Colisões de Direitos Fundamentais - Guilherme Conci

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    N . 17 2008 Salvador Bahia Brasil

    COLISES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAES JURDICAS

    TRAVADAS ENTRE PARTICULARES E A REGRA DA PROPORCIONALIDADE:

    POTENCIALIDADES E LIMITES DA SUA UTILIZAO A PARTIR DA ANLISE

    DE DOIS CASOS

    Luiz Guilherme Arcaro Conci

    Professor da Faculdade de Direito da PUC/SP. Mestre e doutorando em Direito do Estado,

    sub-rea Direito Constitucional, pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo*

    Introduo

    O presente artigo1 tem por objetivo enfrentar o tema da aplicao da regra da

    proporcionalidade quando da coliso de direitos fundamentais baseada em uma relao

    jurdica travada entre particulares. Para isso, devo apontar o norte do presente artigo para dois

    grandes temas, quais sejam, a regra da proporcionalidade, por um lado, e a vinculao dos

    particulares aos direitos fundamentais quando a travar relaes entre si, ausente, dessa forma,

    a figura do Estado.

    Todavia, pretendo partir de alguns pontos basilares para que meu trabalho se foque no

    objetivo principal lanado mais acima, que enfrentar a potencialidade da utilizao da regra

    da proporcionalidade quando uma relao jurdica no presencia a figura do Estado, dizer,

    uma relao cidado-cidado e no uma relao cidado-Estado.

    * Palestrante convidado da PUC/SP no curso de Ps Graduao Lato Sensu (Especializao) em DireitoConstitucional - COGEAE. Palestrante convidado da PUC/SP no curso de Ps Graduao Lato Sensu(Especializao) em Direito Penal e Processual Penal - COGEAE. Palestrante convidado no curso deEspecializao em Direito Constitucional da Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC. Professor de

    Direito Constitucional da Faculdade de Direito Damsio de Jesus. Membro do Conselho Editorial da RevistaBrasileira de Direito Constitucional - RBDC. Supervisor Jurdico do Ncleo de Prtica Jurdica EscritrioModelo Dom Paulo Evaristo Arns, na PUC/SP.1 Esse artigo reproduz boa parte das reflexes de minha dissertao de mestrado.

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    Para o alcance de tal objetivo, fincarei, logo no incio, as premissas sobre as quais

    construo meus argumentos, sem que sejam elas, por bvio, o objeto do presente artigo, a

    deixar de lado, por opo, o desenvolvimento de alguns aspectos mais tericos, os quais

    desenvolvi em minha dissertao de mestrado junto ao Programa de Estudos Ps-Graduados

    em Direito da PUC/SP, para aprofundar a discusso na resoluo dos dois problemas

    propostos, que so o verdadeiro objeto desse artigo.

    Para tanto, o artigo est estabelecido na seguinte ordem, que entendo ser a mais

    razovel para o objetivo que firmei: primeiro, firmarei as minhas premissas, como (a) minha

    posio sobre os direitos fundamentais e a vinculao dos particulares a eles e, a seguir,

    tratarei, brevemente, (b) da regra da proporcionalidade, j muito debatida e pouco entendida

    hodiernamente; logo aps, farei a (c) aplicao dessas premissas aos dois casos propostos quemerecem, ao meu ver, diferentes modos de deciso, sendo o primeiro, aquele que tratar do

    tema da fiscalizao de mensagens eletrnicas de empregado pelo empregador e, o segundo,

    de caso em que empregado conhece da possibilidade de empresa causar dano ambiental e

    informa ao empregador para que obste o referido dano, mas, de forma abrupta, informado

    que se levar a conhecimento de terceiros tal fato ser demitido com justa causa.

    Os dois referidos casos so interessantes, ao meu ver, em razo de dispensarem

    tcnicas distintas de deciso, apesar de se poder falar em direitos fundamentais em ambos,mas ser impossvel, tambm ao meu ver, resolv-los a partir da regra da proporcionalidade.

    1. As premissas.

    1.1. Os direitos fundamentais e a vinculao dos particulares nas relaes jurdicas

    travadas com outros particulares

    Para que alcance, ao final do presente artigo, a resoluo dos casos acima referidos, necessrio que aponte, ao leitor, minha posio sobre a vinculao dos particulares aos

    direitos fundamentais nas relaes que travam com outros particulares.

    O tema j mereceu, tambm no direito brasileiro, alguns estudos de monta2 e, como

    no se trata do objeto central do artigo, j que se faz pressuposto, aponto que, ao meu ver, os

    2 Dentre outros, STEINMETZ, Wilson. A Vinculao dos Particulares a Direitos Fundamentais. So Paulo:Malheiros, 2005 e, do mesmo autor, Principio da Autonomia Privada e Atos de Autonomia Privada. In: SILVA,Virglio Afonso da. Interpretao Constitucional. So Paulo: Malheiros, 2005; SILVA, Virglio Afonso da.Constitucionalizao do Direito Os direitos fundamentais nas relaes entre particulares. So Paulo:

    Malheiros, 2005; SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relaes Privadas. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2004; SARLET, Ingo W. Direitos Fundamentais e Direito: Algumas consideraes em torno da vinculaodos particulares aos direitos fundamentais. A Constituio concretizada: Construindo pontes com o pblico e oprivado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

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    particulares, nas relaes que travam com outros particulares, esto vinculados imediatamente

    aos direitos fundamentais e no, somente, ao direito privado, pois, a priori, negar tal

    vinculao faria com que admitssemos que o dogma contemporneo da supremacia da

    constituio fosse negado e, por conseguinte, admitiramos que h uma seara do direito

    independente dessa mesma constituio. Trata-se da admisso de que os particulares, quando

    a travar relao jurdica com outros particulares, devem, sim, entender que os direitos

    fundamentais esto a vincul-los juridicamente de forme imediata3, haja, ou no, uma relao

    de inferioridade entre eles.

    Tambm, que independe, essa vinculao, de uma mediao a ser executada pelo

    legislador, mediante lei, que contemple expresses abertas como boa-f, funo social etc., ou

    pelo juiz, mediante o atendimento de um dever de proteo do mais enfraquecido naquelarelao jurdica, para que, finalmente, chegue-se concluso de que os direitos fundamentais

    esto a vincular aos particulares4.

    Assim, a vinculao da relao jurdica entre particulares aos direitos fundamentais

    independe da participao do legislador ordinrio como intermediador entre a Constituio e

    seus direitos fundamentais e o negcio jurdico a ser celebrado, j que, no momento mesmo

    3 UBILLOS, Juan Maria Bilbao.La eficcia de los derechos fundamentales frente a particulares: Anlisis de la

    jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Boletn oficial del Estado Centro de Estudos Polticos yConstitucionales, 1997, p. 325: (...) defender la tesis de la eficacia inmediata frente a terceros es afirmar lavirtualidad directa, sin mediaciones concretizadoras, de los derechos fundamentales, em tanto que derechossubjetivos reforzados por la garanta constitucional, frente a las violaciones procedentes de sujetos privados.4A prevalente funo dos direitos fundamentais salvaguardar as liberdades individuais contra interferncias deautoridade pblica. So direitos de defesa do indivduo contra o Estado. Esse (objetivo) decorre dodesenvolvimento histrico do conceito de direitos fundamentais e dos histricos desenvolvimentos que levaram-nos s constituies de vrios pases. Isso corresponde ao significado dos direitos fundamentais na LeiFundamental e provvel pela enumerao de direitos fundamentais da primeira seo da Constituio,apoiando a primazia do ser humano e sua dignidade sobre o poder do Estado. por isso que o legislador admitiuo remdio extraordinrio (...) da queixa-constitucional ser trazido ( Corte) somente contra atos do poderpblico. tambm verdade, entretanto, que a Lei Fundamental no um documento de valor neutro. A seo de direitos

    fundamentais estabelece uma ordem objetiva de valores e essa ordem refora pesadamente o poder efetivo dosdireitos fundamentais. Esse sistema de valores, que se centra na dignidade da pessoa humana se desenvolvendo,livremente, em uma comunidade social, deve ser visto como uma deciso constitucional fundamental que afetatodas as esferas do direito (pblico e privado. Serve como um critrio para medir e acessar todas as aes nasreas de legislao, administrao pblica e atividade judicante. Isso torna claro que os direitos fundamentaistambm influenciam (o desenvolvimento do) direito privado. Todas as provises do direito privado devem sercompatveis com o sistema de valores, e toda essas provises devem ser interpretadas com o seu esprito.O contedo jurdico dos direitos fundamentais como normas objetivas desenvolvido no direito privado pormeio das provises legais diretamente aplicveis a essa rea do Direito.Ao trazer essa influncia ao caso, as cortes devem invocar as clusulas gerais (abertas, do direito privado) que,como o artigo 826 do Cdigo Civil, referem-se a standards alheios ao direito privado. Bons costumes umdesses standards (o julgado fala, no mesmo pargrafo, anteriormente, em ordem pblica). Para dizer o que se requerido pelas normas sociais como essas, deve-se considerar, primeiramente, o leque de valores que uma

    nao desenvolveu em certos pontos de sua histria cultural e intelectual e aproxim-lo da constituio. porisso que as clusulas gerais so ditas como sendo os pontos onde os direitos fundamentais entram no (domniodo) direito privado.(Cf. KOMMERS, Donald P. The constitucional jurisprudence of the Federal Republic ofGermany. 2 ed. Durham and London: Duke University Press, 1997, p. 363 e ss.)

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    da celebrao do acordo, as partes devem respeitar o contedo jurdico dos direitos

    fundamentais e se submeter a eles, sob a razo de que tambm os particulares, ou

    especialmente estes, podem afrontar direitos fundamentais, dada, mas no necessariamente, a

    posio de supremacia na qual se mantm perante a parte desprivilegiada ou a violao ao

    Direito que podem produzir.

    Deve-se ter por certo que, contemporaneamente, mesmo as relaes jurdicas travadas

    entre particulares transcendem os interesses dos pactuantes para que alcancem o status de

    questo afeta a toda a sociedade, o que no significa uma transferncia da titularidade desses

    direitos para o Estado, por bvio5.

    A funo desses direitos fundamentais seria de fazer as vezes dos ltimos ns de uma

    rede que tem por objetivo proteger o particular de abusos provindos de terceiros muitasvezes mais poderosos, independentemente desses terceiros serem sujeitos privados ou

    autoridades pblicas6, e, tambm, como proteo de violaes de direitos fundamentais a

    partir de relaes jurdicas travadas entre particulares. Independe, para que se reconhea essa

    5 Cf. GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Funo Social do Contrato. So Paulo: Saraiva, 2.004, pp. 22-3: Enfim,o que se procura, em um novo modelo de autonomia privada, compatvel com o sistema jurdico implantado peloparadigma do Estado Social, garantir s partes um poder normativo, um poder de criar certa normativa, nodizer de Ferri, mas, sempre, nos moldes dos valores que Constituio e, na sua esteira, as normasinfraconstitucionais impem para xito do programa axiolgico do ordenamento.

    Em outras palavras, exigncias de ndole social e promocional dos valores bsicos do ordenamento se justapemaos interesses privados dos indivduos, porm sem desnatur-los ou sem que, como regra, eles sejaminstitucionalizados, assumindo o Estado como seus esses interesses, assumindo mesmo sua titularidade.Tambm o STJ tem proferido decises nesse sentido, como, p.ex., no seguinte caso: (...)O Estado deve, nacoordenao da ordem econmica, exercer a represso do abuso do poder econmico, com o objetivo decompatibilizar os objetivos das empresas com a necessidade coletiva. Basta, assim, a ameaa do desequilbriopara ensejar a correo das clusulas do contrato, devendo sempre vigorar a interpretao mais favorvel aoconsumidor, que no participou da elaborao do contrato, consideradas a imperatividade e a indisponibilidadedas normas do CDC. O juiz da eqidade deve buscar a Justia comutativa, analisando a qualidade doconsentimento. Quando evidenciada a desvantagem do consumidor, ocasionada pelo desequilbrio contratualgerado pelo abuso do poder econmico, restando, assim, ferido o princpio da eqidade contratual, deve elereceber uma proteo compensatria. Uma disposio legal no pode ser utilizada para eximir deresponsabilidade o contratante que age com notria m-f em detrimento da coletividade, pois a ningum

    permitido valer-se da lei ou de exceo prevista em lei para obteno de benefcio prprio quando este vier emprejuzo de outrem. Somente a preponderncia da boa-f objetiva capaz de materializar o equilbrio ou justiacontratual. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 436.853/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI,TERCEIRA TURMA, julgado em 04.05.2006, DJ 27.11.2006 p. 273)6 UBILLOS, Juan Maria Bilbao.La eficcia de los derechos fundamentales frente a particulares: Anlisis de lajurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Boletn oficial del Estado Centro de Estudos Polticos yConstitucionales, 1997, p. 328: Puede decirse, con carter general, que el reconocimiento de la eficaciainmediata entre particulares es uma especie de clusula de cierre del sistema de proteccin de los derechosfundamentales. Lombardi llama la atencin sobre la funcin de clausura del sistema de libertades que cumplela aplicacin inmediata de las garantas constitucionales de libertad. Esta tutela derivada directamente del textoconstitucional colmara las lagunas de la regulacin legal, cubriendo supuestos no contempladosespecificamente.Y suplira tambin las limitaciones de los instrumentos de control proprios del Derecho Privado. Frente a

    quienes sostienen que tales tcnicas son suficientes para garantizar por si solas el respeto por los particulares delos espacios de libertad tutelados constitucionalmente, la experiencia nos indica que los dispositivosgenuinamente privados ofrecen uma proteccon genrica y fragmentaria, por lo que se hace necesario em nopocos casos acudir directamente a las garantias constitucionales.

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    vinculao, da atuao do Poder Judicirio, para que somente aps a judicializao da

    demanda se entendam vinculados os particulares aos direitos fundamentais, dado que o dever

    de aplicao daqueles direitos pelo juiz faria com que a relao jurdica antes no tutelada

    pelos direitos fundamentais passasse, como em um passe de mgica, a s-lo. Isso porque

    quando da celebrao do negcio jurdico esto protegidos e limitados os particulares pelos

    direitos fundamentais.

    A construo parece, primeira vista, bastante alentadora. Todavia, por vezes no

    deixa de ter um contedo bastante simplificado e incapaz de responder a algumas questes

    como: em que medida esses direitos vinculam aos particulares? Como se verifica esta

    vinculao, dado que os direitos fundamentais, em grande parte das vezes, so veiculados a

    partir de princpios jurdicos? claro que admitir a vinculao imediata dos particulares aos direitos fundamentais

    no deixa de ter um contedo protetivo, principalmente quanto aos mais enfraquecidos na

    relao jurdica7. Contudo, importa refletir sobre a intensidade com que esses direitos

    fundamentais vinculam aos particulares, para o que se pergunta: h fundamento constitucional

    para afirmar o que acabo de expor mais acima? Vejamos.

    A partir das constituies do ps-guerra, em grande parte sucessoras de documentos

    constitucionais de baixa eficcia, viu-se, implementados em seus textos, dispositivos queimpem a aplicao imediata dos direitos fundamentais. Algumas dessas Constituies dizem

    contra quem devem ser aplicados enquanto outras, como a Constituio da Repblica

    Federativa do Brasil de 1988, somente afirmam a aplicabilidade imediata8, sem dizer a quem

    7 GRAU, Mara Venegas. Derechos Fundamentales y Derecho Privado: Los derechos fundamentales en lasrelaciones entre particulares y el principio de autonomia privada. Madrid: Marcial Pons, 2004, p. 197: Losdefensores de la Drittwirkung directa denuncian la igualdad meramente ficticia que en estos casos rige larelacin entre las partes, y que se funda em la ideia de que el consentimiento, fiel reflejo de la voluntad de las

    partes, basta para impedir que stas limiten de forma inaceptable su libertad. Se presume que la libertad quedagarantizada em la medida en que las partes han aceptado esas limitaciones en el ejercicio de su voluntadautnoma. Sin embargo, replican estos autores, la libertad contractual as concebida es una libertad meramenteformal e ignora la realidad social, que generalmente impone a aquellos que se encuentran em una situacin de

    inferioridad una dependencia que contradice las ideias fundamentales de la Constitucin (grifos nossos).8 So os exemplos das Constituies: a) brasileira de 1988 (art. 5, par. 1); Portuguesa de 1976 (art. 18, 1); c)espanhola de 1978 (art. 53.1). Sobre a vinculao dos particulares, no h referncia na Lei Fundamental Alemde 1949 (CF, art. 1.3.), como tambm na brasileira. H referncia expressa na Constituio sua (art. 35) e naportuguesa, mas, a nosso ver, de forma diferente, vez que a sua confere poder ao agente pblico para, sepossvel, verificar a vinculao, enquanto a portuguesa diz que so diretamente aplicveis e vinculam asentidades pblicas e privadas. A nosso ver, a ltima faz uma opo clara pela vinculao direta. J a primeiradiz que os direitos fundamentais devem ser respeitados em toda a Ordem Jurdica (35.1) e que as autoridadescuidam para que os direitos fundamentais, desde que aplicveis, sejam eficazes tambm entre pessoas privadas

    (35.3). A previso sua, a nosso ver, aponta trs caractersticas interessantes: (a) so imediatamente vinculadosos particulares aos direitos fundamentais, cf. 35.1; (b) h um dever de proteo estatal aos direitos fundamentaisnas relaes jurdicas entre particulares (35.3); (c) nem todos os direitos fundamentais vinculam aos particulares.Com isso, a nosso ver, verifica-se a possibilidade de convivncia entre as diferentes correntes da vinculao

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    so endereados os mandamentos desses direitos. Essa estratgia tem por funo superar a

    mera ineficcia das normas de direitos fundamentais, para alguns sua mera programaticidade,

    para entender que, a partir do momento em que o texto constitucional produz efeitos jurdicos,

    tambm os direitos fundamentais estariam aptos a produzir tais efeitos por sobre todo o

    sistema jurdico (dimenso objetiva dos direitos fundamentais9), pois, com isso, desloca-se o

    monoplio da conformao dos direitos fundamentais da seara do legislador, que deveria

    regulamentar os temas no exauridos pelo poder constituinte, para entender que os intrpretes

    passam, tambm, a concretizar tais direitos fundamentais, via ato de criao que se admite na

    atividade de interpretao. dizer, como medida para fortalecer a eficcia das normas

    constitucionais, entende-se que estas se aplicam imediatamente.

    A referida estratgia demasiadamente importante na medida em que no se entendemais possvel que o legislador se assenhore, com exclusividade, da conformao das

    Constituies, como a entender que estes so tambm seus nicos guardies, para entender

    que as constituies, elas mesmas, esto aptas a produzir efeitos jurdicos independentemente,

    na maior parte das vezes, da atuao do legislador. Se se entendesse como sendo ainda

    monoplio do legislador a conformao da Constituio e dos direitos que elenca, decorreria

    de sua inrcia a ineficcia do texto constitucional(e da Constituio), como que a subverter o

    dogma da supremacia da Constituio, condicionando-o ao que o legislador diz ser, mediantelei, o contedo das normas constitucionais. Os dispositivos que veiculam a imediata

    aplicabilidade dos direitos fundamentais servem para este fim.

    Com isso, passamos prxima questo: esto os particulares imediatamente

    vinculados aos direitos fundamentais nas relaes jurdicas travadas com outros particulares?

    A resposta s pode ser afirmativa sem que, com isso, resolvamos um problema maior

    mais adiante enfrentado, que dizer com que intensidade isso ocorre10-11. Negar a

    imediata (35.1) e da mediata, que exige uma interveno estatal (35.3).9 HESSE, Konrad.Elementos de Direito Constitucional da Repblica Federal da Alemanha. Trad. Luis AfonsoHeck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 242: Significado crescente ganha a compreensodos direitos fundamentais como elementos da ordem objetiva em vista da tarefa do Estado Social moderno deproduzir ou de garantir os pressupostos da liberdade jurdico-fundamental. Se os direitos fundamentais no semmais se deixam converter em direitos de ter parte (subjetivos), ento isso no significa que eles sejam semsignificado para essa tarefa. Eles contm, antes, diretrizes e critrios (objetivos) para a planificao e produodaqueles pressupostos, que os rgos de formao da vontade poltica, apesar de toda a liberdade para aconfigurao em particular, no devem deixar desatendidos.10Essa a posio do Ministro Gilmar Mendes no voto condutor proferido no RE 201819/RJ, em que afirma Emverdade, at mesmo disposies expressas, como aquela constante do art. 18, n. 1, da Constituio de Portugal,que determina sejam os direitos fundamentais aplicados s entidades privadas, ou do Projeto da Comisso

    Especial para reviso total da Constituio sua (art. 25) Legislao e Jurisdio devem zelar pela aplicaodos direitos individuais s relaes privadas Gesetzgebung und Rechtsprechung sorgen dafr, dass die

    Grundrechte sinngeimss auch unter Privaten wirksam werden [atualmente j incorporado Constituiosua, desde 2000, no art. 35 (3), com a seguinte redao: Die Behrden sorgen dafr, dass die Grundrechte,

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    aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, primeiro contra o Estado e, aps, em face

    dos particulares, dependeria de uma argumentao severamente consistente, vez que a dvida

    impe o entendimento de que, quando a Constituio diz serem imediatamente aplicveis,

    quer dizer com isso que tambm contra os particulares isso ocorre, pois, se assim no fosse,

    deveria ser estipulada uma exceo. Isso porque entre as regras da argumentao jurdica se

    situa aquela que impe maior nus argumentativo quele que se ope a um texto que

    comporta clareza exemplar12. Ao meu ver, nada impede, na ordem da especulao cientfica,

    que alguns entendam que no se aplicam imediatamente os direitos fundamentais s relaes

    entre particulares, mas, para isso, exige-se uma argumentao forte, concreta, a qual no

    verificamos em nenhum daqueles defensores da vinculao mediata cujas posies foram

    anteriormente tratadas13. importante notar, outrossim, que raramente existe previso expressa de vinculao

    imediata dos particulares aos direitos fundamentais, exceo feita, e.g, Constituio

    Portuguesa que em seu artigo 18, 1, diz que os preceitos constitucionais respeitantes aos

    direitos, liberdades e garantias so directamente aplicveis e vinculam as entidades pblicas e

    privadas.

    Ainda que no exista expressa vinculao dos particulares, ao interpretar direitos

    fundamentais, deve-se buscar otimizar sua eficcia, ou seja, importante que o intrpreteentenda como necessria a ampliao do seu campo de incidncia como medida de proteo

    da prpria convivncia em sociedade, ao entender que os direitos fundamentais so o

    instrumento de proteo dos mais fragilizados socialmente perante as foras sociais mais

    fortalecidas, sejam elas estatais ou da prpria sociedade.

    Ainda, mesmo que haja deciso legislativa, deve-se verificar se ela corresponde ao

    mnimo necessrio em uma sociedade plural, que deve, para manter uma convivncia pacfica,

    pretender no construir grandes fossos de poder entre os mais fortes e os mais fracos, dizer,a proteo aos direitos fundamentais dada pelo legislador deve ser suficiente.

    O Direito, assim, desempenha uma funo de (a) prover segurana ao particular em

    soweit sie sich dazu eignen, auch unter Privaten wirksam werden.], no parecem aptas para resoluo doproblema (grifos do original). Sobre a jurisprudncia do STF, voltaremos mais adiante.11 tambm a posio de UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficcia de los derechos fundamentales frente a particulares: Anlisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. Madrid: Boletn oficial del Estado Centro de Estudos Polticos y Constitucionales, 1997, p. 849.12 ATIENZA, Manuel.As Razes do Direito - teorias da argumentao jurdica. So Paulo: Landy, 2003.13 Para uma anlise mais pormenorizada, vf. minha dissertao de Mestrado denominada COLISES DEDIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAES JURDICAS TRAVADAS ENTRE PARTICULARES:PROBLEMAS DE INTENSIDADE E A REGRA DA PROPORCIONALIDADE, apresentada ao Programa deEstudos Ps Graduados em Direito da PUC/SP, sob a orientao da Profa. Dra. Flvia Piovesan.

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    situao de submisso a outro particular, (b) de conter os excessos advindos desse

    distanciamento de poder de barganha de um dos particulares no negcio jurdico, ou seja,

    quando da composio dos interesses desses particulares, os direitos fundamentais

    instrumentalizam esse provimento de proteo-conteno, e (c) exigir que seja o Direito

    aplicado de forma homognea, importando a toda a sociedade essa racionalidade na aplicao,

    no se entendendo mais o contrato como de nico interesse entre os contratantes, operando

    efeitos transbordantes.

    Em sntese, posso dizer que a funo mais comumente associada aos direitos

    fundamentais nas relaes particular-particular a de defesa. Isso porque ao se entender que

    particulares se posicionam, mais e mais, como atores privados fortalecidos, em alguns casos

    mais que alguns Estados Nacionais (grandes conglomerados econmicos, p.ex.), os direitosfundamentais, em tais situaes, exercem a funo de proteger o mais fraco, o incapacitado de

    travar uma relao jurdica em posio de igualdade, em posio de barganhar pela proteo

    de seus interesses14. Os direitos fundamentais, assim, servem como instrumentos de elevao

    dos interesses dos mais fragilizados, ou hipossuficientes, em detrimento da parte mais forte15

    com quem o mais fragilizado no tem a possibilidade de negociar, nem proximamente, em

    uma situao de recproca conteno de interesses. Como j afirmado mais acima, so s

    vinculantes imediatamente em caso de desproporo de foras na negociao, ainda maisporque os contratos tambm operam efeitos para alm das partes envolvidas, dado o interesse

    14 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Coimbra: Almedina,2002, p. 404: Os direitos fundamentais cumprem a funo de direitos de defesa dos cidados sob uma duplaperspectiva: (1) constituem, num plano jurdico-objetivo, normas de competncia negativa para os poderespblicos, proibindo fundamentalmente as ingerncias destes na esfera jurdica individual; (2) implicam, numplano jurdico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigiromisses dos poderes pblicos, de forma a evitar agresses lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).Vf,. Tambm a mais especificamente SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito: Algumasconsideraes em torno da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. A Constituio concretizada:

    Construindo pontes com o pblico e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 128: A teoria dosassim denominados poderes privados e o reconhecimento de sua vinculao pelos direitos fundamentais, apesarde j ter sido sustentado poca de Weimar, acabou acolhida de forma ampla ainda que no de formageneralizada aps a promulgao da Lei Fundamental da Alemanha, seja pela doutrina seja pelo TribunalFederal Constitucional, em diversos julgados, obtendo igualmente o reconhecimento na doutrina e prtica

    jurisdicional de Itlia, Espanha e Portugal, apenas para citar os exemplos mais expressivos do direitocomparado.15 CAUPERS, Joo. Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituio . Lisboa: Coimbra, 1985, p.159: O reconhecimento desta dimenso objectiva dos direitos fundamentais no surgiu por via de qualquerespeculao terica, antes tendo resultado da constatao do crescimento dos poderes econmicos e sociais e dasdificuldades da lei em garantir contra eles a defesa dos direitos dos cidados. O nmero de negcios jurdicosassentes numa base de efectiva desigualdade com destaque para os contractos de trabalho cresceuenormemente. Continuar a defender intransigentemente a autonomia negocial no seria j permitir que dois

    cidados violassem reciprocamente os respectivos direitos fundamentais reconhecidos pela Constituio mas,sim, que poderosos entes sociais e econmicos, como as grandes empresas, desrespeitassem reiteradamente osdireitos fundamentais dos cidados e trabalhadores com que outorgam contratos, e que nem sequer esto emposio de retribuir tal desrespeito.

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    da sociedade de ver o Direito aplicado com racionalidade e com alguma homogeneidade.

    Verifica-se como decorrncia do raciocnio acima exposto que desempenha o

    legislador papel essencial nesse processo de proteo dos mais enfraquecidos em uma relao

    bipolarizada ou multipolarizada. Exemplos disso so a CLT e o Cdigo de Defesa do

    Consumidor que tm por objetivos igualar relaes jurdicas travadas entre desiguais em

    poder de barganha. Todavia, negar a vinculao desses particulares aos direitos fundamentais,

    ainda mais no havendo deciso legislativa, admitir a supremacia de uma das partes em uma

    relao jurdica bipolarizada ou multipolarizada em detrimento de uma igualdade que deve ser

    preservada para manter os nveis de convivncia social nos limites do razovel.

    Dessa forma, como veremos mais adiante, importa, mais que fixar a funo que

    desempenham os direitos fundamentais nas relaes entre particulares, verificar os limites dasrestries dos direitos fundamentais em jogo e a questo de intensidade da vinculao dos

    particulares, o que faremos a partir da regra da proporcionalidade.

    1.1.1.A Jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal

    O Supremo Tribunal Federal, em poucos julgados, pde se debruar sobre a matria,

    somente tendo versado, de forma explcita sobre o tema em um nico julgado, no RE201819/RJ, julgado pela 2 Turma do Supremo Tribunal Federal, em que figurou como relator

    o Ministro Gilmar Mendes. Isso quer dizer que no h manifestao do plenrio do Supremo

    Tribunal Federal sobre o tema.

    Vale separar as posies dos Ministros em vencidos (Ellen Gracie e Carlos Velloso) e

    vencedores (Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa e Celso de Mello). A anlise se faz parcial em

    razo de conhecermos, unicamente, o voto condutor do Min. Gilmar Mendes, ao qual nos

    referiremos mais adiante, vez que os demais votos no esto disponveis para consulta

    16

    .Trata-se de caso derivado da expulso de associado da sociedade civil Unio

    Brasileira de Compositores UBC, sem que lhe fosse garantida oportunidade de defesa, tudo

    em consonncia com o Estatuto da associao, que admitia em seu artigo 16 que a diretoria

    nomear comisso de inqurito composta de trs Scios, a fim de apurar indcios, atos ou

    fatos que tornem necessria a aplicao de penalidades aos Scios que contrariem os deveres

    prescritos no Captulo IV destes Estatutos.A controvrsia se sustenta em saber se os direitos

    ao devido processo legal, ao contraditrio e ampla defesa (art. 5, LIV e LV, da CF) so

    16 O voto do Min. Gilmar Mendes foi publicado no Informativo 405 do Supremo Tribunal Federal.

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    aplicveis ao caso, ou se devem prevalecer as disposies do Estatuto Social, vez que se trata

    de pessoa jurdica de direito privado, a qual, para alguns, deveria ter seus atos regulador

    unicamente pelo direito privado.

    Sustenta o relator17, a nosso ver corretamente, que seria de difcil justificao jurdica

    admitir o direito privado como o nico campo do Direito a tutelar problemas como o referido,

    e, se assim fosse, poderiam os particulares agir de forma a que estivessem livres de alguma

    ingerncia estatal. Para isso, reconhece o relator que mesmo no direito civil h uma srie de

    conflitos de interesses com repercusso nos direitos fundamentais.

    Mais frente verifica-se que se discute o problema do direito igualdade no direito

    privado e sua relao com o direito fundamental liberdade, mas o relator afirma, com

    clareza, que nem mesmo nesse campo deve prevalecer o princpio do in dubio pro libertate,ou seja, no h qualquer precedncia condicionada de direitos fundamentais, mesmo nas

    relaes entre particulares, com o que tambm concordo.

    Tambm se refere o relator, quando trata das particularidades do caso, que a excluso

    do associado lhe traria grande prejuzo econmico, vez que a recorrida quem lhe repassa

    valores de suas composies, ou seja, sua excluso lhe traria danos de ordem econmica.

    Pondera que a recorrida (Unio Brasileira de Compositores UBC) integra a estrutura do

    ECAD, e incontroverso que, no caso, ao restringir as possibilidades de defesa do recorrido,ela assume posio privilegiada para determinar, preponderantemente, a extenso do gozo e

    fruio dos direitos autorais de seu associado. Reconhece-se a posio de superioridade da

    recorrida ante o recorrente, vez que no h que se falar no direito de se associar ou deixar

    associao18 para impor tamanho nus ao recorrente, que inclusive limita demasiadamente

    sua liberdade de exerccio profissional. E conclui, ao meu ver corretamente, dizendo que

    as penalidades impostas pela recorrente ao recorrido extrapolam, em muito, a liberdade do

    17 Um entendimento segundo o qual os direitos fundamentais atuam de forma unilateral na relao entre ocidado e o Estado acaba por legitimar a idia de que haveria para o cidado sempre um espao livre de qualqueringerncia estatal. A adoo dessa orientao suscitaria problemas de difcil soluo tanto no plano terico,como no plano prtico. O prprio campo do Direito Civil est prenhe de conflitos de interesses com repercussono mbito dos direitos fundamentais. O benefcio concedido a um cidado configura, no raras vezes, aimposio de restrio a outrem.18 certo que a associao tem autonomia para gerir a sua vida e a sua organizao. certo, ainda, que, nodireito de se associar, est includa a faculdade de escolher com quem se associar, o que implica poder deexcluso. O direito de associao, entretanto, no absoluto e comporta restries, orientadas para o prestgio deoutros direitos tambm fundamentais. A legitimidade dessas interferncias depender da ponderao a serestabelecida entre os interesses constitucionais confrontantes. A apreciao do fundamento dessas interferncias,ainda, no pode prescindir de variantes diversas, como o propsito que anima a existncia da sociedade. Na

    jurisprudncia da Suprema Corte americana, h precedente distinguindo as sociedades voltadas para expressarum ponto de vista religioso ou ideolgico e outras, de cunho comercial, nonexpressive. Naquelas, ainterferncia de outros interesses sobre a sua estrutura e gesto teria admissibilidade consideravelmente maisrestrita.

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    direito de associao e, sobretudo, o de defesa. Conclusivamente, imperiosa a observncia

    das garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditrio e da ampla defesa

    (art. 5, LIV e LV, da CF).

    Ao final, afirma o relator: afigura-se-me decisivo no caso em apreo, tal como

    destacado, a singular situao da entidade associativa, integrante do sistema ECAD, que,

    como se viu na ADI n 2.054-DF, exerce uma atividade essencial na cobrana de direitos

    autorais, que poderia at configurar um servio pblico por delegao legislativa.E termina

    por concluir, acerca desse pormenor, que esse carter pblico ou geral da atividade parece

    decisivo aqui para legitimar a aplicao imediata dos direitos fundamentais concernentes ao

    devido processo legal, ao contraditrio e ampla defesa (art. 5, LIV e LV, da CF) ao

    processo de excluso de scio de entidade. Em outras palavras, trata-se de entidade que secaracteriza por integrar aquilo que poderamos denominar como espao pblico ainda que

    no-estatal.

    Acredito que esse ltimo ponto merece uma reflexo mais apurada.

    Isso porque fica uma dvida sobre se a deciso foi tomada unicamente em razo de

    status da recorrida (espao pblico ainda que no estatal) e, assim, se a vinculao se daria

    pela proximidade da recorrida com o Estado, ou se se trata de meio de auto-conteno do

    relator em no se adiantar sobre matria que poderia a vir julgar(judicial self restraint), casosuscitada questo da vinculao imediata dos particulares sem que haja essa proximidade com

    o Estado. Sobre a segunda, no posso dizer mais do que me colocar em dvida. A primeira,

    merece, sim, algumas reflexes, vez que acredito no depender de proximidade com o Estado

    para que se verifique a vinculao imediata dos particulares aos direitos fundamentais.Esses

    direitos so parte da Constituio e devem, com sua supremacia, produzir efeitos em todo o

    Direito, e no unicamente nas relaes particular Estado, ou nas relaes particular

    particular-quase-Estado. Parece-me que no se perfaz suficiente a afirmao referida sobre aproximidade com o Estado.

    H outros julgados do STF que tangenciam a matria sem se referir questo

    especfica da vinculao dos particulares e as correntes de vinculao.

    Isso ocorre no RE n 158.215-RS19, no qual decidiu a 2 Turma do STF questo

    19 DEFESA DEVIDO PROCESSO LEGAL INCISO LV DO ROL DAS GARANTIASCONSTITUCIONAIS EXAME LEGISLAO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucionalassegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislao comum. Da a insubsistncia da ptica

    segundo a qual a violncia Carta Poltica da Repblica, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinrio,h de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matria,distinguindo os recursos protelatrios daqueles em que versada, com procedncia, a transgresso a textoconstitucional, muito embora torne-se necessrio, at mesmo, partir-se do que previsto na legislao comum.

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    parecida, na qual havia sido expulso membro de cooperativa de forma sumria sem que se

    respeitasse, ao menos, o prprio estatuto da cooperativa. A diferena entre os julgados que,

    nesse caso, havia previso estatutria para que a expulso se desse a partir de um processo em

    que se respeitasse o devido processo, o contraditrio e a ampla defesa (art. 5, LIV e LV, da

    CF), mas foi desrespeitado em razo de haverem os expulsos enfrentado a direo a ter a

    coragem de expuls-los. Sobre esse, merece transcrio trecho em que o Min. Marco Aurlio

    afirma que a exaltao de nimos no de molde a afastar a incidncia do preceito

    constitucional assegurador da plenitude da defesa nos processos em geral. Mais do que nunca,

    diante do clima reinante, incumbia Cooperativa, uma vez instaurado o processo, dar aos

    acusados a oportunidade de defenderem-se e no exclu-los sumariamente do quadro de

    associados. Mais frente, afirma o relator que uma coisa a viabilizao da defesa, e osilncio da parte interessada, algo diverso o atropelo s normas prprias espcie julgando-

    se o caso sem a abertura de prazo para produo de defesa e feitura da prova (...). Fulmino o

    ato da Assemblia da recorrida que implicou a excluso dos recorrentes do respectivo quadro

    social, reintegrando-os, assim, com os consectrios pertinentes e que esto previstos no

    estatuto da recorrida. No se trata, assim, ao meu ver, de reconhecer vinculao imediata,

    mas, sim, de aplicar o prprio estatuto, ou seja, no verifico adeso tese da vinculao

    imediata20

    .O STF tambm tratou de tema afeto no RE n 161.243-DF21, em que trabalhador

    brasileiro que desempenhou seus servios durante trinta e cinco anos pretende assumir

    Entendimento diverso implica relegar inocuidade dois princpios bsicos em um Estado Democrtico deDireito o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem aconsiderao de normas estritamente legais. COOPERATIVA EXCLUSO DE ASSOCIADO CARTERPUNITIVO DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hiptese de excluso de associado decorrente de condutacontrria aos estatutos, impe-se a observncia ao devido processo legal, viabilizado o exerccio amplo dadefesa. Simples desafio do associado assemblia geral, no que toca excluso, no de molde a atrair adoode processo sumrio. Observncia obrigatria do prprio estatuto da cooperativa (RE n 158.215-RS, Rel. Min.

    Marco Aurlio,DJde 07.06.1996).20Em posio contrria, admitindo expressar, o julgado, a tese da vinculao imediata: Min. Gilmar Mendes, noRE 201.819/RJ, ao se referir ao julgado em seu voto-vista como a adotar a tese da vinculao imediata. TambmBRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Associaes, Expulso de Scios e Direitos Fundamentais, Direito Pblico v.1, n 2 (out./dez. 2003). Porto Alegre: Sntese; Braslia: Instituto Brasiliense de Direito Pblico, 2003, p. 172, eSARMENTO, Daniel.Direitos Fundamentais e Relaes Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 293.21 CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIROEMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADEAO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. CF, 1967, art. 153, 1; C.F.,1988, art. 5, caput. I Ao recorrente, por no ser francs, no obstante trabalhar para a empresa francesa, noBrasil, no foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cujaaplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princpio da igualdade: CF,1967, art. 153, 1; CF, 1988, art. 5, caput). II A discriminao que se baseia em atributo, qualidade, nota

    intrnseca ou extrnseca do indivduo, como o sexo, a raa, a nacionalidade, o credo religioso, etc., inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846 (AgRg)-PR, Clio Borja, RTJ 119/465. III Fatores queautorizariam a desigualizao no ocorrentes no caso. IV RE conhecido e provido (RE n 161.243-DF, Rel.Min. Carlos Velloso,DJde 19.12.1997)

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    direitos que lhe foram negados pelos Estatutos da Empresa Air France, em decorrncia de tais

    direitos serem unicamente titularizados por trabalhadores com cidadania francesa. O Min.

    Carlos Velloso, em seu voto, afirma que deixou-se de aplicar, em relao ao empregado, ora

    recorrente, o estatuto da empregadora, que concede vantagens aos empregados (franceses), ao

    argumento puro e simples de que ele no seria aplicvel porque o empregado no era de

    nacionalidade francesa, mas brasileira. No se considerou, todavia, que o servio prestado no

    Brasil sujeita a empresa s leis brasileiras. Mais frente, sobre a coincidncia de atividades

    desenvolvidas, afirma que os empregador franceses no desempenhavam atividades tpicas

    frente aos brasileiros. J o Ministro Maurcio Corra diz que a empresa, ao receber

    permisso para atuar no Brasil, deve se submeter s leis brasileiras. Todavia, no h

    manifestao expressa sobre a questo de desempenhar servio pblico por permisso eaplicabilidade de direitos fundamentais.

    Essas so, ao meu sentir, decises que tratam, de forma diferente, do tema referido.

    Parece-me que somente na primeira e na ltima h referncia a uma vinculao imediata dos

    particulares aos direitos fundamentais, ainda que na ltima isso no ocorra de forma expressa.

    1.2. A estrutura normativa dos direitos fundamentais e sua aplicao: colises de

    direitos e a regra da proporcionalidade.

    Outro problema que premissa do que discutirei mais adiante aquele da estrutura

    normativa dos direitos fundamentais, dizer, seu modo de aplicao a partir da diferenciao

    entre princpios e regras, e o tema da coliso de direitos fundamentais quando princpios e a

    regra da proporcionalidade como modo de resolver tais colises.

    Sobre o tema, como exposto mais acima, apontarei as posie por mim adotadas. Para

    isso, necessrio buscar uma conceituao mais firme quando se fala de princpios, vez queso tantas as possibilidades diferentes de conceituao que sua utilizao pode acabar por

    causar severos problemas de ordem lgica22.

    No entendo superados ou equivocados outros conceitos ou formas de utilizao, mas,

    como trabalho cientfico, devo fazer opes para atingir o intento de minorar eventuais

    contradies lgicas em meu discurso pois, ao admitir os princpios, alm das regras, como

    22 CUNHA, Srgio Srvulo. O que um Princpio. In: CUNHA, Srgio Srvulo e GRAU, Eros Roberto. Estudosde Direito Constitucional em Homenagem a Jos Afonso da Silva. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 261. O autorelenca 14 acepes diferentes para o termo princpio.

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    normas jurdicas23 de direitos fundamentais, est-se a abandonar a idia de que os (i)

    princpios so meros auxiliadores ou vetores interpretativos24 da interpretao das normas

    jurdicas25, porque tambm os princpios, assim, tm carter autnomo de normatividade, ou

    seja, dizem de um dever ser26 e podem ser aplicados independentemente da existncia de

    uma regra.

    Se so, os princpios, normas jurdicas no podem ser meros auxiliadores da

    interpretao de outras normas, as regras, pois, se se diferencia princpio de norma jurdica,

    subentende-se que princpios no so normas27. Alm disso, no adoto a concepo de que os

    (ii) princpios so as partes mais fundamentais do sistema jurdico28, ou as mais importantes,

    dado que, como veremos, no se encontra nessa questo o fator de diferenciao entre as

    normas jurdicas, sejam princpios ou regras. Tambm no se est a falar de uma (iii) relaode grau em que as regras apresentam um grau de generalidade baixo, enquanto os princpios

    um grau de generalidade alto, resposta daqueles que a defender uma diferena fraca entre

    princpios e regras29-30. Ou, ainda, (iv) que as regras derivam dos princpios, que seriam,

    23 ALEXY, Robert.El Concepto de Derecho y La Validez del Derecho. Barcelona: 1997, p. 162.24Assim se posiciona o Supremo Tribunal Federal: O repdio ao terrorismo: um compromisso tico-jurdicoassumido pelo Brasil, quer em face de sua prpria Constituio, quer perante a comunidade internacional. Os

    atos delituosos de natureza terrorista, considerados os parmetros consagrados pela vigente Constituio daRepblica, no se subsumem noo de criminalidade poltica, pois a Lei Fundamental proclamou o repdio aoterrorismo como um dos princpios essenciais que devem reger o Estado brasileiro em suas relaesinternacionais (CF, art. 4, VIII), alm de haver qualificado o terrorismo, para efeito de represso interna, comocrime equiparvel aos delitos hediondos, o que o expe, sob tal perspectiva, a tratamento jurdico impregnado demximo rigor, tornando-o inafianvel e insuscetvel da clemncia soberana do Estado e reduzindo-o, ainda, dimenso ordinria dos crimes meramente comuns (CF, art. 5, XLIII). A Constituio da Repblica, presentestais vetores interpretativos (CF, art. 4, VIII, e art. 5, XLIII), no autoriza que se outorgue, s prticas delituosasde carter terrorista, o mesmo tratamento benigno dispensado ao autor de crimes polticos ou de opinio,impedindo, desse modo, que se venha a estabelecer, em torno do terrorista, um inadmissvel crculo de proteoque o faa imune ao poder extradicional do Estado brasileiro, notadamente se se tiver em considerao arelevantssima circunstncia de que a Assemblia Nacional Constituinte formulou um claro e inequvoco juzode desvalor em relao a quaisquer atos delituosos revestidos de ndole terrorista, a estes no reconhecendo a

    dignidade de que muitas vezes se acha impregnada a prtica da criminalidade poltica ( Ext 855, Rel. Min.Celso de Mello,DJ01.07.2005 grifos nossos).25 Em que pese no concordarmos com o resultado do raciocnio, vale a referncia a GUASTINI, Ricardo. DasFontes s Normas. So Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 185: Alm disso, na linguagem comum dos juristas (fatoprprio, ademais, do legislador: veja-se, por exemplo, a art. 177, par. 1 da Constituio (Italiana)), costuma-secaracterizar os princpios em contraposio s normas. Contudo, no parece possvel traar uma linha precisa dedemarcao entre estes e aquelas.26 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,p. 83.27 Essa parece ser a posio de KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Srgio Antonio FabrisEditor, 1986, p. 148, em que trava um debate sobre princpios com Josef Esser.28 GUASTINI, Riccardo.Das Fontes s Normas. So Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 187.29 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Notas em Torno ao Princpio da proporcionalidade. In: MIRANDA, Jorge

    (org.). Perspectivas Constitucionais nos 20 anos da Constituio de 1976. V. 1. Coimbra: Coimbra Editora,1996, p. 250. O autor desenvolve uma interessante tentativa de aproximao entre teorias. Utiliza-se, para isso,tambm, do carter de abstrao dos princpios para diferenci-los das regras.30 ALEXY, Robert. Sistema Juridico, Princpios Jurdicos y Razn Practica,DOXA,n. 5, 1998, p. 141.

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    assim, os alicerces do sistema jurdico31-32.

    Estou a falar, sim, de uma relao qualitativa33, dizer, h uma diferena quanto

    estrutura e aplicao34 para diferenciar as normas-princpios das normas-regras. Sendo assim,

    no h, aqui, nenhuma opo por tratar os princpios como elementos mais importantes do

    sistema jurdico35.Assim, princpios so normas que determinam que algo seja realizado na

    maior medida possvel, dentro das possibilidades jurdicas e fticas reais existentes36. dizer

    que, por isso, os princpios so mandamentos de otimizao37, na medida em que para que

    seja otimizada sua aplicao dependem da realidade ftica e jurdica atinentes ao caso

    concreto posto diante daquele que deve proferir uma deciso jurdica, sendo os princpios e

    regras com aqueles outros colidentes elementos essenciais para a construo de uma deciso

    jurdica.A partir dessa realidade jurdica se constri a partir da coliso de princpios ou regras,

    ou seja, so os princpios (a) ou regras (b) que colidem com o princpio (c) sob o qual se

    debrua o interprete para decidir, construindo seu contedo jurdico, que conformam as

    possibilidades jurdicas do princpio (c)38.

    Todavia, a caracterstica mais marcante das normas veiculadas a partir de princpios

    est no modo como so aplicados, ou seja, neste ponto que reside a grande diferena para

    31 Novamente, devemos dizer que no acreditamos superadas outras posies. Trata-se de apontar por um norte,uma escolha que atribua coerncia ao que afirmamos. No sentido citado, contrrio nossa posio, videMELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 78:Algumas noes ou princpios so categoriais em relao a outros, de significado mais restrito, porqueabrangentes de alguns institutos apenas. Estes, a seu turno, desempenham funo categorial relativamente aoutros mais particularizados que os anteriores. Assim se processa uma cadeia descendente de princpios ecategorias at os nveis mais especficos. Alguns aliceram todo os sistema; outros, destes derivados, dizemrespeito ora a uns, ora a outros institutos, interligando-se todos, no s no plano vertical, como horizontal,formando uma unidade, um complexo lgico, a que chamamos regime; no caso em rela, regime administrativo;e SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Pblico. So Paulo: Malheiros, 1992, p. 140.32 BONAVIDES, Paulo. Soberania Constitucional, a soberania dos princpios. Teoria constitucional dademocracia participativa. 2 ed. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 301: Hoje, como se v, os princpios valem

    mais porque as Constituies se jurisdicizaram. Hoje os princpios, sendo a essncia da constitucionalidade,ocupam o lugar mais alto e nobre na hierarquia dos ordenamentos jurdicos. As regras se lhe sujeitam, conformedissemos, e o Direito vive, de ltimo, a grande idade do constitucionalismo principiolgico, como dantes jvivera a poca milenar do jusprivatismo romanista.33 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,p. 87.34 SILVA, Virglio Afonso da. O Proporcional e o Razovel.Revista dos Tribunais,. So Paulo: RT, v. 798, abr.2002, p. 25.35 SILVA, Virglio Afonso da. Princpios e Regras: Mitos e Equvocos acerca de uma distino. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais,. n. 1, So Paulo: Del Rey, 2003, p. 615: Como se percebe, o conceito deprincpio, na teoria de Alexy, um conceito axiologicamente neutro e seu uso no expressa nenhuma opo poresta ou aquela disposio fundamental, nem por este ou aquele tipo de Constituio.36 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,

    p. 86.37 ALEXY, Robert.El concepto y la validez del Derecho. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 162.38 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,p. 86.

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    com as regras, que ser mais frente enfrentada39.

    Isso porque a aplicao dos princpios exige a utilizao de um meio distinto, qual

    seja, o daponderao40, em que se estabelecem relaes de preferncia41 entre princpios, ou

    seja, ao aplicar princpios, o intrprete passa a construir o contedo jurdico do princpio a ser

    aplicado ao caso concreto, que se pretende ver resolvido.

    tambm a partir do caso concreto que se constri o contedo jurdico dos

    princpios, ou seja, somente os elementos fticos e jurdicos do caso concreto, as regras e os

    princpios colidentes, que permitem a construo do contedo jurdico do princpio, o que

    informa que em caso diferente o mesmo princpio pode ser construdo com contedo jurdico

    diverso. Iss porque os princpios estipulam uma relao de precedncia42 referida unicamente

    ao caso que se decide, ou seja, so as condies fticas e jurdicas do caso concreto e osprincpios e regras em coliso que firmam a precedncia de um princpio sobre outro.

    A referncia ao caso concreto imprescindvel, pois nada impede que um caso futuro

    a ser decidido a partir da coliso dos mesmos princpios seja decidido de forma contrria, vez

    que no se fala em (a) criar uma relao de precedncia fixa, perene, entre os princpios em

    coliso e nem mesmo de (b) declarar a invalidade do princpio preterido no caso concreto, e,

    sim, de, a partir da metfora do peso, afirmar que um deles merece, no caso concreto, a

    precedncia sobre o outro43

    -44

    .Trata-se de reconhecer, quando da aplicao dos princpios, que o intrprete

    39 SILVA, Virglio Afonso da. O Proporcional e o Razovel. Revista dos Tribunais, So Paulo: RT, v. 798, abr.2002.40 ALEXY, Robert.El concepto y la validez del Derecho. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 162.41 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,p. 133.42 ALEXY, Robert.El concepto y la validez del Derecho. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 164.43

    ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,p. 92: La solucin de la colisin (entre princpios) consiste ms bien em que, teniendo en cuenta lascircunstancias del caso, se estabelece entre los princpios una relacin de precedncia condicionada. Ladeterminacin de la relacin de precedencia condicionada consiste en que, tomando en cuenta el caso, se indicancondiciones bajo las cuales un principio precede al outro. Bajo otras condiciones, la cuestin de la precedenciapuede ser solucionada inversamente.44A nosso ver, trata-se, ainda que no utilizada por Alexy expressamente, da idia da complexidade, que atribuium carter de movimento, de adequao dos princpios ao momento histrico-social em que so aplicados, nosentido de que inexiste uma nica deciso correta e, sim, aquela mais adequada ao momento em que se decide.Assim, havendo mais de uma possibilidade de deciso (A, B e C), pode o intrprete, hoje, tomar uma deciso(B), em detrimento de outras (A e C), sem que se impea que mais frente, em caso semelhante, sejam as outraspossibilidades as escolhidas (A ou C), vez que no h declarao de invalidade (de A ou C), e sim a atribuio demaior peso ao princpio escolhido (B). Trata-se, assim, do paradoxo entre aumento de minorao de

    complexidade nas decises fundadas no Direito contemporneo. Isso foi tambm percebido por LARENZ, Karl.Metodologia da Cincia Jurdica. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbekian, 1997, p. 322-324. O autor serefere ao processo de aumento e de minorao de complexidade a partir da dogmtica jurdica, conforme aquidefendido.

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    desenvolve atividade criativa45, ou seja, que depende de ato de vontade para construir o

    contedo jurdico, tal como com as regras, e que os princpios somente estipulam direitos e

    deveres prima facie46. Dependem, para sua construo, dos elementos fticos e jurdicos dos

    casos concretos a partir dos quais tm seu contedo jurdico construdos e da ponderao com

    os princpios colidentes no caso concreto.

    Nada impede, contudo, que, ao se ponderar um princpio com outros colidentes, em

    um caso concreto, um princpio prepondere totalmente sobre outro, dadas suas condies

    fticas e jurdicas, como, e.g.,em caso de expedio de ordem judicial com o fim de impedir

    qualquer manifestao de um sujeito A que, corriqueiramente, profere improprios contra

    outro sujeito X, que lhe causam seguidos danos de ordem moral. Caso apreciada a questo a

    partir da coliso de direitos fundamentais da liberdade de expresso de A com a proteo dahonra de X, verifica-se uma preponderncia da proteo da honra que acaba por limitar

    completamente a liberdade de expresso de A, no caso corrente.

    Vale dizer, ainda, que os princpios no se confundam com os valores, estes, na ordem

    do ontolgico, carregam uma carga axiolgica que implica optar pelo que melhor ou pior,

    bom ou mau, assim, sobrepondo-se ao prprio sistema jurdico, enquanto os princpios esto

    na ordem do deontolgico, a estipular um dever-ser, ou seja, a partir deles se opta pelo que

    lcito/ilcito47

    -48

    .Revela-se interessante afirmar que os princpios, como normas jurdicas que so, no

    esto apenas a tratar de direitos fundamentais, podendo, destarte, tambm tratar de bens

    45 KELSEN, Hans. Quem deve ser o Guardio da Constituio? Jurisdio Constitucional. So Paulo: MartinsFontes, 2003, pp. 262-263. interessante a posio de Kelsen sobre os princpios e a restrio do autor suautilizao como referncia para o controle de constitucionalidade: Caso se deseje restringir o poder dostribunais, e, assim, o carter poltico de sua funo tendncia que sobressai particularmente na monarquia

    constitucional, podendo, porm, ser observada tambm na repblica democrtica , deve-se ento limitar omximo possvel a margem de discricionariedade que as leis concedem utilizao daquele poder. Alm disso

    as normas constitucionais a serem aplicadas por um tribunal constitucional, sobretudo as que definem o

    contedo de leis futuras como as disposies sobre direitos fundamentais e similares , no devem ser

    formuladas em termos demasiado gerais, nem devem operar com chaves vagos como liberdade, igualdade,

    justia etc. Do contrrio, existe o perigo de uma transferncia de poder no previsto pela Constituio ealtamente inoportuno do Parlamento para uma instncia externa a ele, a qual pode tornar-se o expoente deforas polticas totalmente distintas daquelas que se expressam no Parlamento.46 SILVA, Virglio Afonso da. Princpios e Regras: Mitos e Equvocos acerca de uma distino. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 1, So Paulo: Del Rey, 2003, p. 611.47 ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 165; ALEXY,Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 130.48 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,

    p. 147: La diferencia entre princpios y valores se reduce a un ponto. Lo que em el modelo de los valores esprima facie lo mejor es, en el modelo de los princpios, prima facie debido; y lo que en el modelo de los valoreses definitivamente lo mejor es, en el modelo de los princpios, definitivamente debido. As pues, los princpios ylos valores se diferencian slo em virtud de su carter deontologico y axiolgico respectivamente.

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    coletivos constitucionalmente protegidos. Podem ser ponderados, tambm, bens coletivos49,

    como segurana interna e externa, prosperidade da economia, integridade do meio ambiente

    e o alto nvel cultural50. Para simplificao, denominaremos tambm de direitos

    fundamentais os bens coletivos adiante referidos, a tratar, da mesma forma, de colises de

    direitos fundamentais.

    1.2.1. Colises de princpios e a regra da proporcionalidade

    Ponto essencial do que afirmo que se entenda que a regra da proporcionalidade um

    instrumento para resolver colises de princpios, valendo dizer que esta se subdivide, ou nela

    esto contidos, trs sub-exames. Esses trs sub-exames so respectivos, ou seja, dependem,para que se alcance o segundo, de o primeiro ser satisfeito e, por conseguinte, para que se

    alcance o ltimo, de os dois anteriores serem satisfeitos51.

    Naquela ordem, so os sub-exames referidos: (a) adequao, (b) necessidade e (c) da

    proporcionalidade em sentido estrito ou ponderao52-53-54.

    Quando a deciso depende, no caso concreto, de se resolver se deve prevalecer um ou

    outro princpio em coliso, deve-se fazer uma opo por um instrumento estruturado

    49 ALEXY, Robert.El concepto y la validez del Derecho. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 185: En la medidaen que los derechos tienen el carter de mandatos de optimizacin, no se trata en ellos de derechos definitivos,sino de derechos prima facie que, cuando entran en colisin con bienes coletivos o con derechos de otros,pueden ser restringidos.50 ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 187. Alm dedependerem de positivao, um bem passa a ser um bien colectivo de una clase de indivduos cuandoconceptualmente, facticamente o juridicamente, es imposible dividirlo en partes y otorgarselas a los indivduos.Cuando tal es el caso, el bien tiene um carter no distributivo. Los bienes colectivos son bienes no-distributivos.Vale lembrar que , tambm, o carter de mandamento definitivo ou dever prima facie que informa ser o bemcoletivo um princpio ou uma regra (p. 189).51 SILVA, Virglio Afonso da. O Proporcional e o Razovel. Revista dos Tribunais, So Paulo: RT, v. 798, abr.2002, p. 34-35.52 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,p. 114.53 TRIDIMAS, Tarkis. Proportionality in Comunity Law: Searching for the Apropriate Standard of Scrutinity. In:ELLIS, Evelin (org.). The principle of proportionality in the laws of Europe. Oxford: Hart, 1999, p. 68. Diz oautor que h certa confuso na aplicao do princpio da proporcionalidade ao direito comunitrio, com umteste duplo e no triplo como defendemos, e, ainda, em uma confuso entre os sub-exames: O teste tripartiterecebeu algum suporte judicial mas, na prtica, a Corte no distingue na sua anlise entre o segundo e o terceirosub-exame (necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). Tambm, como se ver, em alguns casos, aCorte diz que um meio compatvel com a proporcionalidade sem pesquisar por alternativas menos restritivasou se, eventualmente, existem alternativas. A caracterstica essencial do princpio que a Corte faz uso de umaexerccio de sopesamento entre os objetivos perseguidos pelo meio sob julgamento e seus efeitos sobre asliberdades individuais.54 BOCKENFORDE, Ernst Wolfgang. Escritos sobre Derechos Fundamentales. Baden-Baden: Nomos

    Verlagsgesellschaft, 1993, p. 124: o autor fala de uma proporcionalidad-adequacion em confronto com aproporcionalidad clsica, defendendo, que seja o terceiro exame (ponderao) refutado. Essa posiocontrria de Bockenforde contra a juridicidade da ponderao citada por SILVA, Virglio Afonso da. OProporcional e o Razovel.Revista dos Tribunais,. So Paulo: RT, v. 798, abr. 2002, p. 35.

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    objetivamente para a deciso. A nosso ver, a regra da proporcionalidade o melhor

    instrumento para o alcance desse fim, dizer, para resolver, unicamente, a coliso entre

    princpios55. Antes de enfrent-la, vale dizer que a regra da proporcionalidade recebe

    tratamento bastante diferente a partir dos distintos autores que sobre ela debruaram, sendo

    impossvel conciliar essas posies, exceto entender que se referem a um instrumento de

    reflexo sobre os meios utilizados para alcance do fim objetivado pelo ato analisado. Assim,

    para que mantenhamos coerncia com o que pretendo mais frente dizer, setoriz meu

    discurso na teoria dos direitos fundamentais de Alexy e naqueles que dela se utilizam para

    tratar do tema56.

    1.2.1.1. Exame de adequao

    O exame da proporcionalidade tem por finalidade analisar a relao meio-fim entre a

    medida adotada e o fim almejado e exige que se verifique se o meio adotado fomenta o

    alcance do fim objetivado57 e que esse fim, por sua parte, legtimo, o que significa dizer que

    se deve verificar se no est proibido tanto expressa quanto implicitamente pela

    Constituio58.

    Parece-me que o exame da adequao sem a verificao da legitimidade do fim se fazenfraquecido, pois a quase qualquer medida poderia ser assim conferido o selo de

    55 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,p. 111-112.56 Posio distinta, tambm, utilizada pelo Direito francs, cf. EMILIOU, Nicholas. The Principle ofproporcionality in European Law A comparative study. London: Kluwer Law International, 1996, p. 88: Namaioria dos casos, o critrio para a aplicao do princpio da proporcionalidade est baseado em standards delgica, cincias naturais etc., comumente aceitos. H casos, entretanto, em que a proporcionalidade da aoadministrativa estabelecida de acordo com standards estabelecidos pela lei (e.g. a necessidade de outorgar

    poderes sobre a polcia aos prefeitos para a manuteno da ordem pblica). Ao se estabelecer uma relao entrevrios fatos, todavia, somente um aspecto da tomada de deciso administrativa. A ao administrativa sempreenvolve um complexo processo de juno e sopesamento de fatos e a aplicao do direito a uma situao dada.Diferentes fatores devem ser pesados, prioridades devem ser estabelecidas e concluses legais alcanadas. Aquio princpio da proporcionalidade retorna situao. De um modo amplo, esse princpio est ligado administrao, razoabilidade e a um procedimento justo. Esse conceito vago de proporcionalidade facilita suautilizao pois acaba por criar um sentido amplo sem fronteiras claras.57 SILVA, Virglio Afonso da. O Proporcional e o Razovel. Revista dos Tribunais, So Paulo: RT, v. 798, abr.2002, p. 36-37: Adequado, ento, no somente o meio cuja utilizao a realizao de um objetivo alcanado,mas tambm o meio com cuja utilizao a realizao de um objetivo fomentada, promovida, ainda que oobjetivo no seja completamente realizado. H uma grande diferena entre ambos os conceitos, que fica clara nadefinio de Martin Borowski, segundo a qual uma medida estatal adequada quando o seu emprego faz comque o objetivo legtimo pretendido seja alcanado ou pelo menos fomentado. Dessa forma, uma medida

    somente pode ser considerada inadequada se sua utilizao no contribuir em nada para fomentar a realizao doobjetivo pretendido.58 PULIDO, Carlos Bernal.El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. Madrid: Centros deEstudios Polticos y Constitucionales, 2003, p. 690.

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    adequao59.

    H que se dizer que no se exige, para que sejam cumpridos os ditamos deste exame,

    que o fim seja efetivamente alcanado60-61. Basta que esteja o meio apto a fomentar o alcance,

    ou seja, que esse meio tenha condies de alcanar e no que seja o fim alcanado

    obrigatoriamente, vez que exigir o alcance efetivo impede que se entenda a interpretao do

    direito como algo complexo e contingente, ou seja, que para o alcance de um fim legtimo h

    mais que uma possibilidade e que o momento da tomada da deciso que importa para a

    escolha, sendo possvel que em um futuro, entre as mesmas possibilidades interpretativas, seja

    outra delas escolhida62.

    Outrossim, trata-se de refletir sobre a falncia da idia da racionalidade objetiva

    absoluta e da verificao de que o erro, eventualmente, pode fazer parte do processo deescolha no Direito, pois, nem os parlamentos, nem, muito menos, os tribunais, esto aptos,

    por bvio, a dar a resposta exata (nica) para os problemas concretos, sendo de sua alada

    oferecer a melhor delas.

    Trata-se do exame mais leve entre os que compem a mxima da proporcionalidade.

    Alexy63 esclarece a utilizao da sub-regra da adequao com o caso do barbeiro que,

    aps instalar uma mquina de venda de tabaco, teve contra si imposta uma sano pela

    administrao pblica em decorrncia da existncia de lei que exigia, para a comercializaode tabaco, fosse comerciante formado ou de h muito tempo, ou que passasse por uma

    prova especial para tanto (Meio: M).Inconformado, recorreu o comerciante jurisdio

    ordinria e, aps, jurisdio constitucional do Tribunal Constitucional. O Tribunal

    Constitucional Federal Alemo tratou de verificar o seguinte:

    1) estaria posta uma coliso de princpios, tais os da (a) liberdade de profisso, de um

    lado, e (b) a proteo dos consumidores (sade) de outro lado;

    59 Com isso, apartamo-nos, ligeiramente, da anlise de Alexy que no verifica na adequao a necessidade deapontar-se a legitimidade do fim. Mesmo porque, com isso, altera-se uma a viso de que um exame unicamenteftico, ou seja, ao exigir tanto a legitimidade quanto o fomento do alcance do fim, transforma-se em um examehbrido, tanto ftico (fomento) quanto jurdico (legitimidade).60 BOROWSKI, Martin. La Estrucutura de los Derechos Fundamentales. Bogot: Universidad Externado deColmbia, 2003, p. 130: Una medida estatal es idnea si su adopcin conduce a que se alcance o favorezca laobtencin del fn legtimo perseguido por el Estado. Un fin es legtimo si su consecucin est ordenada o en todocaso permitida constitucionalmente. Los fines ilegtimos son slo aquellos cuya obtencin est prohibida por laConstitucin.61 STEINMETZ, Wilson.A Vinculao dos Particulares a Direitos Fundamentais. So Paulo: Malheiros, 2005,p. 212: diz o autor que o meio deve ser apto, til, idneo ou apropriado para atingir ou promover o fimpretendido.62 Trata-se, a nosso ver, dos conceitos de complexidade e contingncias da teoria do sistemas luhmanniana. Entreoutros, vf. CAMPILONGO, Celso. O direito da sociedade complexa. So Paulo: Max Limonad, 2000.63 ALEXY, Robert. Eplogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales. Revista Espaola de DerechoConstitucional, n. 66, Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, set./dez. 2002, p. 27-28.

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    2) fomentaria o Meio (M) o alcance do fim voltado para a proteo dos consumidores,

    dizer, exigir a comprovao de M fomentaria a efetiva proteo de (b)? Entendeu o tribunal

    que no, vez que exigir curso especial, aprovao em prova especial ou ser comerciante h

    muito no alcana nem fomenta a proteo do consumidor, dado que o dano sade dos

    consumidores no decorre disso e sim do uso do prprio tabaco, tratando-se, assim, de meio

    inadequado para o fim objetivado.

    1.2.2. Exame da necessidade

    Desde que superado o exame da adequao, alcana-se o da necessidade.

    O exame da necessidade, ftico, cuida de verificar se existe outra medida que fomenteo alcance do fim almejado com tamanha intensidade e que, por outro lado, faa-o sem

    restringir to intensamente um dos princpios que se encontra em coliso. Isso quer dizer que,

    em se tratando de uma coliso entre dois princpios, deve haver, alm da medida tomada,

    outra que, ao dar prioridade a um dos princpios, no limite com tamanha intensidade o

    princpio preterido64.Em sntese, busca-se que de dos medios igualmente idneos sea

    escogido el ms benigno con el derecho fundamental afectado65.

    Trata-se de exame que exige uma comparao entre possveis medidas que fomentemo alcance do fim almejado com a mesma intensidade, e, assim, que esse meio seja o mais

    suave66.Pode ocorrer, entretanto, que no disponha aquele que decide a coliso de princpios

    de conhecimento cientficos bastantes para optar por uma ou outra medida possvel, caso em

    que, havendo previso legislativa sobre a questo, deve a medida previamente escolhida e sob

    anlise ser privilegiada67, se no se configurar excessivamente restritiva.Trata-se de expresar

    la idea del ptimo de Pareto: una posicin puede ser mejorada, sin que otra empeore68.

    64 SILVA, Virglio Afonso da. O Proporcional e o Razovel, Revista dos Tribunais, So Paulo: RT, v. 798, abr.2002, p. 39: Excelente a definio do autor para quem um ato estatal que limita um direito fundamental somente necessrio caso a realizao do objetivo perseguido no possa ser promovida, com a mesmaintensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito, para promover o objetivo O, o Estadoadote a medidaM1, que limita o direito D. Se houver uma medida M2 que, tanto quantoM1, seja adequada parapromover com igual eficincia o objetivo O, mas limite o direito fundamental D em menor intensidade, ento amedidaM1, utilizada pelo Estado, no necessria. A diferena entre o exame da necessidade e o da adequao clara: o exame da necessidade um exame imprescindivelmente comparativo, enquanto o da adequao umexame absoluto.65 ALEXY, Robert. Eplogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales, Revista Espaola de DerechoConstitucional, n. 66. Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, set./dez. 2002, p. 28.66 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria Processual da Constituio. So Paulo: Celso Bastos Editor, 2002,

    p. 85.67 ALEXY, Robert. Eplogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales, Revista Espaola de DerechoConstitucional, n. 66, Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, set./dez., 2002, p. 29-30.68 ALEXY, Robert. Eplogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales, Revista Espaola de Derecho

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    1.2.3. O exame da proporcionalidade em sentido estrito69

    Esse exame depende, como dissemos, do cumprimento e respeito do ato ou medida

    sob anlise aos dois anteriores exames: adequao e necessidade.Ultrapassados aqueles,

    chega-se ao exame jurdico da ponderao ou da proporcionalidade em sentido estrito.

    Esse exame exige que se verifiquem os custos da restrio de um direito fundamental

    veiculado a partir de princpio em favor da garantia ou preferncia dada a outro princpio com

    esse em coliso. Por isso, estrutura-se la ponderacin al obligar a formular y fundamentar

    enunciados sobre el grado de no realizacin y afetacin como as tambin enunciados sobre el

    grado de importncia; aqui interessa todo argumento posible en la argumentacin jurdica.Trata-se da estruturar os argumentos em favor e contrrios a cada princpio em

    coliso, de forma que se verifique, ante o sistema jurdico, se a restrio de um dos princpios

    em favor de outro admitida pelo prprio sistema. Para isso, deve-se verificar que cuanto

    mayor es el grado de incumplimiento o de afectacin de un principio, tanto maior tiene que

    ser la importancia del cumplimiento del otro70. Todavia, a importncia do cumprimento do

    outro deve ser verificada a partir da prpria importncia que o sistema jurdico d aos

    princpios em coliso, e no ser direcionada quele que foi favorecido ou preterido na prpriacoliso.

    de se analisar, a partir do direito positivo, se a medida verificada e o fim buscado

    respeitam o sentido que decorre do sistema jurdico para privilegiar um dos princpios em

    detrimento de outro no caso concreto71.

    Assim, podemos dividir o processo ponderativo em trs passos, verificando: a) o grau

    de afetao de um dos princpios; b) a importncia da satisfao do princpio em coliso com

    o primeiro; c) se a importncia da afetao a um dos princpios justifica a satisfao do

    Constitucional, n. 66, Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, set./dez. 2002, p. 28.69 O princpio da proporcionalidade em sentido estrito corresponde prpria verificao do ncleo essencial dosdireitos fundamentais, ou seja, o exame jurdico que fixa o limite das restries dos direitos fundamentais, cf.ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,p. 290-291.70 ALEXY, Robert.El concepto y la validez del Derecho. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 206.71 ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 171: Lascondiciones de precedencia estabelecidas em un sistema jurdico, es decir, las reglas que se corresponden con la

    ley de colisin, proporcionan informacin acerda del peso relativo de los principios. Desde luego, a causa de laposibilidad de nuevos casos con nuevas combinaciones de caraceristicas que deben ser evaluadas, no es posibleconstruir com su ayuda ningn orden que establezca em cada caso justamente uma decisin. Pero, con todo, seabre la posibilidad de un procedimiento de argumentacin que no existiria sin los princpios.

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    outro72. Para estruturar esse processo construtivo prope que se formule uma escala de trs

    graus para cada princpio em coliso, no sentido de satisfao/no satisfao de cada um

    deles73.

    Para isso, Alexy cria a necessidade de que, alm de se verificar o grau de

    satisfao/no satisfao de cada princpio, se imponha seja classificado em: a) leve; b)

    mdia; e c) grave a satisfao/no satisfao de cada qual74.

    72 ALEXY, Robert. Eplogo a la Teoria de los Derechos Fundamentales, Revista Espaola de DerechoConstitucional, n. 66, Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, set./dez. 2002, p. 32.73 Idem, ibidem, p. 33.74 Nesse sentido, utiliza-se do caso Titanic para expor sua tese tripartite de graus de satisfao/insatisfao quese inserem no sub-exame da proporcionalidade em sentido estrito.

    Trata-se de caso em que a revista satrica Titanic chamou de assassino nato e, posteriormente, de aleijadoum oficial da reserva que era paraplgico e que havia sido convocado novamente ativa para participar de umexerccio militar. O tribunal de Dsseldorf condenou a revista a uma indenizao de 12.000 marcos levando emconta as duas assertivas. Aps isso, a revista recorreu ao Tribunal Constitucional Federal, que conduziu umaponderao relativa s circunstncias do caso concreto. Assim, a deciso analisada sob o prisma da regra daproporcionalidade a deciso do Tribunal de Dsseldorf. Para chegar ao resultado final, o TCF, primeiramente,ponderou sobre a intensidade ou peso da interveno sobre os direitos envolvidos (liberdade de expresso ehonra), veiculados a partir de princpios.Aps seu exame a partir da regra da proporcionalidade, a condenao aopagamento da indenizao decorrente do julgado do Tribunal de Dsseldorf foi considerada como umainterveno dura, grave, na liberdade de expresso, pois ter chamado o autor da ao de assassino nato estavadentro das stiras realizadas costumeiramente pela publicao, dizer, seria costumeiro que uma revista satricaassim se manifeste sobre pessoas. Com isso, acabou por rever a deciso anteriormente referida, e considerou umaleso leve ao direito honra, sendo que o TCF entendeu que, a condenao ao pagamento da indenizao, que

    uma interveno grave ao direito fundamental da liberdade de expresso, estaria justificada, somente, se fosseconfigurada uma leso igualmente grave ao direito honra.Porm, quanto ao apelido de aleijado, o tribunal entendeu que castiga gravemente o direito honra do oficialda reserva, que era paraplgico, vez que chamar de aleijada a uma pessoa portadora de deficincia fsica deve serentendido como uma humilhao e uma grande falta de respeito. Desse modo, temos, nossa frente, umainterveno grave, decorrente da indenizao decidida com o fim de limitar o direito livre expresso, que se fazrelevante dada a extrema importncia de se proteger o direito honra no caso concreto. Nesse sentido, norecurso interposto pela revista Titanic, foi dado provimento somente em relao indenizao pelo uso doadjetivo assassino nato, indeferindo o recurso quanto a injria de aleijado, mantendo-se a condenaosomente quanto a essa ltima expresso.Alexy admite ser discutvel se o apelido assassino nato representa apenas uma interveno leve ou mdia aodireito honra. Porm, o que interessa discutir de que forma chamar algum de aleijado afeta de umamaneira intensa os princpios da liberdade de expresso e a honra.

    Ou seja, a ponderao de quo grave a leso.Uma humilhao pblica e uma falta de respeito semelhantes afetam a dignidade do ex-militar. No se trataento de uma leso grave, mas de uma leso muito grave ou extraordinariamente grave.Alexy diz que, embora os direitos fundamentais, interpretados como princpios, possuam gradaes de limites noato de ponderar, tais limites no podem ser concebidos como imveis e livres da ponderao, mas, sim, comopautas fixas e claras, pois existem razes plausveis que os corroboram Nesse momento de exame jurdico a partir da ponderao deve o sistema jurdico oferecer um norte para adeciso, pois se trata, a nosso ver, de aplicar mtodo parecido com o sistemtico, to conhecido e antigo, aindaque desprestigiado pelos defensores da nova interpretao constitucional, que, a nosso ver, no nova nem,muito menos, especificamente constitucional, vez que raras vezes utilizada sem que seu objeto seja a legislaoinfraconstitucional, alm de no enfrentar o problema da alterao do Direito como um todo e da prpriadogmtica jurdica cambiante (H crticas interessantes em SILVA, Virglio Afonso da. InterpretaoConstitucional e Sincretismo Metodolgico. In: SILVA, Virglio Afonso da (org.).Interpretao Constitucional.

    So Paulo: Malheiros, 2005, p. 141, principalmente quanto ao conceito de sincretismo metodolgico. Noconcordamos com o autor quando esse diz que h uma diferenciao entre a interpretao constitucional e deoutros ramos do Direito. Isso porque acreditamos que o que foi alterado, principalmente, no sculo passado, foitoda a dogmtica do direito e no somente a da constituio. Trata-se, ao nosso ver, de observao parcial de um

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    1.3. Direitos fundamentais como regras

    Diferentemente dos princpios, que exigem uma construo jurdica a partir de

    ponderao com outros princpios, as regras exigem que o intrprete as aplique a partir do

    conhecido mtodo subsuntivo75.

    O mtodo subsuntivo desenvolvido a partir de um raciocnio de ordem dedutiva, ou

    seja, a partir de uma premissa maior (a legislao) e de uma menor (o caso concreto) que

    alcanado um resultado final (concluso).Nesse sentido, pode-se dizer que as regras estipulam

    mandamentos definitivos, em contradio com os princpios, que estipulam deveres prima

    facie, ou seja, estes somente tm seu contedo jurdico construdo aps a devida ponderaocom outros princpios ou regra opostos. J as regras, ao estipular mandamentos definitivos,

    oferecem ao intrprete, no momento da sua verificao no caso concreto, todas as

    possibilidades alcanveis por seu contedo. Por essa razo as regras son normas que slo

    pueden ser cumplidas o no. Si una regla s vlida, entonces de hacerse exactamente lo que

    ella exige, ni ms ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el mbito de

    lo ftica y juridicamente posible76. Isso quer dizer que ou so aplicveis, e nesse caso se

    reconhece sua validade, ou no o so, no sentido de que, se houver conflito entre regras, hque haver, por conseguinte, a obrigao do rgo decisor (intrprete) de declarar uma delas

    nula, vez que se aplicam na medida do tudo ou nada77, ou, se possvel, como veremos mais

    fenmeno global no Direito).No mais, a ponderao carrega consigo a necessidade de um intrprete que participe mais do processo deconstruo do Direito e, quanto ao prprio Direito, um avano quanto sua adaptabilidade. Isso porque nemsempre possvel que o legislador tutele expressamente a resoluo de todos os problemas, e nem deveria s-lo,vez que no dispe mais do monoplio na construo do Direito.A anlise jurdica da ponderao exige que se tome como premissa que o Direito positivo no oferece como um

    dado toda e qualquer deciso, mas se trata de uma construo que se renova a caso concreto que se decide.Transparente se torna aps uma reflexo sobre o juzo de ponderao que este no oferece a mesma certeza deresultado que os mtodos hierrquico ou cronolgico, do raciocnio subsuntivo, por exemplo. No se trata de umescudo infalibilidade. Mas, com isso, no se admite o chame de vazio. Trata-se de verificar que so asconjugaes jurdicas do caso concreto, quanto coliso de princpios, assimiladas ao papel construtivo dointrprete (decisor), que fazem com que se a imponha como um mtodo que atribui alguma conteno aointrprete, que deve disponibilizar quele que se debrua para verificar sua deciso uma argumentao a maisconsistente possvel. Ou, ainda, de oxigenar o direito com a realidade, em um movimento pendular que ofereces duas partes (princpios) elementos de retro-alimentao. (idem, ibidem, pp. 34 e ss.).

    75 ALEXY, Robert.El concepto y la validez del Derecho. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 162.76 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,p. 87.77 ALEXY, Robert. El concepto y la validez del Derecho. 2 ed. Barcelona: Gedisa, 1997, p. 163. EmDWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1997, p. 24: A diferenaentre princpios jurdicos e regras jurdicas uma distino lgica. Ambos os standards apontam para umadeciso particular sobre obrigaes jurdicas em circunstncias particulares, mas diferem quanto ao carter de

  • 8/8/2019 Colises de Direitos Fundamentais - Guilherme Conci

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    adiante, estabelecer uma clusula de exceo para que no haja a necessidade de declarao

    de invalidade78.

    Do conflito de regras decorre a eliminao por invalidade de uma delas,

    necessariamente, enquanto para os princpios, dada a utilizao da metfora do peso 79,

    conforme o caso concreto, haver a opo por um princpio em detrimento de outro, que, no

    caso a decidir, recebe uma idia de peso menor que o escolhido.

    Para exemplificar o que se disse, preferimos nos utilizar de exemplo de Alexy80 sobre

    o conflito entre uma lei de um Estado Membro que probe o comrcio s quartas-feiras, a

    partir das 13 horas e uma lei federal que estipula que, na mesma quarta-feira, permite-se o

    comrcio at s 19 horas. A partir das normas construdas com base em cada lei, pem-se em

    conflito duas regras: (a) a regra construda