas não podiam se juntar para lutar por seus

direitos, porque nós não víamos a feminilidade como o aspecto importante

de nossa identidade. A socialização do racismo e do sexismo tinha nos

condicionado a desvalorizar nossa feminilidade e considerar a raça o único

rótulo relevante de identificação. Em outras palavras, nos pediram para

negarmos uma parte de nós mesmos, e nós fizemos. [...] tínhamos medo de

reconhecer que o sexismo pudesse ser tão opressivo quanto o racismo.

(HOOKS, 1990: 1.)

Sendo assim, a condição das mulheres negras estava relegada a sujeição e ao

apagamento. Havia, portanto, uma luta racista e sexista, clara, mas era considerada

desnecessária às mulheres negras. A essas mulheres legaram o trabalho braçal, o cuidado

doméstico, a pouca escolaridade e a supressão de sua feminilidade, isto é, a mulher negra do

século XX, servia como mais uma peça para organizar a sociedade, porém sem voz, com

lugares bem definidos, dentro de um “sistema de obrigações” (FOUCAULT, 2016: 13), que

concebia suas verdades como “Myth of the Superwoman” (HOOKS, 1990:12), o mito da

supermulher que homogeneíza e delimita, para controlar, o modelo de apresamento racial do,

[...] movimento dos anos 60 em direção à libertação negra marcou a primeira

vez em que o povo negro se empenhou numa luta para resistir ao racismo

cujas fronteiras claramente estavam levantadas com separação de papéis

entre homens e mulheres. Os ativistas masculinos negros publicamente

reconheceram que esperavam que as mulheres negras envolvidas no

movimento se ajustassem a um papel de um modelo sexista. Eles exigiram

que as mulheres negras assumissem uma posição subserviente. Foi dito às

mulheres negras que deviam cuidar das necessidades da casa e criar os

guerreiros para a revolução. (HOOKS, 1990: 5)

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O mito da supermulher, cedido às mulheres negras estava embasado nessa

resiliência em se doar compulsoriamente, aceitando a luta contra o racismo e ignorando as

ações sexistas. As mulheres brancas e os homens negros reconheciam a luta realizada pelas

negras, no entanto, viam-na de forma abnegada, por sua incapacidade de se autogerir.

No entanto, muito havia de se falar sobre as mulheres negras, muito havia de se

desconstruir no decorrer das historias das mulheres negras, muito há para se desterritorializar.

Essa desterritorialização abre espaços para a compreensão do que é ser uma mulher negra,

partindo do particular para o coletivo de mulheres negras e suas demandas. Para tanto há de se

reconhecer os discursos construídos sobre as mulheres negras, as verdades sobre esses sujeitos

puderam ser reavaliadas porque não foram produzidas por elas, por suas experiências, mas

para elas, sob o olhar heteronormativo, com base em estereótipos sociais dentro de um

sistema de obrigações que não lhes permitia autonomia, mas era útil para controlá-las.

A partir dos movimentos emancipacionistas, sufragistas, de libertação das mulheres

brancas e dos homens negros nos EUA no início do século XX, nasce nesse entre-lugar, de ser

negra, mas não homem, de ser mulher, mas não branca, a mulher negra compreendendo-se

enquanto categoria, núcleo de atuação e espaços de pertencimentos, não como uma simbiose

desses dois polos, mas como sujeito comum a esses dois espaços, porém para fora desses

lugares, porque suas necessidades, embora fossem reais, eram ignoradas pela polaridade.

No entre-lugar da manutenção do racismo e do sexismo, as mulheres negras buscam

uma unidade ao mesmo tempo em que buscam a compreensão de si como sujeitos plurais e

singulares em seus processos de subjetivação, de como tornar-se negra, ou negras, pois, “em

nossa cultura, em nossa civilização, numa sociedade como a nossa, há certos discursos que,

institucionalmente ou por consenso, são reconhecidos como verdadeiros a partir do sujeito”

(FOUCAULT, 2016: 12). A subjetividade não pode ser direcionada sem a relação com a

verdade, pois o sujeito a transforma por suas experiências, por meio do conhecimento si

dentro de seu espaço de atuação. Sendo assim ao se reconhecerem nessa perspectiva

passional, o processo de subjetivação sai de si para convosco para o coletivo dessas mulheres.

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No que tange a ação das mulheres negras arte de viver traz aos processos de

subjetivação “um mudança no status ontológico do indivíduo e dar-lhe qualidade de

existência [...] Através de primeiramente uma relação com os outros; em segundo lugar,

determinada relação com a verdade; em terceiro lugar, determinada relação consigo

mesmo”(FOUCAULT, 2016: 31), dessas experiências de subserviência, são extraídas à

qualidade de tornar-se, que modificam e afetam as epistemologias de ser negra, produzindo

suas próprias verdades, repatriando sua autonomia, seu protagonismo no universo de

interdependência na relação com o outro, com a verdade e consigo mesmo, pois a arte de

viver é um ensinamento recíproco, sistemático e contínuo (FOUCAULT, 2016).

Essas continuidades são vistas nas relações de troca entre mulheres negras e seus

pares, seja por intersecções de gênero ou de raça, nessa interdependência na busca pela

qualidade de suas experiências e na formação ontológica desse outro ser imerso em si e na

coletividade. Construir representações sociais de mulheres negras com base apenas nas

hierarquias raciais, não cabe, pois, apesar, toda construção feita sobre as mulheres negras ter

bases raciais, há também as sexistas, e em nenhum desses casos são uniformes. Uma relação

unilateral não apresentar esse novo sujeito, dando origem a grandes conflitos teóricos e

embates no movimento feminista, mesmo na contramão da iminência do movimento feminista

negro. Antes, porém, a unidade desse movimento esbarrava na teoria do patriarcado branco de

superioridade racial e inferioridade racial negra, sobretudo, feminina.

Durante todo século XIX, além das questões politicas, raciais e sexistas estavam as

questões biológicas que após o fim da escravidão, regiam todas as outras. A necessidade de

tornar a população negra em degenerada e humanamente inferior, produzindo verdades e

conceitos racializadores elencava a mulher negra a base da polarização, a nascente do povo

negro.

As teorias raciais mais conhecidas são a craniometria e a poligenia. A craniometria, da

escola europeia de Paul Broca, exímio estatístico media a inteligência e superioridade das

pessoas através dos cérebros, tamanho e peso, “a craniomctria, no século XIX, foi a ciência

numérica em que se apoiou o determinismo biológico” (GOULD, 1991: 9). Em seus estudos,

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a superioridade incidia sobre o homem branco e europeu, com base em estudos quantitativos.

Cada grupo social ocupa o lugar que lhe é devido e está associado a sua capacidade intelectual

e evolutiva. Com relação às mulheres brancas, com base em seus estudos, alguns teólogos

chegavam a questionar se tinham alma (GOULD, 1991).

O degeneracionismo, oriundo da escola norte-americana, a poligenia foi outro

“argumento “duro” prescindiu da versão bíblica [...], e afirmou que as raças humanas eram

espécies biológicas separadas e descendiam de mais de um Adão. Como os negros

constituíam uma outra forma de vida, não participavam da ‘igualdade do homem’”

(GOULD, 1991: 26). Acreditavam que a raça humana era fruto de um processo degenerativo

do monogenismo, atingindo em maior número de degeneração a população negra, um dos

maiores influenciadores foi o clima que quanto mais alto, mais provocava uma distinção

racial. Alguns estudiosos da poligenia, “escola antropológica americana”, como Agassiz, o

teórico, e Morton, o analista de dados, acreditavam que os negros em contato com um clima

mais frio, pudessem se recuperar, outros viram como irreversível (GOULD, 1991). Havia

estudiosos ávidos, que defendiam a inferioridade racial como premissa incontestável,

David Hume não dedicou toda a sua vida ao pensamento puro. Ele

desempenhou várias funções políticas, entre as quais a de Administrador

do Ministério Colonial Inglês em 1766. Hume advogava tanto a criação em

separado quanto a inferioridade inata das raças não brancas: Inclino-me a

suspeitar que os negros, e em geral todas as outras espécies de homens

(pois existem quatro ou cinco delas), são naturalmente inferiores aos

brancos. Nunca houve uma nação civilizada cuja tez não fosse branca,

como tampouco houve qualquer indivíduo que se destacasse em ação ou

especulação. (GOULD, 1991: p.28)

Defendia categoricamente o negro e os não-brancos como espúrios, pessoas incapazes

de produzir algo de valor, qualquer “sintoma de gênio”, caso desempenhasse alguma função,

seria mera repetição ou algo sem importância. O seu desprezo pelos negros era indiscutível.

Os adeptos da poligenia criam que os negros não poderiam receber nenhum privilégio, ao

contrário deveriam ser controlados e sujeitos a limitações, pois não seria coerente conceder a

nenhum homem o que não fosse capaz de usar, sob pena de ter “[...] de lhes tirar

violentamente alguns dos privilégios que podem utilizar tanto em detrimento de nós quanto

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em prejuízo de si mesmos (10 de agosto de 1863)” (GOULD, 1991: 36). Os teóricos, por sua

vez eram contra a miscigenação, Agassiz, dizia ser um processo antinatural e repugnante.

Antes, porém, no século XVIII, Carlos Lineu um botânico sueco, resolve dividir as

raças humanas em quatro, o homem americano satisfeito com sua vida, irascível miscigenado,

governado por seus hábitos, o asiático, amarelo, avarento, governado por suas opiniões, o

africano preguiçoso, negligente, negro, governado por seus senhores, incapaz de tomar

decisões e o homem europeu, que encabeça a lista, esse homem é “Europeu: [...] engenhoso,

inventivo, governado pelas leis, usa roupas apertadas” (BORGES, 2002:45).

Agassiz endossava a ideia de que um país híbrido, como o Brasil, portanto,

degenerado pela mistura de “raças” não poderia se tornar uma nação. Nesse sentido a limpeza

racial associada ao desenvolvimento do racismo científico onde afirmava, que as raças eram

produto final de uma evolução, havendo raças perfeitas e as degeneradas, os caracteres

adquiridos não eram transmitidos, a miscigenação, portanto, deveria ser compreendida como

degeneração racial e social (SCHWARCZ, 1993). No Brasil a reconstrução da nação estava

diretamente ligada ao projeto do branqueamento da população. Acreditavam que em um

século seria possível ter como resultado uma população regenerada da negritude e branqueada

com base na trilogia, a eugenia, estabelecida pela miscigenação com a população branca e

pela higienização. O país era visto como um modelo de atraso por sua composição étnica e

racial (SCHWARCZ, 1993).

Em busca de uma unidade étnica estava a cargo de intelectuais como Oliveira Viana3,

Silvio Romero4, Niana Rodrigues5 e mesmo Euclides da Cunha6. Também influenciados pelo

3 (1883-1951) Teoria do patriarcado e da formação hibrida racial. Membro da academia brasileira de letras,

historiador, sociólogo, professor e jurista. Segundo o intelectual, os povos de origem colonial possuem “duas

constituições políticas: uma escrita que não se pratica[...];outra não escrita porém viva que é a que o povo

pratica, adaptada a seu espírito, à sua mentalidade e estrutura” (SCHWARCZ 1993, p. 246) 4 (1852- 1914). Intelectual, grande agitador, de ideias confusas dizia coisas como o Brasil será no futuro um

“verdadeiro país de mulato” (ROMERO, apud SCHWARCZ, 1993: 154.) porém suas ideias eram poligenistas,

havia superioridade racial em seu discurso, a população negra era considerada motivo da degeneração do povo

brasileiro. 5 (1862-1906). O professor, médico legista e antropólogo monogenista, considerava a mistura de raças

inaceitável. Acreditava na degenerescência de negros e mestiços, autor do livro: “O problema do negro no

Brasil” 1933, com base na medicina legal, alicerçava o negro como uma mazela social, segundo Silvio Romero

esse livro seria um inventário sobre a população negra residentes no Brasil, podendo destacar as sequencias

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médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909)7. De acordo com as teorias de Lombroso,

havia características físicas e hereditárias que originavam criminosos natos, independente da

vontade individual. Além disso, suas pesquisas tinham base na caracterologia, onde analisava

as características físicas e mentais, tamanho do crânio, cor da pele, abrindo caminho para a

frenologia que estabelecia ligação entre a loucura e a degeneração racial. A miscigenação

deviria ser combatida para a regeneração das civilizações, com base no predomínio da “raça”

branca. (SCHWARCZ, 1993). Apenas como lembrete, as mulheres negras são o berço da

civilização miscigenada, na maioria dos casos.

No entanto, apesar dessas construções étnicas, frutos dessas Teorias Raciais do

determinismo biológico que visavam criminalizar os homens negros. Houve projetos e

cientistas como Walt Whitman, Stepen Jay Gould que as combateram com base em novas

pesquisas científicas e utilizando-se ainda das realizadas pelos próprios teóricos eugenistas. A

Desmitificação da ciência positivista e do Determinismo biológico, pois “os biólogos

afirmaram recentemente, se bem que o suspeitassem havia muito tempo, que as diferenças

genética globais entre as raças humanas são assombrosamente pequenas” (GOULD, 1991:

345). Pesquisa realizada em 1972 comprovava essa teoria, que não há raças, mas, a Raça

Humana, uma espécie única com características próprias. Consequentemente, com base no

Projeto Genoma (2003) os humanos possuem uma base idêntica de genes de 99,9%, ou seja,

apenas 0,01% os diferenciam.

Ainda há um terceiro elemento, a importância da “base biológica do caráter único do

homem leva-nos a rechaçar o determinismo biológico” (GOULD, 1991:347) O cérebro é a

base para o desenvolvimento da capacidade intelectual, que por sua vez alimenta os processos

culturais produzidos pelo homem, assim como as heranças modificam o comportamento

biológicas e morais da degenerescência de negros e mestiços Influenciado pelo italiano Lombroso.

(SCHWARCZ, 1993) 6 (1866-1909) engenheiro, positivista, anti-monarquista e abolicionista, trabalhou como repórter de O Estado de

São Paulo, acompanhando a revolta de Canudos, em 1897. Que deu origem ao livro: Os Sertões (1902).

Identificava o sertanejo como sub-raça, subcategoria étnica, portanto o homem deve progredir biológica e

socialmente. (CUNHA,1985) 7 SCHWARCZ, 1993.

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humano (GOULD, 1991). Sendo assim, a padronização social heteronormativa traz o peso do

sexismo, do racismo e das teorias eugenistas para o campo de ação das mulheres negras.

ONDE ESTÃO AS PRETAS?

Apesar das manifestações feministas na Europa e nos Estados Unidos na década de

1970 terem avançado significativamente, no Brasil os movimentos feministas tomaram maior

projeção a partir de 1975, tendo como finalidade o estudo da mulher brasileira sem conotação

feminista. O feminismo foi muito estigmatizado, algumas mudavam a semântica para atenuar

as reações. Havia produções literárias e acadêmicas que visavam estudar o comportamento e

as necessidades das mulheres. As publicações eram feitas pelo Caderno de Pesquisa, apoiado

em 1974, pela Fundação Carlos Chagas investidora assídua em produções femininas por todo

país, aliada a SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, somando força

política às mulheres exiladas, por causa da Ditadura Militar, principalmente na Europa. Ao

retornarem ao país, deram contribuições significativas junto à comunidade acadêmica,

exerceram poder e ideais teóricos de militância política sobre autonomia da utilização de sua

vida, sobre sua sexualidade e seu corpo (MOREIRA, 2011).

Foram criadas inúmeras associações feministas, jornais como: Brasil Mulher (1975-

1980), fundado por Joana Lopes assessorada por Amelinha; o Nós Mulheres (1976-1978)

fundado por Maria Lygia Quartim de Moraes, Rachel Moreno, Mariza Corrêa e Renata Villas

Boas e o Mulherio (1981-1987) lançado pela jornalista Adélia Borges. Associando então a

luta das mulheres e a luta feminista, o primeiro momento da História do feminismo no Brasil

foi bem acalorado. (RAGO, 2013)

No entanto, Entende-se, que havia alguns grupos de mulheres que não foram

contemplados, as mulheres não brancas, por conseguinte as mulheres negras não faziam parte

dessa rota de coalizão, mas elas estavam lá. À proporção que o movimento crescia

começaram a emergir temas que foram ignorados por não fazer parte da pauta do feminismo

“[...] algumas das ativistas trouxeram novos dilemas aos movimentos feministas ao se

queixarem do foco numa percepção de gênero que não contempla outros fatores essenciais

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como a raça, sexualidade e classe social” (BEZERRA, 2007: 29). O racismo e o sexismo,

muito polemicos nos EUA, nas décadas de 1960, tomam forma também no Brasil. Além da

falta de alteridade, a cegueira dos movimentos feministas no que tange as questões raciais e a

hierarquia que assolava as relações entre as mulheres negras e brancas, o movemento nascente

emitia a tensa relação de poder com base na racialização.

Essa tensão racial no movimento feminista brasileiro estava associada de forma

diferente, porém, solidária ao movimento feminista nos EUA. Lá, o movimento feminista foi

levado a crer que as questões sobre o sexismo e racismo, no que se referiam às mulheres

negras era irrelevante, as militantes poderiam lutar junto ao Movimento Negro, e ambos criam

no mito da Supermulher, a mulher negra abnegada. Já no Brasil, houve um apagamento das

mulheres negras, o Movimento Feminista, não via as questões raciais, nem sexistas com base

no mito da democracia racial, consequentemente anularam as questões pertinentes às

mulheres negras, endossando o matriarcado da miséria8, uma vida à margem social, relegada

ao assujeitamento dos corpos das mulheres negras.

As feministas negras sofreram retaliações tanto do movimento Feminista,

predominantemente branco, que ignorava o racismo, e do Movimento Negro, que ignorava as

questões sexistas. “Ao contrário dos estudos feministas nos Estados Unidos, na Inglaterra e

no Canadá, a maioria dos estudos feministas brasileiros não reconheceu a importância da

raça e das diferenças raciais na constituição do gênero e das identidades das mulheres”

(CALDWELL, 2000: 1). Na contra mão do Movimento Feminista estava o Movimento

Negro, embora, negros e negras pertençam, em sua maioria, aos mesmos grupos étnicos,

percebem-se as diferenças sexistas. O sexo estabelece outra forma hierárquica.

Parece-me que a única alternativa é rejeitar a oposição igualdade/diferença e

insistir continuamente nas diferenças: a diferença como a condição das

identidades individuais e coletivas, as diferenças como o desafio constante a

ajustar nessas identidades, a história como a ilustração repetida do jogo das

8 A expressão “matriarcado da miséria” foi cunhada pelo poeta negro nordestino Arnaldo Xavier para mostrar

como as mulheres negras brasileiras tiveram sua experiência histórica marcada pela exclusão, pela discriminação

e pela rejeição social, e revelar, a despeito dessas condições, o seu papel de resistência e liderança em suas

comunidades miseráveis em todo país. (CARNEIRO, 2011: 130).

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diferenças, as diferenças como o verdadeiro significado da própria

igualdade. ( SCOTT, 1999: 220)

Dentro desse quadro de demandas negras femininas suprimidas, nasce do Movimento

Feminista Negro, não como síntese, mas como processos de subjetivação das mulheres na

construção do tornar-se negra, não com base no binômio, mas com base na manutenção das

diferenças para garantir a equidade. O Movimento Feminista Negro no Brasil passou por

reformulações, desde sua fundação até a organização do Movimento das Mulheres Negras

entre 1985-1995 tendo como marco o grupo de mulheres Nizinga no Rio de Janeiro. A mulher

negra vitimada pelo matriarcado da miséria começa sua atuação pela sua desconstrução, a

partir dos territórios repatriados. Ao repatriar territórios por elas conhecidos sob o olhar da

subserviência, passam ao processo de desterritorialização, expurgam o que foi construído

sobre o coletivo, sobre si e se refaz, confessam suas subjetividades reiteram suas verdades e

são protagonistas dentro do seu campo de atuação, por elas determinado.

Um aspecto emblemático para compreender algumas nuances do apagamento da

memória da comunidade negra no Brasil, pode ser observado pelo seguinte dado, desde o pós-

abolição a ausência do quesito cor nos sensos de 1910 a 1930, e sua introdução de análise

“dos Censos de 1940 e 1950, que incluíram o quesito cor da pele mostra que a exclusão do

sistema educacional recaía mais fortemente sobre as mulheres negras com um índice de

alfabetização 15,29% menor dentre a população daquele período”(NEPOMUCENO, 2012:

392), não foram questionados. Esses dados são da primeira metade do século XX, incluíram a

cor algumas décadas mais tarde e comprovaram que as mulheres negras estavam na última

escala da pirâmide no quesito educação.

Mesmo num quadro de reestruturação das demandas e lutas dessas mulheres por seus

espaços de atuação, embora inexpressivas, a situação social não sofre muitas alterações, o que

já pode ser considerado como um território repatriado décadas mais tarde, “no final dos anos

1980, num universo de quatro milhões de mulheres negras economicamente ativas, somente

cerca de 1700 ganhavam mais de 20 salários mínimos” (NEPOMUCENO, 2012: 395). O

nível de escolaridade alcançado que “nos primeiros anos deste século (XXI), o número de

estudantes negros e negras em cursos superiores dobrou em relação aos números registrados

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nas três últimas décadas do século XX” (NEPOMUCENO, 2012: 394), isto é, chegaram a

esse nível de status econômico por causa da escolaridade, atingindo nos anos subsequentes

índices ainda maiores. Embora a demanda seja muito maior.

Segundo Nepomuceno, mesmo com nível de escolarização avançado, esse fator ainda

não garante acesso automático a postos de trabalhos que tenha melhores salários e que sejam

valorizadas como mão de obra qualificada. Apesar das mudanças entre os séculos terem sido

significativas na situação profissional e educacional das mulheres negras no Brasil

(PNAD/IBGE 2008) é uma realidade ainda assimétrica marcada pela questão da cor, como

revela os dados do IPEA: “Em 2009,[...]. taxa de escolarização de mulheres brancas no

ensino superior é de 23,8%, enquanto, entre as mulheres negras, esta taxa é de apenas

9,9%”(NEPOMUCENO, 2012: 394). Em 2015, no estudo sobre o Retrato da Desigualdade de

gênero e raça de 1995-2015 (IPEA, 2017), “a renda média das mulheres, especialmente a das

mulheres negras, continua bastante inferior não só à dos homens, como à das mulheres

brancas”9

Embora a realidade socioeconômica das mulheres negras tenham alcançado níveis de

qualidade significativos, sua condição intelectual tenha crescido e tenham conquistados

espaços inimagináveis há décadas, a realidade da maioria das mulheres negras, está distante

da ideal. “A maior parte dos indicadores mostra uma hierarquia estanque, na qual o topo é

ocupado pelos homens brancos e a base pelas mulheres negras” (IPEA, 2017: 2). Segundo o

estudo, o emprego doméstico ainda é um universo de grande ocupação feminina negra.

Desse modo, se observa que apesar de um hiato entre o ideal e o real, silêncios foram

rompidos e na interpretação de Albuquerque Jr, sobre essa experiência de rompimento em

Foucault, diz, “o que se deve perguntar, pois, não é, apenas, o que diz esta voz que rompeu o

silêncio do passado, mas se perguntar por que ela pôde romper este silêncio, que condições

históricas permitiram que esta experiência não permanecesse sepultada no passado”

(FOUCAULT APUD ALBUQUERQUE Jr. 2002: 68). Como essas mulheres conseguiram

romper os silenciamentos, os estigmas que as aprisionavam em esferas sociais de

9http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/170306_retrato_das_desigualdades_de_genero_raca.pdf p.1

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subalternidades normatizando essas práticas excludentes impedindo suas mobilidades? Como

ressignificaram as representações de enquadramentos a estereótipos de assujeitamentos? Esses

deslocamentos passam por processos de subjetivação, por construções de novas escritas de si,

os territórios repatriados a cada deslocamento, por onde as pretas andam.

Os processos de subjetivação das mulheres negras passam por “um sistema de

obrigações”(FOUCAULT, 2016: 13), aliados à “violência simbólica” (BOURDIEU, 2017:

65), esta é uma forma de poder exercido de forma consciente e inconsciente pelas relações de

dominação naturalizadas sobre como os indivíduos constituíram suas verdades em torno de

práticas e ideais de assujeitamentos por ele absorvidos. As verdades desses discursos não são

frutos de uma experiência cognoscente e particular do indivíduo sobre si e sobre sua

realidade, mas uma verdade produtora fruto da sociedade ideal que se utiliza de estereótipos

para difundir modelos e condutas tolhendo a autonomia dos sujeitos.

Esses ditames sociais perscrutam a forma como as mulheres negras devem se

comportar, criando representações sociais que vem sendo paulatinamente desconstruídas, tais

como o Mito da Supermulher, abnegada, sua agressividade e força que abre mão de uma vida

que nunca teve em função de algo maior, que não possui feminilidade, ambas, estão a serviço

das rédeas do patriarcado e não necessariamente branco (HOOKS, 1990).

Bell Hooks aborda ainda a representação da mulher durante a escravidão como

símbolo sexual; como incubadoras para gerar outros escravos; observada como a mulher que

precisava ser controlada por sua compulsão e agressão sexual, justificando assim, pelos

homens, os estupros aos quais eram submetidas, principalmente pelos homens brancos

(HOOKS, 1995). Para Correa, a “[...] figura da mulher negra como a mulata sensual, capaz

de trazer sonhos e prazeres aos homens brasileiros, brancos em especial” (1996: 40), logo, a

situação da mulher negra brasileira não é muito diferente, o controle do corpo construiu a

mulata desejável e a indesejável, esta última se reportaria aos afazeres domésticos.

Ainda sob esses parâmetros de representações sociais e controle do corpo feminino

negro, está o racismo que é elástico, “na medida em que são conseguidas conquistas de um

lado, ele se modifica e apresenta novas formas de se manifestar. [...] há formas sofisticadas

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para impedir os negros a chegarem a posições de prestígio, como cargos políticos e

econômicos”10, suas estruturas se adequam as novas formas de atuação dos negros, no que

tange as mulheres negras, esse comportamento é retumbante.

Sendo assim, as mulheres negras se reafirmam passo a passo dentro do processo de

subjetivação, recuam para seu passado, para suas memórias, reconhecem seus deslocamentos,

estão a se refazer, alojando-se intermitentemente nos territórios repatriados nessa constituição

de si, do tornar-se negra, começando por suas novas epistemologias, por novos lugares de

atuação, pois, “Falar sobre uma realidade como fixa já não cabe mais ao discurso relativo às

instituições, pois o particular tem demandas e determinações próprias, a partir do seu lugar

de fala, do seu lugar de ação”. (CERTEAU, 1995: 224). Há um deslocamento para fora,

enquanto coletividade e enquanto ser particular dentro do seu lugar de ação.

Nesse passo, urge um processo confessional, uma escrita de si que perpassa a

construção do pensamento e sua autorreflexão. Por isso o ato de escrever de falar sobre si e as

experiências dessa formação de novos eu’s, num constante processo de desnudamento do ser

faz parte do caminho para a subjetivação desses sujeitos. A materialização do pensamento

leva essas mulheres a se repatriar sistematicamente, pois a cada retomada dessa escrita as

reflexões e o seu lugar de fala não são os mesmos, levam as mulheres negras a se

movimentarem para fora dos espaços estigmatizados.

CONCLUSÃO

A partir da tomada de consciência, do processo de subjetivação, as mulheres negras

intelectuais, vão para fora, de seus núcleos. Esses processos de constituição de um ser

autônomo faz parte da apropriação de novos espaços, novas formas de ser mulher negra

10BAIRROS 2009. FONTE: http://claudia.abril.com.br/materia/claudia-entrevista-luiza-

bairros3855/?p=/comportamento/atualidades

Entrevista à revista CLAUDIA: Luiza Helena Bairros, Filha de militar, Luiza nasceu em 1953, em Porto

Alegre, no Rio Grande do Sul. Socióloga assumiu, em agosto de 2008, a Secretaria de Promoção da Igualdade

(Sepromi), da Bahia, a primeira a trabalhar especificamente políticas públicas para negros. Patrícia Negrão / Foto

divulgação em 31.08.2009

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habitando em espaços outrora tolhidos. A construção de suas verdades, de outras

epistemologias que traduzem essas conquistas forma um sujeito que produz uma relação

íntima com sua verdade ontológica, que se movimenta para fora da violência simbólica, ou de

um sistema de obrigações que enquadra pra dominar consciente e inconscientemente.

Assim sendo, o movimento feminista negro o Brasil do século XXI conta com ativistas

negras que apresentam um leque de feminismos negros e territórios repatriados ao longo

dessas últimas décadas, sob uma constituição autóctone do ser negra por onde as pretas

deslocam-se. As mulheres negras vêm rompendo as barreiras da segregação racial e social por

meio de suas reconstituições de subjetivação onde havia a caricatura de uma objetificação de

seus corpos que impediam suas expansões enquanto sujeitos de diretos. As pretas estão se

movimentando para fora dos laços que as fixavam na invisibilidade, para ser o que ela quiser.

Cem anos após a higienização as pretas ainda existem, por isso, há pretas

alfabetizadas, intelectuais, doutoras, donas de casa, empregadas domésticas, por todos os

espaços, em movimento constantes, autônomas e com suas vozes bem expressivas.

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