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Revista do Direito Privado da UEL – Volume 2 – Número 3 – www.uel.br/revistas/direitoprivado
COISA JULGADA NO PROCESSO COLETIVO:
PARTICULARIDADES E ASPECTOS RELEVANTES
João Cândido dos Santos Palma*
Vanessa Hamessi Valério**
RESUMO
O presente trabalho investiga os principais aspectos acerca do instituto da coisa julgada no processo
coletivo. Analisa as características mais relevantes do regime jurídico da coisa julgada no processo
individual, estabelecendo primeiramente seu conceito, classificação e limitações, tanto no plano objetivo
quanto subjetivo. Examina, na seqüência, os fundamentos e características da tutela coletiva dos direitos
no ordenamento brasileiro, explicitando as particularidades de seu regramento bem como a distinção entre
os direitos transindividuais e individuais homogêneos. Finalmente, cotejando os elementos abordados,
analisa os atributos fundamentais da coisa julgada nas ações coletivas, tais como a coisa julgada secundum
eventum litis e secundum eventum probationis, bem como as discussões doutrinárias relativas à duvidosa
aplicabilidade do Art. 16 da Lei 7347/1985, concluindo pela sua inconstitucionalidade e incompatibilidade
com os objetivos da tutela coletiva dos direitos.
Palavras-chave: Coisa julgada. Tutela coletiva. Direitos coletivos.
ABSTRACT
This paper investigates the main aspects about the office of res judicata in a collective process. Analyzes
the most relevant characteristics of the legal system of res judicata in the individual case, establishing its
concept, classification and limitations, both objective as subjective. Examines, in sequence, the
foundations and characteristics of the protection of collective rights in Brazil, explaining the specifics of
your rules as the distinction between individual homogeneous and transindividuals rights. Finally, collate
the information discussed, analyzes the key attributes of res judicata in collective actions, such as res
judicata secundum eventum litis and secundum eventum probationis, and doctrinal discussions concerning
the questionable applicability of Article 16 of Law 7347/1985, concluded by their unconstitutional and
incompatible with the objectives of protection of collective rights.
Keywords: Res judicata. Collective protection. Transindividuals rights. Individual homogeneous rights.
_______________ * Acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito Empresarial com
ênfase em Direito Tributário pela PUC/PR. Bacharel em Administração de Empresas pela Faculdade Estadual de
Ciências Econômicas de Apucarana. **
Especialista em Direito do Estado, área de concentração: Direito Tributário, pela Universidade Estadual de
Londrina. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Advogada.
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1 INTRODUÇÃO
Não obstante sejam percebidas desde os primórdios da história jurídica da humanidade,
as ações coletivas somente adquiriram lugar de relevo no plano normativo no último século,
quando passaram a receber a configuração constitucional de direitos fundamentais que lhe é
assegurada hodiernamente.
Consectário dos estudos dos processualistas italianos, no Brasil as ações coletivas foram
valorizadas a partir da década de setenta, momento em que se observa o início da significativa
alteração do paradigma individualista do Processo Civil Brasileiro, com o reconhecimento de
uma nova categoria de interesses, que foge ao conceito clássico de direitos subjetivos por
pertencerem a certos grupos de pessoas: os direitos sociais.
Com o reconhecimento da necessidade de tutela de tais direitos torna-se indispensável
alterar o sistema processual para adequar-se à nova realidade. Neste contexto, surgem as ações
coletivas e os diplomas legais relativos aos direitos transindividuais e individuais homogêneos.
Considerando as peculiaridades do sistema processual desenvolvido para a tutela de tais
direitos e interesses, observam-se importantes distinções no que tange a institutos específicos, tais
como a coisa julgada, objeto do presente estudo.
A análise do tema mostra-se de elementar relevância quando se tem presente que os
efeitos da coisa julgada interferem diretamente na tutela dos direitos coletivos lato sensu, já que a
depender das características do regime legislativo adotado, pode-se até mesmo inviabilizar o
efetivo exercício do acesso à justiça, constitucionalmente garantido.
Por esta razão, pretende-se abordar o instituto da coisa julgada nas ações coletivas,
partindo-se da análise, primeiramente, dos principais aspectos do instituto no processo civil
tradicional. Em seguida, algumas considerações serão feitas acerca da tutela dos direitos coletivos
no direito brasileiro, para, finalmente, concluir com a análise das especificidades da coisa julgada
no processo coletivo, bem como das principais discussões doutrinárias relativas ao tema.
2 ASPECTOS GERAIS DA COISA JULGADA NO PROCESSO CIVIL INDIVIDUAL
2.1 Conceito
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Instituto jurídico que apresenta riqueza de modalidades, concepções e controvérsias, a
coisa julgada integra o conteúdo do direito fundamental à segurança jurídica, corolário do Estado
Democrático de Direito no qual está inserida, sendo expressamente prevista em nosso
ordenamento no art. 5°, XXXVI da Constituição Federal.
Enquanto característica inerente à jurisdição, garante àquele que a ela é submetida que a
decisão final conferida à lide será definitiva, não podendo ser rediscutida, alterada ou
desrespeitada, tanto no que diz respeito ao Estado quanto pelo próprio Poder Judiciário (DIDIER
JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2008, p. 552).
O instituto não tem por finalidade, portanto, garantir que determinada decisão será justa,
mas a sua definitividade, uma vez submetida à apreciação do Poder Judiciário.
O sistema processual pátrio garante aos interessados a possibilidade de impugnar as
decisões judiciais proferidas nas demandas que são submetidas ao Judiciário, prevendo
expressamente o cabimento de recursos ou outros meios de impugnação, o que se afigura, de fato,
necessário para que se possa alcançar a melhor decisão para o caso sub judice.
Não se pode admitir, no entanto, que a impugnabilidade seja irrestrita, ou seja, é
indispensável estabelecer limites, parâmetros para que determinada decisão seja revista. Desta
forma, os ordenamentos atuais prevêem que, uma vez esgotados ou não utilizados
adequadamente os recursos e meios de impugnação ofertados às partes, encerra-se a possibilidade
de debate e o julgamento torna-se imutável e indiscutível, surgindo então a coisa julgada.
Conceituar o instituto, no entanto, não consiste em tarefa das mais simples, vez que
diversos são os conceitos aduzidos pela doutrina processualista. De forma geral, afirma-se que a
coisa julgada consiste na qualidade de imutabilidade da sentença ou do acórdão. Este conceito, no
entanto, não é uníssono, cumprindo tecer, pois, algumas considerações acerca do assunto.
De acordo com Chiovenda (apud PIZZOL, p. 2), a coisa julgada não consiste em
qualidade da sentença ou de seus efeitos, sendo, na verdade, a “eficácia da sentença que se tornou
definitiva em referência aos futuros processos”. Compreende o insigne processualista que a coisa
julgada supõe um pronunciamento definitivo, considerando que “o Estado não pode permitir que
um bem, já por ele reconhecido, sofra diminuição ou prejuízo por uma nova decisão sua”.
A referida concepção, de influência alemã e defendida entre nós por Pontes de Miranda,
Ovídio Baptista e Araken de Assis, restringe a coisa julgada à eficácia declaratória da decisão.
Significa dizer, pois, que a declaração do juiz torna-se obrigatória e indiscutível.
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Liebman, por sua vez, aduz que a autoridade de coisa julgada refere-se à imutabilidade
do comando que surge da sentença, ou seja, não se trata tão somente da definitividade ou
intangibilidade do ato que manifesta o comando, sendo, pois, uma “qualidade, mais intensa e
mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato
em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato” (apud PIZZOL, p. 3).
Liebman censura a concepção de origem alemã, tendo em vista que a coisa julgada não é
um efeito da sentença, mas o modo como se produzem, ou seja, como se manifestam os seus
efeitos em geral, não se restringindo tão somente ao efeito declaratório, mas a todos os outros
(DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2008, p. 557).
Do referido conceito difundiu-se o entendimento aceito pela maioria dos doutrinadores
brasileiros, tais como Cândido Dinamarco, Ada Pellegrini, Moacyr Amaral Santos, Tereza
Arruda Alvim Wambier, José Miguel Garcia Medina, de que a coisa julgada não é um efeito da
sentença, mas uma qualidade que se agrega à eficácia da sentença.
Contudo, segundo o Código de Processo Civil pátrio, em seu art. 467, “denomina-se
coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a
recurso ordinário ou extraordinário”.
Como se pode observar, o dispositivo relaciona o fenômeno à imutabilidade e
indiscutibilidade da sentença de mérito, decorrente da preclusão que incide sobre o debate acerca
dessa sentença.
A redação inicial do Anteprojeto do CPC de 1973, elaborada por Alfredo Buzaid previa
a conceituação da coisa julgada material como eficácia que torna imutável e indiscutível o efeito
da sentença não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário, definição que albergava o
entendimento esposado por Liebman. Esta não foi, porém, a concepção adotada pelo referido
diploma legal, que ao estabelecer a coisa julgada como efeito da própria sentença, adotou a
concepção alemã.
Impõe-se registrar, ainda, que há uma terceira corrente, entre nós perfilhada por Barbosa
Moreira e Machado Guimarães, segundo a qual o entendimento liebmaniano não conceitua
corretamente o instituto. De acordo com os referidos processualistas, os efeitos da decisão não
são imutáveis, mas, pelo contrário, disponíveis e modificáveis. Defendem, isto sim, que a coisa
julgada consiste em uma situação jurídica do conteúdo da decisão, ou seja, trata-se da
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imutabilidade do comando da decisão, que é composto pela norma jurídica concreta (DIDIER JR,
2008, p. 559).
Consoante o entendimento defendido, a coisa julgada pode ser definida como a situação
jurídica que se forma no momento em que a sentença transforma-se de instável em estável. A
coisa julgada, portanto, diria respeito ao comando que emerge da sentença e não à sua eficácia,
não se confundindo com a autoridade de coisa julgada (PIZZOL, p. 4).
A respeito, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2004, p. 672), explicam
que “a coisa julgada nada mais é do que o reflexo da ordem jurídica abstrata no caso concreto”,
ou seja, sendo a regra abstrata imutável o mesmo deve ocorrer com a regra concreta, e conclui:
“considerando que na sentença o juiz concretiza a norma abstrata, fazendo a lei do caso concreto,
nada mais normal que essa lei também se mostre imutável”.
Além disso, ensina o ilustre processualista que a coisa julgada é fenômeno típico e
exclusivo da atividade jurisdicional, tendo em vista que somente esta pode conduzir a uma
declaração com o condão de tornar-se imutável e indiscutível, sobrevivendo até mesmo à
sucessão de novas leis. E conclui o respeitável jurista: “através do fenômeno da coisa julgada,
torna-se indiscutível – seja no mesmo processo, seja em processos subseqüentes – a decisão
proferida pelo órgão jurisdicional, que passa a ser, para a situação específica, a lei do caso
concreto” (MARINONI, ARENHART, 2004, p. 678).
2.2 Classificação
A imutabilidade a que se refere a coisa julgada está presente na parte dispositiva de uma
decisão judicial, não se estendendo ao relatório e à fundamentação. Tal imutabilidade, porém,
pode apresentar-se de duas formas distintas, razão pela qual se fala em coisa julgada formal e
coisa julgada material.
A coisa julgada formal é aquela que opera seus efeitos dentro do processo, ou seja,
refere-se à impossibilidade de se rediscutir o tema decidido dentro da relação jurídica processual
na qual a sentença foi proferida. Caracteriza-se, portanto, por ser endoprocessual, conduzindo
inevitavelmente, portanto, à idéia de preclusão.
Nesta esteira, importante a advertência de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz
Arenhart (2004, p. 670), no sentido de que a coisa julgada formal, em verdade, não se confunde
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com a verdadeira coisa julgada (coisa julgada material), consistindo em uma modalidade de
preclusão, ou seja, na perda de uma faculdade processual (de rediscutir a sentença proferida na
relação processual).
Trata-se, portanto, da preclusão máxima dentro de um processo jurisdicional,
constituindo-se na perda do poder de impugnar a decisão judicial no processo em que foi
proferida, sendo também chamada de trânsito em julgado (DIDIER JR, 2008, p. 553).
Importa, porém, analisar mais detidamente a coisa julgada material, eis que se trata da
indiscutibilidade da decisão judicial no processo no qual foi produzida e em qualquer outro. Ou
seja, a parte dispositiva da decisão judicial cristaliza-se, tornando-se inalterável, com efeitos endo
e extraprocessuais.
Observa-se, portanto, que a coisa julgada material, que será objeto deste estudo, impede
a propositura de uma nova ação que tenha por objeto a mesma lide discutida e decidida no
processo findo.
Cumpre mencionar, ademais, que toda sentença que não mais se sujeita a recurso produz
a coisa julgada formal, sendo que algumas sentenças produzem tão somente a coisa julgada
formal (como se verifica nas sentenças processuais em que o juiz extingue o processo sem
resolução do mérito) e outras produzem também a coisa julgada material (nos casos em que o
processo é extinto com resolução do mérito).
Quatro são os pressupostos que podem ser apontados para que uma decisão judicial
torne-se indiscutível pela qualidade da coisa julgada material, a saber: a) que se trate de decisão
jurisdicional, b) que o provimento verse sobre o mérito da causa, c) que o mérito tenha sido
analisado em cognição exauriente, d) que tenha havido a preclusão máxima (coisa julgada
formal) (DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2008, p. 555).
Segundo preceitua o art. 468 do CPC, “a sentença, que julgar total ou parcialmente a
lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas”. Daí se pode inferir que
somente as decisões de mérito, ou seja, aquelas em que o magistrado resolve o objeto litigioso
com fulcro no art. 269 do CPC, estão aptas a ficarem imunes em razão da coisa julgada material.
Além disso, é indispensável que a decisão de mérito tenha sido proferida com base em
cognição exauriente. Não se pode admitir, por exemplo, a indiscutibilidade de decisão proferida
em caráter de antecipação de tutela, fundada em cognição sumária, tendo em vista que não se
trata de decisão definitiva.
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Outrossim, exige-se que já tenha ocorrido a coisa julgada formal que será, nas palavras
de Didier Jr; Braga e Oliveira (2008, p. 553), “um degrau necessário para que se forme a coisa
julgada material”. A própria redação do art. 467 do diploma processual civil determina tal fato,
ao definir a coisa julgada material exigindo tratar-se de sentença “não mais sujeita a recurso
ordinário ou extraordinário”, o que é característica da sentença sujeita à coisa julgada formal.
Conclui-se, portanto, que presentes os pressupostos acima elencados, a decisão
jurisdicional (seja de que tipo for) estará apta a fazer coisa julgada material.
2.3 Limites Objetivos e Subjetivos da Coisa Julgada
A sentença pode ser definida, consoante o escólio de Didier Jr; Braga e Oliveira (2008,
p. 261), como o ato jurídico que contém uma norma jurídica individualizada criada pelo Poder
Judiciário, que se distingue das demais normas jurídicas existentes, tais como as leis, em virtude
da possibilidade de tornar-se indiscutível pela coisa julgada material.
Os requisitos essenciais da sentença são previstos pelo art. 458 do CPC, o qual descreve
os elementos que devem compor a sua estrutura: o relatório, os fundamentos ou motivação e o
dispositivo ou conclusão.
Nos termos do art. 468 do CPC, já transcrito, somente se submete à coisa julgada
material a norma jurídica concreta, inserida no dispositivo da decisão, que julga o pedido.
Significa dizer que somente a questão principal decidida está sujeita à coisa julgada material,
fenômeno ao qual se atribui a denominação limite objetivo da coisa julgada.
Assim, a solução de questões na fundamentação não fica submetida à coisa julgada,
tendo em vista tratar-se de decisão sobre questões incidentes. Tal conclusão resulta incontestável
diante da dicção do art. 469 do diploma processual civil, segundo o qual não fazem coisa julgada
os motivos (ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença), a
verdade dos fatos e a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentalmente no processo.
Nem sempre, porém, a questão foi tranqüila entre os doutrinadores, vez que sob a égide
do CPC de 1939 muitos defendiam a possibilidade de extensão da coisa julgada às questões
prejudiciais.
Diante da dicção do art. 260 do CPC vigente, porém, não restam dúvidas acerca da
impossibilidade de extensão da coisa julgada ao relatório e fundamentação da sentença. As
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questões prejudiciais abordadas e julgadas em uma decisão somente farão coisa julgada se forem
colocadas como questões principais (principaliter tantum), nos termos do art. 325 do CPC.
A respeito, confira-se os ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz
Arenhart (2004, p. 688):
[...] a resolução da questão prejudicial pode vir a ser abarcada pela imutabilidade da
coisa julgada, se e quando tiver havido, no curso do processo, a propositura de ação
declaratória incidental a seu respeito (arts. 5°, 325 e 470 do CPC). Nesse caso, diante da
ação proposta, terá o magistrado de julgá-la por sentença, estabelecendo-se, então, sobre
essa questão (que agora passa a ser mérito de uma demanda) julgamento e, em
conseqüência, sobre a declaração nela contida, coisa julgada.
Para tornar mais clara a compreensão do tema cite-se o exemplo aduzido pelo renomado
processualista Ovídio Baptista da Silva (2003, p. 506):
[...] numa ação de despejo, fundada em violação do contrato de locação, o juiz, que dera
pela procedência da demanda, afirmara na sentença ter ficado demonstrado que o
inquilino realmente descumprira o contrato por não ter construído um tapume divisório,
cuja responsabilidade havia assumido em cláusula expressa do ajuste, e igualmente por
tê-lo danificado seriamente, infringindo assim o disposto no art. 1.192,1, do CC (art. 569
do novo CC). O inquilino, em contestação, negara que tais cláusulas do contrato fossem
válidas, sustentando a improcedência da ação sob o fundamento de nulidade parcial do
contrato. A sentença, ao reconhecer a procedência da ação e conceder o despejo por
infração contratual, terá repelido a alegação de nulidade das cláusulas impugnadas pelo
inquilino, considerando, portanto, válidas e eficazes as disposições nelas contidas. Neste
caso, quais teriam sido os „limites objetivos da coisa julgada‟? Quais as questões que se
teriam tornado indiscutíveis entre as partes num processo subsequente? Segundo o
regime legal, vigente no direito brasileiro, todas as declarações sobre fatos que o juiz
fizer na sentença não se tornam indiscutíveis, de modo que os juizes de outros processos
fiquem sujeitos a ter os fatos declarados existentes pela primeira sentença como
verdadeiros. Por sua vez, a „questão prejudicial‟ controvertida na causa, consistente na
alegada nulidade parcial do contrato, embora enfrentada pelo juiz, também não faz coisa
julgada, podendo livremente ser apreciada em processo subsequente, onde sua
invalidade poderá ser reconhecida e declarada.
Impõe-se assinalar, outrossim, que a imutabilidade da coisa julgada protege decisão
judicial tão somente enquanto as circunstâncias fáticas e jurídicas da causa permanecerem as
mesmas, considerando-se que estão inseridas na causa de pedir da ação. Implica dizer que caso as
referidas circunstâncias sofram alterações tais que originem uma nova causa de pedir, ensejarão
uma nova ação, que será totalmente diferente da ação anterior e, portanto, não acobertada pelo
manto da coisa julgada imposta sobre a primeira decisão (MARINONI; ARENHART, 2004, p.
689).
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Estabelecidos os limites atinentes à extensão objetiva da coisa julgada material, cumpre
tecer ainda alguns comentários acerca dos limites relativos à sua extensão subjetiva, o que
significa analisar quais as pessoas que serão alcançadas pelos efeitos da decisão proferida. Neste
aspecto, a coisa julgada pode operar-se inter partes, ultra partes ou erga omnes.
A regra geral em nosso sistema é estabelecida pelo art. 472 do CPC, ao dispor que:
A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem
prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido
citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença
produz coisa julgada em relação a terceiros.
À luz do dispositivo transcrito conclui-se que a autoridade da decisão transitada em
julgado, em regra, somente se impõe àqueles que figuraram no processo como parte, operando-se
a coisa julgada, portanto, inter partes. A previsão legal atende aos princípios constitucionais da
inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, eis
que não se pode admitir, em nosso sistema processual, que alguém seja atingido pelos efeitos de
uma decisão transitada em julgado sem que lhe tenha sido garantido o acesso à justiça, ou seja,
sem que efetivamente lhe tenha sido oportunizado participar da formação do convencimento do
julgador.
No que se refere aos terceiros, porém, consoante prevê o artigo acima mencionado, a
sentença produzirá efeitos quando, em ações relativas ao estado de pessoa, forem citados todos os
interessados (como partes, portanto).
Verifica-se, pois, que existem em nosso ordenamento casos nos quais a sentença
poderá, excepcionalmente, beneficiar ou prejudicar terceiros.
Neste sentido tem-se a coisa julgada ultra partes, que atinge não somente as partes do
processo, mas também determinados terceiros. Didier Jr; Braga e Oliveira (2008, p. 563)
exemplificam citando os casos de substituição processual, nos quais o substituído, ainda que não
tenha participado da demanda enquanto parte, será atingido pelos efeitos da coisa julgada;
também os casos de legitimação concorrente, em que o co-legitimado para ajuizar uma ação, que
poderia ter sido parte no processo, na qualidade de litisconsorte unitário facultativo ativo, mas
não foi, ficará vinculado aos efeitos da coisa julgada produzida pela decisão; o caso de decisão
favorável a um dos credores solidários, que nos termos do art. 274 do CPC se estende aos demais
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e, por fim, os casos de coisa julgada proferida em ações coletivas, que serão abordadas adiante
neste estudo.
Há que se mencionar, ainda, a existência da coisa julgada erga omnes, cujos efeitos
alcançam todos os jurisdicionados, tenham eles participado ou não do processo. Como exemplos,
tem-se a coisa julgada produzida na ação de usucapião de imóveis, nas ações de controle
concentrado de constitucionalidade e nas ações coletivas que versem sobre direitos difusos ou
direitos individuais homogêneos (DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2008, p. 565).
3 TUTELA DOS DIREITOS COLETIVOS
3.1 Considerações Gerais Sobre a Tutela Coletiva
Corolário das profundas alterações caracterizadoras da sociedade moderna, um novo
quadro de direitos, bem como de instrumentos para atuação desses mesmos direitos, foi sendo
delineado ao longo das últimas décadas no Brasil, importando em uma significativa mudança de
paradigmas no sistema processual civil pátrio.
Ao lado de uma nítida alteração no perfil dos direitos há muito reconhecidos, tais como
a consagração da função social do direito de propriedade, a publicização do direito privado e a
privatização do direito público, verifica-se a ampliação do próprio rol de direitos, tendo em vista
que novos direitos passaram a ser reconhecidos e assegurados, como ocorre com os direitos
relacionados à sociedade de consumo e à economia de massa (MARINONI; ARENHART, 2004,
p. 783).
Surgiu, portanto, uma nova categoria de direitos, situada entre o interesse público e
privado: a categoria dos interesses sociais. Tratam-se de interesses pertencentes a certos grupos
de pessoas, que fogem ao conceito clássico de direitos subjetivos.
A partir do reconhecimento de tais interesses surgiu também a necessidade de se
desenvolverem novos mecanismos para a sua tutela, eis que os mecanismos até então adotados
não se mostravam aptos a salvaguardar interesses que fugiam ao prisma individual.
O Código de Processo Civil de 1973, como se sabe, foi estruturado tendo como base a
clássica divisão da tutela jurisdicional em tutela de conhecimento, tutela de execução e tutela
cautelar, tendo sido moldado com vistas à prestação da tutela dos direitos subjetivos individuais,
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por intermédio de demandas propostas pelo próprio lesado (ZAVASCKI, 2005, p. 3). Não foram
previstos, portanto, instrumentos para a tutela de direitos e interesses transindividuais, de
titularidade indeterminada.
Contudo, diante do reconhecimento dos referidos direitos, promoveram-se diversas
alterações legislativas, mormente a partir de 1985, que alteraram substancialmente o Código de
Processo e o próprio sistema processual nele consagrado.
Teori Albino Zavascki (2005, p. 5) aponta a existência de duas importantes fases em que
podem ser divididas as mencionadas reformas legislativas, sendo que na primeira, iniciada a
partir de 1985, tem-se a introdução de instrumentos até então desconhecidos do direito positivo,
cuja finalidade consistia em dar curso às demandas coletivas, tutelar direitos e interesses
transindividuais e tutelar a própria ordem jurídica abstratamente considerada.
Surgiram, nesta época, as leis regulamentadoras das ações civis públicas, leis que
tutelavam, por exemplo, os direitos de portadores de deficiências, crianças e adolescentes,
consumidores, da probidade administrativa, da ordem econômica, das pessoas idosas, tendo a
Constituição de 1988 exercido papel fundamental para a consagração desses direitos e
instrumentos.
Em momento posterior, destaca-se uma nova tendência reformadora, iniciada a partir de
1994 e que passa a priorizar a transformação do próprio Código de Processo, tendo como
fundamento precípuo a efetividade do processo. Cite-se entre as alterações mais importantes a
universalização da tutela antecipada bem como a valorização da tutela específica das obrigações,
entre outras.
Como resultado da evolução mencionada, aliada às relações cada vez mais impessoais e
coletivizadas que caracterizam os tempos atuais, verifica-se que uma maior ênfase passou a ser
dispensada à solução dos conflitos em sua dimensão coletiva. É neste contexto que as ações
coletivas emergem, com fundamento nos princípios do acesso à justiça e da economia processual.
O regramento do processo coletivo, no entanto, não se baseia em um código, existindo,
na verdade, um microssistema processual para a tutela coletiva. O Código de Defesa do
Consumidor assume, neste contexto, relevância incontestável, importando mencionar, no presente
estudo, o Título III, que versa sobre a defesa do consumidor em juízo.
Assim, a partir do art. 81 da Lei 8078/90 são estabelecidos os conceitos de direitos
difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, que serão abordados adiante. De
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imediato, saliente-se o caráter absolutamente inovador da lei, tendo em vista que até então o
assunto não havia sido tratado por nenhuma outra legislação pátria, tendo permanecido por muito
tempo conturbado, inclusive na doutrina especializada (DIDIER JR; ZANETI JR, 2008, p. 49).
O CDC promoveu, ainda, importante alteração na Lei de Ação Civil Pública, atuando
como agente unificador e harmonizador do sistema, vez que adequou suas previsões à sistemática
do Código de Processo Civil e Lei de Ação Civil Pública, com vistas à defesa dos direitos
difusos, coletivos e individuais.
Como resultado, passam a ser aplicadas as disposições do CDC, no que fosse cabível, às
demais ações para a tutela de direitos coletivos, tais como a ação popular, ação civil pública, ação
de improbidade administrativa e o mandado de segurança coletivo.
A existência do microssistema de tutela coletiva no ordenamento pátrio é reconhecida,
inclusive, no Superior Tribunal de Justiça, conforme se observa do voto do Ministro Luiz Fux no
REsp 510.150 – MA, nos termos seguintes:
A lei de improbidade administrativa, juntamente com a lei da ação civil pública, da ação
popular, do mandado de segurança coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e dos
Estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela
dos interesses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e
subsidiam-se.
Tecidas estas breves considerações acerca do sistema legal para a tutela dos direitos
coletivos, considerados em sentido amplo, passa-se a analisar alguns aspectos gerais relacionados
à tutela de cada direito coletivo, diferenciando-os entre si.
3.2 Direitos Difusos, Coletivos Sricto Sensu e Individuais Homogêneos
O direito pátrio admite três categorias de direitos que podem ser tutelados por
intermédio da ação coletiva: os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Cumpre esclarecer, ainda que de forma sucinta, as distinções e peculiaridades relativas a
cada modalidade. Para tanto, parte-se de uma importante premissa, a de que não se pode
confundir direitos coletivos com tutela coletiva dos direitos.
Por muito tempo observou-se na doutrina pátria o equívoco de entender as três
categorias acima elencadas como espécies de direitos coletivos, quando, na verdade, os direitos
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individuais homogêneos não o são, não obstante sejam-lhes facultada a proteção mediante a
tutela coletiva.
Os direitos difusos e coletivos stricto sensu são tipicamente direitos transindividuais,
tendo em vista que não pertencem a um indivíduo determinado. Portanto, os direitos individuais
homogêneos, por óbvio, não são direitos transindividuais.
O Código de Defesa do Consumidor, conforme mencionado, dispõe acerca de cada
modalidade de direito tutelado pelas ações coletivas em seu art. 81, in verbis:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser
exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os
transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e
ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os
transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de
pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de
origem comum.
Como se observa, embora os direitos difusos e coletivos em sentido estrito possuam
proximidade no que tange ao aspecto subjetivo, já que são transindividuais, e também objetivo,
pela natureza indivisível, possuem traços que os distinguem.
Assim, direitos difusos são direitos transindividuais, metaindividuais ou
supraindividuais, pertencentes, a uma coletividade, que somente podem ser considerados como
um todo e cujos titulares sejam pessoas indeterminadas, o que significa dizer que não há como
individualizá-las, mas que são ligadas por circunstâncias de fato, vez que não há vínculo jurídico
entre elas.
Como exemplo, cite-se a publicidade enganosa ou abusiva, veiculada através de
imprensa falada, televisionada ou escrita, que afeta número incalculável de pessoas, sem que
entre elas exista uma relação jurídica comum (DIDIER JR.; ZANETI JR, 2008, p. 77).
Os direitos coletivos stricto sensu, por sua vez, a despeito de serem transindividuais e
indivisíveis, distinguem-se por serem direitos de titularidade de um grupo, categoria ou classe de
pessoas. Ressalte-se que, neste caso, os titulares são pessoas indeterminadas, porém, podem ser
determinadas enquanto grupo, categoria ou classe, bem como possuem vinculação por uma
relação jurídica base.
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A mencionada vinculação pode ocorrer tanto entre os membros do próprio grupo titular
do direito ou mesmo em razão da ligação com a parte contrária na demanda.
No primeiro caso, conforme exemplifica Didier Jr e Zaneti Jr (2008, p. 76), tem-se os
profissionais filiados a determinado órgão de classe profissional, tais como os advogados em
relação à Ordem dos Advogados do Brasil e, no segundo caso, os contribuintes de determinado
tributo, os quais se ligam ao ente estatal responsável pela tributação.
É necessário advertir que a relação base nestes casos deve ser anterior à lesão,
diferentemente do que ocorre nos direitos difusos, nos quais o vínculo surge em razão da própria
lesão.
Pode-se concluir, portanto, que o elemento diferenciador do direito difuso e o direito
coletivo “é a determinabilidade e a decorrente coesão como grupo, categoria ou classe anterior à
lesão, fenômeno que se verifica nos direitos coletivos „stricto sensu‟ e não ocorre nos direitos
difusos” (DIDIER JR; ZANETI JR, 2008, p. 77).
Por fim, com base nas class actions for damages, ou seja, nas ações de reparação de
danos à coletividade, existente no direito norte americano, o legislador pátrio criou uma nova
categoria de direitos, considerados por parte da doutrina direitos acidentalmente coletivos, em
contraposição aos direitos essencialmente coletivos já estudados. Tratam-se dos direitos
individuais homogêneos.
A categoria afigura-se de salutar importância para o direito positivo, tendo em vista que
viabiliza a tutela coletiva dos direitos individuais que apresentam dimensão coletiva em razão da
sua homogeneidade, decorrente da massificação das relações jurídicas.
Registre-se, a respeito, o abalizado escólio de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz
Arenhart (2004, p. 790):
[...] por se tratar de direitos individuais idênticos (de massa), admitem – e mesmo
recomendam, para evitar decisões conflitantes, com otimização da prestação
jurisdicional do Estado – proteção coletiva, através de uma única ação. Assim deve ser
porque tais direitos são uniformes (nascem de um mesmo fato-gênese, ou de fatos
iguais), permitindo, então, resolução unívoca. São exemplos desses direitos: os dos
contribuintes de impugnar a exação tributária tida como inconstitucional, ou os direitos
dos consumidores a serem indenizados da quantidade a menor de produto existente na
embalagem. Estes direitos individuais homogêneos, portanto, não são transindividuais;
mas nitidamente individuais. Também não são indivisíveis, permitindo perfeita
identificação da porção correspondente a cada um dos interessados.
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São, portanto, aqueles direitos que possuem origem comum, isto é, que surgem
consectariamente à própria lesão ou ameaça de lesão: a relação jurídica entre as partes origina-se
após o fato lesivo. Assim, o que caracteriza os direitos em análise é a origem na conduta
comissiva ou omissiva da parte contrária. Não se afasta, nestes casos, a possibilidade de
individualizar os lesados, mas isto não impede o manejo da ação coletiva.
4 COISA JULGADA NAS AÇÕES COLETIVAS
Tendo em vista o objetivo a que se propõe o presente estudo e com base nos aspectos
gerais já abordados, relativos à coisa julgada e à tutela coletiva dos direitos transindividuais e
individuais homogêneos, passa-se a analisar os referidos institutos de forma conjunta, pontuando
as principais características que distinguem o regime jurídico da coisa julgada no processo
coletivo, em relação ao processo individual.
O instituto da coisa julgada no processo coletivo é disciplinado pelos arts. 103 e 104 do
Código de Defesa do Consumidor, bem como pelo Código de Processo Civil, sempre à luz da
Constituição Federal, pois conforme assinalado, as regras são ditadas pelo microssistema
processual coletivo, eis que não se tratando de direito subjetivo pertencente a um indivíduo
determinado, não se afiguram suficientes as regras do Direito Civil e Processual Civil clássicos.
Consoante estatui o art. 103 do CDC, as regras para a coisa julgada nas ações coletivas
são diferenciadas de acordo com a espécie de direito coletivo objeto da ação, resultando em
disciplinas distintas, conforme se verá adiante.
4.1 Coisa Julgada Secundum Eventum Litis
Conforme restou consignado, a coisa julgada no processo individual caracteriza-se por
produzir efeitos inter partes, ou seja, nos termos do art. 472 do CPC, os efeitos da imutabilidade
da decisão restringem-se às partes da demanda, em respeito aos princípios constitucionais do
acesso à justiça, devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
Acrescente-se, ainda, que no processo individual a coisa julgada é considerada pro et
contra, o que implica dizer que pode ocorrer tanto para beneficiar o autor, quando a demanda é
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julgada procedente, confirmando a sua pretensão, bem como em seu prejuízo, com o julgamento
improcedente.
No âmbito das ações coletivas, porém, foi necessário desenvolver regras próprias, com a
finalidade de definir-se como se faria a busca pela justiça, sopesando os pontos de resistência
consistentes no risco de interferência injusta nas garantias individuais do titular do direito
subjetivo bem como a exposição indefinida do réu ao judiciário (DIDIER JR; ZANETI JR, 2008,
p. 370).
Buscando superar tais dificuldades e, mais ainda, adequar a tutela jurisdicional às
necessidades impostas pelas peculiaridades das ações coletivas, o CDC inovou ao prever que em
caso de insucesso das ações coletivas, não restariam prejudicadas as ações individuais, sem a
anuência do indivíduo; é a chamada coisa julgada secundum eventum litis.
Colha-se, a respeito, o respeitável ensinamento de Rodolfo de Camargo Mancuso (2007,
p. 269):
Preocupou-se o legislador brasileiro com a exigência do tratamento isonômico às partes,
e bem assim com a proteção ao „tertio‟, na delicada imbricação dos planos coletivo e
individual, ambiente que releva de bases constitucional e processual (CF, art. 5°, „caput‟
e inciso LV; CPC, art. 125,I). Assim, estabeleceu-se um regime que, no limite do
possível, busca dar um certo „equilíbrio‟ naquela zona de fronteira: (i) sendo julgada
improcedente a ação coletiva após prova plena e cognição exauriente, opera-se a coisa
julgada material e já outra e análoga demanda coletiva não poderá ser (re)proposta –
nem mesmo por outro co-legitimado ativo – contra os que integraram o pólo passivo; (ii)
todavia, dado que entre essa ação coletiva e as “paralelas” ações individuais não há
identidade de elementos (os „tria eadem‟: partes, pedido, causa), tem-se que, ainda
naquela primeira hipótese, poderá o integrante do pólo passivo vir a ser eventualmente
demandado, agora em ações individuais propostas pelos sujeitos que não aderiram ao
pleito coletivo.
Cumpre registrar, porém, a existência de entendimentos contrários à extensão da coisa
julgada secundum eventum litis no processo coletivo. Há, pois, juristas que, inobstante a previsão
expressa do art. 103 do CDC, fundamentados no princípio da segurança jurídica e tendo em vista
o já mencionado risco de exposição infinita do réu em ações coletivas, entendem pela extensão
erga omnes da eficácia da sentença, inclusive na improcedência (DIDIER JR.; ZANETI JR.,
2008, p. 372).
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Trata-se de postura nitidamente voltada para a garantia do devido processo legal e
também do réu, tendo em vista o grande prejuízo que poderia sofrer e a insegurança que lhe seria
ínsita, de poder ser demandado inúmeras vezes em razão do mesmo fato.
Entretanto, no Brasil a questão foi solucionada pelo direito posto, vez que não se admite
que uma mesma demanda coletiva seja reproposta diversas vezes, conforme se verá adiante. O
que se admite, portanto, é que tão somente a extensão subjetiva da coisa julgada seja secundum
eventum litis.
Consoante prescrevem os arts. 103 e 104 do CDC, a coisa julgada nas ações coletivas
pode ser erga omnes ou ultra partes, a depender de tratar-se de direito difuso, coletivo em sentido
estrito ou individual homogêneo, senão vejamos:
Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada:
I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas,
hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico
fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art.
81;
II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência
por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese
prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as
vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
§ 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e
direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe.
§ 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os
interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor
ação de indenização a título individual.
§ 3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei
n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos
pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código,
mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão
proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.
§ 4º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória.
Conforme se pode observar, tratando-se de interesse ou direito difuso e sendo promovida
a ação coletiva, a coisa julgada será erga omnes, ou seja, oponível contra todos, exceto quando o
pedido for julgado improcedente por falta de provas (neste caso qualquer legitimado poderia
intentar nova ação, sob o mesmo fundamento, valendo-se de nova prova).
Saliente-se, com base nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart
(2004, p. 812), que, pertencendo o direito a todos, ou seja, a uma massa indeterminada de
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sujeitos, de fato a solução da controvérsia sobre o direito transindividual e indivisível deve
abranger a todos, tornando-se a decisão imutável para as partes do processo.
Se, por sua vez, o interesse ou direito envolvido for coletivo stricto sensu, tem-se a
formação de coisa julgada ultra partes, para o grupo, categoria ou classe, salvo se, da mesma
forma que no caso anterior, o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas.
Considerando-se que são direitos transindividuais, caracterizados por sua natureza
indivisível, mas com sujeito determinado pelo grupo, categoria ou classe de sujeitos ligados por
uma relação jurídica base entre si ou com a parte contrária, a coisa julgada opera-se para além das
partes do processo, atingindo todo o grupo a que pertence o direito discutido e não somente
àqueles que figuraram como partes na demanda.
Tem-se, em ambos os casos (direitos difusos ou coletivos em sentido estrito), a
ocorrência de coisa julgada secundum eventum litis (segundo o evento da lide) tendo em vista que
se opera apenas em face das circunstâncias da causa, ou seja, a depender do resultado do
processo.
Por fim, no que tange aos interesses ou direitos individuais homogêneos, considerando-
se a natureza distinta em relação aos difusos e coletivos em sentido estrito, o legislador dispensou
tratamento significativamente distinto. Assim, tratando-se direitos nitidamente individuais, com
sujeito determinado e unitário, mas que por serem idênticos podem ser tutelados de maneira
uniforme, através de uma única ação, a sentença que julgar essa ação coletiva fará coisa julgada
erga omnes, no caso de procedência do pedido.
“Tem-se, portanto, uma nova modalidade da coisa julgada „secundum eventum litis‟,
porque somente operada, em sua condição descrita na lei, quando a sentença for de procedência”
(MARINONI; ARENHART, 2004, p. 815).
Conseqüentemente, a vítima ou seu sucessor poderá promover a liquidação ou execução
fundada na sentença de procedência, sendo desnecessário o ajuizamento de ação condenatória,
com a condição de que não tenha participado da ação coletiva como litisconsorte ou assistente
litisconsorcial.
Se o processo for extinto sem resolução do mérito, a sentença produzirá tão somente
coisa julgada formal e, caso seja a ação julgada improcedente, o indivíduo ainda assim poderá
promover sua ação individual condenatória, desde que não tenha ingressado no processo coletivo
como litisconsorte.
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Diante da opção legislativa, discute-se se não restaria inviabilizada a tutela dos direitos
individuais caso o dano individualmente considerado seja muito pequeno, como, por exemplo, se
uma determinada marca de leite sofrer diminuição de alguns mililitros em seu conteúdo, sendo
vendida enganosamente como se tivesse mais. Cada consumidor, neste caso, poderá promover
uma ação individual visando o ressarcimento; contudo, pouquíssimos consumidores o farão.
Conclui-se, pois, que se a ação coletiva não for viabilizada para a tutela de tais direitos, haveria
conseqüente violação ao princípio do acesso à justiça (PIZZOL, p. 15).
4.2 Transporte In Utilibus da Coisa Julgada
Consoante preceitua o §3° do art. 103 do CDC, já transcrito, os efeitos da coisa julgada
decorrente das ações coletivas não prejudicam as ações de indenização por danos pessoalmente
sofridos, propostas individualmente. Se procedentes, porém, beneficiarão às vítimas e sucessores.
Tem-se, portanto, mais uma particularidade da coisa julgada nas ações coletivas: o
transporte in utilibus. Nas palavras de Ada Pellegrini Grinover (apud DIDIER JR; ZANETI JR,
2008, p. 380), trata-se da ampliação legal do objeto do processo e a inclusão, na coisa julgada
coletiva, do dever de indenizar, da mesma forma que ocorre no dano ex delicto, em que a decisão
sobre o dever de indenizar integra o julgado penal.
Como exemplo, cite-se determinada ação coletiva julgada procedente para o fim de
ordenar a paralisação de certa obra, que estava contaminando um rio localizado em suas
proximidades: os prejudicados individualmente considerados poderão se aproveitar da decisão
proferida na ação coletiva para, a partir daí, propor suas ações individuais. Assim, permite-se às
vítimas e a seus sucessores, o benefício da demanda coletiva, sem que sejam obrigados a
ingressar em juízo com o fito de obter nova sentença condenatória, passando diretamente à
liquidação e execução da sentença.
De forma geral, se o pedido em uma ação cuja pretensão refere-se a direitos difusos é
julgada procedente, a sentença beneficia a coletividade como um todo, dada a natureza do direito
em questão, mas não beneficia cada indivíduo. No entanto, a previsão legal em comento permite
que a referida sentença seja aproveitada pelos indivíduos lesados, sendo, para tanto, necessário
que demonstrem o dano, o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a responsabilidade fixada
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na sentença, bem como o montante. Neste caso, poderão promover a liquidação da sentença e a
sua execução (PIZZOL, p. 24).
Impende destacar, ainda, que de acordo com o art. 104 do CDC, conclui-se pela
possibilidade do ajuizamento de ação individual mesmo que pendente ação coletiva para a tutela
de direito difuso, coletivo e individual homogêneo, sendo, para tanto, necessário que o autor da
ação individual requeira a suspensão do processo no prazo de 30 dias.
Ressalte-se, em primeiro lugar, que a doutrina diverge quanto ao alcance da referida
previsão, eis que o artigo faz remissão tão somente aos incisos I e II do art. 81 do CDC, o que
levaria à conclusão de que somente se aplicaria aos direitos difusos e coletivos em sentido estrito.
No entanto, não é este o entendimento de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart
(2004, p. 816), com os quais há que concordar, tendo em vista que, nas palavras dos ilustres
processualistas,
Há, evidentemente, na redação do dispositivo, nítido equívoco nas remissões feitas aos
incisos do parágrafo único do art. 81 e aos incisos do art. 103. Não obstante grande
parcela da doutrina entenda que a remissão correta estaria contemplando apenas os incs.
II e III do parágrafo único do art. 81 (e, por conseqüência, os incs. II e III do art. 103),
parece ser o mais adequado compreender que a remissão abrange os três incisos do art.
103, valendo, portanto, os efeitos ali descritos, para todas as espécies de ações coletivas.
Como conseqüência, caso determinado indivíduo tenha proposto ação individual antes
de ser ajuizada ação coletiva e pretenda ser beneficiado pela eventual procedência do pedido na
ação coletiva, terá que requerer a suspensão do processo individual. Caso opte por prosseguir
com a ação individual assumirá o risco de, no caso desta restar improcedente, não poder
beneficiar-se da sentença proferida na ação coletiva.
No entanto, caso requeira a suspensão e a ação coletiva seja julgada improcedente,
poderá requerer o prosseguimento de sua ação individual. Da mesma forma, aplicar-se-á a regra
em análise caso o indivíduo decida ajuizar a ação individual após a propositura da ação coletiva.
De acordo com Rodolfo de Camargo Mancuso, a tramitação em paralelo de ação
coletiva e ações individuais atende à garantia constitucional do acesso à justiça. Assim, ainda que
se trate de conflitos cuja natureza ou dimensão enseje o trato judicial coletivo, não se pode
“obstar as paralelas iniciativas dos sujeitos concernentes ao tema, seja quando estes decidam se
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litisconsorciar ao pleito coletivo (CDC, art. 94), seja quando optem por ajuizar suas próprias
ações” (MANCUSO, 2007, p. 347).
No que se refere à necessidade de suspensão do processo individual exigido pelo art. 104
do CDC, deve ser requerida no prazo de 30 dias a contar da ciência, nos autos, do ajuizamento da
ação. O conhecimento do autor da demanda individual acerca da existência de ação coletiva
referente ao mesmo objeto, no entanto, somente pode ser possível caso o autor individual seja
informado nos autos. Embora o autor da demanda coletiva não tenha condições de conhecer todos
os autores de ações individuais, ao réu é possível, devendo, pois, informar ao juiz (GIDI apud
PIZZOL, p. 21).
O processo individual deverá permanecer suspenso durante o período necessário para o
julgamento da ação coletiva, podendo o autor da demanda individual, se desejar, requerer o seu
prosseguimento antes do julgamento da ação coletiva (porém, neste caso não se beneficiará de
seu resultado, se procedente).
O autor da ação individual não será beneficiado pela procedência da ação coletiva caso,
ciente de seu ajuizamento, não promova a suspensão do processo individual no referido prazo de
30 dias.
Contudo, se não for cientificado da existência da demanda coletiva, a doutrina aponta
duas possibilidades: a propositura de ação rescisória por literal disposição de lei (art. 485, V, do
CPC e arts. 94, 103, §2º e 104 do CDC) ou a propositura pura e simples de liquidação/execução,
independentemente de ação rescisória, por apresentar a sentença do processo individual, em razão
da inobservância das regras do CDC mencionadas, o vício de inexistência (PIZZOL, p. 23).
Parece, no entanto, que a segunda opção é a mais adequada, tendo em vista que a
sentença de improcedência proferida no processo individual não pode produzir efeitos em relação
ao indivíduo que não teve a ciência da existência do processo coletivo. Neste caso, deve a sua
ação ser extinta, beneficiando-se da sentença de procedência da ação coletiva.
4.3 Coisa Julgada Secundum Eventum Probationis
Conforme se observa da leitura do art. 103 do CDC, o dispositivo consagrou a coisa
julgada secundum eventum probationis para os casos de ações coletivas relativas a direitos
difusos ou coletivos em sentido estrito. Significa dizer que somente haverá coisa julgada material
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nestes casos, se houver esgotamento das provas, ou seja, se a demanda for julgada procedente ou
improcedente com suficiência de provas (DIDIER JR; ZANETI JR, 2008, p. 376).
Assim, diferentemente do que ocorre no regime da coisa julgada no processo individual
(pro et contra), em que a improcedência por falta de provas torna-se indiscutível pela coisa
julgada, somente podendo ser alterada por meio de ação rescisória fundada no art. 485, VII do
CPC (documento novo), no processo coletivo, se a demanda for julgada improcedente por falta
de provas, não haverá coisa julgada.
A decisão somente produzirá coisa julgada, nos processos coletivos, se forem exauridos
todos os meios de prova, pois, caso contrário, será plenamente possível a repropositura da mesma
ação, “desde que instruída com prova nova, capaz de alterar o quadro cognitivo da ação anterior”
(MARINONI; ARENHART, 2004, p. 814).
Cumpre advertir, no entanto, que o conceito de prova nova não se restringe àquela
surgida após a conclusão do processo anterior, podendo ser compreendida como qualquer prova,
mesmo que já existente e conhecida, mas desde que não tenha sido utilizada. Desta forma, “desde
que presente essa prova nova, qualquer legitimado – mesmo aquele que propôs a primeira ação –
pode intentar novamente ação coletiva” (MARINONI; ARENHART, 2004, p. 815).
Caso, porém, o pedido seja julgado improcedente com suficiência de provas, a sentença
produzirá coisa julgada formal e material, fato que obsta a propositura de nova ação coletiva, o
que, no entanto, não impede a propositura de ações individuais pelos lesados.
Distinto, porém, é o tratamento legal conferido aos direitos individuais homogêneos, eis
que em tais casos a decisão, seja de procedência ou improcedência (neste caso com ou sem
suficiência de provas) produzirá coisa julgada formal e material, com efeitos erga omnes,
impedindo, portanto, a propositura de nova ação. No entanto, os indivíduos não ficam impedidos
de propor ações individuais, desde que não tenham ingressado no processo coletivo como
litisconsortes ou assistentes litisconsorciais.
4.4 O Art. 16 da Lei de Ação Civil Pública e a Restrição Territorial da Coisa Julgada
Coletiva
O art. 16 da Lei 7347/1985, alterado pela Lei 9494/97 estabelece uma limitação da coisa
julgada à competência territorial do órgão prolator da decisão, nos seguintes termos:
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A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do
órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas,
hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico
fundamento, valendo-se de nova prova.
O dispositivo em comento suscitou intensas discussões doutrinárias acerca de sua
constitucionalidade, sendo relevante para o presente estudo tecer algumas considerações acerca
dos argumentos favoráveis ou não, à sua aplicação.
Saliente-se que foi ajuizada a ADI 1576-1, relatada pelo Min. Marco Aurélio, a qual, no
entanto, foi julgada prejudicada em decisão monocrática, não havendo, portanto, decisão de
mérito. O Min. Relator, porém, proferiu voto entendendo pela constitucionalidade do dispositivo
questionado, eis que, em seu entendimento, o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública afigura-se
harmônico com o sistema judiciário pátrio, pois mesmo em sua redação primitiva, a coisa julgada
erga omnes da sentença civil era jungida à área de atuação do órgão que viesse a prolatá-la
(MANCUSO, 2006, p. 295).
Em posição intermediária, cite-se o entendimento de Teori Albino Zavascki que
vislumbra o art. 16 da Lei 7347/85 a partir do duplo enfoque dos direitos transindividuais e
individuais homogêneos. Cumpre esclarecer, contudo, que o eminente jurista ressalva que a
interpretação literal do dispositivo implica conclusões incompatíveis com o instituto da coisa
julgada, tendo em vista que “não há como cindir territorialmente a qualidade da sentença ou da
relação jurídica nela certificada” (ZAVASCKI, 2005, p. 69).
Além disso, explica que é necessário proceder a uma análise sistemática e histórica da
norma, cotejando o referido art. 16 com o art. 2º-A da lei 9494/97, que dispõe de forma análoga
em relação às ações coletivas ajuizadas por entidades associativas. No caso, porém, a norma
prevê mais claramente que se trata de limitação à eficácia subjetiva da sentença, e não da coisa
julgada. Amparado neste entendimento, conclui que em relação aos direitos essencialmente
coletivos (difusos e coletivos em sentido estrito) não se pode pretender cindir territorialmente a
qualidade da sentença ou da relação jurídica nela certificada. No caso dos direitos acidentalmente
coletivos, ou seja, individuais homogêneos, por sua vez, defende que como o objeto do litígio são
direitos individuais e divisíveis, seria possível cindir a tutela jurisdicional por critério territorial, e
conclui:
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[...] em interpretação sistemática e construtiva, pode-se afirmar, portanto, que a eficácia
territorial da coisa julgada a que se refere o art. 16 da Lei 7347/85 diz respeito apenas às
sentenças proferidas em ações coletivas para a tutela de direitos individuais
homogêneos, de que trata o art. 2ºA da Lei 9494 de 1997 e não, propriamente, às
sentenças que tratem de típicos direitos transindividuais (ZAVASCKI, 2005, p. 65).
O entendimento predominante na doutrina, no entanto, é no sentido da
inconstitucionalidade da inovação prevista no art. 16 da Lei 7347 de 1985. Rodolfo de Camargo
Mancuso, em sua obra dedicada à Ação Civil Pública, aponta os principais argumentos nos quais
se fundamentam aqueles que se posicionam contrariamente ao dispositivo, a seguir delineados.
Em primeiro lugar, adverte o eminente jurista, a questão jurídica a rigor não se
configuraria, propriamente, em uma querela constitucional, tendo em vista que não se discute o
instituto da coisa julgada em si, mas o problema de seus limites objetivos e subjetivos, temas
nitidamente relativos ao direito processual (ZAVASCKI, 2005, p. 299).
Outra importante observação que faz a doutrina especializada concerne à utilização, por
parte do governo, de seu poder de império para promover à alteração legislativa com o fim de
precaver-se das ameaças das eventuais ações coletivas que poderiam ser propostas contra si, em
defesa dos cidadãos, contribuintes, etc.
Com isso, praticamente restou inviabilizada a tutela dos direitos coletivos, violando
flagrantemente os objetivos do processo coletivo, bem como diversos princípios constitucionais,
como os princípios do devido processo legal, da inafastabilidade do controle jurisdicional, da
igualdade, da proporcionalidade e razoabilidade das leis.
Além disso, verifica-se que há nítida confusão entre os conceitos de coisa julgada e
competência, o que inutiliza a alteração legislativa. Ilustre-se com a seguinte situação: uma
sentença de divórcio proferida em São Paulo não deixa de produzir seus efeitos no Paraná, o que
reflete tratar-se de competência territorial e não do instituto da coisa julgada.
Registre-se, ainda, o entendimento defendido por muitos no sentido da revogação tácita
do art. 16 da Lei 7347/85, ocorrida com o advento do Código de Defesa do Consumidor. É o
entendimento esposado por Aluisio Gonçalves de Castro Mendes (apud PIZZOL, p. 29), in
verbis:
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, a matéria pertinente aos efeitos do
julgamento e da coisa julgada passou a ser regulada inteiramente pelo art. 103, na
medida em que instituiu sistema consentâneo com a nova divisão tripartite dos interesses
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coletivos, nada mais podendo ser aproveitado do art. 16 da Lei 7.347/85, razão ela qual é
de se considerar o mesmo revogado, com fulcro no art. 2º, §1º, parte final, da Lei de
Introdução ao Código Civil. Desse modo, houve manifesto equívoco do legislador ao
pretender dar nova redação a dispositivo que não se encontrava mais em vigor.
Ainda que se entenda, porém, que o art. 16 em análise continuasse em vigor após o
advento do CDC, seria imperioso reconhecer a sua inutilidade, considerando-se que o art. 103 do
referido diploma legal não foi alterado, sendo aplicável, pois, já que o regime jurídico das ações
coletivas é um só, conforme analisado quando do estudo do microssistema processual coletivo.
Acrescente-se que mesmo que não se entendesse pela aludida interação, a Lei de Ação
Civil Pública somente poderá ser aplicada às hipóteses de direitos difusos e coletivos, já que não
são mencionados expressamente os individuais homogêneos. E, mais ainda, “sendo aplicada
apenas nos casos de direitos difusos e coletivos „stricto sensu‟, o artigo 16 somente poderá incidir
na hipótese de direito difuso, pois, sendo o direito coletivo „stricto sensu‟, a coisa julgada será
„ultra partes‟ e não „erga omnes‟ (artigo 103, II, do CDC)” (PIZZOL, p. 32).
Por fim, não se poderia admitir, em qualquer hipótese, a aplicação do art. 16 da Lei de
Ação Civil Pública às lides cujo objeto refira-se a relações de consumo, já que em tais casos a
regra aplicável seria o art. 103 do CDC e não a norma prevista na Lei 7347/85, em atendimento
ao princípio da especialidade.
Pelas razões expostas, não se pode admitir a restrição da coisa julgada erga omnes aos
limites da competência do órgão prolator da decisão, eis que a previsão implicaria flagrante
desrespeito às normas constitucionais relativas ao tema bem como à sistemática conferida à tutela
coletiva dos direitos.
5 CONCLUSÃO
A coisa julgada, entendida como a situação jurídica de imutabilidade do conteúdo de
uma decisão, possui regramento peculiar no âmbito da tutela coletiva dos direitos, diante da
patente inadequação das regras previstas no processo civil tradicional, para a efetiva tutela dos
direitos e interesses transindividuais e individuais homogêneos.
A tutela coletiva dos direitos é efetivada pelo microssistema de direito coletivo, tendo
por base o Código de Defesa do Consumidor e A Lei de Ação Civil Pública, bem como as demais
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leis destinadas à tutela de direitos coletivos. O CDC admite e conceitua três categorias de direitos
e interesses coletivos, divididos em essencialmente coletivos e acidentalmente coletivos.
Na primeira categoria incluem-se os direitos transindividuais, assim considerados os
direitos difusos e coletivos em sentido estrito, sendo que os difusos caracterizam-se pela natureza
indivisível bem como por serem de titularidade de pessoas indeterminadas e ligadas por
circunstâncias de fato, e os coletivos em sentido estrito, embora também indivisíveis, distinguem-
se por serem de titularidade de grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a
parte contrária por uma relação jurídica base.
Os direitos acidentalmente coletivos, ou seja, individuais homogêneos, por sua vez,
como sugere a própria denominação, são direitos divisíveis, caracterizados pela
determinabilidade do sujeito, no entanto, são ligados por uma origem comum.
De acordo com a categoria de direito, conclui-se que a coisa julgada no processo
coletivo opera-se secundum eventum litis, ou seja, a depender do resultado do processo.
Desta forma, sendo o direito difuso ou coletivo em sentido estrito, caso seja o processo
extinto sem julgamento do mérito, a sentença produzirá apenas coisa julgada formal, sendo
perfeitamente possível a propositura de nova ação idêntica à primeira. Se julgado procedente o
pedido, a sentença produzirá coisa julgada formal e material, beneficiando toda a coletividade ou
todo o grupo, classe ou categoria, sendo que na hipótese de direito difuso, será possível,
inclusive, àqueles que tenham sofrido dano individual promover liquidação e execução da
sentença coletiva, em razão do transporte in utilibus da coisa julgada.
Ainda, se julgado improcedente o pedido por insuficiência de provas, a sentença
produzirá coisa julgada formal e material, sendo, porém, possível a propositura de nova ação,
idêntica à primeira, por qualquer legitimado, desde que se valendo de nova prova, sem prejuízo
do ajuizamento de ações individuais pelos indivíduos que tenham sofrido dano individual em
razão do mesmo evento. Por sua vez, se o pedido for julgado improcedente com provas
suficientemente produzidas, a sentença produzirá coisa julgada formal e material, impedindo a
propositura de nova ação coletiva, sem, contudo, prejudicar os indivíduos que poderão também
propor suas ações individuais.
No que tange aos direitos individuais homogêneos, se o processo for extinto sem
julgamento do mérito, verifica-se que a sentença produzirá apenas coisa julgada formal, sendo
perfeitamente possível a propositura de nova ação idêntica à primeira e, caso seja julgado
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procedente, a sentença produzirá coisa julgada formal e material, beneficiando todos os
indivíduos unidos pela origem comum. Caso, porém, seja o pedido julgado improcedente com ou
sem provas suficientes, a sentença produzirá coisa julgada formal e material, impedindo a
propositura de nova ação coletiva, sem, contudo, prejudicar os indivíduos que poderão também
propor suas ações individuais, desde que não tenham ingressado no processo coletivo como
litisconsortes ou assistentes litisconsorciais, já que neste caso não tem aplicabilidade a coisa
julgada secundum eventum probationis.
Por fim, conclui-se que a restrição da coisa julgada erga omnes pretendida pelo Art. 16
da Lei 7347/85 não merece acolhida em nosso ordenamento jurídico, eis que maculada pelo vício
da inconstitucionalidade. Observa-se que além de confundir competência com o instituto da coisa
julgada, o legislador pátrio ofendeu flagrantemente diversas normas constitucionais relativas ao
tema bem como a sistemática do processo para a tutela coletiva dos direitos, inviabilizando,
assim, a efetividade de tal proteção, constitucionalmente assegurada.
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REFERÊNCIAS
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direitos. 2005. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio
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