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Colóquio Por prisão o infinito: censuras e liberdade na literatura, I Encontro do Grupo de Estudos Lusófonos (GEL), FLUP, 26 e 27 de Setembro de 2011 ENTRE O NAUFRÁGIO E A ETERNIDADE. Reflexões em torno da interpretação, da leitura, da morte e outras ficções. 1 Pedro Lopes Almeida CITCEM, Faculdade de Letras da Universidade do Porto um pássaro pergunta-me se existe o céu, para saber se lhe responderei ou se deve cair valter hugo mãe 0. Ao espectador da Aula de Anatomia do Doutor Nicolaes Tulp (1632) não passarão despercebidas as extravagantes trajectórias que descrevem os olhares das personagens retratadas por Rembrandt. Tulp, sentado, magistral, segura na ponta de uma pinça os músculos e tendões do cadáver em dissecação, enquanto gesticula vagamente, os lábios entreabertos sustendo um discurso plácido. As vestes impolutas denunciam que alguém, que não ele, preparou o corpo para a aula, um assistente invisível que não figura entre as personagens. Debruçados sobre o cadáver, em cuja cabeça pousa a umbra mortis, um curioso grupo de cavalheiros dispara olhares em várias direcções. Ao centro, a luz derrama-se abundantemente sobre um triângulo de figuras que surge em segundo plano, sobre o peito do morto. Concentremo-nos nesse triângulo. As linhas dos olhares de duas das personagens (as que ocupam o lugar do vértice superior e inferior direito) passam rasantes acima da mão erguida do Professor Tulp, distraidamente indiferentes às operações de dissecação, e vão projectar-se no canto inferior direito da tela, mergulhado em sombra, de onde emerge, 1 O presente ensaio baseia-se no trabalho final apresentado ao seminário de mestrado Leituras da Teoria II (Faculdade de Letras da Universidade do Porto, ano lectivo 2009-2010). À Professora Doutora Maria de Lurdes Sampaio, pela orientação compreensiva e fundadora de novos horizontes para o pensamento, a minha gratidão.

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Colóquio Por prisão o infinito: censuras e liberdade na literatura, I Encontro do Grupo de Estudos Lusófonos (GEL), FLUP, 26 e 27 de Setembro de 2011

ENTRE O NAUFRÁGIO E A ETERNIDADE.

Reflexões em torno da interpretação, da leitura, da morte e outras ficções.1

Pedro Lopes Almeida

CITCEM, Faculdade de Letras da Universidade do Porto

um pássaro pergunta-me se

existe o céu, para saber se

lhe responderei ou se

deve cair

valter hugo mãe

0.

Ao espectador da Aula de Anatomia do Doutor Nicolaes Tulp (1632) não passarão

despercebidas as extravagantes trajectórias que descrevem os olhares das personagens

retratadas por Rembrandt. Tulp, sentado, magistral, segura na ponta de uma pinça os

músculos e tendões do cadáver em dissecação, enquanto gesticula vagamente, os lábios

entreabertos sustendo um discurso plácido. As vestes impolutas denunciam que alguém, que

não ele, preparou o corpo para a aula, um assistente invisível que não figura entre as

personagens. Debruçados sobre o cadáver, em cuja cabeça pousa a umbra mortis, um curioso

grupo de cavalheiros dispara olhares em várias direcções. Ao centro, a luz derrama-se

abundantemente sobre um triângulo de figuras que surge em segundo plano, sobre o peito do

morto. Concentremo-nos nesse triângulo. As linhas dos olhares de duas das personagens (as

que ocupam o lugar do vértice superior e inferior direito) passam rasantes acima da mão

erguida do Professor Tulp, distraidamente indiferentes às operações de dissecação, e vão

projectar-se no canto inferior direito da tela, mergulhado em sombra, de onde emerge,

1 O presente ensaio baseia-se no trabalho final apresentado ao seminário de mestrado Leituras da Teoria II (Faculdade de Letras da Universidade do Porto, ano lectivo 2009-2010). À Professora Doutora Maria de Lurdes Sampaio, pela orientação compreensiva e fundadora de novos horizontes para o pensamento, a minha gratidão.

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cinzento como o corpo nu, um grosso volume, aberto. A terceira figura, de barba e bigode

quixotescos, sugere alguma ambiguidade, e permanece impossível dizer se observa os

procedimentos que têm lugar no braço dissecado (e, se for esse o caso, é o único dos

presentes em toda a cena que está olhar para o cadáver), ou se, à semelhança dos outros dois,

contempla também o livro aberto, atirando o olhar tangencialmente por sob a mão do

cirurgião. Gasto, de grossas folhas retorcidas, curvado, o livro aberto em cima de um atril

parece erguer-se das profundezas do escuro, magnetizando hipnoticamente o olhar dos

presentes, na quase iminência de se afundar nas sombras e desaparecer do nosso campo de

visão. Cuidadosa e definitivamente afastado do centro da tela, opondo-se de modo radical à

direcção da iluminação (a luz jorra desde um ponto situado acima da cabeça de Tulp, oblíqua,

da esquerda para a direita), obscenamente deslocado do centro de massa da pintura (o bloco

humano maciço no campo esquerdo, com uma inflexão vertical a contrariar o livro, que parece

querer “enterrar-se”), ele instaura um novo equilíbrio no todo, ao chamar a si um pólo de

força, exigindo uma leitura horizontal da cena, mediada pela alvura irradiante do corpo sem

vida, que, como uma linha eléctrica, é continuamente percorrido, enquanto fio condutor da

tensão que se estabelece entre as personagens e o livro.

No que se segue, procuro dar conta dessa tensão infinita que aproxima e afasta o

espectador e o livro. Procurarei fazê-lo a partir de uma impossibilidade objectiva: o espaço

impreenchível que se abre entre o discurso do Professor Tulp, o olhar dos presentes, o corpo

aberto, e o livro. Um quadrado que é, ao mesmo tempo, um hiato, a anunciar a

indeterminação fundadora da crença, da interpretação, da verdade e da morte.

Provavelmente, nunca saberemos ao certo o que, naquelas duas páginas, segurava tão

tenazmente a atenção dos presentes, a ponto de o preferirem à presença do corpo dissecado.

Nunca saberemos se era uma confirmação que procuravam, ou se se lhes revelava alguma

contradição flagrante com a anatomia prescrita pelo manual. Tulp dispensa essas mesmas

páginas, quiçá tornadas supérfluas em face do saber só de experiências feito, e por isso desvia

o olhar do livro (e não deixa de ser intrigante que, mesmo sob a larga aba do chapéu, e

encontrando-se desviado do foco de incidência da luz, o seu rosto resplandeça, como que

iluminado pelo próprio corpo…). Maravilhosamente, Tulp não olha, também, para a

musculatura e articulações que ergue com a pinça, e oferece o gesto com a naturalidade de

quem já não precisa de seguir a mão com a inteligência.

Mas porque, e ao contrário do Professor Tulp, não me é dado conjurar o discurso

sublime (no sentido em que o queria Longino), permito-me regressar a esse(s) livro(s)

aberto(s), e procurar aí respostas para o enigma que nos traz a esta outra sala de autópsias.

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Rembrandt van Rijn

«Aula de Anatomia do Doutor Nicolaes Tulp» (1632)

Óleo sobre tela, 169.5 × 216.5 cm

Royal Picture Gallery Mauritshuis, Haia

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1.

Começo, portanto, por reconhecer que, como homem (isto é, por definição, um ser

torpe, ou, em termos mais recursivos, mergulhado nos condicionalismos da própria

contingência), não me é possível sustentar a obstinação do olhar que apresentam as

personagens de Rembrandt. Reconheço que vacilo, oscilando entre o corpo e o livro, numa

prolongada indecisão. Acredito, porém, que desse gesto hesitante poderá desprender-se

alguma luz para a compreensão do próprio acto de ler. Enquanto fragilidade, o movimento

fracturante encerra a possibilidade de um tertitum datur. A mesma fragilidade, de um “algures

entre ambos”, é justamente o que Stanley Fish averba à teoria da leitura desenvolvida por

Wolfgang Iser, no que respeita à identificação da fonte de autoridade interpretativa, posição

que gostaria de tomar como ponto de partida para esta reflexão. O esforço requerido para

manter esse lugar improvável, algures entre o texto e o autor, é, segundo Fish, o de acomodar

contradições, isto é, suportar a tensão dos fios que se estendem da objectividade à

subjectividade, tendo o cuidado de renunciar à tentação de uma infinitude de leituras possíveis

(conotada com o estigma da arbitrariedade), para, finalmente, assistir ao triunfo (ameno) do

pluralismo, estranha condição daquilo que consegue gerir posições de compromisso

suficientes para evitar um confronto declarado com qualquer das teorias convocadas a essa

plataforma comum. Na crítica que dedica à obra de Iser, com o título mordaz “Why no one's

afraid of Wolfgang Iser”2, Fish denuncia a inércia característica de uma tal postura, que,

motivada por imperativos históricos, culturais e, essencialmente, institucionais, desemboca

inevitavelmente em paradoxos metodológicos, redundando, tarde ou cedo, numa irresolúvel

aporia prática:

The (limited) tolerance of diverse views that characterizes this brand of pluralism is a

concession not to the reader's creative imagination, but to the difficulty of his task (a

task that is by definition incapable of completion).3

O que resta ao leitor é, então, cumprir as tarefas que conduzem à explicitação da possibilidade

de inscrição do texto nas grelhas de leitura pressupostas pela prática interpretativa,

potenciando assim as propriedades implícitas que esta encerra. Fatalmente, o texto literário

vê-se convertido num “script for performance”4 que vive apenas nas suas manifestações:

2 Stanley FISH, “Why No One’s Afraid of Wolfgang Iser” (recensão crítica a The Act of Reading: A Theory of Aesthetic Response, por Wolfgang Iser), Diacritics, vol. 11, No. 1 (Spring 1981), pp. 2-13, Baltimore, The Johns Hopkins University Press. 3 Idem, p. 4. 4 Idem, ibidem.

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Every time a reader builds his own structure of significance, he is simultaneously being

faithful to authorial meaning, and, indeed, he can be faithful only in that way. Rather

than being opposed to authorial meaning, interpreter's meaning is necessary to its

actualization.5

Muito rapidamente percebemos que é o próprio leitor quem se vê refém de um significado:

não apenas no sentido passivo de uma interpretação rigidamente veiculada e sancionada pelo

texto, mas, bem mais subtil e eficazmente, como uma performance necessária para o

cumprimento do próprio texto. O intérprete cumpre assim o papel que lhe está pré(e)scrito

pelo texto, e a atribuição de significado não é senão o corolário do reencontro do texto com a

intenção do autor. A interpretação volve-se num movimento despossuído de individualidade

ontológica: ela é, em verdade, um satélite da intenção autoral, um simulacro, uma espécie de

farsa encenada que convida o espectador a desempenhar uma figura insignificante mas

materialmente indispensável, para depois continuar, indiferente, o respectivo curso.

Como o médico que, no final da operação, se esquece de instrumentos cirúrgicos

dentro do corpo do paciente, o texto caminha em frente, transportando um bisturi e uma

tesoura que só uma radiografia virá a denunciar. Com efeito, não é exagerado afirmar que

toda a interpretação de motivação materialista flui para um modelo que pressupõe, mais ou

menos explicitamente, uma ingenuidade essencial do leitor, gradualmente preenchida pela

infinita transcendência do texto, num processo de completamento que se serve da

interpretação para legitimar a extracção de narrativas a partir do corpo do texto.

A denúncia de Stanley Fish coloca em evidência a condição convencionada deste

processo, demonstrando que nenhuma leitura pode ocupar esse lugar atópico, já que o texto,

encarado na sua contingência imediata, se serve dos mesmos signos, códigos de significação,

narrativas e ideologias de que se tece o quotidiano, o que determina simplesmente a

impossibilidade de interpretar um texto a partir da sua imanência, já que ele é uma forma

intrínseca de exterioridades. Neste sentido, tudo o que podemos afirmar é que os “signos

textuais” adquirem variados significados, de acordo com as diferentes expectativas e valores

dos diferentes leitores6.

No fundo, a nossa realidade de seres situados e a impossibilidade de nos descartarmos

do arquivo das nossas experiências singulares e subjectivas antes de começar o acto

interpretativo, dizem-nos que temos ideias diferentes sobre o que representam os valores de

5 Idem, ibidem. 6 Cf. Idem, p. 7.

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um texto, e isso colide com o projecto de reconstituir um plano textualmente implícito de

leitura, baseado em valores intersubjectivos, imutáveis e líquidos. Assim, até mesmo o esforço

de fixação de um plano do dado e do construído pressupõe e implica distinções baseadas em

juízos de valor que irão informar e enformar o acto de leitura, produzindo o fenómeno que

visam descrever. Deste modo, a interpretação oferece-se como uma instância legitimadora de

um processo que é, em rigor, cíclico e tautológico, já que parte da imposição de critérios

(como, por exemplo, o critério da unidade formal, o critério dos “dados presentes no texto”,

ou ainda o critério da linguagem poética), que, por sua vez, ditam e constroem processos

direccionados para os “descobrir” e validar7.

and even if one had recourse to a supposedly neutral vocabulary and described the

action in terms of angles, movements, tendons, joints, etc., that description would itself

be possible only under a theory of movement, ligatures, etc., and therefore would be

descriptive only of what the theory (that is, the interpretation) prestipulates as available

for description.8

Fica deste modo exposta a fina ironia implícita no próprio conceito de rigor científico, o

qual, em rigor, já não pode ser senão uma forma de “boas maneiras epistémicas” que consiste,

como dirá Richard Rorty, em inscrever estilisticamente o modo de falar no “vocabulário no

qual são postos os problemas [e] é aceite por todos aqueles que contam como contribuindo

para o assunto”9. Consequentemente, por muito persistente que seja o esforço de expurgar de

marcas de subjectividade essa forma de discurso, ou seja, de alcançar um catálogo blindado

por uma impenetrável objectividade (“rigor”, “precisão”, “critérios científicos reconhecidos”,

“boas práticas metodológicas”, “standards internacionais de investigação”, “excelência

científica”, etc. – nesta matéria, o glossário é abundante, e com pouca variação, se submetido

a uma crítica séria), será sempre necessário reconhecer a motivação intrinsecamente

contingente da interpretação que lhe subjaz. Acabamos por convergir com a impossibilidade

de um “grau zero” da interpretação ao concluir que uma linguagem crítica de inspiração

puramente matemática se revelaria, num primeiro momento, tão inútil quanto bizarra (não é

essa a sensação com que ficamos ao ouvir os críticos que, pretendendo dar provas de

“credibilidade”, se refugiam num apparatus metalinguístico mais próprio de protozoários do

que de textos literários?). É fácil supor que, pouco depois, as próprias etiquetas cirúrgicas se

apropriariam de uma disposição moral, através de processos sub-reptícios de reinvestimento

7 Cf. Stanley FISH, Is There a Text In This Class? The Authority of Interpretative Communities, Cambridge/London, Harvard University Press, 1980, p. 105. 8 Stanley FISH, “Why No One’s Afraid of Wolfgang Iser”, op. cit., p. 11. 9 Richard RORTY, Consequências do Pragmatismo (tradução de João Duarte), Lisboa, Instituto Piaget, 1999, p. 210.

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semântico que permitiriam ao crítico emitir juízos de valor sob a aparência de uma abordagem

estritamente formal. Esta trajectória, que foi, diga-se de passagem, a que trilhou a reflexão

literária ao longo do século XX na deslocação do paradigma formalista para o estruturalismo,

decorre das estratégias de legitimação diagnosticadas por Habermas a partir de uma

consciência positivista imperante que se articula como consciência tecnocrática:

[...] as informações provenientes do âmbito do saber tecnicamente utilizável imiscuíram-

se nas tradições e compeliram a uma reconstrução das interpretações tradicionais do

mundo.10

Nesse “horizonte inultrapassável” da técnica e ciência como ideologia (título do importante

trabalho de Jürgen Habermas), a interpretação reclama um hiato essencial entre a crença e o

significado, do qual visa extrair uma forma de imunidade à crítica.

Creio poder afirmar que na origem desse movimento estratégico adquire particular

relevo uma deliberada manipulação do valor relacional da regra e da prática, mediante uma

curto-circuitagem do sistema, indutora da castração ostensiva dos pontos-de-fuga que fariam

da interpretação algo mais do que uma paráfrase ou um pretexto dissimulado. O Wittgenstein

das Investigações Filosóficas fornece um quadro altamente ilustrativo deste plano:

É naturalmente pensável que, num povo em que o xadrez não é conhecido, duas

pessoas se sentem diante de um tabuleiro e executem os lances de uma partida de

xadrez; e incluindo mesmo todos os fenómenos psíquicos de que estes são

acompanhados. E se nós víssemos isto diríamos que elas estavam a jogar xadrez. Mas

agora imagina uma partida de xadrez traduzida, a partir de certas regras, numa série de

acções, que não estamos habituados a associar com um jogo – talvez como soltar gritos

e bater com os pés. Suponhamos agora que aquelas duas pessoas, em vez de jogarem a

forma de xadrez que nós conhecemos, soltam gritos e batem com os pés; e de facto de

tal modo, que é possível, a partir de regras apropriadas, traduzir o que fazem numa

partida de xadrez. Ainda estaríamos inclinados a dizer que jogam um jogo? E com que

direito o poderíamos dizer?11

Soltar gritos e bater com os pés – algo corrente, como é sabido, na actividade do

crítico... – pode não ser exactamente a forma mais elegante de interpretar uma partida de

xadrez (e aqui a polissemia do verbo desdobra matizes interessantes). Sem embargo, a

10 Jürgen HABERMAS, Técnica e Ciência como “Ideologia” (tradução de Artur Morão), Lisboa, Edições 70, 2009, p. 84. 11 Ludwig WITTGENSTEIN, Tratado Lógico-Filosófico seguido de Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 321.

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actuação dos dois jogadores corresponde estritamente a uma codificação de regras, traduzidas

em acções com significados precisos e referenciáveis. Porém, a interrogação de Wittgenstein é

acutilante: ainda há ali algum jogo a ser jogado? Talvez haja, mas de uma natureza

inteiramente nova. O que importa sublinhar é a ilimitada capacidade de fazer corresponder

uma praxis a uma regra, a ponto de essa estranha dança de pontapés e urros ser, ainda, uma

partida de xadrez: a dimensão do nomos na interpretação exibe assim a sua condição

paradoxal, na ambição sublime (e impossível) de fazer pousar sobre as coisas uma nomeação

de aparência qualitativamente distinta das coisas em si (os textos literários). Esse paradoxo

diz-nos que “uma regra não pode determinar uma forma de acção, por qualquer forma de

acção ser conciliável com a regra”12.

Em suma, a interpretação é sempre função de uma atitude do leitor perante o mundo,

refractada pela sua experiência da presença do texto, e que depende de tantas variáveis

quantas as que condicionam e determinam a nossa conduta diária. Teleológicas, funcionais,

pragmáticas, elas engendram regras que facilitam e naturalizam as práticas que servem os

propósitos de uma comunidade. Nesta medida, e a fim de evitar incorrer num non sequitur,

cabe ao intérprete (re)conhecer a contingência da regra no uso consciente e criativo dessa

regra, ou seja, actualizar o texto de modo subjectivo, numa voluntária “willing suspension of

disbelief”, na expressão de Coleridge, a tornar presente o espanto que paira sobre os rostos de

Rembrandt.

Como a revelação de Herr Prosit, Presidente da Sociedade Gastronómica de Berlim, no

final do seu jantar muito original, do qual Pessoa nos dá conta.

2.

Pela boca morre o peixe. O decrépito clube de comensais, adeptos da luxúria sobre a

mesa e fora dela, deixa-se abater pelo tédio que sugere a falta de originalidade reinante na

gastronomia do momento. O tema domina um jantar, durante o qual o Presidente se mantém

alheado e em silêncio, ostentando o “seu perpétuo sorriso *que+ parecia a careta grotesca

daqueles em cujo rosto bate o sol; nesses, a contracção natural dos músculos perante uma luz

forte; neste, como expressão perpétua, extremamente antinatural e grotesca.”13. No final da

refeição, solene, o Presidente, Herr Prosit, profere um convite e um desafio: anuncia que,

12 Idem, ibidem. 13 Fernando PESSOA, “Um Jantar Muito Original” (tradução de Maria Leonor Machado de Sousa), in Obra Poética e em Prosa (org. por António Quadros), vol. II: Prosa 1, Porto, Lello & Irmão, 2006, p. 511.

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dentro de dez dias, servirá um banquete para os membros da Sociedade Gastronómica, um

evento que, nas suas palavras, será “original para além do que possamos esperar”14, porque tal

originalidade “não está no que ele tem ou parece, mas naquilo que significa, no que

contém”15. Instala-se a curiosidade entre os convivas. Qual o motivo de tão enigmática

promessa? A resposta do Presidente parece lacónica: “Sou levado a isso *…+ por uma discussão

que tive antes do jantar”16. A discussão, disse quem presenciou, fora entre Prosit e cinco

jovens gastrónomos de Frankfort, e centrara-se numa rivalidade entre o prato de um dos

“rapazes” e os feitos gastronómicos do Presidente. Quando saiu, declara-lhes que fora a

pensar neles que lançara o desafio, acrescentando: “Estareis lá bem presentes. Estareis lá em

corpo, garanto-vos.”17. Chegado o dia em que se cumpriria o convite, o jantar decorre com

aparente normalidade. Prosit oferece aos membros da Sociedade Gastronómica um elegante

banquete, porém, sem marcas de excentricidade. Debalde os contubernais procuraram em

cada detalhe uma prova que denunciasse o ónus da anunciada originalidade:

Tudo era, ao mesmo tempo, sugestivo e insatisfatório. Bem considerado, tudo continha

uma singularidade (tal como qualquer coisa em qualquer sítio). Mas nada apresentava

claramente, nitidamente, indubitavelmente, o sinal de ser a chave do problema, a

palavra escondida do enigma.18

Os pratos sucederam-se, servidos por cinco criados negros que se moviam junto às paredes

que circunscreviam o salão, por detrás das cadeiras, abrigados pela penumbra. A luz cingia-se

ao centro da mesa, deixando tudo o resto na noite. Apesar da generalizada incógnita, todos se

repastavam alegremente, benevolamente envolvidos pela curiosidade que intrigava sem

incomodar excessivamente qualquer dos presentes. Perto do final do jantar, porém, o

narrador ensaia levantar uma ponta do véu. Vindo-lhe à memória as palavras de Prosit aos

cinco gastrónomos de Frankfort, recorda-se do incómodo deste quando, momentos antes, lhe

haviam perguntado a raça dos cinco criados negros, e associa os factos, concluindo

provisoriamente terem os rapazes sido forçados a desempenhar o papel de criados negros.

Contudo, para além da dificuldade material em compreender como fora tal coisa possível,

subsiste uma outra objecção, ainda: “A originalidade que eu descobrira não residia, é verdade,

propriamente no jantar; mas estava nos criados, em algo ligado ao jantar.”19. Pouco após ter

exposto a sua conjectura a Herr Prosit, imediatamente antes da sobremesa, o Presidente da

14 Idem, p. 516. 15 Idem, ibidem. 16 Idem, ibidem. 17 Idem, pp. 518-519. 18 Idem, p. 522. 19 Idem, p. 527.

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Sociedade Gastronómica de Berlim propõe um brinde, revelando, finalmente, onde residira a

originalidade do jantar:

“«Bebo», disse ele, «à memória dos cinco rapazes de Frankfort, que estiveram presentes

em corpo a este jantar e contribuíram para ele da forma mais material.» E mal-

encarado, selvagem, completamente louco, apontou com um dedo excitado para os

restos de carne que estavam na travessa que tinha mandado deixar sobre a mesa.”20

À revelação segue-se um silêncio – um silêncio de morte... – e, acto contínuo, os presentes são

tomados de uma ira incoercível e sem medidas, numa explosão de violência dirigida para o

anfitrião, em cuja cara se despedaça um jarro de vinho, “misturando sobre ela sangue e

vinho”21. Numa orgia de fúria sacrificial, os membros da Sociedade Gastronómica tomam

Prosit e lançam-no janela fora. O balofo senhor tomba sobre o passeio, com um baque seco

“que teria transtornado os mais fortes mas que levou a calma aos *…+ corações ansiosos e

expectantes”22 dos canibais. Os criados, membros de uma tribo “assassina e abominável”23,

ainda tentaram fugir, mas, com excepção de um, foram apanhados e “bem e justamente

castigados”24. Depois de saírem da casa de Prosit, muitos dos que tomaram parte no

espectáculo perderam os sentidos, e todos, sem excepção, se sentiram mal.

Havia corpos sobre a mesa, e a carne foi repartida pelos presentes. O jantar reunia-os

numa inefável inconsciência, num espaço utópico onde o desejo os aproxima, afastando-os,

colectivamente, para um ponto remoto da contingência do acto canibal. Retirados do mundo,

são conduzidos a essa zona de indefinição, onde a ética se dilui na volição de uma palavra – a

originalidade do jantar. (E é impossível não nos recordarmos, aqui, da curiosidade de Hansel e

Gretel, que os levará à casa de chocolate e guloseimas.) Neste jantar, uma espécie de nevoeiro

paira entre os convivas, infundindo em cada um uma cegueira que se mistura com o desejo do

nomos. Pretendo sustentar que esse desejo de nomos é justamente o canibalismo dos

membros da sociedade gastronómica.

A vontade de nomeação do original é o gesto constitutivo da transgressão da regra, só

possível mediante a instauração de uma ordem de perversão. Deste ponto de vista, temos dois

movimentos paralelos, evoluindo a um mesmo ritmo: o da deglutição dos gastrónomos de

Frankfort, e o da crescente vontade de nomear o desconhecido. Ambos se dirigem, fatalmente,

incoercivelmente, para um mesmo ponto: a revelação. Nela, consuma-se a própria

20 Idem, pp. 528-529. 21 Idem, p. 530. 22 Idem, pp. 530-531. 23 Idem, p. 531. 24 Idem, ibidem.

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originalidade do jantar. Não haveria revelação sem a curiosidade, e não seria possível a Prosit

oferecer um jantar muito original sem a morte dos gastrónomos (o que nos leva a pensar que,

no limite, é a própria discussão que tivera lugar no jantar precedente da sociedade

gastronómica que desencadeia o canibalismo dos respectivos membros). Estes pressupostos

exigem uma tese mais consistente: é a necessidade de encontrar uma ordem de nomos que

seja transcendente à contingência da evidência que guia os comensais ao canibalismo, e, logo,

à negação da própria arte gastronómica. Com efeito, eles não desejavam apenas interpretar,

porque na interpretação encontravam apenas a sensaboria do mesmo. Desejavam, no limiar

do inconsciente, a fulguração de uma enormidade, ou, mais propriamente, de uma

monstruosidade. E o seu desejo foi cumprido. A aberração é a própria nomeação

transcendental, enquanto exasperação do acto de nomeação.

A tranquilidade curiosa com que devoram os seres humanos corresponde ao simulacro

de uma leitura ingénua, uma leitura cega, que é o mesmo que dizer – e a tentação de

reescrever a etimologia de ‘esquecimento’ a partir do latim ‘caecus’ é demasiado grande para

ser ignorada25 –, uma leitura esquecedoira do real: o jantar é, com efeito, uma forma perversa

de anamnese, na justa medida em que corporiza, na sua duração como progresso, um esforço

contravertido de encontrar um denominador comum – isto é, conhecido de todos,

reconhecível, desprovido de alteridade, ‘mesmizado’ – para o sublimar enquanto outro, isto é,

original, novo, pretensamente entrópico. Um tal esforço, na sua condição de tentativa de

dúplice falsificação da memória e da experiência, facilmente assimilável ao que Ricoeur

designa mémoire oublieuse26, depois de encenar uma (contrafaccionada) virgindade

nomotética, convoca o deus ex machina do ressentimento contra o real como dispositivo

paradoxal de convalidação da entropia do real. No fundo, era forçoso que o acto canibal

redundasse na revolta dos canibais, e que essa forma de ressentimento levasse à morte de

Prosit27. Com efeito, esse desenlace é a negação necessária para o reconhecimento do

canibalismo: ele não estaria completo – e institucionalizado – sem essa dimensão negativa. A

relação que se estabelece é, então, semelhante à do messias que, conhecendo o seu destino, e

sabendo claramente que a condição ôntica de que se encontra investido é função da sua

morte sacrificial, se dirige ao Horto das Oliveiras para suplicar ao Deus-Pai (uma forma de si)

25 ‘Esquecer’. Etm. do lat. ‘excadescere’ v. Freq. De ‘excadere’, ‘cair para fora’, de ‘excado, is, cecidi, casum, ere’, cair, escorregar; abaixar-se, desfalecer, perecer. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia – Portugal/Temas e Debates, 2003, p. 1606, sb. V. ‘esquecer’. 26 Paul RICOEUR, La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, Paris, Seuil, 2000, p. 576. 27 Não podemos deixar de registar o irónico volte-face que, neste final, vitima os serventes negros. Depois de se limitarem ao lugar de espectadores passivos do banquete canibal (não diremos certamente que a tarefa de servir os pratos de carne humana os torna propriamente culpados, e se alguma participação tiveram na morte dos cinco gastrónomos, poderão incorrer no crime de homicídio – como, de resto, incorreram também os membros da Sociedade Gastronómica pelo linchamento de Prosit –, mas não tomaram parte da ceia canibal, nem partilharam do espírito ufano em que esta se desenrolara), é sobre eles que recai a ira daqueles que comeram a carne dos concidadãos.

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que, se houver tal possibilidade, seja afastado de si esse cálice... No núcleo simbólico de toda a

praxis, um centro ausente – espaço por definição impreenchível, e que podemos designar,

inspirados na astrofísica einsteiniana como a ‘antimatéria’ que habita o coração da matéria –

sustém a gravidade da própria significação, garantindo a sua indeterminada continuidade, em

torno dessa concreção negativa. É esta condição de uma ‘negação negociada’ que garante a

perpetuação da nossa relação com o mundo (dos signos), enquanto contínua renovação de um

contrato de nomeação que se nega, para melhor se consumar.

A interpretação – enquanto acto de uma hermenêutica do mesmo – não pode

sobreviver à presença sígnica do real, isto é, à presença da alteridade bruta do texto enquanto

corpo maciço de significação infinita no contínuo reenvio da referencialidade. A sua existência

fulgura nos interstícios do objecto, antes de se extinguir. Todavia, talvez seja mais sensato

considerarmos aqui que ela só lhe pode sobreviver como uma forma de morte – todos os

comensais se sentiram profundamente indispostos, e muitos desmaiaram ao sair da casa de

Prosit. Só nessa forma espectral lhe é possível continuar a durar. Por outras palavras, o gesto

interpretativo não pode emergir senão como um reconhecimento crítico e criativo da falência

da racionalidade – com todas as implicações do carácter experimental que isso convoca –, ou

como um esqueleto falante, que será já uma forma de falência do próprio texto na leitura (os

escribas medievais recorriam com facúndia a nuances simbólicas do termo ‘falecer’

particularmente certeiras para este propósito). O texto, enquanto fenómeno literário e criação

estética, sucumbe na interpretação. Temos, pois, que apenas uma entidade poderá sobreviver

ao encontro fatal entre o leitor e o texto: a coerção do processo de significação do literário

implica intimamente uma forma de prostração do intérprete, o qual, se desejar manter a sua

condição de nomeador, será obrigado a apagar ou esquecer-se da presença do texto. Uma tal

tese, nesta segunda possibilidade, encontra confirmação nas estratégias de entrincheiramento

do gesto interpretativo no esqueleto do nomos que é a sua forma de persistência no mundo.

3.

À luz destas reflexões, parece-me tornar-se imperativa uma nova condição de validade para

o acto interpretativo. Uma vez reconhecida a sua dimensão contingente e subjectiva, não é

mais possível fazê-lo depender de uma «correspondência» a algo exterior a si mesmo, como se

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de uma novíssima metafísica se tratasse, uma entidade sem rosto que, na penumbra, legitima

e sanciona os rasgos generalizantes de leitores-arúspices. Afinal,

The world does not speak. Only we do. The world can, once we have programmed

ourselves with a language, cause us to hold beliefs. But it cannot propose a language for

us to speak. Only other human beings can do that.28

Impõe-se então criar condições de possibilidade para a emergência de um modelo

interpretativo fundado nos laços de necessidade que nos atravessam, enquanto leitores,

redescobrindo no texto um lugar de encontro de crenças, muito para além de um mostruário

de abstractas fórmulas, estruturas e ossaturas. Assim encarada, a interpretação não se furtará

à responsabilidade de inclusão do outro, abrindo o espaço do Eu à visitação de múltiplas

presenças, numa aventura trágica ou sublime, mas jamais inócua.

Abraçar a dimensão subjectiva da leitura significa, também, assumir o risco do

conhecimento como ficção, tomando a literatura enquanto promessa e anúncio de uma forma

de conhecimento imprevisível, embora iminente. E essa é, a meu ver, a forma mais sensata de

encarar a interpretação: como o detective apanhado no seu caso.

Esse detective pode muito bem ser Erik Lönnrot, e conhecemo-lo num conto de

Borges, “A morte e a bússola”29.

Um influente rabi, o Tetrarca da Galileia, é assassinado num quarto de hotel na noite

de três de Dezembro. Lönnrot e o comissário Treviranus investigam o caso, procurando entre a

simbologia talmúdica a chave para desvendar a identidade do assassino. Perto do corpo, numa

máquina de escrever, é encontrada uma folha com as palavras: “A primeira letra do Nome já

foi articulada”. O segundo crime ocorre na noite de três de Janeiro: um criminoso aparece

morto nos subúrbios, e, na parede junto à qual o corpo jaz, sobre os azulejos em losango,

escrita a giz, a frase: “A segunda letra do Nome já foi articulada”. O terceiro crime ocorre na

noite de três de Fevereiro. Num bar duvidoso, um hóspede é levado por dois arlequins para

uma sala recolhida. Quando sai, embriagado e cambaleante, é levado para o interior de uma

berlinda, de cujo estribo um dos arlequins risca nas ardósias da arcada “A última das letras do

Nome já foi articulada”. No chão da sala para onde o hóspede fora levado, Lönnrot encontra

uma estrela de sangue. Os crimes inspiram uma atmosfera de medo na cidade, e até Red

Scharlach, o mais ilustre dos pistoleiros do Sul, inimigo de longa data de Lönnrot, declarou que

28 Richard RORTY, Contingency, Irony, and Solidarity, Cambridge, Cambridge University Press, 1989 [2008], p. 6. 29 Jorge Luis BORGES, “A Morte e a Bússola” (1942), in Ficções (tradução de José Colaço Barreiros), Lisboa, Editorial Teorema, 1998 [1989], pp. 121-135.

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no seu distrito jamais aconteceria algo de semelhante, culpando a incompetência do

comissário da demora na resolução dos crimes. O céptico Treviranus recebe, pouco tempo

depois, uma missiva anónima, revelando a configuração geométrica que perfazia a localização

dos três lugares de crime, um triângulo “equilátero e místico”, perfeito, que sugeria o fim da

série de assassínios, e que correspondia à equidistância das datas a que ocorreram os crimes.

A explicação satisfaz o comissário, preparado para aceitar uma teoria tão racional (more

geometrico) como esta. Mas Lönnrot estuda a hipótese, lê-a através dos dados místicos que

fora recolhendo, e acaba por formular uma conclusão própria. Dá o caso por resolvido e, no

dia quatro de Março, dirige-se para fora da cidade, para uma quinta desabitada no Sul.

Enquanto o sol se põe, percorre os salões vazios da casa, onde toda a arquitectura é simétrica,

duplicada. Ao cair da noite, Lönnrot, solitário, é agarrado por dois criminosos, enquanto Red

Scharlach, cujo irmão Lönnrot capturara anos antes, confirma a tese que levara o investigador

àquela casa abandonada. Não se tratava de um triângulo, mas de um losango, e os crimes não

haviam ocorrido ao dia três de cada mês, mas a quatro, já que “o dia judeu começa ao

anoitecer e dura até ao seguinte anoitecer”. Scharlach, calmamente, explica a Lönnrot que

todos os crimes haviam sido premeditados, e que o crime estava prestes a ser consumado.

“Recuou uns passos. Depois, muito cuidadosamente, fez fogo.”30.

Lönnrot extingue-se na procura do seu mistério, mas essa evanescência é apenas a

forma silenciosa e perfeita da sua presença no caso. Lönnrot suspende-se, para poder ser

completamente. A entrega do detective ao caso não seria total se ficasse presa a uma suspeita

que o envolvesse. De facto, é o excesso de proximidade ao crime que faz com que a sua

personagem se eclipse durante todo o desenrolar dos factos, tal como uma janela desaparece

do campo de visão de alguém que se poste demasiado perto do respectivo vidro. Graças a essa

forma de, digamos, leitura absoluta, Lönnrot é o nosso modelo ideal de intérprete: a sua

hermenêutica da diferença redescobre, como defende Reed Way Dasenbrock, a combinação

sibilina de uma criatividade sensível com uma receptividade ilimitada:

If we are members of an interpretative community, the point of reading is to learn, as

least for a moment, not to be.31

A entrega do detective a cada uma das peças que junta e às quais confere sentidos

possíveis prefigura uma interpretação da diferença que opera através de uma memória do

vivido, agenciando uma subjectividade enquanto experiência, e não (como poderia levar a crer

30 Idem, p. 135. 31 Reed Way DASENBROCK, “Do We Write the Text We Read?”, in College English, Vol. 53, No. 1 (Jan. 1991), Urbana (Illinois), National Council of Teachers of English, p. 17.

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a postulação de Stanley Fish), como opacidade. É na medida em que Lönnrot toma a palavra

do outro em toda a extensão dos sentidos possíveis que ele pode, finalmente, aliar a crença à

interpretação, oferecendo o corpo do seu pensamento à actuação produtiva de sentidos

outros: para descodificar a série de crimes, ele deve concordar com o modelo de racionalidade

requerido pelas pistas recolhidas, isto é, ele deve adoptar como válidas as premissas que visa

compreender, certo de que apenas essa forma de solidariedade o poderá conduzir à verdade

que outros construíram para si. Nesse pressuposto, Lönnrot dá corpo ao “leitor radical” que

Donald Davidson encontra ao procurar pensar uma condição interpretativa universalmente

válida, capaz de dar conta de qualquer afirmação, sem reservas contextuais. Um tal intérprete

encontra-se em situação de plena receptividade, já que não acolhe o texto com os

instrumentos cirúrgicos de um “manual de instruções”, mas com a ilimitada compreensão de

uma partilha da crença como condição para o estabelecimento de uma plataforma de verdade:

Since knowledge of beliefs comes only with the ability to interpret words, the only

possibility at the start is to assume general agreement on beliefs.32

O que há de precioso em Lönnrot é ele fornecer-nos uma razão para continuarmos a ler:

cada vez mais e melhor, nessa procura incessante da qual não poderemos sair ilesos, porque,

mais do que abstractas estruturas, ensinar-nos-á algo sobre a vida, ou, pelo menos, sobre a

memória dela.

32 Donald DAVIDSON, «On the Very Idea of a Conceptual Scheme” (1974), in Inquiries into Truth and Interpretation, Oxford, Oxford University Press, 2009 [2001], p. 196.

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Referências bibliográficas

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DASENBROCK, Reed Way, “Do We Write the Text We Read?”, in College English, Vol. 53, No. 1 (Jan.

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--------- “Why No One’s Afraid of Wolfgang Iser” (recensão crítica a The Act of Reading: A Theory of

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