Clinical diagnosis and treatment protocol of non-physio- logical...

5
247 Diagnóstico clínico e protocolo de tratamento do desgaste dental não fisiológico na sociedade contemporânea Clinical diagnosis and treatment protocol of non-physio- logical tooth wear in contemporary society RESUMO Os dentes humanos estão sujeitos a um desgaste fisiológico constante, durante toda a vida do indivíduo. Entretanto, esse desgaste pode ser acentuado por fatores extrínsecos e/ou intrínsecos, sendo resultado de três processos: abrasão (desgaste produzido pela interação entre os dentes e os outros materiais), atrição (desgaste através do contato do dente a dente) e erosão (dissolução do tecido duro por substâncias ácidas). Um processo adicional, abfração, pode potencializar o desgaste. As observações clínicas e experimentais mostram que os mecanismos individuais do desgaste atuam raramente sozinhos, embora interajam um com o outro. Essa interação parece ser o fator principal nos desgastes oclusal e cervical. Em função da natureza desse fenômeno, essas lesões podem gerar consequências catastróficas para a saúde bucal. Perdas de tecido podem resultar em sensibilidade, necrose pulpar, dor, perda de dimensão vertical e má aparência. O presente estudo visa orientar o cirurgião-dentista para estabelecer o diagnóstico diferencial entre os desgastes fisiológico e o anormal, esclarecendo o limite entre eles. Ainda, visa identificar sua etiologia e propor condutas clínicas preventivas e curativas. Nele, apresenta-se um caso clínico com lesões de erosão identificadas por meio do índice BEWE (Basic Erosive Wear Examination). KEYWORDS: Tooth Wear, Tooth e Erosion, Oral Health. Descritores: Desgaste dentário dos dentes; Erosão Den- tária; Saúde Bucal. ABSTRACT The human teeth are subject to wear a physiological constant throughout the life of the individual. However, this wear can be enhanced by extrinsic factors and / or intrinsic, being the result of three processes: abrasion (wear produced by interaction between teeth and other materials), attrition (wear through tooth to tooth contact) and erosion ( dissolution of hard tissue by acidic substances). An additional process, abfraction may promote wear. The clinical and experimental observations show that the individual wear mechanisms rarely act alone but interact with one another. This interaction, apparently, is the major factor in occlusal and cervi- cal wear. Depending on the nature of this phenomenon, such injuries can have catastrophic consequences for oral health. Tissue loss can result in sensitivity, pulp necrosis, pain, loss of vertical. This study aims to guide the dentist to establish differential diagnosis between physiological and abnormal wear clarifying the boun- dary between them. Still, identifying its etiology and clinical management propose preventive and curative. We presented a clinical case with erosion lesions identified by index bewe (Basic Erosive Wear Examination). Endereço para correspondência: Maria do Socorro Coelho Alves Avenida Avicênia - Condomínio Green Village/Casa 24 – Calhau São Luís - MA/Brasil CEP: 65071-370 E-mail: [email protected] INTRODUÇÃO A perda de substância dental mineralizada é um processo multifatorial e progressivo, resultante da combinação de abra- são, erosão, atrição e abfração, consideradas por muitos auto- res como desgaste dental 1,2 . Apresentam-se clinicamente, sob diversas formas, desde sulcos rasos ou profundos até defeitos sob forma de cunha, não ocorrendo isoladas e determinando manifestações clínicas variáveis 3,4 . Dessa forma, uma lesão não- -cariosa pode favorecer o desenvolvimento de outra, resultando de uma interação multifatorial, o que dificulta a identificação de uma única etiologia 5 . Desgaste dental relaciona-se, a hábitos ali- mentares e parafuncionais, ocupação, higiene oral, problemas sistêmicos e padrão oclusal 6, 3 . A atrição normal não requer tratamento, desde que a formação da dentina secundária e o processo eruptivo mante- nham o processo de desgaste em equilíbrio 7 . Normalmente, há uma perda de esmalte dental de 30µm por ano, causada pelos esforços mastigatórios 8 . A perda vertical do esmalte raramente excede 50µm por ano, sendo que o olho humano somente visu- aliza alterações a partir de 100µm 9 . Portanto, considerando que o desgaste fisiológico é mínimo, torna-se importante o profis- sional estar apto a reconhecer quando esta perda ultrapassa os limites da normalidade, comprometendo a estética do sorriso e/ ou função mastigatória. Entretanto, tal desgaste pode ser consi- derado patológico quando a destruição atinge um nível em que restaurações passam a ser indicadas 1,10 , pois o desgaste acentu- Relato de Caso/Case Report 1. Aluna de Pós-graduação Universidade Federal do Maranhão (UFMA) - São Luís - Brasil. 2. Aluna de Pós-graduação Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – Campinas - SP/Brasil. 3. Aluna de Graduação da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) - São Luís - MA/Brasil. 4. Professora Doutora de Prótese Dental da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) - São Luís - MA/Brasil. Maria do Socorro Coelho Alves 1 , Sílvia Carneiro de Lucena 2 , Stephanie Gomes Araujo 3 , Andréa Lúcia Almeida de Carvalho 4 Odontol. Clín.-Cient., Recife, 11 (3) 247-251, jul./set., 2012 www.cro-pe.org.br REVISTA_CRO_JUL.indd 247 22/10/2012 16:32:37

Transcript of Clinical diagnosis and treatment protocol of non-physio- logical...

Page 1: Clinical diagnosis and treatment protocol of non-physio- logical …revodonto.bvsalud.org/pdf/occ/v11n3/a14v11n3.pdf · 2015-03-18 · RESUMO Os dentes humanos estão sujeitos a um

247

Diagnóstico clínico e protocolo de tratamento do desgaste dental não fisiológico na sociedade contemporânea

Clinical diagnosis and treatment protocol of non-physio-logical tooth wear in contemporary society

RESUMO

Os dentes humanos estão sujeitos a um desgaste fisiológico constante, durante toda a vida do indivíduo. Entretanto, esse desgaste pode ser acentuado por fatores extrínsecos e/ou intrínsecos, sendo resultado de três processos: abrasão (desgaste produzido pela interação entre os dentes e os outros materiais), atrição (desgaste através do contato do dente a dente) e erosão (dissolução do tecido duro por substâncias ácidas). Um processo adicional, abfração, pode potencializar o desgaste. As observações clínicas e experimentais mostram que os mecanismos individuais do desgaste atuam raramente sozinhos, embora interajam um com o outro. Essa interação parece ser o fator principal nos desgastes oclusal e cervical. Em função da natureza desse fenômeno, essas lesões podem gerar consequências catastróficas para a saúde bucal. Perdas de tecido podem resultar em sensibilidade, necrose pulpar, dor, perda de dimensão vertical e má aparência.O presente estudo visa orientar o cirurgião-dentista para estabelecer o diagnóstico diferencial entre os desgastes fisiológico e o anormal, esclarecendo o limite entre eles. Ainda, visa identificar sua etiologia e propor condutas clínicas preventivas e curativas. Nele, apresenta-se um caso clínico com lesões de erosão identificadas por meio do índice BEWE (Basic Erosive Wear Examination).

KEYWORDS:

Tooth Wear, Tooth e Erosion, Oral Health.

Descritores:

Desgaste dentário dos dentes; Erosão Den-tária; Saúde Bucal.

ABSTRACT

The human teeth are subject to wear a physiological constant throughout the life of the individual. However, this wear can be enhanced by extrinsic factors and / or intrinsic, being the result of three processes: abrasion (wear produced by interaction between teeth and other materials), attrition (wear through tooth to tooth contact) and erosion ( dissolution of hard tissue by acidic substances). An additional process, abfraction may promote wear. The clinical and experimental observations show that the individual wear mechanisms rarely act alone but interact with one another. This interaction, apparently, is the major factor in occlusal and cervi-cal wear. Depending on the nature of this phenomenon, such injuries can have catastrophic consequences for oral health. Tissue loss can result in sensitivity, pulp necrosis, pain, loss of vertical. This study aims to guide the dentist to establish differential diagnosis between physiological and abnormal wear clarifying the boun-dary between them. Still, identifying its etiology and clinical management propose preventive and curative. We presented a clinical case with erosion lesions identified by index bewe (Basic Erosive Wear Examination).

Endereço para correspondência:Maria do Socorro Coelho AlvesAvenida Avicênia - Condomínio Green Village/Casa 24 – CalhauSão Luís - MA/Brasil CEP: 65071-370E-mail: [email protected]

INTRODUÇÃO

A perda de substância dental mineralizada é um processo multifatorial e progressivo, resultante da combinação de abra-são, erosão, atrição e abfração, consideradas por muitos auto-res como desgaste dental1,2. Apresentam-se clinicamente, sob diversas formas, desde sulcos rasos ou profundos até defeitos sob forma de cunha, não ocorrendo isoladas e determinando manifestações clínicas variáveis3,4. Dessa forma, uma lesão não--cariosa pode favorecer o desenvolvimento de outra, resultando de uma interação multifatorial, o que dificulta a identificação de uma única etiologia5. Desgaste dental relaciona-se, a hábitos ali-mentares e parafuncionais, ocupação, higiene oral, problemas

sistêmicos e padrão oclusal6, 3. A atrição normal não requer tratamento, desde que a

formação da dentina secundária e o processo eruptivo mante-nham o processo de desgaste em equilíbrio7. Normalmente, há uma perda de esmalte dental de 30µm por ano, causada pelos esforços mastigatórios8. A perda vertical do esmalte raramente excede 50µm por ano, sendo que o olho humano somente visu-aliza alterações a partir de 100µm9. Portanto, considerando que o desgaste fisiológico é mínimo, torna-se importante o profis-sional estar apto a reconhecer quando esta perda ultrapassa os limites da normalidade, comprometendo a estética do sorriso e/ou função mastigatória. Entretanto, tal desgaste pode ser consi-derado patológico quando a destruição atinge um nível em que restaurações passam a ser indicadas1,10, pois o desgaste acentu-

Relato de Caso/Case Report

1. Aluna de Pós-graduação Universidade Federal do Maranhão (UFMA) - São Luís - Brasil.2. Aluna de Pós-graduação Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – Campinas - SP/Brasil.3. Aluna de Graduação da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) - São Luís - MA/Brasil.4. Professora Doutora de Prótese Dental da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) - São Luís - MA/Brasil.

Maria do Socorro Coelho Alves1, Sílvia Carneiro de Lucena2, Stephanie Gomes Araujo3, Andréa Lúcia Almeida de Carvalho4

Odontol. Clín.-Cient., Recife, 11 (3) 247-251, jul./set., 2012www.cro-pe.org.br

REVISTA_CRO_JUL.indd 247 22/10/2012 16:32:37

Page 2: Clinical diagnosis and treatment protocol of non-physio- logical …revodonto.bvsalud.org/pdf/occ/v11n3/a14v11n3.pdf · 2015-03-18 · RESUMO Os dentes humanos estão sujeitos a um

248

ado pode, inclusive, levar à destruição total dos dentes10.Por se tratar de perda de estrutura dental com prevalência

variável, porém, elevada, faz-se necessário ao cirurgião-dentista reconhecer suas características clínicas3 e etiológicas a fi m de estabelecer critérios para diagnosticar precocemente e efetuar o melhor tratamento11.

ATRIÇÃO

É defi nida como o desgaste fi siológico do dente resultante do contato dente a dente durante a mastigação12. Ocorre nas su-perfícies incisal e oclusal e, algumas vezes, na superfície proximal4.

O número de contatos entre os dentes, que ocorrem nor-malmente durante a mastigação, numa dieta moderna, é prova-velmente insufi ciente para causar signifi cante atrição, mesmo se considerando o fato de a população atual ter uma maior perspec-tiva de vida1.

O desgaste dental que ocorre sob uma carga oclusal anor-mal não deve ser considerado como fi siológico, pois o desgaste está ocorrendo de forma mais rápida que os mecanismos fi sio-lógicos compensatórios13. Alguns pacientes apresentam hábi-tos parafuncionais, que podem estar relacionados a desgaste excessivo. Dentre esses hábitos, destaca-se o bruxismo, que é considerado uma das desordens mais prevalentes, complexas e destrutivas do sistema estomatognático, podendo levar a perdas signifi cativas de tecido dental, comprometendo o paciente esté-tica e funcionalmente14.

EROSÃO

Consiste na dissolução dos tecidos dentais mineralizados por um processo químico, sem o envolvimento bacteriano4. A lesão erosiva é o resultado físico de uma perda de tecido duro da superfície dental provocada por ácido e/ou quelantes15.

Os principais fatores etiológicos da erosão dental subdivi-dem-se em extrínsecos e intrínsecos. Os extrínsecos referem-se aos ácidos de origem exógena, a saber, medicamentos (vitamina C e ácido acetilsalicílico), dieta (frutas e bebidas ácidas) e meio ambien-te (indústrias químicas e piscinas cloradas)16. As causas intrínsecas incluem os ácidos oriundos do estômago, especifi camenete o áci-do clorídrico presente na regurgitação e nos vômitos17.

A causa da erosão dental estaria também relacionada a outros fatores dependentes do indivíduo, como fl uxo salivar e capacidade tampão da saliva, não sendo a presença de ácidos na cavidade bucal condição sufi ciente para determinar a ocorrência de lesões erosivas18. Por isso, as análises do fl uxo e pH salivar são importantes, pois a redução na produção de saliva ou sua alteração em virtude da perimólise (erosão intrínseca) pode resultar em mu-danças na saúde bucal18-20.

ABRASÃO

É um desgaste físico causado por outros materiais, que não o dente1. A abrasão dental pode ser descrita como sendo um desgaste patológico, que resulta de um processo anormal, hábito ou instrumento abrasivo12.

Dependendo do seu agente causador, a abrasão pode se manifestar na borda incisal ou na região cervical. Hábitos deletérios, como o uso de cachimbo, onicofagia, colocação de objetos na boca, provocam chanfros localizados preferencial-mente na borda incisal. Entretanto, as lesões presentes em nível cervical são mais associadas à escovação. Diversos fatores estão

relacionados à abrasão causada por escovação: a técnica, os mé-todos rigorosos, o tempo e a frequência de escovação, a forma das cerdas e os dentifrícios abrasivos21,22 .

ABFRAÇÃO

Nesse tipo de lesão, ocorre perda patológica de tecido duro em decorrência de forças biomecânicas, que causam uma fl exão dental e consequente fadiga do esmalte e dentina em um local dis-tante do ponto de carga oclusal23,24.

Clinicamente, observa-se um aumento na ocorrência de le-sões de abfração. Em uma pesquisa, realizada com 106 pacientes, a abfração representou 37,7% das lesões, estando a maioria localiza-da em dentes posteriores11. Resultado semelhante foi encontrado após realização de um estudo epidemiológico no qual se observou que os dentes mais afetados foram os pré-molares5.

Algumas situações, como interferências oclusais, contatos prematuros e bruxismo, podem gerar forças oclusais que favore-cem a ocorrência desse tipo de desgaste3. Foi avaliado o efeito da variação da posição da força oclusal no estresse gerado na região cervical de segundos pré-molares inferiores. Os resultados mostra-ram que, quando a carga foi aplicada verticalmente ao dente, os menores valores de estresse foram encontrados, ao passo que as forças aplicadas no aspecto interno das cúspides vestibular e lin-gual produziram valores de estresse que excediam os valores limi-tes de fadiga do esmalte25.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Durante a realização do exame clínico, deve-se manter a su-perfície dental limpa, seca e sob boa iluminação, uma vez que isso facilitará a identifi cação e o diagnóstico das lesões12.

Clinicamente, a primeira manifestação da atrição é o apare-cimento de uma faceta lisa e polida em ponta de cúspide, crista ou bordo incisal4. Eventualmente essas cúspides tornam-se achatadas, as bordas incisais são encurtadas, e a dentina é exposta, havendo redução da resistência dental ao desgaste1.

Uma vez observada a presença de facetas de desgaste, é necessário se distinguir o padrão de desgaste causado pela atrição fi siológica durante a mastigação normal daquele causado pelo ran-ger de dentes durante o bruxismo. Para tanto, deverá ser solicitado ao paciente que posicione a mandíbula lateral e protusivamente para verifi cação do alinhamento destas, posto que a mastigação normal refl ete padrão de desgaste caracterizado por facetas em dentes antagônicos, que não se alinham, enquanto as facetas de desgaste apresentadas por pacientes bruxistas caracterizam-se pelo alinhamento com dentes antagonistas26,27(Figura 1).

Odontol. Clín.-Cient., Recife, 11 (3) 247-251, jul./set., 2012www.cro-pe.org.br

Diagnóstico clínico e protocolo de tratamento do desgaste dental não fi siológico na sociedade contemporâneaAlves MSC, et al.

Figura 1: Alinhamento das facetas de desgaste entre den-tes antagônicos com atrição patológica

REVISTA_CRO_JUL.indd 248 22/10/2012 16:32:37

Page 3: Clinical diagnosis and treatment protocol of non-physio- logical …revodonto.bvsalud.org/pdf/occ/v11n3/a14v11n3.pdf · 2015-03-18 · RESUMO Os dentes humanos estão sujeitos a um

249

A erosão apresenta-se, clinicamente, como um fenôme-no de superfície, caracterizado pela perda do brilho do esmal-te, resultando em lesões lisas, largas, rasas, sem ângulos níti-dos, sob forma de pires ou “U”, frequentemente localizada na face palatina dos dentes. Quando a dentina é atingida, pode causar sensibilidade ao frio, ao calor e à pressão osmótica. No caso de acometimento de dentes restaurados, as restaurações tornam-se proeminentes, projetando-se acima da superfície do esmalte dental4.

Na perimólise, dentes superiores e inferiores são afe-tados de modos diferentes. No arco superior, as superfícies palatinas e oclusais de todos os dentes são mais afetadas que as superfícies vestibulares, isso porque estas últimas não en-tram em contato com o ácido, pois são protegidas pelo efeito neutralizador da saliva proveniente das glândulas parótidas. Entretanto, no arco inferior, a erosão é limitada às superfícies vestibulares e oclusais de pré-molares e molares, uma vez que as superfícies linguais dos dentes inferiores são protegidas pela língua durante a regurgitação, além de serem banhadas pela saliva das glândulas submandibulares e sublinguais. A severidade da lesão de erosão intrínseca está diretamente re-lacionada à frequência e à duração da regurgitação, ao nível de acidez do suco gástrico e, também, aos hábitos de higiene, especialmente após os episódios de vômitos28.

A abrasão apresenta-se como lesão irregularmente ni-velada e côncava, localizada, preferencialmente, na superfície vestibular, na região cervical, estando normalmente associa-das à escovação. Entretanto, podem-se encontrar bordas inci-sais marcadas sob forma de chanfro, sendo importante estar atento ao autorrelato do paciente acerca de hábitos deleté-rios1.

As lesões de abfração apresentam-se como um defeito, sob forma de cunha, com bordas anguladas. Localizam-se na região cervical, preferencialmente na face vestibular. As lesões podem ser subgengivais, e os dentes afetados normalmente apresentam bom suporte periodontal. A abfração afeta tanto dentes subsequentes de um hemiarco quanto um único ele-mento dental isolado. Diversas pesquisas na literatura têm encontrado uma ocorrência maior dessas lesões em dentes posteriores, sendo a maior prevalência em pré-molares5,11,24.

As lesões de desgaste dentário podem ter etiologia mul-tifatorial e defeitos sob forma de cunha, podendo não ser uma característica particular da abfração, já que a abrasão experi-mental da escova dental produz, também, defeitos em forma de V4. Na prática, o que se observa é que os diferentes me-canismos de perda de tecido dental frequentemente ocorrem de forma combinada22. Diante disso, o profi ssional deve fazer uma avaliação criteriosa, a fi m de identifi car fatores auxiliares no diagnóstico da abfração. Por outro lado, a história dos há-bitos alimentares e hábitos de escovação associada à ausência de forças laterais de oclusão podem indicar a presença de ou-tros tipos de desgaste, como erosão e abrasão11,29.

TRATAMENTO DOS DESGASTES DENTÁRIOS

O tratamento para desgastes dentários pode variar desde acompanhamento até reabilitações bucais complexas, podendo tornar-se difícil e frequentemente oneroso. Em razão de as me-todologias encontradas na literatura para classifi cação e terapêu-tica do desgaste serem distintas, há difi culdade de se compara-rem os índices existentes para esse tipo de lesão, difi cultando a aplicabilidade clínica e gerando dúvidas ao cirurgião-dentista em relação à escolha do tratamento6.

Para fornecer um sistema de contabilização simples e re-

produtível das lesões, foi sugerido um protocolo de tratamento baseado no índice “Basic Erosive Wear Examination” BEWE (Exa-me Básico de Desgaste Erosivo), no qual os dentes são avaliados e classifi cados quanto à severidade do desgaste de dental ou da erosão dental em estudos da prevalência e incidência (Tabela 1)6.

Tabela 1. Critério para classifi cação de desgaste dental

Fonte: Bartlett et al.(2008)

O BEWE é um sistema de contabilização parcial, que registra a superfície mais severa afetada em um sextante. As superfícies vestibulares, oclusal e lingual/palatal, serão exami-nadas em todos os dentes de cada sextante, mas somente será registrado escore da superfície do dente que apresentar maior valor (Tabela 2)6.

Tabela 2. Índice básico para desgaste dental

Fonte: Adaptado de Bartlett et al.(2008)

Com base nos escores obtidos de cada sextante será fei-to o somatório de forma cumulativa, e, dessa forma, obter-se-á o escore total do nível de risco da lesão não cariosa para cada paciente 2. Baseado no escore total, classifi ca-se o paciente quanto ao nível de risco para desgaste dental (sem risco, baixo risco, médio risco e alto risco) e é proposto o protocolo de tra-tamento (Tabela 3)6.

Tabela 3. Nível de risco e conduta clínica para desgaste dental

CASO CLÍNICO

Paciente M.S.S., 49 anos, leucoderma, sexo feminino, co-merciante procurou a clínica de pós-graduação da Faculdade de Odontologia de Piracicaba – Unicamp, para substituição de coroas anteriores (Figura 2). Durante a anamnese, a paciente relatou hábito parafuncional de bruxismo. No exame clínico intrabucal, observaram-se lesões características de erosão na face palatina dos dentes anteriores superiores (Figura 3).

Odontol. Clín.-Cient., Recife, 11 (3) 247-251, jul./set., 2012www.cro-pe.org.br

Diagnóstico clínico e protocolo de tratamento do desgaste dental não fi siológico na sociedade contemporâneaAlves MSC, et al.

REVISTA_CRO_JUL.indd 249 22/10/2012 16:32:39

Page 4: Clinical diagnosis and treatment protocol of non-physio- logical …revodonto.bvsalud.org/pdf/occ/v11n3/a14v11n3.pdf · 2015-03-18 · RESUMO Os dentes humanos estão sujeitos a um

250

Figura 2: Situação inicial da paciente.

Figura 3: Face palatina dos dentes anteriores com lesões lisas, largas, rasas, em forma de “U” - erosão.

Quando a paciente foi questionada sobre distúrbios ali-mentares, negou sua ocorrência, porém, ao longo do tratamento, relatou que apresentava episódios frequentes de bulimia.

Para a correta escolha do tratamento, classifi caram-se as lesões no índice BEWE que apontou a paciente como sendo de médio risco, sugerindo avaliação da higiene oral e dieta, fl uoreta-ção e monitoramento da condição.

A paciente recebeu, então, implante na região correspon-dente ao elemento dental 11 e coroas anteriores11,21,22 por meio do “Sistema Procera” (Figura 4). Para o controle do bruxismo, foi confeccionada uma placa oclusal lisa nos dentes inferiores (Figu-ra 5); as lesões de erosão receberam aplicação tópica de fl úor, e a bulimia foi controlada durante o tratamento, mediante cons-cientização do paciente. A opção do uso da placa oclusal inferior visou evitar que, durante o seu uso, ocorressem danos às coroas anteriores cimentadas na paciente.

Figura 4: Coroas anteriores confeccionadas através do Sistema Procera .

Figura 5: Controle do hábito parafuncional de bruxismo por meio do uso noturno de placa oclusal lisa.

É importante observar que geralmente a perda de teci-do dental é resultado da ação combinada de mais de um fator etiológico1. No caso relatado, a paciente apresentava bruxis-mo e erosão simultaneamente, sendo que um fator acentua a ação do outro, pois a atrição patológica expõe dentina - mais suscetível à ação dos ácidos oriundos do estômago - e a ação química da erosão torna a estrutura dental mais suscetível ao desgaste pela parafunção. Dessa forma, o dentista deve estar preparado para identifi car as perdas patológicas de tecido dental, as suas características e diagnosticar sua etiologia, uma vez que o paciente geralmente não é consciente da presença de desgaste dental e procura o profi ssional para realizar outros tratamentos.

CONCLUSÃO

O desgaste dental pode agir separadamente ou em con-junto. Torna-se fundamental o profundo conhecimento acerca das características e manifestações clínicas para que o correto diagnóstico seja feito de forma precoce, possibilitando um tra-tamento mais conservador para o paciente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Bartlett D, Phillips K, Smith B. A difference in perspecti-ve – the North American and European Interpretations of Tooth Wwear. Int J Prosthodont. 1999; Sep-Oct;12(5):401-8.2. Smith WAJ, Marchan S, Rafeek RN. The prevalence and severity of non-carious cervical lesions in a group of pa-tients attending a university hospital in Trinidad. J Oral Rehabil. 2008 Feb;35(2):128-34.3. Grippo JO, Simring M, Schreiner S. Attrition, abra-sion, corrosion and abfraction revisited: a new pers-pective on tooth surface lesions. J Am Dent Assoc. 2004 Aug;135(8):1109-18.4. Litonjua LA, Andreana S, Bush PJ, Cohen RE. Tooth wear: attrition, erosion, and abrasion. Quintessence Int. 2003 Jun;34(6):435-46.5. Bernhardt O, Gesch D, Schwahn C, Mack F, Meyer G, John U, Kocher T. Epidemiological evaluation of the mul-tifactorial aetiology of abfractions. J Oral Rehabil. 2006 Jan;33(1):17-25.6. Bartlett, D; Ganss.C ; Lussi,A. Basic Erosive Wear Exami-nation (BEWE): a new scoring system for scientific and cli-nical needs. Clin Oral Investig. 2008 Mar;12 Suppl 1:S65-8 .

Odontol. Clín.-Cient., Recife, 11 (3) 247-251, jul./set., 2012www.cro-pe.org.br

Diagnóstico clínico e protocolo de tratamento do desgaste dental não fi siológico na sociedade contemporâneaAlves MSC, et al.

REVISTA_CRO_JUL.indd 250 22/10/2012 16:32:41

Page 5: Clinical diagnosis and treatment protocol of non-physio- logical …revodonto.bvsalud.org/pdf/occ/v11n3/a14v11n3.pdf · 2015-03-18 · RESUMO Os dentes humanos estão sujeitos a um

251

Recebido para publicação: 27/08/10Aceito para publicação: 20/12/10

7. Best JM. Dental treatment of a patient with severe at-trition of anterior teeth. J Conn State Dent Assoc. 1987 Jan;61(1):24-8.8. Christensen GJ. Destruction of human teeth. J Am Dent Assoc. 1999 Aug;130(8):1229-30.9. Teaford MF, Tylenda CA. A new approach to the study of tooth Wwear. J Dent Res. Mar: 1991 Mar; 70(3):204-207.10. Yip KH, Smales RJ, Kaidonis JA. Differential wear of te-eth and restorative materials: clinical implications. Int J Prosthodont. 2004 May-Jun;17(3):350-6.11. Oginni AO, Olusile AO, Udoye CI. Non-carious cervical lesions in a Nigerian population: abrasion or abfraction. Int Dent J. 2002 Aug;52(4):268-72.12. Regezi JA, Sciubba JJ. Oral Ppathology: Cclinical Ppa-thologic Ccorrelations. 3th ed. Philadelphia: Saunders; 1999. p.318-323.13. Russell MD. The distinction between fisiological and pathological attrition: a review. J Ir Dent Assoc. 1987; 33(1):23-31. 14. Yip KH, Chow TW, Chu FC. Rehabilitating a patient with bruxism-associated tooth tissue loss: a literature review and case report. Gen Dent. 2003 Jan-Feb;51(1):70-4.15. Fushida CE, Cury JA. Estudo in situ do efeito da fre-qüência de ingestão de Coca-Cola na erosão do esmalte--dentina e reversão pela saliva. Rev Odontol Univ São Pau-lo 1999; Apr./June; : 13(2):127-134.16. Enbom L, Magnusson T, Wall G. Oclusal wear in miners. Swed Dent J. 1986; 10(5):165-70.17. Cengiz S, Cengiz MI, Saraç YS. Dental erosion caused by gastroesophageal reflux disease: a case report. Cases J. 2009 Jul 22;2:8018.18. Silva JYB, Brancher JA, Duda JG, Losso EM. Mudanças do pH salivar em crianças após a ingestão de suco de fru-tas industrializado. RSBO. 2008; ago;. 5(2):7-11. 19. Gudmundsson K, Kristleifsson G, Theodors A, Holbrook WP.Tooth erosion, gastroesophageal reflux, and salivary buffer capacity. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod. 1995 Feb;79(2):185-9.20. Levine RS. Saliva: 1.The nature of saliva. Dent Update. Apr;1989;16(3):102-6.21. Macdonald E, North A, Maggio B, Sufi F, Mason S, Addy M, et al. Clinical Sstudy Iinvestigating Aabrasive Eeffects of Tthree Ttoothpastes and Wwater In Aan in situ Mmodel . J Dent. 2010 Jun;38(6):509-16.22. Addy M, Shellis RP. Interaction between attrition, abrasion and erosion in tooth wear. Monogr Oral Sci. 2006;20:17-31.23. Grippo JO. Noncarious cervical lesions: the decision to ignore or restore. J Esthet Dent. 1992; (4Suppl):55-64. 24. Vasudeva G, Bogra P. The effect of occlusal restoration and loading on the development of abfraction lesions: Aa finite element study. J Conserv Dent. 2008 Jul;11(3):117-20.25. Rees JS. The effect of variation in occlusal loading on the development of abfraction lesions: a finite element study. J Oral Rehabil. 2002 Feb;29(2):188-93.26. Attanasio R. An overview of bruxism and its manage-ment. Dent Clin North Am. 1997 Apr;41(2):229-41. 27. Rugh JD, Harlan J. Nocturnal bruxism and temporo-mandibular disorder. Adv Neurol. 1988;49:329-41.28. Imfeld T. Dental erosion. Definition, classification and links. Eur J Oral Sci. 1996 Apr;104(2 ( Pt 2)):151-5.29. Zero DT. Etiology of dental erosion – extrinsic factors. Eur J Oral Sci. 1996 Apr;104(2 ( Pt 2)):162-77.

Odontol. Clín.-Cient., Recife, 11 (3) 247-251, jul./set., 2012www.cro-pe.org.br

REVISTA_CRO_JUL.indd 251 22/10/2012 16:32:42