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50 23 NOVEMBRO 2010 51 SÁBADO D e um dia para o outro, Antonio Barroso deixou de saber como se chama, de onde é e a quem per- tence. Descobriu, através de um amigo, que foi sequestrado em bebé e adop- tado pela família que julgava ser sua. Re- solveu procurar os pais biológicos. Foi ao hospital onde terá nascido e denunciou o caso à polícia. Como a Justiça espanhola ar- quivou o caso, fundou, este ano, em Barce- lona, uma associação para defender os di- reitos das crianças adoptadas ilegalmente em Espanha – a maioria durante a ditadu- ra de Franco. António Barroso, que deixou o seu emprego como agente imobiliário para se dedicar totalmente à Anadir (Asso- ciação Nacional de Afectados por Adopções Ilegais), contou à SÁBADO, pelo telefone, a sua luta e a dos 96 sócios com casos seme- lhantes ao seu. Como é que desconfiou de que podia não ser filho biológico dos pais que tinha? Lembro-me de ter 5 ou 6 anos e de os miú- dos na escola me dizerem que eu não era fi- lho da minha mãe. Vivia em Villanueva, uma aldeia pequena, a cerca de 45 km de Barcelona, e entre os adultos corria o boa- to de que eu era adoptado. Os miúdos ou- viam os pais dizer aquilo e metiam-se co- migo por causa disso. Sentia-me muito mal, mas não perguntava nada aos meus pais. Todas as noites adormecia a chorar com a mesma pergunta na cabeça: “Porquê eu?” Aos 14 anos ganhei coragem e perguntei à minha mãe, mas ela negou. Só soube a ver- dade há três anos. Quem lhe contou? O pai de um amigo meu, que conhecia os meus pais há muito tempo. Quando ele es- tava a morrer no hospital, chamou-nos e confessou-nos que nos tinha comprado ain- da bebés a um padre e a uma freira de Sa- ragoça.Nós vivíamos em VillaNueva, na Ca- talunha. Fizemos uma prova de ADN e real- mente nenhum dos dois era filho dos que se diziam ser nossos pais. É horrível esta sensação de saber que a nossa vida não pas- sou de uma mentira. A relação com os seus pais mudou ? Não. O meu pai já tinha morrido e a minha mãe estava com 80 anos. Só falámos direc- tamente sobre a minha adopção uma vez e a minha mãe disse-me que não sabe nada sobre os meus pais biológicos. Continuou a investigar o seu caso? Sim. Fui ao hospital onde dizem que nas- ci. Aí disseram-me que não há qualquer re- gisto do meu nascimento e que a minha mãe adoptiva nunca esteve lá internada. Não encontrei registo do meu nascimento em lado nenhum. O pior deste caso é que a Justiça espanhola não me ligou nenhuma. O que lhe disseram? Que o caso tinha prescrito. Mas encontrei uma sentença do Supremo Tribunal de Ma- drid de 2007 que condena uma senhora por rapto de um menor e encenação de parto há muitos anos atrás. O Estado tem de abrir uma investigação. Há mais gente com his- tórias semelhantes. Nos últimos 15 anos, o advogado Enrique Vila trabalhou nesta área e 15% dos seus clientes tinham sido adop- tados de forma ilegal. Se em Espanha há dois milhões de adoptados, isso significa que poderá haver no país 300 mil ilegais. Al- guns nem sequer saberão a verdade. Va- mos instar em Janeiro a Fiscalía General del Estado a investigar os casos de adopções ilegais em Espanha. O último de que tenho conhecimento é de 1990. Há muita gente importante da sociedade espanhola envol- vida nesta história. Como assim? Sabemos que havia um comprador em Fui raptado e vendido por uma freira Entrevista Antonio Barroso Com 41 anos, o ex-agente imobiliário criou a primeira associação espanhola de adoptados ilegalmente. Já tem 96 casos . Texto: Ana Catarina André Fotos: Manu Fernandez/Getty Aos 38 anos soube que tinha sido comprado à nascença. Descobriu a mulher que fez o negócio, só que ela morrera um mês antes t

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50 23 NOVEMBRO 2010 51SÁBADO

De um dia para o outro, AntonioBarroso deixou de saber como sechama, de onde é e a quem per-tence. Descobriu, através de um

amigo, que foi sequestrado em bebé e adop-tado pela família que julgava ser sua. Re-solveu procurar os pais biológicos. Foi aohospital onde terá nascido e denunciou ocaso à polícia. Como a Justiça espanhola ar-quivou o caso, fundou, este ano, em Barce-lona, uma associação para defender os di-reitos das crianças adoptadas ilegalmenteem Espanha – a maioria durante a ditadu-ra de Franco. António Barroso, que deixouo seu emprego como agente imobiliário

para se dedicar totalmente à Anadir (Asso-ciação Nacional de Afectados por AdopçõesIlegais), contou à SÁBADO, pelo telefone, asua luta e a dos 96 sócios com casos seme-lhantes ao seu.

Como é que desconfiou de que podia não serfilho biológico dos pais que tinha?Lembro-me de ter 5 ou 6 anos e de os miú-dos na escola me dizerem que eu não era fi-lho da minha mãe. Vivia em Villanueva,uma aldeia pequena, a cerca de 45 km deBarcelona, e entre os adultos corria o boa-to de que eu era adoptado. Os miúdos ou-viam os pais dizer aquilo e metiam-se co-

migo por causa disso. Sentia-me muito mal,mas não perguntava nada aos meus pais.Todas as noites adormecia a chorar com amesma pergunta na cabeça: “Porquê eu?”Aos 14 anos ganhei coragem e perguntei àminha mãe, mas ela negou. Só soube a ver-dade há três anos.

Quem lhe contou?O pai de um amigo meu, que conhecia osmeus pais há muito tempo. Quando ele es-tava a morrer no hospital, chamou-nos econfessou-nos que nos tinha comprado ain-da bebés a um padre e a uma freira de Sa-ragoça.Nós vivíamos em VillaNueva, na Ca-

talunha. Fizemos uma prova de ADN e real-mente nenhum dos dois era filho dos quese diziam ser nossos pais. É horrível estasensação de saber que a nossa vida não pas-sou de uma mentira.

A relação com os seus pais mudou ?Não. O meu pai já tinha morrido e a minhamãe estava com 80 anos. Só falámos direc-tamente sobre a minha adopção uma vez ea minha mãe disse-me que não sabe nadasobre os meus pais biológicos.

Continuou a investigar o seu caso?Sim. Fui ao hospital onde dizem que nas-

ci. Aí disseram-me que não há qualquer re-gisto do meu nascimento e que a minhamãe adoptiva nunca esteve lá internada.Não encontrei registo do meu nascimentoem lado nenhum. O pior deste caso é que aJustiça espanhola não me ligou nenhuma.

O que lhe disseram?Que o caso tinha prescrito. Mas encontreiuma sentença do Supremo Tribunal de Ma-drid de 2007 que condena uma senhora porrapto de um menor e encenação de parto hámuitos anos atrás. O Estado tem de abriruma investigação. Há mais gente com his-tórias semelhantes. Nos últimos 15 anos, o

advogado Enrique Vila trabalhou nesta áreae 15% dos seus clientes tinham sido adop-tados de forma ilegal. Se em Espanha hádois milhões de adoptados, isso significaque poderá haver no país 300 mil ilegais. Al-guns nem sequer saberão a verdade. Va-mos instar em Janeiro a Fiscalía General delEstado a investigar os casos de adopçõesilegais em Espanha. O último de que tenhoconhecimento é de 1990. Há muita genteimportante da sociedade espanhola envol-vida nesta história.

Como assim?Sabemos que havia um comprador em

Fui raptadoe vendidopor umafreira

Entrevista

Antonio BarrosoCom 41 anos, o ex-agente imobiliário criou a primeiraassociação espanhola de adoptados ilegalmente. Já tem 96 casos . Texto: Ana Catarina André Fotos: Manu Fernandez/Getty

Aos 38 anos soube que tinha sido comprado à nascença. Descobriu a mulher que fez onegócio, só que ela morrera um mês antes

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Alicante e que, quando nascia um bebéem Madrid, era levado para lá. Diziam àmãe que a criança tinha morrido e ven-diam-na a outra mulher, que o registavacomo seu filho biológico. Os papéis eramdestruídos e não havia provas. Era um es-quema que envolvia médicos, enfermei-ros, parteiras, padres, freiras e funcioná-rios do Estado. Também suspeitamos deum juiz e de um professor catedrático.

Como é que consegue provar isso?Há muitas crianças com certificados denascimento falsos e um grande númerode mães que dizem que lhes roubaramos filhos. Não há coincidências entre es-tas mães e filhos, o que nos leva a crerque há muitas mais mães e filhos. É umcaso grave, que está a ser tapado. Quan-do isto rebentar, vai haver um escânda-lo em Espanha.

Refere que no hospital diziam às mães que osbebés tinham morrido. As famílias não reclama-vam os corpos? Médicos e enfermeiros diziam que os be-bés tinham nascido com malformações eofereciam-se para tratar dos corpos. Às ve-zes, inventavam outras causas de morte.Na década de 60, morreram muitas crian-ças na clínica O’Donnell, em Madrid, ale-gadamente com otites, mas na época nin-guém questionou os médicos. Quando asfamílias insistiam muito em recuperar oscorpos, entregavam-lhes bonecos tapadosou simples caixas vazias e diziam-lhes queeram os bebés, frisando que tinham nasci-do com problemas tão graves que não eraaconselhável ver os corpos. Anos depois, al-guns desses supostos corpos foram desen-terrados e a farsa foi descoberta.

Tentou entrar em contacto com o suposto padree a freira que o venderam?Sim. Consegui descobrir a freira e quandocheguei a Saragoça, onde vivia, disseram-me que tinha morrido havia um mês. Esti-ve lá em Outubro do ano passado e ela mor-reu em Setembro. Por um mês, não faleicom ela. Na altura do meu suposto rapto evenda, esta freira trabalhava no hospitalonde nasci e era familiar de uns amigos dosmeus pais adoptivos.

Ainda lhe é difícil falar sobre a sua adopção? A questão é que não fui adoptado. Fui rou-bado e vendido. A minha mãe pode andarneste momento à minha procura.

Foi a sua história que o levou a criar a Anadir?Sim. Como as instâncias superiores nãome ligavam nenhuma, mesmo tendoprovas de ADN que deixavam antevermuitas pontas soltas, em Abril decidicriar a associação com mais três pessoascom casos semelhantes ao meu. Quere-mos resolver todo este problema e aju-dar todas as vítimas: as crianças e os paisbiológicos. Neste momento, a Anadirtem 96 associados.

A associação junta pessoas que foram adopta-das de forma ilegal. Que ilegalidades são essas? Raptos, certidões falsificadas, certidões emque faltam dados sobre as adopções. Há ocaso de uma mulher que teve uma bebéque nasceu bem e, horas depois, disseram-lhe que tinha morrido. A mulher insistiupara ver a criança e os médicos sedaram-na durante vários dias. Quando acordou,o corpo da criança tinha desaparecido. Dis-seram-lhe que tinham tratado do enterro

e uma freira deu-lhe um terço para que re-zasse. Nunca mais soube o que aconteceu.Mais tarde, quando tentou saber mais so-bre o assunto, disseram-lhe que não tinhaacontecido nada, que não tinha existidocriança nenhuma.

Por quanto é que as crianças eram vendidas àfamília adoptiva?Por cerca de 1.200 euros, nos anos 60, até30 mil euros na década de 80.

Como é que a maioria das pessoas lida com ofacto de ter sido comprada e adoptada de for-ma ilegal?No princípio, com muita dor, angústia erevolta, mas depois com coragem para es-clarecer a verdade e descobrir mais sobreas suas origens. É um assunto que afectapsicologicamente as pessoas.

Saber que se foi adoptado afecta apenas anoção de identidade ou tem implicações nou-tros aspectos? Tem outras implicações. Em caso de doen-ça, por exemplo, é importante saber o his-torial genético.

Há membros da associação que já consegui-ram reconstruir a sua história? Não. Ninguém sabe nada ainda sobre a suaorigem.

Como é que os associados da Anadir descobri-ram que tinham sido adoptados ilegalmente?Grande parte através de familiares e pes-soas próximas. Há outro caso de umapessoa que descobriu que era adoptadaporque o pai lhe contou quando estava amorrer. Há outro caso de uma mulher deBurgos que soube por uma tia que osseus documentos eram falsos e que nãoera filha biológica. E o de uma raparigacujo pai adoptivo tem mais 60 anos doque ela. Em Espanha, é proibido adoptarcom mais de 40 anos, o que significa queaquela adopção não foi legal. Estamos afalar de roubos e vendas de crianças queforam registadas como filhas biológicasdas pessoas que as compraram.

Quando é que acha que os pais devem contaraos filhos que são adoptados? Logo em pequenos. Se lhes explicaremdesde muito cedo, e com naturalidade,não há problema. Podem até ajudá-los aconhecerem as suas origens mais tarde, sequiserem. Sem tabus. l

Quando afamília insistiaem recuperar

os corpos entregavam--lhe bonecos tapadosque diziam ser os bebés

ENTREVISTAt

52 23 NOVEMBRO 2010 SÁBADO