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    Colonizao, miscigenao

    e questo racial: notas

    sobre equvocos e tabus

    da historiografia brasileira

    Ronaldo Vainfas*

    Brasil, quinhentos anos de histria, se adotarmos a periodizao de Varnhagen, ousabe-se l quantos sculos, se optarmos pelo seguidor e rival do Visconde de PortoSeguro, mestre Capistrano de Abreu , cujo primeiro captulo dos Captulos de histriacolonial tem por ttulo Antecedentes indgenas, embora deles o captulo pouco trate

    na verdade. De todo modo, se deixarmos de lado as idealizaes indigenistas ouindianistas, seja moda romntica, seja na verso mais atual de uma histriapoliticamente correta, caso de realar o extraordinrio encontro de povos posto emcena pelo descobrimento e pela colonizao efetuada pelos portugueses na suaAmrica a que lhes reservou o Tratado de Tordesilhas. Encontro decerto conflitivo,muitas vezes trgico, haja vista o extermnio de milhares de ndios e o cativeiro destes edos africanos, como se sabe, desde o primeiro sculo. Mas encontro que ps em contatoculturas radicalmente distintas de trs continentes, refazendo valores, recriando cdigosde comportamento e sistemas de crenas, sem falar na miscigenao tnica, outrorachamada de miscigenao racial.

    Miscigenao tnica e mescla cultural so problemticas afins, embora no

    idnticas, que atualmente esto na ordem do dia na historiografia ocidental produzidasobre a colonizao ibrica nas Amricas. No entanto, questo que, entre ns, vem delonge, modificando-se ao longo do tempo os termos, a valorao e o sentido dasinterpretaes.

    * Professor Titular de Histria Moderna da Universidade Federal Fluminense.

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    A problemtica da mescla cultural na histria do Brasil foi colocada em nossoshorizontes de investigao desde os comeos da historiografia nacional. Apareceu pelaprimeira vez, sob o rtulo da miscigenao racial, como proposta vencedora doconcurso promovido na dcada de 1840 pelo recm-fundado Instituto Histrico eGeogrfico Brasileiro. Formulou-a o alemo Karl von Martius, naturalista, botnico,viajante que deixou preciosos registros sobre a natureza e as gentes do Brasil no sculoXIX. Em Como se deve escrever a histria do Brasil, Martius afirmou que a chave parase compreender a histria brasileira residia no estudo do cruzamento das trs raasformadoras de nossa nacionalidade a branca, a indgena, a negra , esboando a questoda mescla cultural sem contudo desenvolv-la. Martius, como naturalista ilustrado,pensava o hibridismo racial do mesmo modo como pensava o cruzamento de plantasou animais, porm sua relativa sensibilidade etnolgica f-lo ao menos rascunhar o quej se chamou de sincretismo cultural e atualmente se formula como circularidades ouhibridismos culturais.1

    verdade que o naturalista alemo priorizou a contribuio portuguesa naformao da nacionalidade brasileira e praticamente silenciou sobre o papel da raa

    negra, para usar o seu vocabulrio, reservando ao ndio um tanto idealizado, vale dizer papel secundrio. Mas no resta dvida de que, j com von Martius, a questo damiscigenao tnica e cultural estava posta. Seria mesmo caso de ressaltar a paradoxalabertura intelectual do IHGB ao premiar proposta que, malgr o conservadorismo doautor, apontava para questo desafiadora, admitindo, ao menos em tese, o papel do negrona formao do povo brasileiro e isto num tempo em que os africanos e seusdescendentes eram escravos, sem direito cidadania no nascente imprio brasileiro.

    To inovadora era a proposta de von Martius que ningum na verdade a seguiu aolongo do sculo XIX e nas dcadas aps a Abolio e a proclamao da Repblica. Nosculo XIX, a grande histria do Brasil foi a de Francisco Adolpho de Varnhagen, a quem j mencionei, paulista de Sorocaba, descendente de alemes, homem de confiana do

    imperador Pedro II e autor da portentosaHistria geral do Brasil, em cinco volumes,publicada entre 1854 e 1857 sob o patrocnio imperial.Varnhagen no seguiu em nada os conselhos de seu quase conterrneo von

    Martius e produziu obra factual, no estilo do historismo ou historicismo, comeandopelo Descobrimento de 1500 e terminando em 1808, com a chegada da famlia real,fugitiva dos franceses sob a proteo dos ingleses. Cinco volumes que desfiammltiplos fatos, as expedies de reconhecimento, as capitanias, a instalao doGoverno Geral, os diversos governos, as invases estrangeiras que, para Varnhagen,o Brasil devia ser mesmo portugus, como rezava o Tratado de 1494. Histriamuitssimo bem documentada, utilssima em vrios aspetos, porm lusfila e brigantina,a louvar a Restaurao dos Braganas, a mesma dinastia do imperador brasileiro, seu

    mecenas, sem aspas. Histria branca, elitista e imperial que, se deu contribuiosurpreendente ao informar sobre os costumes e crenas dos tupis, chamou-os quase

    1. Sobre von Martius e o IHGB no sculo XIX ver Manuel Salgado Guimares, Nao e civilizao nos trpicos: oInstituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e o projeto de uma histria nacional, Estudos histricos, Rio de Janeiro, n.1,1988, pp. 5-37; Lcia M. P. Guimares, Debaixo da proteo de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histrico e GeogrficoBrasileiro (1838-1889),RIHGB, Rio de Janeiro, n. 388, 1995.

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    sempre de brbaros e selvagens e praticamente silenciou sobre os negros. ComVarnhagen, a miscigenao permaneceu oculta, seja racial, tnica ou cultural.

    Capistrano de Abreu foi nosso grande historiador da virada do sculo, pois de fatoinovou em diversos aspectos a interpretao da histria colonial do Brasil. Em seusCaptulos de histria colonial, publicado em 1907, fez questo de abrir nossa histriacom os Antecedentes indgenas, no lugar do descobrimento; concebeu o futuro Brasilcomo rea de disputa entre Portugal e outros pases europeus, no lugar de sacramentar oTratado de Tordesilhas; iluminou as diversidades territoriais da Amrica portuguesa,como se v no magistral captulo O serto. Com Capistrano de Abreu, deu-severdadeiro deslocamento do objeto de investigao, que em Varnhagen era acolonizao portuguesa, suas instituies e motivaes e nos Captulos passou a ser acolnia, a sociedade colonial com todos os seus desequilbrios e contrastes. Talvezneste ltimo ponto, na nfase que deu s diversidades regionais, resida a inovaoprincipal da interpretao de Capistrano que, longe de festejar, como Varnhagen, o xitoda colonizao portuguesa e de sua vocao para manter a unidade do Brasil, acentuou afragmentao, as incomunicabilidades, a ausncia de qualquer conscincia nacional,

    mesmo que em esboo, ao final de trs sculos de colonizao.No entanto, no tocante ao tema da miscigenao, que von Martius apontara comochave para se compreender o Brasil, Capistrano avanou muito pouco. Entre seus raroscomentrios sobre o assunto, reiterou esteretipos sobre negros e mestios,relacionando o primeiro s danas lascivas que alegravam o cotidiano da colnia (acompensar o portugus taciturno e o ndio sorumbtico) 2 e vendo os mulatos comoindceis e rixentos: podiam ser contidos a intervalos por atos de prepotncia, masreassumiam logo a rebeldia originria . Ainda que de forma atenuada, Capistranorevelou-se afinado, neste ponto, com certa raciologia cientificista,

    3concebida na

    Europa e assimilada pela intelectualidade brasileira, a qual via na mestiagem um perigopara a sobrevivncia das civilizaes. A mesma raciologia que inspirava intelectuais do

    porte de Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Silvio Romero, Mello Moraes, OliveiraVianna e outros que, como j se disse certa vez, eram racistas por ofcio. verdade que, com Capistrano de Abreu, pode parecer injusto emitir juzo

    aparentemente to rigoroso, ele que, em sua rica correspondncia, polemizou com JooLcio de Azevedo, seu amigo e interlocutor, sobre a questo judaica no Antigo Regimeportugus, criticando a intolerncia inquisitorial e racista ento vigente contra oscristos novos. Mas no que toca ao Brasil, ao encontro sexual entre portugueses, ndiose africanos e mescla cultural derivada do convvio plurissecular, Capistrano tratoupouco e no deixou de pens-la como um dos vrios fenmenos que, a seu ver,esgaravam o Brasil, funcionando antes como fator desagregador do que como agente decoeso.

    Seguiu-lhe a trilha Paulo Prado, autor do clebre e polmico Retrato do Brasil,publicado em 1928, autor que fez da luxria, da cobia, da tristeza e do romantismo osgrandes males da formao brasileira desde o descobrimento at o sculo XIX. Mas,

    2. Capistrano de Abreu, Captulos de histria colonial, 6. ed., Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1976, p.18.

    3. Lilia Schwarcz, O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil , 1870-1930, So Paulo,Companhia das Letras, 1995.

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    diferena de Capistrano, Paulo Prado foi mais explcito em tudo, seja quanto embriaguez sexual e multirracial deflagrada na colnia, seja quanto s conseqncias damiscigenao racial dela resultante. No tocante embriagues sexual, Paulo Prado at queavanou um pouco, ao romper os constrangimentos que cercavam o tratamento doassunto, embora de seu texto extravase um moralismo quase jesutico, condenatrio dassupostas liberdades sexuais do trpico, as quais considerava verdadeiramentepatolgicas. A culpa de tanta luxria porque disso se trata em Paulo Prado eraresponsabilidade dos portugueses degenerados que para c vieram sob degredo, dosndios naturalmente lascivos e dos africanos igualmente libidinosos, disso resultando umretrato do Brasil tremendamente orgistico.

    Da condenao da orgia colonial execrao da miscigenao o passo foi curto. no Post-scriptum que a posio de Paulo Prado se descortina com mais nitidez emmeio a consideraes raciolgicas tpicas do fim do sculo XIX e das primeiras dcadasdo XX. Apesar de dizer que todas raas parecem essencialmente iguais em capacidademental e adaptao civilizao, o autor no se escusa de afirmar a inferioridadesocial do negro nas aglomeraes civilizadas, ao contrrio do que costuma ser nos

    centros primitivos da vida africana. Elogia o conselho de von Martius quanto necessidade de se estudar o negro na histria do Brasil, mas prope conhec-lo nosseus costumes, preconceitos e supersties, defeitos e virtudes, mquina de trabalho evcio para substituir o ndio mais fraco e rebelde ...

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    O problema racial do Brasil residia, segundo Paulo Prado, porm, nem tanto nonegro, mas na miscigenao. De um lado, observa que a arianizao do brasileiroavanava diariamente e j com um oitavo de sangue negro, a aparncia africana se apagapor completo [...] E assim o negro desaparece aos poucos, dissolvendo-se at a aparnciade ariano puro [...] No temos ainda perspectiva suficiente para um juzo imparcial. Aarianizao aparente eliminou diferenas somticas e psquicas: j no se sabe quem branco e quem preto [...]. De sorte que, apesar de reconhecer que o mestio brasileiro

    dava exemplos notveis de inteligncia, cultura e valor moral, Paulo Prado se perguntava, luz de organismos to indefesos contra doenas e vcios, se esse estado de cousasno provm do intenso cruzamento de raas e sub-raas.5

    At o limiar dos anos de 1930 o que se poderia chamar de historiografia brasileiratratava, pois, a miscigenao, no como problema de investigao, mas como problemamoral ou patolgico que cabia resolver para o bem da Nao. Poderamos multiplicar osexemplos de historiadores que trataram do tema com este cariz raciolgico ou mesmoracista, temperando com a herana colonial as novidades cientficas de um Gobineau eoutros: Joo Ribeiro, Pedro Calmon, Pandi Calgeras a lista seria vasta e montona.Ao tratarem da miscigenao racial, evitavam adentrar o domnio da sexualidade campo frtil para entender os fenmenos culturais e o prprio fenmeno da

    miscigenao e quando o faziam, como no caso de Paulo Prado, era para execrar alibido desenfreada de antanho. E quando rascunhavam a mescla cultural de que amiscigenao tnica parte inseparvel, mal disfaravam o desalento em constatar que oBrasil era diferente da Europa, isso quando no afirmavam terem sido os ndios e

    4. Paulo Prado,Retrato do Brasil, org. Carlos Augusto Calil, 8. ed., SoPaulo, Companhia das Letras, 1996, pp. 187-188.

    5. Idem, pp. 191-193

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    sobretudo os negros elementos corruptores de um projeto de civilizao compatvelcom os anseios nacionais.

    Se houve uma solitria exceo a semelhante quadro, esta foi a obra de ManuelBomfim, mdico de ofcio e historiador por opo, intelectual que, desde 1902, comseuAmrica Latina: males de origem, esforou-se por condenar, antes de Capistrano, acolonizao portuguesa e a reconhecer na miscigenao racial um aspecto positivo daformao brasileira pioneirismo que lhe renderia forte polmica, interrupo dotrabalho de historiador por quase trinta anos e um virtual ostracismo que at hoje gravasua obra.

    No entanto, a obra vasta e complexa de Bomfim, retomada entre 1929 e 1931, reveladora de paroxismos que mereceriam estudos mais aprofundados. No mnimoporque, se em 1902 Bomfim condenava os portugueses que colonizaram o Brasil, evoltaria a faz-lo no Brasil Nao, publicado em 1931, neste caso condenando oimprio dos Braganas, no livro O Brasil na Amrica , este de 1929, v-los-ia comoempreendedores, intrpidos aventureiros, excelentes colonos, enfim, esforando-se porcontestar a viso de que o Brasil fora desde o incio povoado por criminosos. Este livro

    de Bomfim , neste ponto, quase um antdoto ao veneno destilado por Paulo Prado, nolivro contemporneo que mencionei linhas atrs, divulgador-mor do carter degeneradodos colonos portugueses aqui desembarcados.

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    Talvez no haja autor, dentre nossos historiadores antigos, que tanto se tenhaesmerado, como o Bomfim deste livro citado, em defender a excelncia dos portuguesesque protagonizaram a histria do Brasil nos primeiros sculos. E talvez no exista autor,entre os brasileiros, to empenhado em defender a miscigenao como trao positivo denossa formao como povo e como cultura. O problema desconcertante que Bomfim ofaz por meio de um raciocnio genuinamente raciolgico, naturalista, para no dizermedicalizado assunto que por ofcio conhecia bem. Assim compara cruzamentos entreinsetos, plantas, mamferos, seres humanos, discutindo autores clssicos na matria,

    tudo a servio da idia de que o cruzamento de raas ou espcies distintas no necessariamente mau, pelo contrrio. Manuel Bomfim , por tudo isto, uma exceo eum caso-limite, autor de obra contraditria em que o cientificismo raciolgico criticado nas suas concluses, porm no na linguagem e nos referenciais tericos dareflexo. O resultado uma apologia da mestiagem concebida em termos decruzamento positivo de espcies, em detrimento das dimenses tnicas e culturaispertinentes discusso.

    Nas dcadas 1930 e 1940 mudaria sensivelmente a maneira de lidar com amiscigenao racial e cultural que von Martius sugerira estudar havia quase cem anos.Foi o tempo em que apareceram as trs grandes snteses de nossa historiografia, obrasque Antnio Cndido destacou como livros-chave para se compreender o Brasil depois

    da Revoluo de 30 e que, no seu entender, funcionam at hoje como referncias dopensamento social brasileiro.Para os objetivos deste artigo, o grande livro a destacar , sem dvida, o Casa-

    grande e senzala, de Gilberto Freyre, publicado em 1933, sobre o qual j muito seescreveu. Foi este livro que produziu verdadeira inflexo no modo de tratar o assunto

    6. Manuel Bomfim, O Brasil na Amrica, Rio de Janeiro, Topbooks, 1996.

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    porque, de um lado, encarou sem pejo a questo da sexualidade inerente miscigenaoracial e o fez de modo distinto do de Paulo Prado, sem associ-la jesuiticamente aopecado da luxria, evitando criminalizar os degredados e associar a embriaguez sexualdo primeiro sculo a perverses de qualquer tipo, relativizando, enfim, com muito brilhoa libidinagem desenfreada que nossos intelectuais costumavam atribuir ao ndio esobretudo ao africano. Por outro lado, ultrapassou o conceito de raa at ento emvoga, ainda que no o tenha negado de todo, e adotou o de cultura (fruto de sua formaona antropologia culturalista de Franz Boas, nos Estados Unidos), o que lhe permitiuentrelaar o fenmeno da miscigenao tnica e da mescla cultural.

    conhecida e foi muito criticada posteriormente a posio de Freyre quanto ausncia de preconceito racial entre os portugueses ou, mais nitidamente, acaracterstica da miscibilidade, vocao lusitana que, ao lado da mobilidade e daadaptabilidade, faria dos portugueses colonizadores excelentes. Mas no tanto isto oque nos interessa por ora frisar na obra deste autor, seno o fato de que valorizou a fusodas trs raas ou a interpenetrao das culturas portuguesa, indgenas e africanas naformao do Brasil e seu povo. Se certo que Freyre atribuiu ao portugus (ao carter

    portugus e sua formao histrico-cultural) a iniciativa pela construo de umasociedade amolengada e cotidianamente frouxa quanto aos rigores do preconceitoracial, ressaltou igualmente a contribuio da frica, chegando mesmo a falar do negrocomo o colonizador africano do Brasil. Sua obra foi sem dvida uma novidade, sejaquanto ao mtodo de anlise, seja quanto s interpretaes de fundo que, no limite,positivaram a miscigenao herdada do perodo colonial. Daria muito o que falar eescrever nas dcadas seguintes, fosse contra, fosse a favor.

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    O Srgio Buarque de Razes do Brasil, publicado em 1936, embora tenha dadoenorme contribuio nossa historiografia em diversos aspectos, a exemplo dacomparao entre Amrica Portuguesa e a Espanhola, avanou pouco em relao aoproblema da miscigenao. Tendeu, no conjunto, a adotar posio similar de Freyre ao

    constatar, entre os portugueses, a ausncia completa, ou praticamente completa [...] dequalquer orgulho de raa, diferentemente dos europeus do norte, frisando a frouxidodos preconceitos, inclusive institucionais, dos portugueses em relao aos povos decor, para usar as palavras de Srgio Buarque.

    8E se de fato rascunhou alguns aspectos da

    mescla cultural na formao do Brasil, como no caso da lngua ou do predomnio dapassionalidade no carter do povo, no se deteve, como Freyre, na questo damestiagem. Na verdade, insistiu sempre no carter nostlgico e insatisfeito doportugus transmigrado ao Brasil, fronteira da Europa, diferena de Freyre quefrisava sempre a adaptalidade como caracterstica marcante da atuao lusitana noultramar.

    Se h um contraste importante entre Freyre e Srgio Buarque, maior o que se d

    entre eles e o Caio Prado Jr. de Formao do Brasil contemporneo, publicado em1942. Sem querer desmerecer a importncia desta primeira grande sntese marxista denossa historiografia, cujas inovaes j foram louvadas farta, e com razo, nela se

    7. Ricardo Benzaquem de Arajo, Guerra e paz: Casa-grande e senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30 ,Rio de Janeiro, Editora 34,1994.

    8. Srgio Buarque de Holanda,Razes do Brasil , 9. ed., Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1976, p.22.

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    encontram pginas de um racismo virulento, sobretudo na seo intitulada Organizaosocial.

    verdade que Caio Prado atribui em boa parte o aviltamento e degradao dendios e negros no Brasil sobretudo escravido, denunciando pois o racismo dasociedade colonial no que faria escola , mas inegvel que seu marxismo convivecom a raciologia cientfica tpica do sculo XIX.

    No pode ser outra a concluso sobre Caio Prado ao lermos seu juzo de que aescravido incorporou colnia, ainda em seus primeiros instantes, e em proporesesmagadoras, um contingente estranho e heterogneo de raas que beiravam ainda oestado de barbrie, e que no contato com a cultura superior de seus dominadores, seabastardaram por completo.

    9Caio Prado reiterativo: ndios e negros eram povos de

    nvel cultural nfimo, o que aviltou ainda mais a escravido brasileira, ao contrrio daescravido antiga, que recrutou seus cativos em todas as partes do mundo conhecido,alguns de nvel cultural superior ao do seus amos. O escravo no foi nela naAntigidade a simples mquina de trabalho bruto e inconsciente que o seu sucessoramericano, afirmou Caio Prado, acrescentando adiante que a contribuio do escravo

    preto ou ndio para a formao brasileira , alm daquela energia motriz, quase nula.Desnecessrio citar mais trechos que, na verdade, rivalizam entre si na eloqncia dadesqualificao dos povos submetidos escravido: povos que Caio Prado desqualificaum pouco por causa da escravido, outro tanto pela inferioridade cultural e racial quelhes atribui de antemo.

    O contraste entre Caio Prado e Gilberto Freyre , portanto, radical edesconcertante, se lembrarmos ter sido o primeiro um militante de esquerda dos maislcidos e notveis e o segundo um homem de posies polticas muito discutveis, paradizer o mnimo. Mas no resta dvida de que, poltica parte, enquanto Gilberto Freyreabriu caminho para se pensar a originalidade da cultura brasileira, Caio Prado no fezseno reiterar preconceitos antigos. Suas posies, exceto pelo fato de se combinarem

    com uma posio crtica de inspirao marxista, no constituem novidade alguma emrelao ao que se escrevia, desde o sculo XIX, sobre a m prognie do povo brasileiro posto que mestia.

    O reconhecimento do pioneirismo de Gilberto Freyre, sua sensibilidade eacuidade na interpretao da cultura brasileira em perspectiva histrica, no implica emisent-lo de crticas. No que eu v cansar o leitor com a repetio de que Freyre criouo mito da democracia racial, de que seu mtodo era intuitivo, de que deduziu daescravido domstica da casa-grande o padro adocicado do escravismo colonial o quemuitos j fizeram, muitas vezes com razo, outras nem tanto. Haveria crticas maispertinentes a fazer no que toca ao interesse deste artigo em particular.

    Uma delas provm do que escreveu o brasilianista ingls Charles Boxer autor,

    dentre outros livros, de O imprio colonial portugus ,10

    que forneceu modelototalmente oposto ao de Freyre no tocante tolerncia racial. Examinando os estatutosportugueses de limpeza de sangue entre os sculos XVI e XVIII, bem como as idiasdos letrados portugueses no Antigo Regime, Boxer insistiu em que os portugueses

    9. Caio Prado Jr., Formao do Brasil contemporneo , 15. ed., So Paulo, Brasiliense, 1977, p.275.

    10. Charles Boxer, O imprio colonial portugus (1515-1825), 3. ed., Lisboa, Ed. 70, 1981. Ver tambm, do mesmoautor,Relaes raciais no imprio colonial portugus, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967.

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    figuravam entre os povos mais racistas da poca, produzindo inabilitaes e estigmas devariada sorte contra os descendentes de judeus, mouros, ndios, negros e outras raasinfectas, como ento se dizia. certo que Boxer se debruou sobre os aspectosinstitucionais e ideolgicos da antiga sociedade portuguesa, ao passo que Freyre sededicou vida cotidiana, afetividades, sociabilidades o que explica em boa parte adiferena entre as interpretaes. Alm disso, preciso lembrar que as raas infectasque aparecem estigmatizadas no Antigo Regime portugus estudado por Boxer sereferem a um conceito de raa diferente do trabalhado por Freyre. No Antigo Regime setratava de um conceito de raa associado linhagem, ancestralidade, ao sangue, aopasso que o conceito de raa a que por vezes se refere Freyre j um conceitobiolgico, herdeiro do cientificismo do sculo XIX. Conceito que, por sinal, em Casa-grande e senzala nunca aparece de modo absoluto, seno articulado ou subordinado aoconceito de cultura.

    Mas no resta dvida de que, luz dos estudos de Boxer, a caracterizao doportugus como vocacionalmente infenso aos preconceitos raciais no se pode sustentarcomo princpio geral, como quiseram Freyre e o prprio Srgio Buarque.

    Assim, embora Freyre tivesse razo ao insistir na importncia da miscigenaotnica para o povoamento do territrio luso-brasileiro, isto nada deveu a uma supostapropenso lusa miscibilidade com outras raas, mas a um projeto portugus deocupao e explorao territorial at certo ponto definidos. Projeto que no se podiaefetivar com base na imigrao reinol, consideradas as limitaes demogrficas dopequeno Portugal, e que procuraria, de todo modo, implantar a explorao agrria voltadapara o mercado atlntico. A fragilidade da idia de miscibilidade vocacional atribuda aosportugueses esbarraria, definitivamente, na experincia de outras partes do imprioportugus, regies onde nenhuma miscigenao expressiva de fato ocorreu, a exemploda ndia ou da frica.11

    Por fim, o grande problema de Casa-grande e senzala parece ser a relao

    direta que Freyre estabelece entre atrao sexual e tolerncia racial, como se a presenada primeira matria muito ligada s subjetividades , fosse garantia da segunda dimenso que tem a mais ver com a cultura e com a ideologia. por constatar que osportugueses se sentiram sexualmente atrados por ndias, negras e mulatas que Freyrededuz, equivocadamente, a ausncia de preconceito racial entre estes colonizadores.

    11. Em Goa, por exemplo, chegou a se desenvolver, no tempo de Afonso de Albuquerque, uma poltica de casamentos mistosvisando a estabelecer uma ponte sociolgica entre os novos senhores e a populao local poltica que resultaria nosurgimento dos casados (portugueses que desposavam nativas, estabeleciam-se definitivamente na terra e recebiam terras

    agricultveis confiscadas aristocracia muulmana). Mas vale dizer que tal poltica no prosperou alm das primeiras dcadasdo sculo XVI, conforme indica Lus Filipe Thomaz, De Ceuta a Timor, Lisboa, Difel, 1994. O mesmo vale para a frica,seja a do norte, onde os portugueses se mantiveram sempre sitiados pelos mouros em fortalezas-emprios at o desastrefinal de Alccer-Quibir, seja a frica Negra, onde o grande interesse sempre foi o trfico de escravos. No Congo, por exemplo,reino africano que se aportuguesou notavelmente no reinado de Afonso I (primeira metade do sculo XVI) incluindo aadoo do catolicismo, das instituies de governo lusitanas, etc. a miscigenao entre portugueses e nativos foipraticamente nula. Ver, por exemplo, Antnio Custdio Gonalves, As influncias do cristianismo na organizao polticado reino do Congo, inActas do Congresso Internacional Bartolomeu Dias e sua poca , Universidade do Porto, v. 5,1992, pp. 523-540.

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    Seja como for, em Freyre o africano portador de cultura que irriga a religio, aculinria, a linguagem, os sentimentos e tudo o mais na sociedade colonial. O mesmo sepode dizer do ndio, embora em menor escala.

    O contrrio, portanto, do que afirmou Caio Prado, para quem a contribuio deum e de outro foi literalmente nula.

    sabido, no entanto, que foi esta viso de Caio Prado que, direta ouindiretamente, prosperou na historiografia brasileira, mormente aquela dedicada aoestudo da escravido e do negro no Brasil. Vemo-la nos estudos sobre a rebelio escravados anos de 1950-60, a exemplo de Clvis Moura e de Dcio Freitas,

    12autores que

    concebem a escravido como absolutamente reificadora do africano, que s readquireidentidade e subjetividade na fuga e na revolta, isto , negando a escravido. Encontramosaquele mesmo ponto de vista nos estudos da chamada histrico-sociolgica paulistapublicados nas dcadas de 1960 e 1970, em Florestan Fernandes e seus seguidores,

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    todos concordes em afirmar que a escravido reduzia o africano a um estado de completaanomia social.

    certo que nenhum dos autores acima citados assinaria os juzos implacveis de

    Caio Prado quanto ao nvel nfimo e brbaro das culturas africanas e indgenas,empenhados que estavam em denunciar a violncia da escravido e acentuar o racismodela derivado. Aqueles juzos foram suprimidos, esquecidos, como se Caio Prado no ostivesse emitido, adotando-se apenas a idia reificadora da escravido, derivada do sentidomercantil da colonizao. O alvo de todos eles era sempre Gilberto Freyre com suaviso adocicada da escravido sem preconceitos raciais. E o resultado foi, no planohistoriogrfico, uma interpretao completamente mope da prpria escravido e aomisso dos cruzamentos culturais ensejados pela colonizao. A miscigenao tnicaou racial ficou, como tema, condenada ao ostracismo e ao estigma, identificada smalsinadas posies de Freyre, que apesar de reacionrias politicamente no deixavamde ser absoluta vanguarda em termos intelectuais desde os anos de 1930. O conselho de

    Von Martius que na verdade era bom conselho e foi seguido com brilho por GilbertoFreyre acabaria virtualmente sepultado.Seria preciso esperar o meado da dcada de 1980 para que nossa historiografia

    desse mostras de que o tema da mestiagem cultural no era vo. Nem tanto em relaoao ndio, que praticamente no foi objeto dos historiadores, exceto como alvo dacatequese, mo-de-obra da colonizao ou inspirao do imaginrio europeu. Exceto emraros trabalhos sobre guerras indgenas contra o colonizador, o ndio quase nunca foitratado como sujeito de nossa histria, em franco contraste com a ateno que lhededicaram etnlogos e outros cientistas sociais, a exemplo de Mtraux, Schaden, MariaIsaura, Manuela Carneiro da Cunha, Eduardo Viveiros de Castro e mesmo FlorestanFernandes mais antropolgi co ao tratar deles, nos anos de 1940, do que dos negros,

    dcadas depois. A miscigenao tnica ou cultural, no entanto, permaneceu silenciada,com a nica exceo, talvez, de Srgio Buarque de Holanda, historiador que emCaminhos e fronteiras,

    14elaborou texto definitivo sobre a importncia da cultura

    12. C. Moura, Rebelies da senzala: quilombos, insurreies, guerrilhas , 2. ed. (1. ed. de 1959), Rio de Janeiro,Conquista/INL, 1972; Dcio Freitas,Palmares: a guerra dos escravos, 2. ed. (1. ed. de 1969), Rio de Janeiro, Graal, 1974.

    13. Florestan Fernandes,A integrao do negro na sociedade de classes , 3. ed., So Paulo, tica, 1978.

    14. Srgio Buarque de Holanda, Caminhos e fronteiras, 2. ed. (1. ed. de 1957), So Paulo, Companhia das Letras, 1994.

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    indgena na formao do Brasil estudo que muito inspirou meu prprio estudo sobre aSantidade indgena de Jaguaripe, irrompida no sculo XVI.15 Mas pouco,reconheamos.

    No tocante aos negros, os anos de 1980 trouxeram novidades. Em franca reao viso reificadora do africano sugerida pelos estudos das dcadas de 1960 e 1970, oshistoriadores buscaram mostrar o negro como sujeito da histria, protagonista daescravido, ainda que no aquilombado, quando no cmplice do cativeiro. Avanou-semuito nesta linha de investigao, a comear pelo livro de Ktia Mattoso, Ser escravono Brasil, que recolocou a importncia do paternalismo como mecanismo de podersenhorial e, por meio disso, negou a quase exclusividade do fator violncia comoexplicao do sistema escravista.

    16Indicou tambm a importncia de se estudar a frica,

    o trfico, as etnias, os mores, as religies, para se entender a conformao da culturanegra no Brasil cultura a que muitos chamaram de afro-brasileira.

    A valorizao ou descoberta da frica para o estudo da escravido e da formaoda cultura brasileira um dos mritos da recente historiografia sobre o assunto, o que decerto modo reabilita a obra de Gilberto Freyre, embora as motivaes e inspiraes

    sejam hoje distintas, aparentemente, das do mestre dos Apicucos. Mas fato que Rebelio escrava no Brasil, de Joo Reis, livro sobre a Revolta dos Mals na Bahia de1834, praticamente inaugura nossa moderna historiografia que, para pensar a escravidonegra no Brasil, recorre tambm histria da frica.

    17O mesmo se poderia dizer de A

    paz das senzalas, de Manolo Florentino e Jos Roberto Ges.18

    E ainda mais de RobertSlenes, norte-americano e brasileiro a um s tempo que, em Na senzala, uma flor,decifrou no detalhe a presena da cultura banto no cotidiano da escravido do sudestebrasileiro novecentista.

    19Poderia, de fato, alongar a lista de historiadores lanados

    descoberta de nossas africanidades, prova inequvoca da maturidade de nossahistoriografia, neste ponto muito inspirada pelos sofisticados estudos da bibliografianorte-americana.

    O nico problema que a comparao do Brasil com os Estados Unidos, se jrendeu e rende brilhantes estudos historiogrficos, deve se cercar sempre da maiorcautela. Trata-se de uma comparao inevitvel, como sugere o autor de o Espelho doprspero

    20 e j o ttulo do livro sugere o porqu , e sobretudo quanto questo

    racial so histrias realmente comparveis. Mas comparao mais ideolgica doque histrica, do ponto de vista metodolgico, muito inspirada na questo dasdesigualdades, dos destinos disparatados e do imperialismo do que em problemasespecficos que se prestem comparao, sendo tantas as diferenas em relao ssemelhanas.

    De todo modo, certo que se avana muitssimo quando a pesquisa histrico-antropolgica sobre o Brasil se lana sobre o mundo dos tupinambs, dos bantos ou dos

    15. Ronaldo Vainfas, A heresia dos ndios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial, So Paulo, Companhia dasLetras, 1995.

    16. Ktia Mattoso, Ser escravo no Brasil, So Paulo, Brasiliense, 1982.

    17. Joo Reis,Rebelio escrava no Brasil, So Paulo, Brasiliense, 1985.18. Manolo Florentino e Jos Roberto Ges,A paz das senzalas, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1997.19. Robert Slenes,Na senzala uma flor, Rio de Janeiro, Nova Fronteira (no prelo, a sair em 1999).20. Richard Morse, O espelho do prspero, So Paulo, Companhia das Letras, 1992.

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    nags. Mas a compartimentao, em nosso caso, oculta, queira-se ou no, amiscigenao tnica , racial ou cultural que caracteriza nossa formao histrica. Nisto,ainda hoje, nossos historiadores se afastam de Gilberto Freyre, que estudou ndios esobretudo africanos no para salientar as incomunicabilidades, intocabilidades,sobrevivncias ou especificidades, moda norte-americana, seno para destacar asmesclas e metamorfoses. Mesclas culturais, metamorfoses raciais.

    Nossa historiografia atual avana, certo, no tocante mescla cultural, e nissobusca nossas originalidades, mas evita o tema da miscigenao racial. Outrora, amiscigenao era abordada sem sexo, assptica, como se isto fosse possvel. Hojebusca-se a mescla cultural, quando muito; a sexualidade, um pouco. Mas predomina osilncio sobre a mestiagem, no sentido o mais amplo possvel, incluindo o racial. Narealidade, a nfase nas mesclas ou hibridismos culturais convive com a busca dosparticularismos, rivaliza com ela, procura das recriaes ou sobrevivncias, sobretudodfrica, na cultura brasileira.

    Em resumo, e numa viso de conjunto, nossa historiografia avanou muito emrelao ao que propunha Martius nos anos de 1840, o que no de surpreender. Nas

    ltimas dcadas, ps em cena a problemtica dos hibridismos culturais, refinando oconceito de miscigenao, introduzindo os estudos sobre intermedirios culturais oufenmenos de mestiagem cultural perfeitamente afinados com o que se tem produzidona historiografia internacional especializada. Avanou tambm na dimenso tnica dosencontros e conflitos da colonizao, (re)valorizando criticamente o trabalho de antigose modernos etnlogos, desvendando recriaes de culturas na dispora, o que resulta emgrande parte da aproximao com a antropologia e com a historiografia norte-americana.

    Persiste, no entanto, certa dvida de nossos historiadores em relao problemtica da miscigenao racial deflagrada desde nosso primeiro sculo. Dvida ouomisso derivada, como disse, de certo mal-estar causado pela idia de democraciaracial sugerida por Gilberto Freyre, ao que se poderia acrescentar a carga

    estigmatizante que pesa sobre o conceito de raa, to em voga nas primeiras dcadas doatual sculo, cuja aplicao histrica em polticas de segregao ou mesmo extermnio por demais conhecida em vrias partes do mundo. Dvida ou omisso causada pelaconvico oposta de Freyre, ou seja, a de que a escravido colonial criou o racismoque existe entre ns at hoje, camuflado ou explcito, sem que seja ele estudado nas suasorigens e sem que se eleja a miscigenao racial como tema legtimo de investigao. Oconstrangimento maior, entre os historiadores, parece residir na problematizao doconceito de raa.

    Mas se o conceito de raa for tomado no como fundamentalmente biolgico, moda do sculo XIX e incios do XX, seno como social e ideologicamente construdo.conforme nos sugere Lilia Schwarcz,21 talvez seja possvel superar os constrangimentos

    que a matria tem causado no mbito dos historiadores.Uma tal opo implicaria retomar, antes de tudo, a problemtica do racismo oudos racismos construdos e vulgarizados na sociedade colonial. No o racismoingenuamente associado escravido e ao preconceito de cor, como muitos outroraafirmaram, na esteira de Caio Prado Jr. (ele, que denunciava o racismo colonialista mas

    21. Lilia Schwarcz, O espetculo das raas ..., op. cit., p.17.

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    afirmava a inferioridade das culturas no europias). Nem seria o caso de pensar oracismo dos sculos XVI ou XVII luz do racismo biologizante do XIX, pelo evidenteanacronismo que implicaria semelhante opo. Devo dizer, alis, que a impertinnciabvia do conceito biolgico de raa no Antigo Regime no significa jamais admitir aausncia de racismo nos tempos coloniais, nem deve inibir estudos e reflexes sobre oassunto. Basta relembrar os estudos de Boxer, entre outros, que apontam para aexistncia de um conceito de raa ligado ao sangue e ascendncia, conceitoconsagrado nos estatutos ibricos de limpeza de sangue, que s foram abolidos noBrasil em 1824, para que se confirme a relevncia da questo nos estudos sobre asociedade colonial. Diria mesmo que nisso deve residir a principal objeo interpretao de Gilberto Freyre sobre nossa antiga sociedade escravocrata, semprejuzo da miscigenao cultural e racial que Casa-grande e senzala to bem realouem nossa histria.

    A revalorizao da questo racial na histria da colonizao portuguesa do Brasilpermitiria, ainda, discutir aspectos importantssimos da estratificao social e de suasrepresentaes nos primeiros sculos de nossa histria. Isto porque, se no chegamos a

    possuir uma estratificao racial moda do Mxico, por exemplo onde no sculoXVIII filho de castiza com espanhol tornava a ser espanhol, dentre quatorze tipos demestiagem que jogavam papel importante na escala de privilgios e estigmas da poca ,22

    no foi desprovida de significado, entre ns, a classificao dos indivduos conformesua ascendncia: mamelucos, pardos, mulatos, pardos, crioulos, boais, mouriscos,cristos novos. A ascendncia de sangue, mais do que a cor, possua importncia capitalna vida cotidiana da colnia, embora a cor e as posses do indivduo, maiores ounenhumas, jogassem tambm o seu papel.

    Da longevidade de tais representaes d testemunho nossa vasta bibliografiasociolgica. E das transformaes que sofreu ao longo do sculo XIX, para retornarmos histria, basta ler o livro de Hebe Mattos, que pe em xeque o papel decisivo da cor na

    sociedade brasileira de fins do sculo XIX, sem deixar de problematiz-la e muito emAs cores do silncio.23

    caso de repensar, portanto, na virada do milnio que se aproxima, a contribuio

    de Gilberto Freyre. Autor que, a despeito de generalizaes abusivas, intuiessubjetivas e outros falsetes, ps em cena a miscigenao. Miscigenao sexualizada,racial e cultural a um s tempo, questo chave da histria do Brasil. Mas caso deretomar tambm o seu oposto exato, o ingls Charles Boxer que, sem negar amiscigenao racial, tnica ou cultural, ps em cena os preconceitos raciais doutrora,suas regras, protocolos e etiquetas. No h porque fugir a tema to crucial, refugiando-se os historiadores no estudo de culturas tnicas e nos fenmenos de mescla cultural,temticas de suma relevncia, mas que no esgotam o assunto. Temtica proposta, talvez

    sem querer e mal posta que seja por von Martius, h mais de um sculo.

    22. Magnus Morner,La mezcla de razas en la historia de Amrica Latina, Buenos Aires, Paids, 1969, p.64.23. Hebe Mattos,As cores do silncio, 2. ed., Nova Fronteira, 1998.