colónias negativos DANIEL ROCHA da nossa História da... · Portugal na guerra, mostra o que...
Transcript of colónias negativos DANIEL ROCHA da nossa História da... · Portugal na guerra, mostra o que...
Centro de Estudos Sociais Coimbra
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Sexta-feira | 29 Junho 2012 | ipsilon.publico.pt
Os negativos
da nossa História
O olhar proibido sobre a guerrae ascolónias
Carlos Ruiz ZafónO escritor que reinventa BarcelonaDavid Foster Wallacea sua piada de mil páginas dá trabalho
ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012 | 7
Primeiro esquecidas pelo mundo e depois registadas em meia-dúzia de documentários estrangeiros, as guerras de libertação das ex-colónias portuguesas sobrevivem até hoje nos arquivos. Filmes que completam a visão parcial que tínhamos da guerra colonial imposta pela propaganda do regime, são como uma visita descida guiada aos infernos de um império terminal. Não são propriedade nossa. Mas são parte do nosso património.
O nosso Apocalypse Now
Ana Dias Cordeiro
São filmes pouco conheci-
dos dos portugueses. Proi-
bidos até ao 25 de Abril de
1974, fizeram o seu cami-
nho apesar da censura, e
também por causa dela.
Com eles se desafiaram Salazar e
Marcello Caetano. Com eles se mos-
trou o lado da guerra colonial que o
regime queria ocultar: o sofrimento,
as atrocidades, o absurdo do confli-
to e as razões da luta. São documen-
tários ou longas reportagens, filma-
dos por televisões dos EUA, Reino
Unido, França ou Suécia entre 1961
e 1971. Impuseram-se e talvez te-
nham ajudado a despertar consci-
ências nos bastidores da ONU.
Raramente estes filmes foram exi-
bidos em Portugal, e nunca pela te-
levisão pública, mas são parte do
nosso património de imagens. Hoje
estão guardados em armários ou em
cofres nos arquivos da Cinemateca
Portuguesa, do Centro de Audiovi-
suais do Exército e da RTP. Comple-
tam a visão parcial gravada na me-
mória daqueles que apenas viram
os filmes do Exército, obedientes à
censura do olhar imposta pela pro-
paganda do regime. Contam uma
parte da nossa História e por isso
são importantes. Mas de que forma
entraram no nosso imaginário?
Angola, ano zeroAngola – A Journey to War (Angola
— Jornada para a Guerra), produzido
e exibido pela televisão norte-ame-
ricana NBC, foi o primeiro. Filmado
na aurora da luta de libertação em
Angola, em 1961, ano zero da guerra
portuguesa no Ultramar.
O país está em guerra e fechado a
jornalistas estrangeiros. Robert
Young e Charles Dorkins entram pe-
lo Congo com a União das Popula-
ções de Angola (UPA), ex-Frente
Nacional de Libertação de Angola
(FNLA) de Holden Roberto. Percor-
rem centenas de quilómetros de
mato. Filmam “uma longa e única
caminhada” às profundezas de “um
dos lugares mais dramáticos e igno-
rados do mundo”.
Mostram em silêncio os corpos
deixados pelos massacres da UPA,
no Norte de Angola, de populações
brancas e dos seus trabalhadores
negros. (São imagens de indizível
violência — entre as vítimas estão
crianças). Exibem também o rasto
de destruição deixado por bombas
napalm lançadas por aviões da For-
ça Aérea portuguesa. Penetram no
“reino do silêncio” dos revoltosos.
“Para um repórter, a grande emoção
é ver o que mais ninguém viu”, dirá
o apresentador do programa.
Este, como os outros documentá-
rios estrangeiros sobre o papel de
Portugal na guerra, mostra o que
ninguém tinha visto. Desconstrói o
discurso oficial do regime de Salazar
de que as colónias eram Portugal e
de que todos os habitantes queriam
permanecer portugueses.
A imagem de uma livre convivên-
cia entre brancos e negros, diz o
narrador de Angola – A Journey to
War, oculta uma realidade desco-
nhecida: menos de um por cento
dos nativos conseguiu a cidadania
e o analfabetismo é muito elevado.
Por trás disto, continua, “existe um
sistema que só pode ser descrito por
estas palavras: trabalho forçado”.
Pelos trilhos da caminhada que
os repórteres iniciam ao lado dos
rebeldes, há marcas de uma revolta
de trabalhadores contratados, numa
plantação de café com três portu-
gueses mortos. É como a visita guia-
da de uma descida aos infernos.
Na escola da aldeia de Buela, na
sala de aula, escrito a giz no quadro:
“15 de Março de 1961: Independên-
cia de Angola”. Data dos massacres
da UPA. Nessa aldeia, agora vazia e
em ruínas, o administrador do pos-
to e a mulher, portugueses, foram
assassinados; a população fugiu;
quando as tropas coloniais entra-
ram, foi para se vingarem.
Quando por ali passa a câmara de
Robert Young e Charles Dorkins, das
150 casas apenas restam ruínas. A
haver uma frase capaz de derrubar
a imagem composta pelo regime de
uma convivência sã entre colonos e
colonizados, seria esta, em voz-off:
“Parecia que os portugueses tinham
reagido como se todos os africanos
fossem contra eles”.
Mais à frente, mais vestígios de
bombas incendiárias lançadas por
aviões militares portugueses. O
A guerra em directoFilmes como A Group of Terrorits Attacked... destapavam a sombria realidade das muitas mortes de soldados portugueses numa guerra perdida por Portugal. Enquanto nos documentários da propaganda, as cenas de guerra são encenadas, filmes como este captam o conflito em tempo real e propõem oferecer a “verdade mais pura”
8 | ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012
Nas várias camadas de um
filme, há o que não se vê
mas se adivinha. Planos e
formatos impostos,
legendas que enaltecem
a política do Governo,
cenas revistas, diálogos alterados
por ordens ou recomendações
subtis. São os retoques para
chegar à imagem idealizada e
projectada pelo Governo de
Salazar (de si próprio).
Quando se preparava para
filmar A Revolução de Maio (1937),
António Lopes Ribeiro, cineasta
do regime, expõe num documento
de 1936 os “pontos cardeais” da
obra: servir o cinema português, o
público português, a propaganda
do regime, a política de Salazar.
Num só: servir Salazar.
António de Oliveira Salazar não
era cinéfilo, no sentido de dedicar
muito tempo à sétima arte. Mas
era sensível à força das imagens e
escolheu, para dirigir a
propaganda do regime, um
homem que admirava Mussolini e
que olhava para o cinema (e para a
arte) como uma forma de servir o
poder.
“António Ferro era o nosso
Goebbels”, diz Maria do Carmo
Piçarra, investigadora que estuda
a memória cinematográfica do
colonialismo durante o Estado
Novo e autora de Salazar vai ao
Cinema — ‘O Jornal Português’ de
Actualidades Filmadas (2006) e
Salazar vai ao Cinema II — A
‘Política do Espírito’ no ‘Jornal
Português’ (2011). A especialista
conta que, nos anos 1930, para A
Revolução de Maio, Ferro e Lopes
Ribeiro tentaram contratar, sem
êxito, um director de fotografia
que mais tarde trabalhou com
Leni Riefenstahl nos filmes de
propaganda do regime nazi.
“Durante o período António
Ferro, há efectivamente uma
vontade de instrumentalizar o
cinema e uma crença nas suas
possibilidades”, aponta. Começa
por haver dinheiro para a
Um dos dois mais importantes filmes de propaganda nacional - o outro é, Revolução de Maio, também de Lopes Ribeiro
O chefe da propaganda de Salazar,
admirador de Mussolini, antecipou
o sucesso da estética de Leni Riefenstahl,
a cineasta que fi lmou a ascensão de Hitler.
Através do cinema, António Ferro criou
uma imagem idealizada do Estado Novo.
Nenhum olhar pessoal — e alternativo
— era tolerado. Ana Dias Cordeiro
A imagem fabricada de uma “grande nação”
napalm vem da NATO, de que Por-
tugal é membro; as munições espa-
lhadas no rasto dos revoltosos tra-
zem a marca da Checoslováquia ou
da Alemanha de Leste, de Cuba, da
Coreia do Norte, da China comunis-
ta.
Pelo caminho, outra aldeia. Todas
as casas destruídas. Mais mortos. E
caveiras. Em Cokilenga, 17 homens
foram levados para o mato e execu-
tados. Um rapaz não chegou a ser
abatido. Caiu como se estivesse mor-
to. Mas apenas desmaiou. Sobrevi-
veu para contar a história: “Este
rapaz perdeu o pai, este homem um
irmão, esta criança o pai.”
Um país em negaçãoEsta mãe perdeu um filho. Este ho-
mem está de luto pelo irmão. Sen-
tada, está uma senhora que agora
ficou viúva. Não há voz-off mas adi-
vinha-se por que estão estas pesso-
as nas celebrações do 10 de Junho
de 1963, filmadas pelo Ministério do
Exército.
“Os heróis não morrem efectiva-
mente, elevam-se acima dos outros
homens”, diz o narrador do filme
Aqueles que por obras valerosas, nu-
ma evocação de Camões.
Imaginam-se os soldados que
tombaram aqui — encarnados pelos
familiares, vestidos de preto, rece-
bendo humildemente condecora-
ções póstumas. Como tristes espec-
tros no meio de um imponente des-
file militar no Terreiro do Paço, em
Lisboa, em que tudo converge para
enaltecer o sentido patriótico de um
país em negação. Uma parte impor-
tante destes filmes, como de outros
registos da propaganda do regime
na guerra, foi realizada por equipas
de audiovisuais do Exército em tra-
balho nas províncias ultramarinas.
Em 1967, “Por quem combatemos”,
também realizado pelo Exército,
mostra a pompa das paradas e das
festividades frente ao palácio do go-
vernador em Bissau, num ritual re-
petido todos os domingos, “como
símbolo para as gerações futuras de
coragem, fé e certeza no dia de ama-
nhã”. Homenageia os soldados bran-
cos e negros, “chamados a defender
um património sagrado” num com-
bate “pela grandeza da nação”. E
faz um louvor ao general Schultz,
governador da Guiné entre 1964 e
1968, “o homem, o governante, o
amigo, a certeza de que Portugal
está e continuará a estar na Guiné”,
a prova da convicção de que “a luta
só terminará pela derrota do inva-
sor”.
Filmes estrangeiros como A group
of terrorists attacked… (1968), do
britânico John Sheppard, para o pro-
grama World in Action, e Nô Pintcha
(Em Frente, 1970), do trio francês
Tobias Engel, René Lefort e Gilbert
Igel, desconstroem esses mitos.
Abrem portas para uma sombria
realidade: as muitas mortes entre
soldados portugueses e a dificulda-
de do regime em sustentar a guerra
e em ganhá-la, apesar de quase me-
tade do orçamento do Estado ser
destinada a despesas militares.
Enquanto nos filmes da propagan-
da, as cenas de guerra são encena-
das, os documentários estrangeiros
Os investigadores Maria do Carmo Piçarra e José de Matos-Cruz
PEDRO CUNHA
PEDRO CUNHA
CINEMATECA PORTUGUESA - MUSEU DO CINEMA
ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012 | 9
projecção de filmes estrangeiros,
depois para a produção de
actualidades cinematográficas e
finalmente o investimento foca-se
na ficção e em filmes como A
Revolução de Maio e O Feitiço do
Império. Mais tarde é criado um
Fundo do Cinema Nacional que
apoia filmes se forem
nacionalistas — casos de Camões,
de Leitão Barros, ou Chaimite, de
Jorge Brum do Canto.
Por fim, são concedidas bolsas a
jovens para estudarem cinema no
estrangeiro. Sem saber, a
propaganda estava a alimentar um
cinema de ruptura; é quando
surgem realizadores como Manuel
Faria de Almeida ou Joaquim
Lopes Barbosa, que oferecem um
olhar alternativo sobre as colónias
mas não o podem mostrar.
Catembe e Deixem-me ao menos
subir às palmeiras de um e de
outro, respectivamente, são
proibidos. Com 103 cortes,
Catembe foi o filme mais
censurado de sempre. Mesmo
depois dos cortes, não foi
autorizada a sua exibição. Como
aconteceu a António de Sousa
com O Esplendor Selvagem e a
António Campos com A Invenção
do Amor, parábola sobre o país
totalitário inspirada num poema
de Daniel Filipe que circulava na
oposição.
O que distingue estes quatro
filmes — cada um com o seu
registo distinto — da lista de
censurados (como Maria Papoila,
Os Verdes Anos e outros) foi o
impasse em que colocaram os
seus autores. Não reviveram com
o 25 de Abril. Não tiveram estreia
comercial. Ficaram restritos a
pequenos círculos, ou foram
esquecidos.
A Política do EspíritoÉ de Ferro a ideia de criar o
Cinema Popular Ambulante e as
suas sessões de propaganda, em
1935. Duas carrinhas — o Cinema A
e o Cinema B — percorrem o país e
chegam a lugares recônditos para
mostrar filmes com um pendor
nacionalista ou militarista, vindos
dos EUA ou da Alemanha, e
produções nacionais de
propaganda explícita, de
actualidades ou ficção, como A
Revolução de Maio, “usadíssimo
nessas sessões”, diz Carmo
Piçarra.
Este é o primeiro dos dois mais
importantes filmes (o segundo é O
Feitiço do Império, também
realizado por António Lopes
Ribeiro, em 1940) da propaganda
explícita do Estado Novo. Em
ambos, o protagonista tem um
momento de revelação a partir do
qual se deslumbra com o Governo:
no primeiro caso, quando ouve
um discurso de Salazar; no
segundo, quando viaja para África
e fica rendido à obra do regime
nas colónias.
Oficialmente, como
especificado num decreto-lei,
compete ao Secretariado da
Propaganda Nacional (SPN) de
António Ferro utilizar o cinema
político e social vigorante.”
O Ministério do Interior, o
Ministério do Ultramar e a Agência
Geral do Ultramar também
interferem — estes dois últimos
depois de 1961, com o início da
guerra colonial.
Os cortes na película eram
entregues pelo realizador aos
censores — e destruídos. Mas
ainda se encontram, nos arquivos
da Cinemateca Portuguesa, latões
com alguns cortes, recuperados
dos gabinetes dos censores no
Palácio Foz, depois do 25 de Abril,
diz Joana Pimentel.
Um cinema estropiadoNa maioria dos casos, porém, é
um material que desaparece “para
sempre”, frisa Carmo Piçarra.
“Em relação à produção
portuguesa, houve muitas vezes
necessidade de restaurar os filmes
fragmentados, estropiados”,
considera José de Matos-Cruz. “A
versão final que chegou ao público
acabou por ser uma versão
incompleta. Muitas vezes era
completamente impossível
restaurar o olhar ou a expectativa
dos cineastas que os produziram
ou realizaram”, acrescenta o autor
de dezenas de obras sobre
cinema, entre as quais O Cais do
Olhar, Prontuário do Cinema
Português ou 30 Anos com o
Cinema Português. Para ele, isso é
“trágico”.
O realizador Fernando Matos
Silva não viu o seu primeiro filme
cortado — viu-o proibido. Hoje
recorda uma noite, no princípio
de 1974, em que conseguiu, com o
distribuidor, organizar uma sessão
clandestina de O Mal-Amado na
antiga sala do Cinema Roma, em
Lisboa. “No passe-a-palavra, a sala
quase encheu”, diz ao Ípsilon.
Como o seu O Mal-Amado,
também Sofia e a Educação Sexual,
de Eduardo Geada, Nojo aos Cães,
de António de Macedo, Índia, de
António Faria, e outros só
puderam ser exibidos depois da
queda do Estado Novo.
O olhar crítico sobre a guerra
colonial, a repressão sobre os
estudantes, a questão familiar —
com a libertação que o
protagonista João ( João Mota)
propõe às irmãs, a cena em que a
mãe (Helena Félix) questiona as
amarras que a prendem a um
papel imposto, pela moral, à
mulher na sociedade, e o sexo
quase explícito entre Inês (Maria
do Céu Guerra) e João — faziam de
O Mal-Amado um filme
previsivelmente proscrito. O guião
não foi enviado ao exame prévio
como era obrigatório e o
realizador não se autocensurou.
Filmou e concluiu a longa-
metragem — “um objecto cultural
com uma posição clara de
denúncia” — como se vivesse num
país livre. E, como se adivinhasse
que um 25 de Abril se preparava,
esperou tranquilamente até poder
exibi-la. O Mal Amado foi o último
filme a ser proibido pela censura e
o primeiro a ser estreado depois
de Abril de 1974.
“como meio indispensável da sua
acção”. E garantir que as legendas
alusivas ao Estado Novo são
obrigatoriamente incluídas nos
filmes. Quando sai do Secretariado
Nacional da Informação (SNI), que
entretanto substituira o SPN, em
1949, Ferro deixa como herança a
Política do Espírito, apoiada na
noção de que era possível, por via
da cultura, construir uma ideia de
nação.
Mais tarde, com o advento da
televisão, em 1957, o poder das
imagens transfere-se, em parte,
para o pequeno ecrã. “Mais
importante do que a película, para
a influência sobre a população,
era a produção televisiva da
época, em séries, reportagens e
nas próprias mensagens de Natal e
Ano Novo com os soldados a
combater nas colónias”, diz o
investigador José de Matos-Cruz.
“O contexto emocional, de
coacção psicológica, era aí muito
mais forte.”
Essa estética de poder é fruto da
propaganda; e da censura. Da
Inspecção-Geral dos Espectáculos,
espera-se que cumpra a “rigorosa
interdição”, instituída pela
censura em 1927, de exibir “fitas
perniciosas para a educação do
povo, do incitamento ao crime,
atentatórias da moral e do regime
“Mais importante do que a película, para a influência sobre a população, era a produção televisiva da época, em séries, reportagens e nas próprias mensagens de Natal e Ano Novo com os soldados a combater nas colónias” José de Matos-Cruz
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sábado 14 julho 16h00 às 20h30 Entrada Livre
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dentro e fora de portas dedicado ao tema ManifestoCelebramos o último dia da temporada com um programa
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10 | ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012
A lembrança desse dia
quase se apagou da
memória de Manuel Faria
de Almeida. “Mil
parabéns. Ganhámos
Catembe”, dizia o
telegrama do produtor António da
Cunha Telles, em 1964. Tinha 30
anos. Hoje, o realizador não sabe
se há de olhar para trás ou
esquecer que Catembe (1965)
existiu.
O filme foi uma conquista. E
uma perda. Um olhar livre, logo
condenado à nascença, sobre a
vida em Lourenço Marques, nos
sete dias da semana, organizado
como o Cléo de 5 à 7 de Varda. Um
filme que não desafiava a censura,
fazia como se ela não existisse. Um
filme raro no panorama de outros
filmes apoiados pelo Fundo do
Cinema Nacional e formatado pela
vontade da propaganda. E no
entanto, também ele foi
subsidiado. Mesmo antes da
rodagem, já havia alertas da PIDE.
Catembe teve depois 103 cortes da
censura tornando-se o filme mais
censurado de sempre, com
menção no Guiness. Os 87 minutos
do original foram cortados para 48
minutos pela Agência Geral do
Ultramar. Faria de Almeida
remontou o filme, para lhe dar
sentido com o que lhe restava.
Mesmo assim, a Inspecção-Geral
dos Espectáculos proibiu o filme.
Faria de Almeida desistiu. Não
queria fazer mais cortes.
A censura deixou-lhe marcas.
“Na altura sim. Senti-me atacado
na minha criatividade. Fiquei sem
saber o que fazer.” Decidiu: “Não
faço mais filmes de fundo. Vou
dedicar-me ao documentário.”
Virou a página. Mais tarde, ganhou
prémios como documentarista.
Foi presidente da Tobis e do
Instituto Português de Cinema. Na
RTP, foi responsável de produção-
realização e de formação.
Em nenhum momento pensou
em não pôr no filme o seu olhar
poético e a visão realista que tinha
das colónias. O seu
cosmopolitismo abre-lhe
horizontes. Dá à obra esse “olhar
de subtileza crítica”, nas palavras
do investigador José de Matos-
Cruz, e traz-lhe novidades sobre o
que era Moçambique nos anos 60.
Depois de concluir o curso em
Londres, de vencer o 1º prémio do
Festival Cinestud de Amesterdão
com a curta Streets of Early Sorrow
e de estagiar na cinemateca
francesa, Faria de Almeida estava
cheio daquela ideia do cinema
directo, muito montado,
sincopado, que vira em Londres.
Era admirado de Varda, Chris
Marker, Resnais.
“Quando decide fazer um filme,
Faria de Almeida está muito mais
próximo daquilo que se passa no
mundo e num regime mental
muito mais aberto do que alguns
realizadores a filmar em Portugal
que conheciam os limites e sabiam
até onde podiam ir”, diz Maria do
Carmo Piçarra, investigadora.
Catembe não sabia ser outra
coisas que não ela própria: a outra
margem de Lourenço Marques,
vila de pescadores de andrajos e
olhar intenso, cuja imensa
pobreza contrasta com o bem-
estar dos colonos em Lourenço
Marques, ou a personagem
imaginada por Faria de Almeida,
com o mesmo nome. “Fiz
Catembe por gostar muito de
mostrar o que achava que não
estava bem.”
O filme estava pronto em 1965
mas nunca teve estreia. Foi visto
depois do 25 de Abril na
Cinemateca e numa sessão no
Nimas. Em Setembro, vai ser
exibido no Department of Arts, do
Goldsmiths College, na
Universidade de Londres. A.D.C.
Manuel Faria de AlmeidaUm olhar livre condenado pela censura
“Senti-me atacado na minha criatividade. Fiquei sem saber o que fazer”
A censura deixou marcas em Faria de Almeida
captam o conflito em tempo real,
propõem “a verdade mais pura”,
como A Group of Terrorists Atta-
cked… quando mostra o ataque do
Partido Africano da Independência
da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) ao
quartel de Buba: 12 minutos de pe-
lícula, 12 minutos de trincheiras.
O ataque podia ter corrido mal
para os guerrilheiros do PAIGC, mas
o movimento entrara numa fase da
luta em que não duvidava da vitória.
E em que se concentrara no desen-
volvimento de escolas e hospitais
— alvos prioritários dos bombarde-
amentos — nas zonas libertadas.
De metralhadora em punho, ele-
mentos da Milícia Popular Armada
acompanham um grupo de crianças
a uma escola improvisada sob um
telhado de palha. A câmara do rea-
lizador de Nô Pintcha segue-os. Fil-
ma o momento em que o grupo fica
debaixo de um intenso bombarde-
amento e foge. Os ataques surgem
a qualquer momento. “A alfabetiza-
ção é um dos grandes medos dos
colonialistas portugueses”, diz o
narrador. As imagens alternam com
as palavras de Amílcar Cabral: “Lu-
tamos para que o nosso povo seja
livre, independente e soberano.”
Longe das posições da tropa portu-
guesa, a câmara filma fotografias de
soldados brancos com crânios de
negros mortos, como troféus.
Um “mini-Vietname” O que diria Francis Ford Coppola
destas guerras? Num dos primeiros
planos de A group of terrorists atta-
cked…, e depois de um breve retra-
to do país e da apresentação de al-
guns comandantes da guerrilha do
PAIGC, a voz-off do narrador marca
o tom: “Estas pessoas não querem
ser portuguesas; a sua guerra é um
mini-Vietname, com a diferença de
que não enchem as primeiras pági-
nas de jornais; a inspiração destes
combatentes vem do Vietname do
Norte; chamam-se a si nacionalistas,
mas são tratados por comunistas”.
O filme de Tobias Engel retrata um
Exército português em desvanta-
gem, recolhido nos aquartelamen-
tos, e uma presença portuguesa
“paralisada” nas cidades — “o mato
estava interdito ao general Spínola”,
então governador —, enquanto os
filmes da propaganda apresentam
o cenário exactamente oposto.
“Sejamos dignos deles e não vaci-
lemos da decisão”, diz Marcello Ca-
etano sobre imagens de negros e
brancos, juntos sob a bandeira por-
tuguesa, no filme Angola na Guerra
e no Progresso — neste filme, tam-
bém de 1971, os movimentos rebel-
des são descritos como “bandos
embriagados pela droga” que “des-
truíam tudo o que encontravam sem
qualquer finalidade”.
A propaganda apostava também
nas actualidades cinematográficas,
nos filmes de acção psicológica, fei-
tos pelo Exército, ou nas mensagens
de Natal e Ano Novo exibidas, em
projectores portáteis, para os solda-
dos portugueses no mato.
“Desde o princípio dos anos 1920,
as Forças Armadas tiveram núcleos
de audiovisuais. Esse sentido de pro-
paganda era muito importante para
Catembe , sobre a vida em Lourenço
Marques nos anos 60, não desafi ava
a censura, fazia como se ela não existisse
CARLA ROSADO
ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012 | 11
Ao telefone, começam por
se ouvir interferências,
mas Joaquim Lopes
Barbosa capta o
essencial. O pedido de
entrevista a partir de
Lisboa é para que fale sobre
Deixem-me ao menos subir às
palmeiras... (1972) a partir de
Maputo. “É um fi lme histórico”,
diz. A linha melhora e a conversa
fl ui: “É um dos raros fi lmes
anticoloniais feitos na
clandestinidade e com grandes
difi culdades em Moçambique.
Vencemos as batalhas todas”. Não
foi vencida a última: a da censura.
Lopes Barbosa já contava com
isso. “O fi lme era muito violento
para a época, era um tabu falar
dos moçambicanos negros na era
colonial. Essa realidade não era
mostrada, falada, fi lmada.”
Como Catembe, Deixem-se ao me-
nos subir às palmeiras fi cou na som-
bra; quase desconhecido. Ganhou
notoriedade mais pelo simbolismo
e não tanto por ser exibido. Rara-
mente o foi, nunca teve estreia co-
mercial.
Fez história e não só do ponto de
vista do realizador: “Foi o primeiro
rodado no Ultramar por ultramari-
nos”, escreveu Luís de Pina, antigo
director da Cinemateca, em História
do Cinema Português que o refere
como “uma obra de fi cção exemplar
sobre o colonialismo, numa pers-
pectiva crítica e alegórica”.
Enquanto Faria de Almeida tem
“um olhar mais urbano e de teste-
munho social”, Lopes Barbosa “quer
criar uma metáfora política sobre a
situação que se vivia”, diz ao Ípsi-
lon o investigador de cinema José
de Matos-Cruz.
Realizador marxista e inspirado
pelo cinema soviético, é também o
primeiro em Moçambique a fazer
a apologia da libertação. Inspira-se
do conto Dina do moçambicano Luís
Bernardo Honwana. E retrata, através
da história de Madala, Maria, Djimo e
o capataz do fazendeiro, a explora-
ção de trabalhadores nas fazendas de
proprietários brancos, a humilhação
e a violência. Malangatana Valente,
na altura ainda não conhecido como
pintor, também entra no fi lme.
No vazio da existência, no ciclo de
escravatura, de que era difícil sair,
Djimo encarna a esperança. Vestido
de fato e camisa, de mala na mão,
nega o trabalho escravo e parte da
aldeia. “É uma forma de se libertar.
Vai à procura de soluções e uma de-
las é a guerrilha, a luta de liberta-
ção”, diz Lopes Barbosa.
Mesmo tentando criar ilusões aos
censores – de que este não era um
fi lme sobre Moçambique – com a es-
colha de um negro para capataz do
fazendeiro branco e este último a
falar inglês e não português, o fi lme
foi proibido.
Como Faria de Almeida, também
Lopes Barbosa estava envolvido no
movimento do Cinema Novo. Como
ele, perdeu o que podia vir depois
– uma carreira promissora no ci-
nema de fi cção. Mas ganhou, pela
liberdade.
“Na altura, estive 100 por cento li-
vre”, longe do “cinema falso do Esta-
do Novo”. Quando descobriu a lite-
ratura angolana, de Viriato da Cruz
ou António Jacinto, viu que ela fazia
“o retrato autêntico do homem”. E
pensou: “É isso que eu vou fazer.”
Juntou as infl uências do neo-realis-
mo italiano, da Nova Vaga de cinema
francês, do Cinema Novo brasileiro
e do cinema soviético mudo.
O fi lme teve projecções indepen-
dentes e pontuais em Moçambique
ou Portugal. Foi recentemente exi-
bido pela Cinemateca, onde o pro-
dutor Courinha Ramos, ao fi m de
muitos anos, depositou o negativo
e a cópia de 35 mm. A.D.C.
Joaquim Lopes Barbosa Criador de metáforas políticas do Moçambique rural Deixem-se ao menos subir às palmeiras
foi o primeiro rodado no Ultramar
por ultramarinos, olhar crítico
e alegórico sobre o colonialismoRealizador marxista e inspirado pelo cinema soviético, é o primeiro em Moçambique a fazer a apologia da libertação
“É um dos raros filmes anticoloniais feitos na clandestinidade em Moçambique”
12 | ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012
as instituições militares portuguesas”,
diz José de Matos-Cruz, investigador
de cinema, na Cinemateca até 2008.
Além de Angola na Guerra e no
Progresso, o tenente-coronel Quiri-
no Simões realizou também Moçam-
bique, Missão de Combate (1968) e
Guiné, a Caminho do Futuro (1971).
Neles se acreditava num Portugal
vítima de uma guerra imposta por
movimentos terroristas, motivada
por uma conspiração comunista,
mas determinado a progredir e a
defender a grandiosidade do seu
invencível império.
Este é um sonho a desmoronar-se
em Portugal – A Dream of Empire
(1971), da britânica Yorkshire TV,
que põe claramente em dúvida a
capacidade de Portugal fazer a guer-
ra. Como esse, os outros documen-
tários estrangeiros dizem muito do
que foi a obstinação de Portugal em
manter as colónias quando os líde-
res africanos já as viam como nações
independentes. Hoje, podem ser
lidos como um prenúncio do que
viria a acontecer. São eles próprios
gestos de libertação.
Nascimento de uma naçãoAlguns incluem imagens de arquivo
feitas por africanos que lutavam
pela independência. Um deles: Flo-
ra Gomes, conhecido realizador da
Guiné-Bissau.
Quando começa a luta de libertação
no seu país, em 1963, depois de An-
gola (1961) e antes de Moçambique
(1964), Flora Gomes tem 14 anos. A
mãe manda-o do arquipélago dos
Bijagós, onde nasceu, para junto de
Amílcar Cabral. Queria que entrasse
na luta para seguir os estudos. Uma
coisa estava ligada à outra.
E a decisão partiu de Amílcar:
“Vais estudar, mas não Medicina ou
Engenharia. Vais estudar cinema,
porque a nossa guerra tem de ser
documentada.” Flora Gomes parte
então para Cuba, como muitos jo-
vens que se juntaram à guerrilha.
Mais tarde, as imagens únicas que
filma da guerra de libertação são
utilizadas no filme The Birth of a Na-
tion (1973), no qual os suecos Robert
Malmer e Ingela Romare registam a
declaração unilateral da indepen-
dência pelo PAIGC, um ano antes
do 25 de Abril, na Madina do Boé.
A dupla sueca já antes tinha filma-
do In Our Country the Bullets Begin
to Flower (1971), sobre o papel da
poesia dos fundadores do movimen-
to de libertação em Moçambique
— como Marcelino dos Santos, Sér-
gio Vieira ou Jorge Rebelo — na mo-
bilização para a luta.
Icónico, Amílcar Cabral, também
poeta, surge nos filmes que acom-
panham a guerrilha do PAIGC com
o carisma e a mensagem que fizeram
dele um líder respeitado mundial-
mente, até ser assassinado em Janei-
ro de 1973, poucos meses depois de
ter anunciado, num discurso na
Assembleia-Geral das Nações Uni-
das, em Nova Iorque, que a Guiné-
Bissau se preparava para declarar a
independência de Portugal, nas zo-
nas libertadas pelo seu movimento
— mais de dois terços do território.
Mais do que uma vez, diz, em en-
trevista filmada, que o objectivo do
PAIGC não era lutar contra Portugal
ou os portugueses mas contra o do-
mínio colonial.
Pontualmente, estes retratos “por
dentro” dos movimentos de liberta-
ção são vistos em secções temáticas
de festivais que focam a guerra co-
lonial. Mas foi logo a seguir ao 25 de
Abril, que o seu visionamento em
sessões restritas abriu uma janela
para o outro lado da guerra, cuja
realidade ainda estava presente.
Nos anos da censura em Portugal,
eram a PIDE e o Exército a saber
primeiro da existência destes filmes,
diz Joana Pimentel, responsável de
aquisições de depósitos da Cinema-
teca Portuguesa — Museu do Cine-
ma. Antes de a maioria destes docu-
mentários chegar ao Arquivo Nacio-
nal das Imagens em Movimentos
(ANIM), departamento da Cinema-
teca, já estavam no Exército. Eram
adquiridos e vistos pelos militares
como filmes de instrução. Também
o Ministério dos Negócios Estran-
geiros, através das embaixadas, ten-
tava adquirir toda a produção de
televisões estrangeiras sobre Portu-
gal, as colónias e a guerra colonial,
ainda durante o Estado Novo.
Nalguns círculos em Portugal li-
gados a pessoas no exílio, sabia-se
da sua existência. Mas cá só pude-
ram ser vistos depois do 25 de Abril,
na Casa de Angola ou no CIDAC –
Centro de Intervenção para o De-
senvolvimento Amílcar Cabral.
O preço a pagarQuem viu os documentários estran-
geiros “ganhou um sentido mais
humano e mais concreto do que se
passava no outro lado” da guerra,
diz José de Matos-Cruz. “Eram for-
tes elementos de informação, mais
do que os relatórios políticos escri-
tos e que transitavam pelos basti-
dores de assembleias internacio-
nais.”
Os documentários podiam ter
também a sua carga política e, nal-
guns casos, até um pendor propa-
gandístico pela independência.
Presente neles, um olhar político
e humano sobre a realidade, sem
distância e com o absurdo da guer-
ra à flor da pele. Quando se fecha a
cortina de Angola – A Journey to War,
resta o testemunho do repórter.
“Olho para trás e penso nas crianças
e nos velhos e pergunto-me se so-
breviveram, penso nas salas vazias
e silenciosas das herdades portugue-
sas, nas coisas terríveis que se pas-
saram neste país, penso nos jovens,
nos soldados portugueses que não
compreendem porque estão aqui,
todos apanhados numa confusão,
nenhum querendo que as coisas se
passassem assim. Que horrível pre-
ço a pagar pela liberdade.”
Os documentários estrangeiros dizem muito da obstinação de Portugal em manter ascolónias. Podem ser lidos como prenúncio do que viria a acontecer
À luz do Exército Como noutros filmes da propaganda, Angola - Decisão de continuar apresenta a mobilização militar como forma de unir os portugueses contra os massacres
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