Coleção Primeiros Passos - O Que é Educação - Carlos Rodrigues Brandao

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Coleção primeiros passos

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  • cOleco primeiros 20 passos

  • Carlos Rodrigues Brando

    '" O QUE E -EDUCAAO

    editora brasiliense

  • Cupyright hy Carlos Rodrigues Brando, 1981 Nenhuma parte desta publicao pode _~er gravada, annazenada cm sistemas eletrnicos, fotocopiada,

    reproduzida por meios mecnicos ou outros quaisquer sem aUlorizao prvia da editora.

    Primeira edio, 198 t 493 reimpresso, 2007

    Reviso: Jos E. Andrade e Lcia S. Nicolai Caricatura. .. : Emlio Damilli

    Capa: /23 (antigo 27) Artistas Grficos

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Brando, Carlo" Rodrigue.~ O que educao / Carlos Rodrigues Brando. So Paulo: Brasiliense, 2007. - - (Coleo primeiros passos; 20)

    49" reimpr. da 1. ed. de 1981. ISBN 85-11-01020-3

    I. Educao I. Ttulo. H. Srie.

    ndices para catlogo sistemtico I. Educao 370'

    editora brasiliense S.3.

    rnn_ '711

    Rua Airi, 22 - TalUap - CEP 033 HI-OlO - So Paulo - SP Fone/Fax: (Oxxl [) 6198-t48f'

    www.editorabrasiliense.com.c

    livraria brasiliense 5.3. Av. Azevedo, 484 - Tiltuap - CEP 03308-000 - So Paulo - SP

    Fone/Fax: (Oxx 11) 6197-0054 li [email protected]

    NDICE

    Educao? Educaes: aprender com o ndio .............. . Quando a escola a aldeia ...... . Ento, surge a escola .......... . Pedagogos, mestres-escola e sofistas. A educao que Roma fez, e o que ela ensina ................ _ ........... . Educao: isto e aquilo, e o contrrio de tudo ..... _ ..................... . Pessoas versus sociedade: um dilema que oculta outros ....................... '. Sociedade contra Estado: classe e educao A esperana na educao. _ ..

    - Indicaes para leitura. , ......... , .... .

    .. .. '

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  • EDUCAO? EDUCAES: APRENDER COM O NDIO

    Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde : a coragem minha. Buriti quer todo o azul. e no se aparta de sua gua - carece de espelho. Mestre no quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.

    Joo Guimares Rosa/Grande Serto: Veredas

    Ningum escapa da educao. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos ns envolvemos pedaos da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e--ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educao. Com uma ou com vrias: educao? Educaes. E j que pelo menos por isso sempre achamos que temos alguma coisa a dizer sobre a educao que nos invade a vida, por que no

    UAB-GERSONTexte surlign

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    comear a pensar sobre ela com o qe uns ndios uma vez escreveram?

    H muitos anos nos Estados Unidos, Virgnia e Maryland assinaram um tratado de paz com os r ndios das Seis Naes. Ora, como as promes-sas e os smbolos da educao sempre foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes mandaram cartas aos ndios para que enviassem alguns de seus jovens s escolas dos brancos. Os chefes responderam agradecendo e recusando. A carta acabou conhecida porque alguns anos mais tarde Benjamin Franklin adotou o costume de divulg-Ia aqui e ali. Eis o trecho que nos interessa:

    " .. . Ns estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para ns e agrade-cemos de todo o corao. Mas aqueles que so sbios reconhecem que dife-rentes naes tm concepes diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores no ficaro ofendidos ao saber que a vossa idia de educao no a mesma que a nossa_ .. . Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa cincia. Mas, quando eles voltavam para ns, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. No sabiam como caar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a

    o que Educao

    nossa I/ngua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inteis. No serviam como guerreiros, como caadores ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora no possamos aceit-Ia, para mostrar a nossa gratido oferecemos aos nobres senhores de Virg/nia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens."

    De tudo o que se discute hoje sobre a educao, algumas das questes entre as mais importantes esto escritas nesta carta de ndios. No h uma forma nica nem um nico modelo de educao; a escola no o nico lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar no a sua nica prtica e o professor profissional no o seu nico praticante.

    Em mundos diversos a educao existe dife-rente: em pequenas sociedades tribais de povos caadores, agricultores ou pastores nmades; em sociedades camponesas, em pases desenvol-vidos e industrializados; em mundos sociais sem classes, de classes, com este ou aquele tipo de conflito entre as suas classes; em tipos de socie-dades e culturas sem Estado, com um Estado em formao ou com ele consolidado entre e sobre as pessoas.

    Existe a educao de cada categoria de sujeitos de um povo; ela ex iste em cada povo, ou entre

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    povos que se encontram. Existe entre povos que submetem e dominam outros povos, usando a educao como um recurso a mais de sua domi nncia. Da famlia comunidade, a educao existe difusa em todos os mundos sociais, entre as incontveis prticas dos mistrios do aprender; primeiro, sem classes de alunos, sem livros e sem professores especialistas; mais adiante com escolas, salas, professores e mtodos pedaggicos.

    A educao pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como idia, como crena, aquilo que comunitrio como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforam a desigualdade entre os homens, na diviso dos bens, do trabalho, dos direitos e dos smbolos.

    A educao , como outras, uma frao do modo de vida dos grupos soc.iais que a criam . e recriam, entre tantas outras invenes de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educao que produzem e praticam, para que elas reprodu zam, entre todos os que ensinam-e-aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os cdigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religio, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a

    o que Educao

    de cada um de seus sujeitos, atravs de trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a prpria educao habita, e desde onde ajuda a explicar - s vezes a ocultar, s vezes a inculcar -de gerao em gerao, a necessidade da exis-tncia de sua ordem.

    Por isso mesmo - e os ndios sabiam - a edu-cao do colonizador, que contm o saber de seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente legalidade de seus atos de domnio, na verdade no serve para ser a educao do colonizado. No serve e existe contra uma educao que ele, no obstante dominado, tambm possui como um dos seus recursos, em seu mundo, dentro de sua cultura.

    Assim, quando so necessrios guerreiros ou burocratas, a educao um dos meios de que os homens lanam mo para criar guerreiros ou burocratas. Ela ajuda a pensar tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda a cri-los, atravs de passar de uns para os outros o saber que os constitui e legitima. Mais ainda, a educao parti-cipa do processo de produo de crenas e idias, de qualificaes e especialidades que envolvem as trocas de smbolos, bens e poderes que, em conjunto, constroem tipos de sociedades. E esta a sua fora.

    No entanto, pensando s vezes que age por si prprio, livre e em nome de todos, o educdor

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    imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na verdade, ele pode estar servindo a quem o constituiu professor, a fim de us-lo, e ao seu trabalho, para os usos escusos que ocultam tambm na educao - nas suas agncias, suas prticas e nas idias que ela professa - interesses pol-ticos impostos sobre ela e, atravs de seu exerccio, sociedade que habita_ E esta a sua fraqueza.

    Aqui e ali ser preciso voltar a estas idias, e elas podem ser como que um roteiro daqui para a frente. A educao existe no imaginrio das pessoas e na ideologia dos grupos sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se diz para fora, que a sua misso transformar sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, de acordo com as imagens que se tem de uns e outros: " .. _e deles faremos homens". Mas na prtica a mesma educao que ensina pode deseducar: e pode correr o risco de fazer o contrrio do que pensa que faz, ou do que inventa que pode fazer: "_ .. eles eram, portanto, totalmente inteis"_

    QUANDO A ESCOLA A ALDEIA

    A educao existe onde no h a escola e por toda parte podem haver redes e estruturas sociais de transferncia de saber de uma gerao a outra, onde ainda no foi sequer criada a sombra de algum modelo de ensino formal e centralizado_ Porque a educao aprende com o homem a continuar o trabalho da vida. A vida que trans-porta de uma espcie para a outra, dentro da histria da natureza, e de uma gerao a outra de viventes, dentro da histria da espcie, os princ-pios atravs dos quais a prpria vida aprende e ensina a sobreviver e a evoluir em cada tipo de ser_

    Os bichos do mundo aprendem de dentro para fora com as armas naturais do instinto. Mas a isto eles acrescentam maneiras de aprender de fora para dentro, convivendo com a espcie,

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    observando a conduta de outros igua is de seu mundo e experimentando repetir muitas vezes essas condutas da espcie, por conta prpria. Entre os que nos rodeiam de perto ou de longe, no so raros os bichos cujos pais da prole criam e recriam situaes, para que o treino dos filhotes faa e repita os atos da aprendizagem que garante a vida, como a me que um dia expulsa com amor o filho do ninho, para que ele aprenda a arte e a coragem do primeiro vo.

    O homem que transforma, com o trabalho e a conscincia, partes da natureza em invenes de sua cultura, aprendeu com o tempo a trans formar partes das trocas feitas no interior desta cultura em situaes sociais de aprenderensinar -e-aprender: em educao. Na espcie humana a educao no continua apenas o trabalho da vida. Ela se instala dentro de um domnio propria mente humano de trocas: de smbolos, de inten es, de padres de cultura e de relaes de poder. Mas, a seu modo, ela continua no homem o traba-lho da natureza de faz-lo evoluir, de torn-lo mais humano. ~ esta a idia que Werner Jaeger tem na cabea quando, num estudo sobre a edu cao do homem grego, procura explicar o que ela , afinal:

    "A natureza do homem, na sua dupla estrutura corprea e espiritual, cria condies especiais para a manuteno e tranimisso da sua forma

    o que Educao

    Na aldeia africana o "velho" ensina s crumas o saber da tribo.

    particular e ,exige organizaes fsicas e espirituais, ao conjunto das quais damos o nome de educao. Na educao, como o homem a pratica, atua a mesma fora vital, criadora e plstica, que espon-taneamente impele todas as espcies vivas conser vao e propagao de seu tipo. E nela, porm, que essa fora atinge o seu mais alto grau de inten-sidade, atravs do esforo consciente do conheci-mento e da vontade, dirigida para a consecuo de um fim."

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    Quando um povo alcana um estgio complexo de organizao da sua sociedade e de sl,la cultura; quando ele enfrenta, por exemplo, a questo da diviso social do trabalho e, portanto, do poder, que ele comea a viver e a pensar como problema as formas e os processos de transmisso do saber. a partir de ento que a questo da educao emerge conscincia e o trabalho de educar acrescenta sociedade, passo a passo, os espaos, sistemas, tempos, regras de prtica, tipos de profissionais e categorias de educandos envolvidos nos exercicios de maneiras cada vez menos corriqueiras e menos comunitrias do ato, afinal to simples, de ensinar-e-aprender.

    No entanto, muito antes que isso acontea, em qualquer lugar e a qualquer tempo - entre dez indios remanescentes de alguma tribo do Brasil Central, no centro da cidade de So Paulo -a educao existe sob tantas formas e praticada em situaes to diferentes, que algumas vezes parece ser invisivel, a no ser nos lugares onde pendura alguma placa na poria com o seu nome.

    Quando os antroplogos do comeo do sculo sairam pelo mundo pesquisando "culturas primi-tivas" de sociedades tribais das Amricas, da Asia, da frica e da Oceania, eles aprenderam a descre-ver com rigor praticamente todos os recantos da vida destas sociedades e culturas. No entanto, quase nenhum deles usa a palavra educao, embora quase todos, de uma forma ou de outra,

    o que Educao

    descrevam relaes cotidianas ou cerimnias rituais em que crianas aprendem e jovens so solenemente admitidos no mundo dos adultos.

    De vez em quando, aparece, perdido num mar de outros conceitos, o de educao, como quando Radcliffe-Brown - um antroplogo ingls que participa da criao da moderna Antropologia Social - lembra que, entre os andamaneses, um grupo tribal de ilhus entre Burma e Sumatra, para se ajustar a criana sua comunidade H preciso que ela seja educada". Parte deste pro-cesso consiste em a criana e o adolescente apren-derem aos poucos a caar, a fabricar o arco e flecha e assim por diante. Outra parte envolve a aqu isio de "sentimentos e disposies emocio-

    '. nais" que regulam a conduta dos membros da tribo e constituem o corpo de suas regras sociais de moralidade.

    Quando os antroplogos pouco falam em educao, eles pouco querem falar de processos formalizados de ensino. Porque, onde os andama-neses, os maori, os apaches ou os xavantes pra-ticam, e os antroplogos identificam processos sociais de aprendizagem, no existe ainda nenhuma situao propriamente escolar de transferncia do saber tribal que vai do fabrico do arco e flecha recitao das rezas sagradas aos deuses da tribo. Ali, a sabedoria acumulada do grupo social no "d aulas" e os alunos, que so todos os que aprendem, "no aprendem na escola".' Tudo

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    o que se sabe aos poucos se adquire por viver muitas e diferentes situaes de trocas entre pessoas, com o corpo, com a conscincia, com o corpo-e-a-consclencia. As pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos' atos de quem sabe-e-faz, para quem no-sabe-e-aprende. Mesmo quando os adultos encorajam e guiam os momentos e situaes de aprender de crianas e adolescentes, so raros os tempos especialmente reservados apenas para o ato de ensinar.

    Nas aldeias dos grupos tribais mais simples, todas as relaes entre a criana e a natureza, guia-das de mais longe ou mais perto pela presena de adultos conhecedores, so situaes de apren-dizagem. A criana v, entende, imita e aprende com a sabedoria que existe no prprio gesto de fazer a coisa. So tambm situaes de aprendi zagem aquelas em que as pessoas do grupo trocam bens materiais entre si ou trocam servios e signi-ficados: na turma de caada, no barco de pesca, no canto da cozinha da palhoca, na lavoura fami-liar ou comunitria de mandi~ca, nos grupos de brincadeiras de meninos e meninas, nas cerimnias religiosas.

    Emile Durkheim, um dos. principais socilogos da educao, explica isto da seguinte maneira:

    "Sob regime tribal, a caracterlstica essencial da educaa reside no fato de ser difusa e adminis-trada indistintamente por todos os elementos

    o que Educao

    do cl. No h mestres determinados, nem inspe-tores especiais para a formao da juventude: esses papis so desempenhados por todos os ancios e pelo conjunto das geraes anteriores."

    As meninas aprendem com as companheiras de idade, com as mes, as avs, as irms mais velhas, as velhas sbias da tribo, com esta ou aquela especialista em algum tipo de magia ou artesanato. Os meninos aprendem entre os jogos e brincadeiras de seus grupos de idade, aprendem com os pais, os irmos-da-me, os avs, os guer-reiros, com algum xam (mago, feiticeiro), com os velhos em volta das fogueiras. Todos os agentes desta educao de aldeia criam de parte a parte as situaes que, direta ou indiretamente, foram iniciativas de aprendizagem e treinamento. Elas existem misturadas com a vida em momentos de trabalho, de lazer, de camaradagem ou de amor. Quase sempre no so impostas e no raro que sejam os aprendizes os que tomam a seu cargo procurar pessoas e situaes de troca que lhes possam trazer algum aprendizado. Assim, entre os Wogeo, da Nova Guin, de acordo com o depoimento de um antroplogo:

    "Onde necessrio aprender habilidades especiais as crianas esto, em regra geral, ansiosas por saber o que os seus pais conhecem. O orgulho do trabalhador e o prestigio do bom arteso

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    dominam sua vida e elas necessitam de muito pouco est/mulo para procur-los por si mesmas_"

    o saber da comunidade, aquilo que todos conhe-cem de algum modo; o saber prprio dos homens e das mulheres, de crianas, adolescentes, jovens, adultos e velhos; o saber de guerreiros e esposas; o saber que faz o arteso, o sacerdote, o feiticeiro, o navegador e outros tantos especialistas, envolve portanto situaes pedaggicas interpessoais, fami-liares e comunitrias, onde ainda no surgiram tcnicas pedaggicas escolares, acompanhadas de seus profissionais de aplicao exclusiva. Os que sabem: fazem, ensinam, vigiam, incentivam, demonstram, corrigem, punem e premiam. Os que no sabem espiam, na vida que h no cotidiano, o saber que ali existe, vem fazer e imitam, so instrudos com o exemplo, incentivados, treinados, corrigidos, punidos, premiados e, enfim, aos poucos aceitos entre os que sabem fazer e e(lsinar, com o prprio exerccio vivo do fazer. Esparra-madas pelos cantos do cotidiano, todas as situaes entre pessoas, e entre pessoas e a natureza -situaes sempre mediadas pelas regras, smbolos e valores da cultura do grupo - tm, em menor ou maior escala a sua dimenso pedaggica. Ali, todos os que convivem aprendem, aprendem, da sabedoria do grupo social e da fora da norma dos costumes da tribo, o saber que torna todos e cada um pessoalmente aptos e socialmente

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    reconhecidos e legitimados para a convlvencia social, o trabalho, as artes da guerra e os ofcios do amor.

    "Os meninos observam os homens quando fazem arcos e flechas; o homem os chama para perto de si e eles se vem obrigados a observ-lo. As mulheres, por outro lado, levam as meninas para fora de casa, ensinando-as a conhecer as plantas boas para confeccionar cestos e a argila que serve para fazer potes. E, em casa, as mulheres tecem os cestos, costuram os mocassins e curtem a pele de cabrito diante das meninas, dizendo-lhes, enquanto esto trabalhando, que observem cuida-dosamente, para que, quando forem grandes, ningum as possa chamar de preguiosas e igno-rantes. Ensinam-nas a cozinhar e aconselham--nas sobre a busca de bagas e outros frutos, assim como sobre a colheita de almentos. "

    Em todos os grupos humanos mais simples, os diversos tipos de treinamento atravs das trocas sociais, que socializam crianas e adolescentes, incluem, entre outras, estas situaes pedaggicas:

    o treinamento direto de habilidades corporais, por meio da prtica direta dos atos que condu-zem o corpo ao hbito;

    a estimulao dirigida, para que o aprendiz faa e repita, at o acerto, os atos de saber

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    e habilidade que ignora; a observao livre e dirigida, do educando,

    dos procedimentos daqueles que sabem; a correo interpessoal, familiar ou comuni-

    tria, das prticas ou das condutas erradas, por meio do castigo, do rid(culo ou da admoes-tao'

    a assistncia convocada para cerimnias rituais e, aos poucos (ou depois de uma iniciao), o direito participao nestas cerimnias (solenidades religiosas, danas, rituais de pas sagem);

    a inculcao dirigida em situaes de quase-ensi-no, com o uso da palavra e turmas de ouvintes, dos valores morais, dos mitos histrico-religiosos da tribo, das regras dos cdigos de conduta.

    Assim, tudo o que importante para a comuni-dade, e existe como algum tipo de saber, existe tambm como algum modo de ensinar. Mesmo onde ainda no criaram a escola, ou nos intervalos dos lugares onde ela existe, cada tipo de grupo humano cria e desenvolve situaes, recursos e mtodos empregados para ensinar s crianas, aos adolescentes, e tambm aos jovens e mesmo aos adu Itos, o saber, a crena e os gestos que os tornaro um dia o modelo de homem ou de mulher que o imaginrio de cada sociedade - ou mesmo de cada grupo mais especfico, dentro dela -idealiza, projeta e procura realizar. De duas tribos

    r o que Educao'

    vizinhas de pastores do deserto, possvel que se d franca importncia a um artifcio pedaggico, em uma delas, como o castigo corporal, por exem-plo, ou a atemorizao de crianas, e ele seja simplesmente rejeitado na outra. Mas em uma e na outra, como em todas do mundo, nunca as pessoas crescem a esmo e aprendem ao acaso.

    O que vimos acontecer at aqui, formas vivas e comunitrias de ensinar-e-aprender, tem sido chamado com vrios nomes. Ao processo global que tudo envolve, comum que se d o nome de socializao. Atravs dela, ao longo da vida, cada um de ns passa por etapas sucessivas de inculcao de tipos de categorias gerais, parciais ou especializadas de saber-e-habilidade. Elas fazem, em conjunto, o contorno da identidade, da ideo-logia e do modo de vida de um grupo social. Elas fazem, tambm, do ponto de vista de cada um de ns, aquilo que aos poucos somos, sabemos, fazemos e amamos. A socializao realiza em sua esfera as necessidades e projetos da sociedade, e realiza, em cada um de seus membros, grande parte daquilo que eles precisam para serem reco-nhecidos como "seus" e para existirem dentro dela.

    Ora, no interior de todos os contextos sociais coletivos de formao do adulto, o processo de aqU1s1ao pessoal de saber-crena-e-hbito de uma cultura, que funciona sobre educandos como uma situao pedaggica total, pode ser chamado (com algum susto) de endoculturao.

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    Dentro de sua cultura, em sua sociedade, aprender de maneira mais ou menos intencional (alguns diro: "mais ou menos consciente"), atravs do envolvimento direto do corpo, da mente e da afetividade, entre as incontveis situaes de relao com a natureza e de trocas entre os ho-mens, parte do processo pessoal de endocul-turao, e tambm parte da aventura humana do "tornar-se pessoa".

    Vista em seu vo mais livre, a educao uma frao da experincia endoculturativa. Ela apa-rece sempre que h relaes entre pessoas e intenes de ensinar-e-aprender. Intenes, por exemplo, de aos poucos "modelar" a criana, para conduzi-Ia a ser o "modelo" social de adoles-cente e, ao adolescente, para torn-lo mais adiante um jovem e, depois, um adulto. Todos os povos sempre traduzem de alguma maneira esta lenta transformao que a aquisio do saber deve operar. Ajudar a crescer, orientar a maturao, transformar em, tornar capaz, trabalhar sobre, domar, polir, criar, como um sujeito social, a obra, de que o homem natural a matria-prima.

    No nada raro que tanto na cabea de um ndio quanto na de um de nossos educadores ocidentais, a melhor imagem de como a educao se idealiza seja a do oleiro que toma o barro e faz o pote. O trabalho cuidadoso do arteso que age com tempo e sabedoria sobre a argila viva que o educando. A argila que resiste s

    o que Educao

    mos do oleiro, mas que se deixa conduzir por elas a se transformar na obra feita: o adulto edu-cado. Quando o educador pensa a educao, ele acredita que, entre homens, ela o que d a forma e o polimento. Mas ao fazer isso na prtica, tanto pode ser a mo do artista que guia e ajuda o barro a que se transforme, quanto a forma que iguala e deforma.

    i: bom separar agora algumas palavras usadas at aqui e que sero ainda trabalhadas mais adiante. Tudo o que existe transformado da natureza pelo trabalho do homem e significado pela sua cons-cincia uma parte de sua cultura: o pote de barro, as palavras da tribo, a tecnologia da agricultura, da caa ou da pesca, o estilo dos gestos do corpo nos atos do amor, o sistema de crenas religiosas, as estrias da histria que explica quem aquela gente e de onde veio, as tcnicas e situaes de transmisso do saber. Tudo o que existe dispo-nvel e criado em uma cultura como conhecimento que se adquire atravs da experincia pessoal com o mundo ou com o outro; tudo o que se aprende de um modo ou de outro faz parte do processo de endoculturao, atravs do qual um grupo social aos poucos socializa, em sua cultura, os seus membros, como tipos de sujeitos sociais.

    Ora, a educao o territrio mais motivado deste mapa. Ela existe quando a me corrige o filho para que ele fale direito a I ngua do grupo, ,

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    ou quando fala filha sobre as normas sociais do modo de "ser mulher" a li. Existe tambm quando o pai ensina ao filho a polir a ponta da flecha, ou quando os guerreiros saem com os jovens para ensin-los a caar. A educao aparece sempre que surgem formas sociais de conduo e controle da aventura de ensinar-e-aprender. O ensino formal o momento em que a educao se sujeita pedagogia (a teoria da educao). cria situaes prprias para o seu exerccio, produz os seus mtodos, estabelece suas regras e tempos, e constitui executores especializados. ~ quando aparecem a escola, o aluno e o professor de quem comeo a falar daqui para frente.

    ENTO, SURGE A ESCOLA

    Mesmo em algumas sociedades primitivas, quando o trabalho que porduz os bens e quando o poder que reproduz a ordem so divididos e comeam a gerar hierarquias sociais, tambm o saber comum da tribo se divide, comea a se distribuir desigualmente e pode passar a servir ao uso poltico de reforar a diferena, no lugar de um saber anterior, que afirmava a comunidade.

    Ento o comeo de quando' a sociedade separa e aos poucos ope: o que faz, o que se sabe com o que se faz e o que se faz com o que se sabe. Ento quando, entre outras categorias de especialidades sociais, aparecem as de saber e de ensinar a saber. Este o comeo do momento em 'que a educao vira o ensino, que inventa a pedagogia, reduz a aldeia escola e transforma "todos" no educador .

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    o que que isto significa? Significa que, para alm das fronteiras do saber comum de todas as pessoas do grupo e transmitido entre todos livre e pessoalmente, para alm do saber dividido dentro do grupo entre categorias naturais de pessoas (homens e mulheres, crianas, jovens, adultos e velhos) e transferido de uns aos outros segundo suas linhas de sexo ou de idade, por exemplo, emergem tipos e graus de saber que correspondem desigualmente a diferentes cate-gorias de sujeitos (o rei, o sacerdote, o guerreiro, o professor, o lavrador). de acordo com a sua posio social no sistema poltico de relaes do grupo_ Onde todos aprendem para serem "gente" I lIadulto", "um dos nossos" e, meio a meio, alguns aprendem para serem "homem" e outros para serem "mulher", outros ainda come-am a aprender para serem "chefe", "feiticeiro", "artista", "professor", "escravo". A diferena que o grupo reconhece neles por vocao ou por origem, a diferena do que espera de cada um deles como trabalho social qualificado por um saber, gera o comeo da desigualdade da educao de "homem comum" ou de "iniciado", que cada um deles diferentemente comea a receber.

    Uma diviso social do saber e dos agentes e usurios do saber como essa existe mesmo em sociedades muito simples. Em seu primeiro plano de separao - o mais universal - numa idade sempre prxima da adolescncia, meninos e

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    o que ti Educao

    meninas so isolados do resto da tribo. Em alguns casos convivem entre iguais e com adultos por perodos de recluso e aprendizagem que envolvem situaes de ensino forado e duras provas de iniciao. Todo o trabalho pedaggico da forma-o destes jovens conduzido por categorias de educadores escolhidos entre todos para este tipo de ofcio, de que os meninos saem jovens-adultos e guerreiros, por exemplo, e as meninas, moas prontas para a posse de um homem, uma casa e alguns filhos.

    Nas suas formas mais simples, estas situaes pedaggicas de ensino especializado que apressa o adulto que h no jovem podem ser muito breves. Podem envolver pouco mais do que momentos provocados de convivncia intensificada entre grupos de adolescentes e grupos de adultos. Depressa eles so devolvidos ao grupo social e, quase sempre, depois de cerimnias pblicas de iniciao (os ritos de passagem), so reconhe-cidos, pela posio que o grupo lhes atribui e pelo saber que lhes reconhece, como homens e mulheres aptos e legtimos para a vida do adulto da tribo.

    Outras vezes este perodo de aprendizagem-sepa-rada muito ~ais longo, muito mais diversificado e, por certo, muito mais prximo dos modelos de agncias e procedimentos de ensino que temos na cabea quando pensamos em educao. Em sociedades tribais da Libria e de Serra Leoa,

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    na frica, h tipos de escolas para os meninos (as escolas "Poro") e para as meninas (as escolas "Sande"). De tribo para tribo os meninos estudam por perodos que vo de ano e meio a oito anos. Estudam, convivem entre si e com seus mestres, e treinam. Divididos de acordo com seus grupos de idade (como em nossas "sries"), eles aprendem as crenas, as tradies e os costumes culturais da tribo, alm do saber dos ofcios de guerra e paz. A escola Poro leva em conta diferenas indivi-duais e, com o trabalho docente de diferentes professores-especialistas, forma novos especialistas. Se um menino demonstra talentos para o trabalho do fabrico de tecidos, de couro, para o exerccio da dana, ou para os ofcios da medicina tribal, ele acrescenta estes treinos e estudos ao corpo comum do programa por que passa com todos os outros companheiros de idade.

    Entre grupos de pescadores da Nova Zelndia e do Arquiplago da Sociedade, existem "casas de ensino", verdadeiras unil(ersidades em escala indgena, onde toda a sabedoria da cultura ensinada aos jovens de ambos os sexos por profes-sores-sacerdotes. Durante a metade do ano estas "casas" permanecem abertas e, por todo o dia, oferecem cursos com alguma teoria e muita pr-tica sobre pelo menos os seguintes assuntos: genealogia, tradies e histria, princpios de crena e cultos r.eligiosos, magia, artes da nave-gao, agricultura, dana, literatura. O programa

    o que Educao

    de ensino divide a "Mand(bula Superior", onde os jovens aprendem com os sacerdotes os segredos do sagrado, da "Mandbula Inferior", relacionada, com os assu ntos terrenos.

    Em um 'segundo plano, mais restrito e mais marcadamente poltico, diferentes categorias de meninos e meninas recebem o saber especializado que h em uma "educao de minorias privile-giadas", destinadas por herana aos cargos de chefia. Assim acontece, por exemplo, entre quase todos os grupos originais do Hava, onde os nobres e outros jovens selecionados de antemo para postos futuros de poder sobre os outros passavam por verdadeiros cursos superiores de estudos que lhes tomavam quase todo o tempo da adoles-cncia e da juventude. A tribo que mais adiante submeter a eles a chefia comunitria - o trabalho social de dirigir - atribuir a eles como um direito, e exigir deles como um dever, o saber especia-lizado do chefe. E o prprio tempo prolongado de estudo, treino e teste, muito mais do que o de todos os outros meninos, vale como um ates-tado social de diferenas entre o chefe e os outros, dado pela educao. "

    Mesmo os grupos que, como os nossos, dividem e hierarquizam tipos de saber, de alunos e de usos do saber, no podem abandonar por inteiro as formas livres, familiares e/ou comunitrias de educao. Em todos os cantos do mundo, primeiro a educao existe como um inventrio amplo

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    de relaes interpessoa is diretas no mbito fami-liar: me-filha, pai-filho, sobrinho-irmo-da-me, irmo-mais-velho-irmo-caula e assim por diante. Esta a rede de trocas de saber mais universal e mais persistente na sociedade humana. Depois, a educao pode existir entre educadores-edu-candos no parentes - mas habitantes de uma mesma aldeia, de uma mesma cidade, gente de uma mesma linguagem - semi-especializados ou especialistas do saber de algum ofcio mais amplo ou mais restrito: arteso-aprendiz, sacer-dote-iniciado, cavaleiroescudeiro, e tantos outros.

    At aqui o espao educacional no escolar. Ele o lugar Ja vida e do trabalho: a casa, o templo, a oficina, o barco, o mato, o quintal. Espao que apenas rene pessoas e tipos de ativi-dade e onde viver o fazer faz o saber.

    Em todo o tipo de comunidade humana onde ainda no h uma rigorosa diviso social do tra-balho entre classes desiguais, e onde o exerccio social do poder ainda no foi centralizado por uma classe como um Estado, existe a educao sem haver a escola e existe a aprendizagem sem haver o ensino especializado e formal, como um tipo de prtica social separada das outras. E da vida.

    Mesmo nas grandes sociedades .-ivilizadas do passado - como na Grcia e em Roma, com que vamos nos encontrar um pouco mais adiante -um sistema pedaggico controlado por um poder

    o que Educao

    externo a ele, atribudo de fora para dentro a uma hierarquia de especialistas do ensino, e destinado a reproduzir a desigualdade atravs da oferta desigual do saber, uma conquista tardia na histria da cultura.

    Em nome de quem os constitui educadores, estes especialistas do ensino aos poucos tomam a seu cargo a tarefa de assumir, controlar e recodi-ficar domnios, sistemas, modos e usos do saber e das situaes coletivas de distribuio do saber. Onde quer que aparea e em nome de quem venha, todo o corpo profissional de especialistas do ensino tende a dividir e a legitimar divises do conhecimento comunitrio, reservando para o seu prprio domnio tanto alguns tipos e graus do saber da cultura, quanto algumas formas e recursos prprios de sua difuso.

    Assim, aos poucos acontece com a educao o que acontece com todas as outras prticas sociais (a medicina, a religio, o bem-estar, o lazer) sobre as quais lTTl dia surge um interesse poltico de controle.' Tambm no seu interior, sistemas antes comunitrios de trocas de bens, de servios e de significados so em parte contro-lados por confrarias de especialistas, mediadores entre o poder e o saber.

    Os estudos mais recentes da Histria tm indi-cado que a palavra escrita parece ter surgido em sociedades-estado enriquecidas e com um poder muito centralizado, como entre os egpcios ou

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    entre os astecas. Ela teria aparecido primeiro sendo usada pelos escribas, para fazer a contabi lidade dos bens dos reis e faras. S mais tarde que foi usada tambm pelos poetas para cantarem as coisas da aldeia e de sua gente. Assim tambm a educao. Por toda a parte onde ela deixa de ser totalmente livre e comunitria (no escrita) e presa na escola, entre as mos de educadores a servio de senhores, ela tende a inverter as utilizaes dos seus frutos: o saber e a repartio do saber. A educao da comunidade de iguais que reproduzia em um momento anterior a igual dade, ou a complementariedade social, por sobre diferenas naturais, comea a reproduzir desigual dades sociais por sobre igualdades naturais, comea desde quando aos poucos usa a escola, os sistemas pedaggicos e as "leis do ensino" para servir ao poder de uns poucos sobre o trabalho e a vida de muitos. Onde um tipo de educao pode tomar homens e mulheres, crianas e velhos, para torn Ios todos sujeitos livres que por igual repartem uma mesma vida comunitria; um outro tipo de educao pode tomar os mesmos homens, das mesmas idades, para ensinar uns a serem senhores e outros, escravos, ensinandoos a pensa rem, dentro das mesmas idias e com as mesmas palavras, uns como senhores e outros, como escravos.

    Nas sociedades primitivas que nos acompa-nharam at aqui, a educao escolar que ajuda

    o que Educao

    a separar o nobre do plebeu parece ser um ponto terminal na escala de invenco dos recursos huma nos de transferncia do s~ber de uma gerao a outra. Tambm nas sociedades ocidentais como a nossa - sociedades complexas, sociedades de clas ses, sociedades capitalistas - a educao escolar uma inveno recente na histria de cada uma. Da maneira como existe entre ns, a educao surge na Grcia e vai para Roma, ao longo de muitos sculos da histria de espartanos, atenienses e romanos. Deles deriva todo o nosso sistema de ensino e, sobre a educao que havia em Atenas, at mesmo as sociedades capitalistas mais tecnolo gicamente avanadas tm feito poucas inovaes. Talvez estejam, portanto, entre os ses inven-tos e escolas, algumas das respostas s nossas perguntas.

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  • PEDAGOGOS, MESTRES-ESCOLA E SOFISTAS

    Todas as grandes sociedades ocidentais que, como Atenas e Roma, emergiram de seus bandos errantes, de suas primeiras tribos de cls de pasto-res ou camponeses, aprenderam a lidar com a educao do mesmo modo como qualquer outro grupo humano, em qualquer outro tempo. Tal como entre os ndios das Seis Naes, os primei-ros assuntos e problemas da educao grega foram os dos oHcios simples dos tem'pos de paz e de guerra. O que se ensina e aprende entre os primei-ros pastores, mesmo quando eles comearam rusticamente a enobrecer, envolve o saber da agricultura e do pastoreio, do artesanato de subsis-tncia cotidiana e da arte. Tudo isso misturado, sem muitos mistrios, com os princpios de honra, de solidariedade e, mais do que tudo, de fideli-dade polis, a cidade grega onde comea e acaba

    o que Educao

    a vida do cidado livre e educado. Esta educao grega , portanto, dupla, e carrega dentro dela a oposio que at hoje a nossa educao no resolveu. Ali esto normas de trabalho que, quando reproduzidas como um saber que se ensina para que se faa, os gregos acabaram chamando de tecne e que, nas suas formas mais rsticas e menos enobrecidas, ficam relegadas aos trabalhadores manuais, livres ou escravos. Ali esto normijS de vida que, quando reproduzidas como um saber que se ensina para que se viva e seja um tipo de homem livre e, se possvel, nobre, os gregos acabaram chamando de teoria. Este saber que busca no homem livre o seu mais pleno desen-volvimento e uma plena participao na vida da polis o prprio ideal da cultura grega e o que ali se tinha em mente quando se pensava na educao.

    De tudo o que pode ser feito e transformado, nada para O grego uma obra de arte to perfeita quanto o homem educado. A primeira educao que houve em Atenas e Esparta foi praticada entre todos, nos exerccios coletivos da vida, em todos os cantos onde as pessoas conviviam na comunidade. Quando a riqueza da polis grega criou na sociedade estruturas de oposio entre livres e escravos, entre nobres e plebeus, aos meninos nobres da elite guerreira e, mais tarde, da elite togada que a educao foi dirigida. Por alguns sculos, mesmo para eles, ainda no

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    havia a escola. Das relaes familiares diretas at a convivncia

    entre jovens, segundo os seus grupos de idade, ou entre grupos de meninos educandos e um velho educador, entre os gregos sempre se conser-vou a idia de que todo o saber que se transfere pela educao circula atravs de trocas interpes-soais, de relaes fsica e simbolicamente afetivas entre as pessoas. Assim, a pederastia acaba sendo considerada em Esparta como a forma mais pura e mais completa de educao entre homens livres e iguais. Em toda a Grcia a formao do nobre guerreiro apenas desenrola ao longo dos anos u ma seqncia de trocas entre um mestre e seus discpulos.

    Aquilo que a cultura grega chama com pleno efeito de educao - paideia - dando palavra o sentido de formao harmnica .do homem para a vida da polis, atravs do desenvolvimento de todo o corpo e toda a conscincia, comea de fato fora de casa, depois dos sete anos. At l a criana convive com a sua criao, convi-vendo com a me e escravos domsticos.

    Para alm ainda do que entre os sete e os catorze anos aprende com o mestre-escola, a verdadeira educao do jovem aristocrata o fruto do lento trabalho de um ou de poucos mestres que acom-panham o educando por muitos anos.

    Em Atenas, por volta do VI sculo A.C., a edu-cao deixa de ser uma prtica coletiva, de estilo

    o que Educao

    militar, destinada apenas formao do cidado nobre. At ento, mesmo no apogeu da demo-cracia grega, a propriedade restritamente comunal; pertence aos cidados ativos do Estado. O poder pertence aos estratos mais nobres destes cidados ativos, e a vida e o trabalho colocam de um lado os homens livres, senhores e, de outro, os escravos ou outros tipos de trabalhadores manuais expulsos do direito do saber que existe napaideia.

    Durante muitos sculos os "pobres" da Grcia aprenderam desde criana fora das escolas: nas oficinas e nos campos de lavoura e pastoreio. Os meninos "ricos" inicialmente aprenderam tambm fora da escola, em acampamentos ou ao redor de velhos mestres. Alm das agncias estatais de educao, como a Efebia de Esparta, que educava o jovem nobre-guerreiro, toda a educao fora do lar e da oficina uma empresa particular, mesmo quando no paga. Particular e restrita a muito pouca gente.

    Apenas quando a democratizao da cultura e da participao na vida pblica colocam a neces-sidade da democratizao do saber, que surge a escola aberta a qualquer menino livre da cidade--estado. A escola primria surge em Atenas por volta do ano 600 A.C_ Antes dela havia locais de ensino de metecos e rapsodistas que aos inte-ressados ensinavam "a fixar em smbolos os neg-cios e os cantos". S depois da inveno da escola

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    de primeiras letras que o seu estudo pouco a pouco incorporado educao dos meninos nobres. Assim, surgem em Atenas escolas de bairro, no raro "lojas de ensinar", abertas entre as outras no mercado. Ali um humilde mestre--escola, "reduzido pela misria a ensinar", leciona as primeiras letras e contas. O menino escravo, que aprende com o trabalho a que o obrigam, no chega sequer a esta escola. O menino livre e plebeu em geral pra nela. O menino livre e nobre passa por ela depressa em direo aos lugares e aos graus onde a educao grega forma de fato o seu modelo de "adulto educado". Citao de Slon, legislador grego:

    "As crianas devem, antes de tudo, aprender a nadar e a ler; em seguida, os pobres devem exer-citar-se na agricultura ou em uma indstria qual-quer, ao passo que os ricos devem se preocupar com a msica e a equitao, e entregar-se filo-sofia, caa e freqncia aos ginsios."

    Esta concepo Xenofonte, historiador, poeta, filsofo e militar grego, criticaria quase dois sculos depois:

    "S os que podem criar os seus filhos para no fazerem nada que os enviam escola; os que no podem, no enviam."

    o que Educa,

    Pequenas imagens gregas de te"acota retratam o escravo pedagogo conduzindo para a escola a criana.

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  • 42 Carlos Rodrigues Brando

    A educao do jovem livre vai em direo teoria, que o saber do nobre para compreender e comandar, no para fazer, curar ou construir. Durante toda a antigidade a nica disciplina tcnica (entendida como a de uma formao que aponta para um ofcio determinado) a medicina. No h outras escolas coletivas de ensino tcnico para o preparo de arquitetos, engenheiros ou agrimensores, por exemplo. Tal como ferreiros ou teceles, eles aprendem de maneira simples e direta, na oficina e no tra-balho, atravs do convvio com algum velho artfice.

    Diferenas de saber de classe dos educandos produziram diferenas curiosas entre os tipos de educadores da Grcia antiga. De um lado, desprezveis mestres-escola e artesos-professores; de outro, escravos pedagogos e educadores nobres, ou de nobres. De um lado, a prtica de instruir para o trabalho; de outro, a de educar para a vida e o poder que determina a vida social.

    De todos estes adultos trans'missores de saber vale a pena falar do pedagogo. Pequenas estatuetas de terracota guardam a memria dele. Artistas gregos representaram esses velhos escravos -quase sempre cativos estrangeiros - conduzi ndo crianas a caminho da escola de primeiras letras . E por que eles e no os mestres que nas escolas ensi navam? Porque os escravos pedagogos -condutores de crianas - eram afinal seus educa-

    o que Educao

    dores, muito mais do que os mestres-escola. Eles conviviam com a criana e o adolescente e, mais do que os pais, faziam a educao dos preceitos e das crenas da cultura da polis. O pedagogo era o educador por cujas mos a criana grega atravessava os anos a caminho da escola, por caminhos da vida.

    Nos primeiros tempos, mais do que filsofos ou matemticos, os gregos foram guerreiros, msicos e ginastas. Assim, mais do que jurdica ou cientfica, a educao do cidado livre era tica e artstica (no pleno sentido que estas duas palavras possuam na paideia grega), dentro de uma cultura pouco acostumada a separar a verdade da beleza. Mais tarde, sob a influncia de Scrates e Epicuro (um sujeito feio e outro doentio) que a educao comea a ser pensada como formadora do esprito. Por muitos e muitos sculos ela aponta para a harmonia que existe na beleza do corpo (e a destreza para a luta) ao lado da clareza da mente (e a fidelidade polis dos cidados livres). Mesmo no nvel da cultura letrada dos nobres, a civilizao clssica no conservou sempre um nico modelo ou estilo de saber, logo, de educao. Ela oscilou entre duas formas de algum modo antagnicas: a filosfica, cujo tipo dominante pode ser Plato, e a oratria (retrica), cujo tipo dominante pode ser I scrates.

    Depois de constitu das as classes de homens livres que regem a democracia dos gregos sobre

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    a diviso do trabalho e a instituio do regime escravagista, para os seus adolescentes a educao coletiva no uma atividade voluntria ou um direito de bero. E um dever imposto pela polis ao livre. Porque o seu exerccio modela no um homem abstrato, sonho de poetas, mas o cidado maduro para o servio comunidade, projeto do poltico. A "obra de arte" da paideia a pessoa plenamente madura - como cidado, como militar, como poltico - posta a servio dos interesses da cidadecomunidade. Assim, o ideal da educao reproduzir uma ordem social idealmente conce-bida como perfeita e necessria, atravs da trans-misso, de gerao a gerao, das crenas, valores e habilidades que tornavam um homem to mais perfeito quanto mais preparado para viver a cidade a que servia. E nada poderia haver de mais precio so, a um homem livre e educado, do que o prprio saber e a identidade de sbio que ele atribui ao homem.

    Depois de haver conquistado a cidade onde vivia o filsofo Estilpo, Demtrio Poliorceto pretendeu indenizlo pelos preju zos materiais que sofrera por causa da pilhagem. Quando pediu que fizesse o inventrio do que lhe pertencera e fora destru do, Estilpo respondeu que nada havia perdido do que era seu, porque no lhe haviam roubado a sua cultura - ",,,6 "" - dado que ainda conservava a eloqncia e o saber.

    O formador de jovens, o educador, o filsofo

    o que Educao

    mestre como Scrates, Plato e Aristteles, renem sua volta os seus alunos, em suas escolas superiores. A escola filosficoinicitica de Pitgoras, que interna educandos, cria regras prprias de conduta e lhes absorve boa parte do tempo da juventude, antecede a Academia de Plato, o Liceu de Aristteles e a Escola de Epicuro. Mas so os filsofos sofistas os que democratizam o ensino superior, tornando:O remunerado e, portanto, aberto a todos os que podem pagar. Aps a longa crise de tirania por volta do VI sculo A.C., a vida social de Atenas possibilita a participao de todos os cidados livres, e isto recoloca a questo do preparo do homem para o exerccio da cidadania, a questo de aprender para legislar e para estar de algum modo presente nas assemblias de representao pol tica. Os sofistas transformam a educao superior em um tempo de formao do orador, onde a qualidade da retrica tem mais valor do que a busca desinteressada da verdade, exerccio dos nobres dos perodos anteriores.

    Aos poucos at Aristteles e Alexandre Magno, muito depressa durante a Civilizao Helenstica, a educao clssica passa por algumas mudanas: 1) ela vai do cultivo aristocrtico do corpo e da mente, com vistas formao do nobre guer reiro e dirigente, habilitao do cidado livre, comum, para a carreira pol tica; 2) ela vai de um domnio do "saber desinteressado", de fundo

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    artstico-musical, para o literrio, da para o retrico, o livresco e o escolar (de aprender a sabedoria para aprender a informao); 3) ela vai das agncias de reproduo restrita do saber de nobres, entre nobres, para o saber disponvel, venda em escolas pagas que educam da criana ao adulto.

    Com o tempo a educao clssica deixa de ser um assunto privado, posse e questo da comuni-dade dos nobres dirigentes, e passa a ser questo de Estado, pblica. Aristteles exige do Imperador leis que regulem direitos e controlem o exerccio da educao. Atrs das tropas de conquista de Alexandre Magno, os gregos levam as suas escolas por todo o mundo. Elas so, mais do que tudo, o meio de impedir que a distncia da Ptria de origem ameace perder-se a cultura do vencedor entre os costumes e o saber dos vencidos.

    Como seria possvel fazer uma sntese dos princpios que orientaram toda a educao clssica criada pelos gregos? Ela foi sempre entendida como um longo processo plo qual a cultura da cidade incorporada pessoa do cidado. Uma trajetria de amadurecimento e formao (como a obra de arte que aos poucos se modela), cujo produto final o adulto educado, um sujeito perfeito segundo um modelo idealizado de homem livre e sbio, mas ainda sempre aperfeiovel. Assim, a educao grega no dirigida criana no sentido cada vez mais dado a ela hoje em

    o que Educao

    dia. De algum modo, uma educao contra a criana, que no leva em conta o que ela , mas olha para o modelo do que pode ser, e que anseia torn-Ia depressa o jovem perfeito (o guerreiro, o atleta, o artista de seu prprio corpo-e-mente) e o adulto educado (o cidado poltico a servio da polis).

    Esta educao humanista de uma sociedade que deixa ao escravo e ao arteso livre o trabalho de fazer, desdenha a tcnica e olha para "o homem todo", formado de aprender a teoria e praticar o gesto que constroem o saber e o hbito do homem livre. Em seu pleno sentido, uma edu-cao tica cujo saber conduz o sbio a viver, com a sua prpria vida, o modelo de um modo de ser idealizado, tradicional, que misso da paideia conservar e transmitir.

    , Finalmente, os gregos ensinam o que hoje esque-cemos. A educao do homem ex iste por toda parte e, muito mais do que a escola, o resultado da ao de todo o meio sociocultural sobre os seus participantes. E o exerccio de viver e convi-ver o que educa. E a escola de qualquer tipo apenas um lugar e um momento provisrios onde isto pode acontecer. Portanto, a comu-nidade quem responde pelo trabalho de fazer com que tudo o que pode ser vivido-e-aprendido da cultura seja ensinado com a vida - e tambm com a aula - ao educando.

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  • A EDUCAO QUE ROMA FEZ, E O QUE ELA ENSINA

    Os primeiros latinos foram camponeses aos poucos enriquecidos e, alguns, tornados nobres na Pennsula Itlica. Ali aconteceu como em tantas outras partes do mundo. Classes sociais que com o tempo chegaram a ser "privilegiadas" e separaram a direo do trabalho do prprio exerccio do trabalho, separando com isso as foras produtivas mentais d.as fsicas, desem-penharam antes funes teis. Primeiro, entre os romanos, o trabalho entre todos e o saber de todos. Os primeiros reis de Roma punham com os sditos as mos no arado e lavravam a terra.

    Como entre os ndios, como nos tempos de origem dos povos gregos, a educao dos campo-neses latinos comunitria e existe difusa em todo o meio social. Muito mais do que na Grcia,

    o que Educao

    a educao da criana uma tarefa domstica. Na aurora da histria do poder de Roma, ela foi uma lenta iniciao da criana e do adolescente nas tradies consagradas da cultura, e servia consagrao da tradicional idade quase venerada de um modo campons de vida, simples e austero. A criana comeava a aprender em casa, com os mais velhos, e quase tudo o que aprendia era para saber e preservar os valores do mundo dos "mais velhos", dos seus antepassados.

    Essa educao domstica busca a formao da conscincia moral. O adulto educado que ela quer criar o homem capaz de renncia de si prprio, de devotamento de sua pessoa comu-nidade. So as virtudes do campesinato de todos os tempos e lugares, o que dirige a primitiva educao de Roma, que exalta em verso e prosa a austeridade, a vida simples, o amor ao trabalho como supremo bem do homem, e o horror ao luxo e ociosidade. Ao contrrio do que aconteceu cedo em Atenas, em Roma no h de incio qualquer tipo de cuidado com a pura formao fsica e intelectual do cidado ocioso, ocupado com pensar, governar e guerrear. A educao de uma comunidade dedicada ao trabalho com a terra foi durante sculos uma formao do homem para o trabalho e a vida, para a cidadania da comunidade igualada pelo trabalho.

    Quando o mundo romano de camponeses enri-quece com os excedentes da terra e das pilhagens

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    de outros povos, quando ope classes sociais e inventa o Estado, ele ainda defende a criana de ser entregue cedo a alguma forma de educao estatal, militarizada, fora do lar. Entre os romanos os primeiros educadores de pobres e nobres so o pai e a me. Mesmo os mais ricos, senhores de escravos, no entregam a um servopedagogo ou a uma governanta o cuidado dos filhos. Quando o menino completa, aos 7 anos, o aprendizado cheio de afeio que recebe da me, ele passa para o pai, que no divide sequer com o mestre--escola o direito de educ-lo, ou seja, de formar a sua conscincia segundo os preceitos das crenas e valores da classe e da sociedade.

    Em Roma, portanto, ao contrrio do que vimos acontecer em Atenas e principalmente em Esparta, a famlia prolonga o poder de socializar o cidado e, atravs dela, a sociedade civil estende o alcance do seu modelo em toda uma primeira educao da criana. A partir de Homero, no alvorecer da histria grega, o ideal da paideia o heri da polis. Na educao romana o modelo ideal o ancestral da famlia, depois o da comunidade.

    Quando uma nobreza romana enriquecida com a agricultura e o saque abandona o trabalho da terra pelo da poltica, e cria as regras do Imprio de que se serve, aquele primitivo saber comu-nitrio divide-se e fora a separao de tipos, nveis e agncias de educao. Quando h livres e escravos, senhores e servos, comea a haver

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    um modelo de educao para cada um, e limites entre um modelo e outro.

    Aos poucos a educao deixa de ser o ensino que forma o pastor, o artfice ou o lavrador e, nas suas formas mais elaboradas, prepara o futuro guerreiro, o funcionrio imperial e os dirigentes do Imprio. O sistema comunitrio de base peda-ggica familiar compete com outros. Aos poucos aparece a oposio entre o ensino de educar, dos pais, dos mestres-pedagogos. que convivem com os educandos e os acompanham, prolon-gando com eles o saber que forma a conscincia e que a sabedoria; e o ensino de instruir, do mestre-escola que monta no mercado a loja de ensino e vende o saber de ler-e-contar como uma mercadoria.

    O ensino elementar das primeiras letras apareceu em Roma antes do IV sculo A.C. Um tipo de ensino que podemos identificar com o secundrio surgiu na metade do sculo III A.C. e o ensino que hoje em dia chamaramos de superior, univer-sitrio, apareceu pelo sculo I A.C. Mas, durante quase toda a sua histria, o Estado Romano no toma a seu cargo a tarefa de educar, que ficou deixada iniciativa particular, mas j no mais comunitria, como ao tempo em que os reis aravam a terra. S depois do advento do Cristia-nismo, por volta do sculo IV D.C., que surge e se espalha por todo o I mprio a schola publica, mantida pelos cofres dos municipios.

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    Nos tempos do domnio de Augusto e de Tib-rio, a criana, educada em casa pelos pais, aprendia depois dos 7 anos as primeiras letras na escola (loja de ensino) do ludimagister. Aos 12 anos ela estava pronta para freqentar a escola do gramma-ticus e, a partir dos 16, a do lector. Na sua forma mais simples esta a estrutura de educao que herdamos e conservamos at hoje.

    Do lado de fora das portas do lar, a educao latina enfim separa em duas vertentes o que se pode aprender. Uma a da oficina de trabalho para onde vo os filhos dos escravos, dos servo~ e dos trabalhadores' artesos. Outra a escola livresca, para onde vo o futuro senhor (o diri-gente livre do trabalho e do Estado) e o seu media-dor, o funcionrio burocrata do Estado ou de negcios particulares.

    Esta educao de escola, que os romanos criam em Roma copiando a forma e alguma coisa do esprito dos gregos, espalham primeiro pela Penn-sula Itlica e depois por todo O mundo que con-quistam na Europa, na Asia e no Norte da Africa. Do mesmo modo como o sacerdote, o educador caminha atrs dos passos do general. A educao do conquistador invade, com armas mais pode-rosas do que a espada, a vida e a cultura dos conquistados. A educao que serve, longe da Ptria, aos filhos dos soldados e funcionrios romanos sediados entre os povos vencidos, serve tambm para impor sobre eles a vontade e a

    o que Educao

    viso de mundo do dominador. Plutarco descreveu como Roma usou a educao

    para "domar" os espanhis dominados:

    "As armas no tinham conseguido stlbmet-Ios a no ser parcialmente; foi a educao que os domou."

    .a

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  • EDUCAO: ISTO E AQUILO, E O CONTRRIO DE TUDO

    Ora, uma outra maneira de se compreender o que a educao , ou poderia ser, procurar ver o que dizem sobre ela pessoas como legisla-dores, pedagogos, professores, estudantes e outros sujeitos um tanto mais tradicionalmente difceis de entender, como filsofos e cientistas sociais.

    Nos dois dicionrios brasileiros mais conhecidos a educao aparece definida assim:

    "Ao e efeito de educar, de desenvolver as facul-dades f(sicas, intelectuais e morais da criana e, em geral, do ser humano; disciplinamento, ins-truo, ensino ". (Dicionrio Contemporneo da Lngua Portuquesa, Caldas Aulete) "j!\o exercida pelas geraes adultas sobre as geraes jovens para adapt-Ias vida social; trabalho sistematizado, se!etivo, orientador, pelo

    T I

    o que Educao

    qual nos ajustamos vida, de acordo com as necessidades ideais e propsitos dominantes' ato ou efeito de educar; aperfeioamento integra de todas as faculdades humanas, polidez, cortesia. " (Pequeno Dicionrio Brasileiro de Ungua Portu-guesa, Aurlio Buarque de Hol/anda)

    Um pouco mais adiante vamos ver que o miolo de cada uma d_Bstas definies de dicionrio pende para um dos lados em gue se recortam as maneiras de explicar o que a educao e a Que serve.

    Na nlema da Lei" a coisa no muda muito. Ao pretenderem estabelecer os-fins da educaco no pas, nossos legisladores, pelo menos em teoria, garantem para todos o melhor a seu respeito. Eles falam sobre o que deve determinar e controlar o trabalho pedaggico em todos os seus graus e modalidades. De certo modo falam a respeito de uma educao idealizada, ou falam da educaco atravs de uma ideologia (ver O que ideologia, desta mesma coleo):

    "Art. 1 ~ O ensino de 1 ~ e 2 ~ graus tem por objeti-vo geral proporcionar ao educando a formao neces-sria ao desenvolvimento de suas potencialidades co-mo elemento de auto-realizao, preparao para o trabalho e para o exerccio consciente da cidadania". (Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971)

    ss

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    Mas, do outro lado do palco, intelectuais, educa-dores e estudantes fazem e refazem todos os dias a crtica da prtica da educao no Brasil. Eles levantam questes e afirmam que, do Ministrio escolinha, a educao nega no cotidiano o que afirma na lei. No M liberdade no pas e a edu-cao no tem tido papel algum nos ltimos anos para a sua conquista; no h igualdade entre os brasileiros e a educao consolida a estrutura classista que pesa sobre ns; no h nela nem a conscincia nem o fortalecimento dos nossos verdadeiros valores culturais.

    Um grupo de estudantes candidatos direo da UNE resume parte desta crtica e reclama para a luta estudantil itens que, com alguma variao de linguagem, quase poderiam caber nas "leis do ensino",

    "Os homens discriminados como negros, velhos, crianas, homossexuais, mulheres ... descobrem que, nestes anos todos de dominao, a fora imensa que mexeu e transformou a face do planeta nasce de cada oprimido, de cada explorado, de cada homem, de cada mulher. Descobrem a origem e o fim de toda a atividade humana: o prprio homem. "Coraes e mentes se abrem para uma nova vida. Irrompe uma nova conscincia. "A percepo -ampla e profunda das aes e rela-

    o que Educao

    es entre os homens inerente e inseparvel de qualquer trabalho de produo, veiculao ou discusso cultural. "E buscar todos os meios para que todo esse trabalho floresa, para que toda essa fora con tida venha tona, funo nossa, das entidades estudantis. "Criar condies para que, atravs da manifes tao de todos, possamos perceber os anseios, as contradies de cada um, do homem e de toda a sociedade. "Ampliar as idias sobre o trabalho cultural. Abranger o homem, as suas relaes, as discri minaes raciais, sexuais, etrias, a moral, o poder, a dominao. "Romper os limites, soltar a cabea, as mos, os ps, o corpo para a realidade inquieta, questio-nadora. "Destruir as regras do jogo. "Subir no palco e invadir os camarins do mundo. Assumir o papel de agentes da Histria. Repre-sentar a vida." (Voz Ativa - Cultural)

    Sem rodeios as "leis do ensino" no pas garan-tem que:

    "Art. 41. A educao constitui dever da Unio, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territrios, dos Mu-nicpios, das empresas, da famlia e da comunidade em geral, que entrosaro reCursos e esforos para promov-Ia e incentiv-Ia.

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    Pargrafo nico. Respondem, na forma da I~i, soli-dariamente com o Poder Pblico, pelo cumprimento do preceito constitucional da obrigatoriedade escolar, os pais ou responsveis e os empregadores de toda natureza de que os mesmos sejam dependentes.

    Art. 42. O ensino nos diferentes graus ser minis-trado pelos poderes pblicos e, respeitadas as leis que o regulam, livre iniciativa particular.

    Art. 43. Os recursos pblicos destinados educa-o sero aplicados preferencialmente na manuten-o e desenvolvimento do enSino oficiai, de modo que se assegurem:

    a) maior nmero possvel de oportunidades edu-cacionais:

    b) a melhoria progressiva do ensino, o aperfeioa-mento e a assistncia ao magistrio e aos ser-vios de educao;

    c) o desenvolvimento c,entfico e tecnolgico". (Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971)

    Mas,se entre o pensado e o vivido h diferenas, as pessoas do pas -protestam e cobram, de quem faz a lei, que pelo menos ela seja cumprida: que haja liberdade na educao e, atravs dela, que a escola exista para todos e seja distribuda por igual entre todos. Assim, os docentes universitr~os reunidos num Encontro Nacional de Assoclaoes escreveram o seguinte no documento final:

    o que Educao

    "O regime politico e o modelo socioeconmico impostos nos ltimos anos Nao Brasileira produziram danos marcantes na qualidade do ensino de nossas escolas, seja pela repressq pol i-tico-ideolgica que se abateu sobre toda a comu-nidade, seja pelo carter flagrantemente antidemo-crtico de suas leis e decretos, que se reflte na elaborao e modificao ilegtimas de regi-mentos e estatutos das Universidades. nA palitica educacional implantada levou progressiva desobrigao do Estado com o custeio da Educao, e expanso do ensino privado. Assim, a educao est aberta ao dos empre-srios do ensino, sujeita s leis da iniciativa privada, sendo negociada comO mercadoria entre as partes interessadas em vender e comprar, o que revela o carter elitista do atual processo educacional no Brasil." (Boletim Nacional das Associaes de Docentes; n? 31

    A fala do poder que constitui .a educao no pas prope o exerccio de uma prtica idealizada. A fala dos praticantes da educao, os educadores, faz ento a critica dadistnci que h entre a promessa ea realidade. Faz mais, denuncia a alte-rao para pior das prprias leis que dizem o que e como deve ser a Educaa no Brasil.

    No h apenas idias opostas ou iqel8s diferentes a respeito da Educao, sua essncia:e seus fins. H interesses econmicos, polticos qUe se proje-tam tambm sobre a Educao. No raro que

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    aqui, como em toda parte, a fala que idealiza a educao esconda, no silncio do que no diz, os interesses que pessoas e grupos tm para os seus usos. Pois, do ponto de vista de quem a controla, muitas vezes definir a educao e legislar sobre ela implica justamente ocultar a parcialidade destes interesses, ou seja, a realidade de que eles servem a grupos, a classes sociais determinadas, e no tanto lia todos", " Nao", "aos brasi leiros". Do ponto de vista de quem responde por fazer a educao funcionar, parte do trabalhp de pens-Ia implica justamente desvendar o que faz com que a educao, na realidade, negue e renegue o que oficialmente se afirma dela na lei e na teoria.

    Mas a razo de desavenas anterior e, mesmo entre educadores, ela tem alguns fundamentos na diferenca entre modos de compreender o que o ato de ~nsinar afinal , o que o determina e, finalmente, a que e a quem ele serve.

    .-

    PESSOAS "VERSUS" SOCIEDADE: UM DILEMA

    QUE OCULTA OUTROS

    Quando algum tenta explicar o que so estes nomes e o que eles misturam: educao, escola, ensino, a fala que explica pode pender para um lado ou para o outro de uma velha discusso. Uma discusso ontem quente, hoje em dia intil, a no ser quando serve para revelar o que se esconde por detrs de pensar a educao desta maneira ou daquela.

    De acordo com as idias de alguns filsofos e educadores, a educao um meio pelo qual o homem (a pessoa, o ser humano, o indivduo, a criana, etc.) desenvolve potencialidades biops quicas inatas, mas que no atingiriam a sua perfei o (o seu amadurecimento, o seu desenvolvi mento, etc.) sem a aprendizagem realizada atravs da educao. Pode at ser que haja formas prprias

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    de auto-educao, mas de suas prticas interativas (interpessoais), coletivas, que se est falando quando se escreve um livro sobre "Filosofia da Educao" por exemplo_ Assim como a prpria sociedade um corpo coletivo formado da indi-vidualidade das pessoas que a compem, e assim como o seu fim a felicidade de seus membros a quem todas as suas instituies devem servir, assim tambm a educao, como idia (a defi-nio, a "filosofia"). deve ser pensada em nome da pessoa e, como instituio (a escola, o sistema pedaggico) ou como prtica (o ato de educar), deve ser realizada' como um servio coletivo que se presta a cada indivduo, para que ele obtenha dela tudo o que precisa para se desenvolver individualmente.

    Muitas vezes, entre os que pensam assim, a dimenso subjetiva da educao ressaltada e, no raro, toma conta de todo o espao em que o seu processo est sendo pensado. No importa considerar sob que. condies sociais e atravs de que recursos e procedimentos exter-nos a pessoa aprende, mas apenas a pensar o ato de aprender do ponto de vista do que acontece do educando para dentro.

    "A Educao no mais do que o desenvolvimento consciente e livre das faculdades inatas do ho-mem." (Sciacca); "A Educao o process(iJ externo de adaptao

    o que Educao

    superior do ser humano, fisica e mentalmente desenvolvido, livre e consciente, a Deus, tal como se manifesta no meio intelectual, emocional e volitivo do homem". (Herman Horse); "O fim da Educao desenvolver em cada indi-viduo toda a perfeio de que ele seja capaz." (Kant); ,,{ toda a espcie de formao que surge da influncia espiritual." (Krieck).

    Quando a Enciclopdia Brasileira de Moral e Civismo, editada pelo Ministrio de Educao e Cultura, define educao. pensando talvez expressar uma idia consensual, ela de fato repete o ponto de vista das definies anteriores. Ve-jamos:

    "Educao. Do latim 'educere', que significa extrair, tirar, desenvolver. Consiste, essencial-mente, na formao do homem de carter_ A educao um processo vital, para o qual con-correm foras naturais e espirituais, conjugadas pela ao consciente do educador e pela vontade livre do educando. No pode, pois, ser confundida com o simples desenvolvimento ou crescimento dos seres vivos, nem com a mera adaptao do individuo ao meio. { atividade criadora, que visa a levar o ser humano a realizar as suas potencia-lidades fisicas, morais, espirituais e intelectuais. No se reduz preparao para fins exclusiva-

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    mente utilitrios, como uma profisso, nem para desenvolvimento de caracteristicas parciais da personalidade, como um dom artistico, mas abrange o homem integral, em todos os aspectos de seu corpo e de sua alma, ou seja, em toda a extenso de sua vida sensivel, espiritual, inte-lectual, moral, individual, domstica e socil, para elev-Ia, regul-Ia e aperfeio-Ia. processo continuo, que comea nas origens do ser humano e se estende at morte. "

    Se voltarmos s duas definies de dicionrios brasileiros de algumas pginas atrs, veremos que a da Enciclopdia concorda mais com a primeira do que com a segunda. Uma enfatiza o que acon-tece da pessoa para dentro; a outra o que acontece dela para fora, em direo sociedade onde vive e de que aprende.

    A meio caminho entre um lado e outro, algumas propostas lembram que aquela formao do ser humano, segundo as sua~ prprias potencia-I idades e atravs de seu prprio esforo, o resul-tado de um trabalho intencional, deliberado -aquilo que faz da educao a parte mais motivada da endoculturao, como eu disse vrias pginas atrs. Esta ao dirigida ao educando procede de um educador, de uma agncia de educao, ou do que existe de educativo no meio sociocultural.

    "Educao um sentido de valorizao individual

    o que Educao

    e organizado, varivel em extenso e profundidade para cada individuo e processado pelas riquezas culturais." (Kerschensteiner); " a influncia deliberada e consciente exercida sobre o ser malevel e inculto, com o propsito de form-lo. " (Cohn).

    Um pouco ma is perto dos que nos esperam do outro lado desta aparente histria de "ovo-e--galinha", esto alguns estudiosos da educao que consideram que no s a pessoa, individual-mente, mas alguma coisa indicada como "a civili-zao", "o meio social" Ou lia sociedade" deve ser o destino do homem educado:

    "Podemos agora definir de modo mais precioso o objeto da educao.- guiar o homem no desen-volvimento dinmico, no curso do qual se consti-tuir como pessoa humana - dotada das armas do conhecimento, do poder de julgar e das virtudes morais - transmitindo-lhe ao mesmo tempo o patrimnio espiritual da nao e da civilizao s quais pertence e conservando a herana secular das geraes." (Maritain);

    '~ Educao a organizao dos recursos biol-gicos individuais, e das capacidades de compor-tamento que tornam o indiv(duo adaptvel ao seu meio fisico ou social. " (Wil/iam James).

    Procuremos refletir um pouco sobre tudo

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    isto. Ao discutir os ideais da educao entre os gregos, Werner Jaeger lembra uma coisa muito importante. No sempre e no so todos os povos e homens que consideram a educao apenas como o que vimos at aqui. Na verdade esta uma maneira de "imaginar" caracterstica da nobreza de todos os povos em que ela existiu, em todos os tempos. E prprio de elites separadas do trabalho produtivo - ou dos intelectuais que pensam o mundo por elas, e para elas .~ propor como educao a formao da persona-I idade humana atravs do conselho sistemtico e da direo espiritual.

    Esta crtica, do mesmo modo como algumas feitas nos primeiros captulos, aqui, procura separar o que a educao , de fato, dQ que as pessoas dizem dela. Jaeger no entra no mrito da veracidade de algumas idias sobre a educao. Afinal, quem poderia negar que a educao deve servir ao homem, deve servir para educlo, torn-lo melhor, desenvolver nele tudo. o que tem, e tudo a que tem direito? Quero insistir em que muitas vezes o que se critica em quem apresenta a edu-cao, tal como ela apareceu at aqui, no o que foi dito, mas o que ficou oculto: a) ou porque quem disse no sabe de onde vem a educao, o que ela em cada mundo rea\1 e o que faz; b) ou porque quem disse sabe, mas explica a educao justamente para negar a sua origem, os seus meca-n ismos e os seus usos. Como poss vel compreen-

    o que Educao

    der alguma coisa que se passa entre relaes sociais de categorias de homens, que educa transmitindo de uns a outros crenas e valores sociais, que serve tanto a igualar quanto a diferenciar as pessoas de acordo com projetos de usos do saber situados fora dos sonhos do educador, sem pens-Ia dentro dos mundos reais onde acontecem as trocas tam-bm reais entre os homens, verdadeiros homens de carne e osso, situados de um lado e do outro da educao?

    Na verdade, quem descobriu que na prtica o "fim da educao" so os interesses da socie-dade, ou de grupos sociais determinados, atravs do saber que forma a conscincia que pensa o mundo e qualifica o trabalho do homem educado, no foram filsofos do passado ou cientistas sociais de hoje. Esta a maneira natural dos povos primitivos, com quem estivemos at h pouco, tratarem a educao de suas crianas, mesmo quando eles no sabem explicar isto com teorias compl icadas.

    Os ndios e os camponeses 'realizam, no modo como ensinam o que importante para algum aprender, a conscincia de que o saber que se transmite de um ao outro deve servir de algum modo a todos. Mas o que Werner Jaeger diz que justamente nas formaes sociais mais desenvol-vidas, onde por sobre o trabalho de muitos aparece a elite dominante de uns poucos, surge com o tempo a idia de uma educao que deve servir

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    a alguns homens individualmente, desvinculada da idia de que eles existem dentro de grupos ou mundos sociais, e a seu servio. Esta maneira de compreender para que serve a educao ' decorrncia de um "esquecimento", ou de uni ocultamento de que, afinal, por mais louvvel que seja, a educao uma prtica social entre outras.

    Entre os gregos, vimos que a educao dos jovens nobres, que viviam do trabalho de escravos estrangeiros e que, quando adultos, participavam da direo da cidade, procurava desenvolver o corpo e a inteligncia para formar homens fortes e sbios destinados defesa e pol tica da comunidade. O que distncia poderia parecer a formao do ocioso era, na verdade, uma apren dizagem feita durante um longo perodo de cio nobre (separao do trabalho braal), para a formao do homem poltico. A educao grega e, depois, a de Roma preocupavam-se em formar o cidado e eram, portanto, educaes da e para a comunidade. '

    No mundo ocidental, depois do advento e da difuso do Cristianismo que aparecem idias sobre a educao que isolam o saber da sociedade e o submetem ao destino individual do cristo. O homem que aprende busca na sabedoria a perfeio que ajuda salvao da alma. Mas no o Cristianismo Primitivo quem sugere a "edu-cao humanista", de que os cursos de "humani-

    o que EducUfo

    dades" que houve no Brasil at h pouco tempo so o melhor exemplo. Foi necessrio que, a partir de Roma, o Estado cristianizado e as elites de sua sociedade tomassem posse da mensagem crist de militncia e salvao, fazendo dela parte de sua ideologia. Tornando-a o repertrio de sm-bolos e valores pelos quais representavam,o mundo, representavam-se nele e, assim, legitimavam, com as palavras originalmente dirigidas a pobres e deserdados, a sua posio de domnio econmico e de hegemonia pol tica sobre eles.

    Foi ento preciso o advento de uma nobreza plenamente separada do trabalho produtivo e, cada vez mais, at mesmo do trabalho poltico -entregue nas mos de intelectuais mediadores de seus interesses - para que surgisse uma classe de gente capaz de representar o mundo quase fora dele. Esta elite ociosa e seus intelectuais sacerdotes, filsofos e artistas puderam imaginar como "puras" a vida, a arte, a cincia e at mesmo a educao.

    Ela comea a representar realmente alguma coisa (pensa, faz pensar, constri sistemas de pensamento) sem representar coisa alguma de real; sem conseguir explicar mais, para si prpria e para as outras classes, o que so de fato os homens, o mundo e as relaes concretas entre o mundo e os homens. Ora, a partir deste universo de idias puras que a educao afinal pensada como o exerccio do educador sobre a alma do educando,

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    com o propsito de purific-Ia do mal que existe na ignorncia do saber que conduz salvao.

    Da Antigidade decadente Idade Mdia, da Idade Mdia ao Renascimento (um tempo da Histria rico em redefinies da idia de edu-cao) e do Renascimento Idade Moderna, foi preciso esperar muitos sculos para que de novo os brancos civilizados aprendessem a repen-sar a educao como os ndios. E uma nova maneira de definir a educao como uma prtica social cuja origem e destino so a sociedade e a cultura, foi formulada com muita clareza pelo socilogo francs Emile Durkheim.

    Ele sacode a poeira de um assunto que s aos poucos foi recolocado na Europa de seu tempo, . nos ltimos anos do sculo passado. Se o fim da educao desenvolver no homem toda a perfeio de que ele capaz, que "perfeio" esta? De onde que ela procede? Quem a define e a quem serve? Por que, afinal, ideais de perfeio so to diversos de uma cultura para outra? E falso imaginar uma educao que no parte da vida real: da vida tal como existe e do homem tal como ele . E falso pretender que a educao trabalhe o corpo e a inteligncia de sujeitos soltos, desancorados de seu contexto social na cabea do filsofo e do educador, e que os aperfeioe para "si prprios", desenvolvendo neles o saber de valores e qualidades humanas to idealmente universais que apenas exjstem como imaginao

    o que Educao

    em toda parte e no existem como realidade (como vida concreta, como trabalho produtivo, como compromisso, como relaes sociais) em parte alguma.

    O que existe de fato so exigncias sociais de formao de tipos concretos de pessoas na e para a sociedade. So, portanto, modos prprios de educar - por isso, diferentes de uma cultura para outra - necessrios vida e reproduo da ordem de cada tipo de sociedade, em cada momento de sua histria. No se trata de dizer que a educao tem, tambm, de modo abstrato e muito amplo, um compromisso com a "cultura", com a "civilizao", ou que ela tem um vago "fim social". O que ocorre que ela inevita-velmente uma prtica soCial que, por meio da inculcao de tipos de saber, reproduz tipos de sujeitos sociais. "A educao a ao exercida pelas geraes adultas sobre as geraes que no se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver na criana certo nmero de estados flsicos, intelectuais e morais recla-mados pela sociedade polltica no seu conjunto e pelo meio especial a que a criana, particular-mente, se destina." (Durkheim)

    Entre muitas outras, esta uma maneira socio-lgica de compreender a educao. Depois de

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    Durkheim (que, por- sua vez, aprendeu isso com outros cientistas anteriores e, quem sabe?, com alguns ndios) inmeros socilogos, antroplogos, filsofos e educadores comearam a formular pontos de vista semelhantes. No que eles tives sem a proposta de uma "nova educao", menos abstrata e desancorada do que a "Educao Huma-nista" que criticavam. O que eles buscaram fazer foi esclarecer mais e mais como a sociedade e a cultura so e funcionam, na realidade. Como, portanto, a educao existe dentro delas e funciona sob a determinao de exigncias, princpios e contro les socia is.

    .. . .,

    SOCIEDADE CONTRA ESTADO: CLASSE E EDUCAO

    A idia de que no existe coisa alguma de social na educao; de que, como a arte, ela "pura" e no deve ser corrompida por interesses e contro-les sociais, pode ocultar o interesse pol tico de usar a educao como uma arma de controle, e dizer que ela no tem nada a ver com isso _ Mas o desvendamento de que a educao uma prtica social pode ser tambm feito numa direo ou noutra e, tal como vimos antes, pode se dividir em idias opostas, situadas de um lado ou do outro da questo.

    Vamos por partes, portanto. At aqui chegamos: a educao uma prtica social (como a sade pblica, a comunicao social, o servio militar) cujo fim o -desenvolvimento do que na pessoa humana pode ser aprendido entre os tipos de saber existentes em uma cultura, para a formao

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    de tipos de sUJeitos, de acordo com as necessi dades e exigncias de sua sociedade, em um momento da histria de seu prprio desenvol-vimento. No procurei inventar uma nova defi-nio, porque delas acho que j h demais. Procurei reunir as idias correntes entre 'os que concebem a educao como Durkheim.

    Assim, dos dois historiadores da educao de cujos livros aprendi quase tudo o que disse sobre Grcia e Roma, um deles dir o seguinte:

    "Primeiro que tudo, a educao no uma proprie-dade individual, mas pertence por essncia comu-nidade. O carter da comunidade imprime-se em cada um dos seus membros e no homem . .. muito mais que nos animais, fonte de toda a ao e de todo o componamento. Em nenhuma parte o influxo da comunidade nos seus membros tem maior fora que no esforo constante de educar, em conformidade com o seu prprio sentir, cada nova gerao." (Werner Jaeger).

    Toda a estrutura da sociedade est fundada sobre cdigos sociais de inter-relao entre os seus membros e entre eles e os de outras socie-dades. So costumes, princpios, regras de modos de ser s vezes fixados em leis escritas ou no. "A educao , assim, o resultado da conscincia viva duma norma que rege uma comunidade humana, quer se trate da famlia, duma classe

    o que Educao

    ou duma profisso, quer se trate dum agregado mais vasto, como um grupo tnico ou um Es-tado." Como outras prticas sociais constitu-tivas, a educao atua sobre a vida e o crescimento da sociedade em dois sentidos: 1) no desenvol-vimento de suas foras produtivas; 2) no desen-volvimento de seus valores culturais. Por outro lado, o surgimento de tipos de educao e a sua evoluo dependem da presena de fatores sociais determinantes- e do desenvolvimento deles, de suas transformaes. A maneira como os homens se organizam para produzir os bens com que reproduzem a vida, a forma de ordem social que constroem para conviver, o modo como tipos diferentes de sujeitos ocupam diferentes posies sociais, tudo isso determina o repertrio de idias e o conjunto de normas com que uma sociedade rege a sua vida. Determina tambm como e para qu este ou aquele tipo de educao pensado, criado e posto a funcionar.

    Quando so transformados a "maneira", a Hforma" e o limado" de que falei acima, tanto as idias quanto as normas, os sistemas e os mto-dos de um tipo de educao so modificados.

    Ao fazer a sua crtica, IOmile Durkheim pergun-tava a pensadores da educao que considerava ilustres, mas ingnuos: que "perfeio" essa? "Mas, que se deve entender pelo termo perfeio?" Ele quer perguntar o seguinte: quem afinal esta-belece os ideais e os princpios da educao?

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    Uns e outros so universais? Existiram para todos os povos em todos os tempos, de uma mesma

    . ' , maneira, pelo fato de que e sempre a m~m.a a "essncia do homem"? Pode ou deve eXistir uma espcie de "educao universal"? Durkheim conclui que no. E conclui que o ponto fraco das idias pedaggicas que avaliou est na crena ilusria (ilusria sempre, ou algumas vezes mal--intensionada?) de que h, ou deveria haver, uma "educao ideal, perfeita, apropriada a todos os homens, indistintamente".

    At a tudo bem. Assino embaixo. Mas ser que no poderamos fazer a Durkheim, leitor, a pergunta que ele fez aos outros? Quando fala de sociedade e, mesmo, de sociedades concretas, do que est falando? Que tipo de soc!edades, regidas por que modos e mecanismos Internos de produo de bens, de servios, de poder e de idias entre os seus integrantes? Ele respon-deria com segurana: "cada uma"; cada tipo de sociedade real, histrica, cria .e impe o tipO de educao de que necessita. E arremataria:

    "Na verdade, porm, cada sociedade, considerada em momento determinado de seu desenvolvi-mento, possui um sistema de educao q.ue ~e impe aos indivduos de modo geralmente ITreSIS-t(vel. E uma iluso acreditar que podemos educar nossOs filhos como queremos . .. H, pois, a cada momento, um tipo regulador de educao do qual

    r o que Educao

    no nos podemos separar sem vivas resistncias, e que restringem as velocidades dos dissidentes. "

    No entanto, o que "cada sociedade consi-derada em um momento determinado de seu desenvolvimento"? E preciso reforar algumas perguntas e fazer outras. Afinal, "eada socie-dade" existe e funciona como um todo orgnico e harmnico, fundado sobre a igualdade entre todos e o consenso de todos? Dentro dela, em posies especiais de privilgio, de hegemonia e de controle sobre outros, no existiro classes sociais capazes de impor uma educao que fazem criar e existir? Para seu uso prprio e por sobre outras classes e grupos socia is (mais do que "em nome deles"), no h, em determinadas socie-dades concretas, classes e grupos, s vezes muito minoritrios, que resolvem por sua conta como ser e para qu servir a "educao oficial"? Ou, perguntando de outra maneira, j que cada tipo de sociedade - a "tribal" de ndios G do Brasil Central; a chinesa aps a revolu~ socialista; a indiana do V sculo A.C.; a da Alemanha medieval ou mesmo a de uma aldeia de camponeses, dentro dela; a portuguesa colon ia-lista do sculo XVII; a do Brasil "ps-64" -inventa e faz a sua educao ou as suas educaes, nos sistemas mais oficiais, mais organizados em projetos e programas pedaggicos, so pensados a partir das idias fundamentais de todos os tipos

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    de pessoas? As mesmas escolas servem ao operrio, ao engenheiro e ao capitalista imobilirio do mes-mo modo (como as leis brasileiras de ensino garan-tem que sim e os professores crticos garantem qu~ no)? Uma educao ensina o saber da "comunI-dade nacional" a todos, para os mesmos usos so-ciais, e segundo os mesmos direitos individuais de todas as categorias de seus "adultos educados"?

    Ora entre os que colocam "sociedade e cultura" no me'io da questo da educao, alguns pesquisam e apenas reconhecem que ela , na cultura, uma prtica social de reproduo de categorias de saber atravs da formao de tipos de sujeitos educados. Outros projetam e defendem a necessidade deste ou daquele tipo de educao para este ou aquele tipo de sociedade. .

    Entre estes ltimos, um pensamento mUito corrente hoje em dia o de que a educao um dos principais meios de realizao de mudana social ou, pelo menos, um dos recursos de adapta-o das pessoas a um "mul)do em mudana". Este modo de imaginar tende a ser dominante atualmente. Mas ele no fazia sentido para gregos e romanos e nem mesmo para os portugueses e missionrios que tentaram educar nosSOS antepas-sados durante a Colnia.

    A idia de que a educao no serve apenas sociedade, ou pessoa na sociedade, mas mudana social e formao conseqente de sujeitos e agentes na/da mudana social, pode

    .

    r o que Educao

    no estar escrita de maneira direta nas "leis do ensino". Afinal, as leis quase sempre so escri-tas por quem pensa que nem elas nem o mun-do vo mudar um dia. Mas as suas conseqn-cias podem aparecer indiretamente. Por exem-plo, na Lei 5.692, conhecida como Lei de Dire-trizes e Bases da Educao Nacional e j citada neste livro, os fins da educaco acrescentam a formao para o trabalho, ou enfatizam este objetivo do ato de ensinar, mais do que as leis anteriores:

    "O ensino de I? e 2? graus tem por objetivo ge-rai proporcionar ao educando a formao neces-sria ao desenvolvimento de suas potencialida-des como elemento de auto-realizao, prepara-o para o trabalho e para o exerccio conscien-te da cidadania".

    Quando a idia de educaco vem associada de adaptao para alguma coisa externa pes-soa, e que se transforma, a proposta pode ser for-mulada assim: "Educao preparao da crian-a para uma civilizao em mudana" (Kilpatrik), ou assim:

    "Em uma sociedade dinmica como a nossa, s pode ser eficaz uma educao para a mudana. Es-ta (educao! consiste na formao do