Claudio Weizmann
-
Upload
heilane-santos -
Category
Documents
-
view
264 -
download
0
Transcript of Claudio Weizmann
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
1/190
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
CLUDIO WEIZMANN
Educao Musical: Aprendendo com o Trabalho Social de
uma
Orquestra de Violes
So Paulo
2008
MUSICAL
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
2/190
2
CLUDIO WEIZMANN
Educao Musical: Aprendendo com o Trabalho Social de
uma
Orquestra de Violes
Orientadora: Prof. Dr. Maria da Graa Nicoletti
Mizukami
So Paulo
2008
MUSICAL
Dissertao apresentada Universidade
Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial
para a obteno do ttulo de Mestre em
Educao, Arte e Histria da Cultura.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
3/190
3
CLUDIO WEIZMANN
EDUCAO MUSICAL:
Aprendendo com o Trabalho Social de uma Orquestra de Violes
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________Prof. Dr Maria da Graa Nicoletti Mizukami Orientadora
Universidade Presbiteriana Mackenzie
____________________________________________________________Prof. Dr Ilza Zenker Leme Joly
Universidade Federal de So Carlos
_____________________________________________________________Prof. Dr. Norberto Stori
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Dissertao apresentada Universidade
Presbiteriana Mackenzie como requisito
parcial para a obteno do ttulo de Mestre
em Educao, Arte e Histria da Cultura.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
4/190
4
Precisamos de desafios para podermos romper os
obstculos e, para isso, devemos ser insistentes,
persistir, estudar, dedicarmos-nos com intensidade,
pedir ajuda, at que se consiga ser bem sucedido. A
persistncia um aprendizado e a vitria uma
conquista sobre si mesmo! (Flvia, aluna de 16 anos
da Orquestra Sinfonia do Cerrado).
Eu amo a msica e nunca vou abandonar esta veia
artstica. Gostaria de seguir outra rea, mas o saber
no ocupa espao (Tamara, aluna de 15 anos da
Orquestra Sinfonia do Cerrado).
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
5/190
5
Agradeo CAPES/PROSUP pela concesso da
bolsa de estudos no perodo de janeiro a junho
de 2008, e ao MACKPESQUISA/RESERVA pelo
apoio financeiro que viabilizaram a realizao
desta pesquisa.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
6/190
6
AGRADECIMENTOS
Professora Doutora Maria da Graa Nicoletti Mizukami, pela orientao,
amizade, pelas oportunidades de desenvolvimento profissional e pessoal, que com
diretrizes seguras e constante incentivo me aceitou e, com sua competncia, me levou
a concluir este trabalho e a criar novas perspectivas.
Aos Professores Doutores Ilza Zenker Leme Joly e Norberto Stori pelas valiosas
contribuies durante o processo de qualificao deste trabalho.
Ao programa de Ps-Graduao em Educao Arte e Histria da Cultura e todos
os seus Professores Doutores, pela formao proporcionada dentro de uma exemplar
proposta acadmica de interdisciplinaridade.
Ao Professor Doutor Arnaldo Doraya Contier pelas elucidaes conceituais e
metodolgicas, oferecidas na disciplina de Histria da Cultura deste programa de Ps-
Graduao e que contriburam determinantemente para os aspectos da Histria Cultural
desenvolvidos neste trabalho.
Orquestra Sinfonia do Cerrado e Associao Amigos da Cultura de
Niquelndia, e todos os seus alunos, monitores, diretores, funcionrios, pais, e
coordenadora Mrcia Alves Vila Nova, que realizam um trabalho educacional e humano
do mais alto gabarito e receberam esta pesquisa prestando auxlio e entusiasmo
inenarrveis.
Aos Professores Luciano Paulo Alves, James Silvrio Medrado Sobrinho, Diane
Alves Vieira, Joely Alves da Conceio, Mirian Lopes Guimares e Felipe Eugnio
Vinhalpela confiana, empenho e unio da equipe pedaggica da Orquestra Sinfonia
do Cerrado.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
7/190
7
Ao grupo de estudos e pesquisas dos professores capacitadores que atualmentecoordeno, composto pelos Bacharis, Compositores, Maestros e Professores Thales
Maestre, Rodolfo Alexandre de Oliveira, Paulo Frederico Teixeira, Flvio Henrique
Fevereiro Leite, Gabriel Nvia, Joo Luiz Pereira dos Santos, Juliana Castro, Phillipe
Antunes, Rafael Rodrigues Garcia e Emerson Pereira da Inveno in memorian, pelo
empenho, criatividade e colaboraes, sem as quais o meu trabalho como educador
musical ficaria diminudo, ou no mnimo, muito empobrecido.
Aos amigos Jos Carlos Bertoni, Eduardo Lima, Zmarqs e toda a turma do
mestrado pelas inumerveis colaboraes.
s Bibliotecas da Universidade Livre de Msica Tom Jobim, da Faculdade
Mozarteum de So Paulo, da Universidade Presbiteriana Mackenzie por disponibilizar
em seus acervos vrias das referncias bibliogrficas aqui pesquisadas.
Professora Mestra Janete de Andrade Sartori, pelos aconselhamentos que melevaram a buscar esta capacitao de ps-graduao.
Ao Lar das Crianas da Congregao Israelita Paulista que atravs de sua
Orquestra Jovem disponibilizou Congressos e Fruns para publicao do artigo
Responsabilidade Musical referente s atividades programadas deste trabalho.
Anglo American e suas empresas filiadas, atravs do seu presidente e seu ex-presidente Walter De Simoni e Pedro Paulo Batista e suas equipes, que muito mais do
que patrocinadores do projeto cultural aqui pesquisado, conhecem cada aluno, diretor e
professor num empenho pessoal e permanente zelo pela arte-educativa aqui descrita.
Aos meus pais, esposa e filha, Jos e Lydia, Anglica e Liandra pelo permanente
sorriso, persistente incentivo e infinito amor dedicados.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
8/190
8
RESUMO
O presente estudo mostra as possibilidades educacionais ainda pouco compreendidas
e exploradas no ensino musical, utilizando para isto os resultados do projeto scio-
cultural-musical denominado Orquestra Sinfonia do Cerrado. Este projeto foi
construdo nos princpios da prtica educacional crtico-reflexiva e estruturado nas
dinmicas do ensino coletivo na sala de aula em comunidades de aprendizagem,
criando as condies e credibilidade para um trabalho que atendesse s necessidades
sociais e culturais, respeitando a condio dos jovens e propondo transformaes sem
perder o foco na qualidade artstica. O profissionalismo, a clareza de objetivos e a
construo de linguagens e metodologias nortearam a prtica artstico-educativa,
influenciando o planejamento, o desenvolvimento, o repertrio e os resultados do
projeto, que tambm ecoam na vida familiar e social dos adolescentes. Esta prtica
determinou elevados valores de qualidade musical, auto-realizao e conscientizao
social e humanstica, democratizao e incluso cultural destes jovens de famlias debaixa renda que participam de uma Associao Cultural no interior de Gois. Esta
pesquisa mostra a complexidade tanto das aes do projeto cultural, que envolvem a
msica, a aula, o aluno, o professor e a sociedade, como da metodologia utilizada que
consegue abordar a multidirecionalidade terica necessria para a investigao
sincrnica dos fatores pedaggicos, histrico-culturais e dos saberes especficos
musicais.
Palavras-chave: msica e comunidade de aprendizagem, projeto cultural e
complexidade, prtica artstico-educativa, educao musical de adolescentes, ensino
coletivo-investigativo de instrumento.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
9/190
9
ABSTRACT
The present thesis seeks to examine the still little understood and under-explored
potential of music education, based on the analysis of the results of a socio-cultural
musical project, the Orquestra Sinfonia do Cerrado. This project was built around the
principles of a critical-reflective educational practice, and structured within the dynamics
of a collective teaching process pertinent to learning communities, establishing the
necessary conditions and credibility for work that could attend to social and cultural
necessities, with a respect for the peculiarities of the young students involved, yet
without abandoning a strong focus on artistic quality. A drive for professionalism, clarity
of goals, and the construction of languages and methodologies guided the artistic and
educational practice, orienting the planning, development, repertoire and results of the
project, which also had consequences over the social and family life of the participants.
The project resulted in highly elevated values of musical quality, self-accomplishment
and social and humanistic awareness of the teenaged students, as well as the political
and cultural empowerment of these low-income adolescents from an NGO based on thestate of Gois, Brazil. The research here reported shows the complexity of the cultural
project itself, which ties music, lessons, students, teachers and society together, as well
as the complexity of the methodology employed in order to deal with the theoretical
multidimensionality required in order to establish a synchronic investigation of
pedagogical, historical, and cultural factors, along with the specific musical knowledge
acted upon.
Keywords: music; communities of learning; cultural project; complexity; artistic
educational practice; music education of adolescents; collective teaching.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
10/190
10
LISTA DE ILUSTRAES
Quadro 1 Base de Conhecimento- Levantamento nosso feito com dois
grupos: 1-quinze graduandos de educao musical da Faculdade
Mozarteum de So Paulo entre 2006 e 2007 durante uma aula
que ministro da matria Instrumento Complementar I e II
oferecida aos estudantes do segundo ano. 2- Grupo de
trabalho e pesquisa composto por sete professores do Projeto
Orquestras Cidades
autoria nossa 27
Quadro 2 Grandes educadores musicais da primeira metade do sculo vintedescritos por Gainza (1998) 29
Quadro 3 Uma outra anlise musicalautoria nossa 40
Figura 1 Aluno iniciante do projeto Sinfonia do Cerrado foto Autoria nossa 36
Figura 2 Desenho de Semp disponvel emhttp://www.site-magister.com/bts/synthese1d.htm acessado em11/12/2007 37
Figura 3 Trecho de partitura de Carulli - Referncia na prpria pgina 41
Figura 4 Orquestra Sinfonia do Cerrado no altar do Santurio de Nossa
Senhora da Abadia do Muqum GO fotoautoria nossa 45
Figura 5 Alunos e coordenadores administrativos fotoautoria nossa 46
Figura 6 Aluna do projeto Sinfonia do Cerrado fotoautoria nossa 48
FigurA 7 Maestro com aluno da Sinfonia do Cerrado - fotoautoria nossa 54
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
11/190
11
Figura 8 Captura de imagem da filmagem em vdeo da Me da Htala
autoria nossa 56
Figura 9 A Htala dando entrevista equipe mvel de TV fotoautoria nossa__________________________________________57
Figura 10 Partitura de Asa BrancaUtilizada na metodologia do Projeto Sinfonia do Cerrado 61
Figura 11 Partitura de Mulher RendeiraUtilizada na metodologia do Projeto Sinfonia do Cerrado 62
Figura 12 Partitura de UirapuruUtilizada na metodologia do Projeto Sinfonia do Cerrado 63
Figura 13 Partitura de Foi Boto SinhUtilizada na metodologia do Projeto Sinfonia do Cerrado 64
Figura 14 - Partitura de Habanera (violo I)Utilizada na metodologia do Projeto Sinfonia do Cerrado 65
.Figura 15 Partitura de Habanera (violo 4)
Utilizada na metodologia do Projeto Sinfonia do Cerrado 66
Figura 16 Partitura de Tico-Tico no FubUtilizada na metodologia do Sinfonia do Cerrado 67
Figura 17 leo sobre tela O VioleiroDisponvel em www.cecac.org.br acesso em: 23/02/2008 73
Figura 18 Cartaz publicitrio da Casa EdisonDisponvel em cifrantiga.wordpress.com acesso em: 10/03/2008 82
Figura 19 Foto de Francisco Alves
Disponvel em www.radioclaret.com.br acesso em: 12/05/2008 85
Figura 20 Foto de GarotoDisponvel em brazilianguitar.net acesso em: 12/05/2008 88
Figura 21 Foto de Joo GilbertoDisponvel em www2.uol.com.br acesso em: 15/03/2008 92
Figura 22 Foto de Caetano VelosoDisponvel em marciadistasio.com acesso em: 15/03/2008 94
.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
12/190
12
Figura 23 Foto de Gilberto Gil
Disponvel em www.klickeducacao.com.bracesso em: 15/03/2008 95
Figura 24 Foto de Roberto CarlosDisponvel em onne.com.br acesso em: 15/03/2008 96
Quadro 4 Dimenses e contextos autoria nossa 113
Tabela 1 Comparativo da aula individual com a aula coletivaautoria nossa 171
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
13/190
13
SUMRIO
1 Introduo 15
2. Educao Musical Rudos, descompassos e desafinaes 20
2.1 A harmonizao (e a humanizao) das teorias 27
2.2 Afinando os discursos o msico e o professor de msica 33
2.3 O dueto professor-aluno 36
2.4 Uma outra anlise musical 40
3 O Palco da pesquisa 45
3.1 O lcus e os primeiros passos 46
3.2 Fatores scio-culturais 48
3.3 O ensino coletivo investigativo (uma sinfonia afinadssima) 52
3.4 A Me da Htala 56
3.5 As msicas 60
3.6 O instrumento genuinamente brasileiro 70
3.6.1 Uma guitarra rf 73
3.6.2 Nosso violo ganha o mundo, mas continua mundano no Brasil 79
3.6.3 O Brasil continua aprendendo violo de um jeito diferente 82
3.6.4 O violo apaixonado e apaixonante da Era do Rdio 85
3.6.5 Os dez anos onde tudo aconteceu 92
3.7 Os solistas do nosso grande concerto 101
4 Sopranos, Contraltos, Tenores e Baixos (a voz dos pesquisados) 104
4.1 A voz dos pais e diretores 106
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
14/190
14
4.2 A voz dos alunos iniciantes 118
4.3 A voz dos alunos intermedirios 126
4.4 A voz dos alunos avanados 138
4.5 A voz dos professores 148
5 Consideraes finais 160
5.1 Sobre a feitura deste relatrio 161
5.2 Sobre os projetos sociais 163
5.3 Sobre a msica nas escolas 164
5.4 Sobre os professores de msica 169
5.5 Sobre as futuras pesquisas 169
5.6 Sobre as escolas de msica 171
5.7 Sobre a metodologia de ensino 172
5.8 Sobre a metodologia de pesquisa 176
5.9 Sobre o autor 179
6 Referncias bibliogrficas 181
APNDICE A Instrumentos da coleta de dados da pesquisa de campo 185
APNDICE B Arquivos em pastas do DVD que acompanha este trabalho 189
ANEXO A Poesia de Vincius de Moraes 190
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
15/190
15
1 Introduo
Este estudo objetiva analisar os processos de ensino-aprendizagem de msica
que ocorrem no Projeto Cultural Orquestras Cidades1 implantado em trs cidades do
Estado de Gois. O recorte da pesquisa enfoca a cidade de Niquelndia-GO que
atravs do projeto mencionado criou a Orquestra Jovem e o curso de formao
instrumental denominados Sinfonia do Cerrado.
O curso de formao instrumental em violo atende 230 pr-adolescentes e
adolescentes entre 10 e 17 anos de idade, tendo como critrio seletivo o
socioeconmico voltado para famlias com renda de at dois salrios mnimos.
Os alunos so divididos em classes dos nveis iniciante, intermedirio e
avanado, que recebem duas aulas semanais ministradas em horrio extra-escolar por
quatro jovens professores da cidade. Os professores fazem um curso de capacitao
contnua com professores especializados, que visitam a cidade uma vez por ms e
ministram uma oficina intensiva de trs dias, mesclando encontros com os professores,
professores e alunos e ensaio geral da orquestra. Os professores especializados
tambm fazem uma tutoria semanal via e.mail, telefone e correio com envio departituras, livros e textos.
A orquestra formada pelos alunos tem uma intensa atividade pedaggica, um
ensaio geral semanal e exerce permanente atuao scio-cultural, apresentando-se em
entidades, escolas locais, eventos cvicos, religiosos e folclricos.
O texto apresenta elementos e circunstncias que influenciam diretamente a
qualidade do ensino e, em termos tericos e metodolgicos, esto ausentes da
pedagogia tradicional da msica, bem como de trabalhos e pesquisas mais recentes,que no se aprofundam nas entranhas e nas problemticas sociais e culturais o
suficiente para garantir a democratizao real do ensino musical e sincronicamente a
qualidade artstica oriunda desta democratizao2.
1Projeto Orquestras Cidades est inscrito no MINC sob o(s) PRONAC: 02-0687/2004; 03-6119/2005;05-5227/2006; 06-10513/2007, disponveis para consulta no sitehttp://www.cultura.gov.br/apoio_a_projetos/lei_rouanet/acesso em: 23/11/2007.2O conceito de democratizao na educao aqui abordado refere-se ao de trs autores: 1) educarpara a formao reflexa e crtica, e a luta pela justia social de Freire 2) dar voz aos alunos de diferentesorigens tnicas, culturais e sociais de Zeichner 3) educar atravs da formao de Comunidades de
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
16/190
16
Chega-se a esta concluso no momento de vida onde h um acumulo de vasta
vivncia como pedagogo musical e maestro, que abrange desde as mais renomadasinstituies de ensino musical de So Paulo at o sistema prisional de recuperao de
adolescentes.
Como no foram encontradas na bibliografia da pedagogia musical e nos
trabalhos acadmicos as teorias que dessem conta de questes diversas de ensino,
procuraram-se esses enunciados em outras reas de conhecimento para trazer novas
leituras conceituais ao meu cotidiano profissional. Foram encontradas essas fontes na
rea da Educao, e este encontro levou aos questionamentos:
Por que, no termo Educao Musical, a palavra Educao no caminha na
mesma direo e sentido da palavra Musical na dimenso pedaggica da msica?
Por que aquilo que se l nos autores da educao no aparece em muitos
meios, planejamentos e metodologias do ensino musical, se, afinal, os educandos so
os mesmos?
Por que os professores que se aplicam aos processos mais humanos continuam
a ser tratados como especiais, intuitivos ou idealistas, se existe uma fundamentao
terica para as aes de construo de novos conhecimentos, da afetividade e darealizao humana no cotidiano da sala de aula?
Para responder a estas questes e mostrar as possibilidades do pensar
educacionalmente em msica, no momento histrico em que a sociedade se reorganiza
a largos passos em busca de novas abordagens do conhecimento, mostrar-se- o
trabalho realizado na Cidade de Niquelndia, atravs de dados pr-coletados,
entrevistas e relatos, e tambm de uma discusso metodolgica para a abordagem
adequada da pesquisa.
Este um estudo sobre a prtica pedaggico-musical de uma Orquestra de
Violes numa ONG da cidade de Niquelndia GO, com uma descrio dos fluxos
multidimensionais do processo de ensino-aprendizagem, dos planejamentos, das
crenas e prticas, repertrios e aes artsticas do projeto.
Aprendizagem, ou seja, processo de ensino-aprendizagem coletivo de Lipman, tanto na dimensoqualitativa das comunidades de investigao, quanto na abertura de maior nmero de oportunidades deacesso ao estudo e para todos.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
17/190
17
Com isso, puderam-se evidenciar questes que ainda passam desapercebidas,
tanto pelos msicos quanto pelos profissionais da educao, e disponibilizar conceitosque colaboraram no desencadeamento de novas teorias, por vezes criadas pelos
prprios professores em suas aes de ensino musical, atravs do rigor cientfico de
uma investigao complexa: educacional musical cultural.
Acredita-se que, ao final deste relatrio, ser possvel estabelecer parmetros,
conceitos, teorias e metodologias que consigam esclarecer ou apontar todas as
relaes que envolvem e so envolvidas pelo processo de ensino-aprendizagem
musical.
Espera-se que esta pesquisa sirva aos jovens professores no trabalho prtico
com seus alunos, na construo de planejamentos mais humanos e contemporneos e
no enfrentamento das adversidades que surgem no momento em que esses
professores preocupam-se com novas formas de pensar e agir e passam por profundos
dilemas e transformaes nos seus trabalhos em no nosso mundo.
Este relatrio composto da seguinte forma: O Captulo 1. Introduo,
contextualiza, justifica e aponta as questes de pesquisa.
No captulo 2., Rudos, descompassos e desafinaes, concatenam-se os
processos pessoais que levaram questo de pesquisa com autores afins, mostrando
a percepo das principais problemticas e inadequaes dos planejamentos nas
instituies de ensino musical, como as pontes podem ser aproveitadas, a importncia
do foco no ser humano e no nos contedos e no virtuosismo a qualquer custo.
Tambm so apontadas as deficincias e limitaes dos mtodos de ensino musical e asuperficialidade do ensino de msica nas escolas formais e nos trabalhos ditos sociais.
Mostra-se em 2.1. a Harmonizao (e a humanizao) das teorias, a
necessidade dos entrelaamentos das teorias que vo alm das especificidades da
msica e dos discursos dos pedagogos musicais, atravs dos eixos de conhecimento
que aparecem no cotidiano da sala de aula.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
18/190
18
Em 2.2., Afinando os discursos, (o msico e o professor de msica) apontam-se
as diferenas entre o profissional professor e o profissional msico, e a distino deabordagem formativa quando o foco o aluno e no a nfase no virtuosismo. Tambm
mencionam-se alguns cuidados de abordagem nas relaes professor-aluno.
No item 2.3., O dueto professor aluno, examinam-se as sensibilidades iniciais
do contato entre o mundo do aluno e os mundos da msica e do professor.
Em 2.4., Uma outra anlise musical, procura-se evidenciar os enfoques dados
pelo pedagogo musical quando da escolha ou de uma composio onde o principal
objetivo o passo necessrio e possvel para os alunos iniciantes. O tema musical
serve de elemento intermedirio e motivador, sem reducionismo, sem a primazia das
questes estticas que aparecem progressiva e multidimensionalmente durante o
processo de ensino-aprendizagem.
Enuncia-se o princpio de que a pedagogia trata do aluno inapto e a importncia
de investigar os elos culturais e as origens dos alunos que ainda no despertaram
totalmente para o estudo pleno da msica. Mostra-se que o pedagogo musical acreditana evoluo de todos e de cada aluno.
No captulo 3., O Palco da pesquisa, h uma aproximao gradual do lcus, do
contexto, das famlias, do ambiente e do nosso ator principal: o aluno. Aproximando
ainda mais, so mostrados detalhes dos instrumentos de estudo deste aluno: as
partituras e o violo. Descrevem-se os dados de um estudo exploratrio e um
diagnstico que detecta a presena de fortes fatores humanos, sociais e culturais emtorno, e em conjunto, com os fatores musicais e pedaggicos.
Em 3.1., O Lcus e os primeiros passos, aparece a Cidade de Niquelndia e
como surgiu ali o Projeto Sinfonia do Cerrado.
Em 3.2., Fatores Scio-culturais, explica-se o porque da escolha de
Niquelndia em funo das manifestaes culturais populares oriundas das diferentes
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
19/190
19
etnias que compem a sua populao e a importncia deste conhecimento por parte do
professor. Tambm mostra-se como isto incide nas questes pedaggicas musicais.Em 3.3., O ensino coletivo investigativo (uma sinfonia afinadssima), mostra-se
como e porque da opo pelo ensino coletivo e se esclarece qual a concepo de
ensino coletivo adotada pelo projeto. Evidencia-se que o ambiente investigativo criado
nas salas de aula favorecem um alto grau de desenvolvimento musical e cultural do
aluno, ao mesmo tempo em que impede avaliaes precipitadas do aluno que tem mais
dificuldades. Tambm aparecem as formas de como uns colaboram com os outros
mediados pelo professor.
Em 3.4., A me da Htala, transcreve-se o depoimento de uma me que
expressa suas alegrias, suas dificuldades, suas dvidas em relao aos filhos que
estudam no projeto Sinfonia do Cerrado. A maioria das questes abordadas neste texto
se revela neste depoimento numa amplitude que vai desde as metas da ONU para a
educao do sculo vinte e um at a simplicidade das primeiras msicas que a filha
tocou, exemplificadas em 3.5. as msicas. Mostra-se tambm a importncia do violo
na msica, na sociedade e no projeto cultural em 3.6. O instrumento genuinamente
brasileiro.
No Captulo 4., Sopranos, contraltos, tenores e baixos (a voz dos pesquisados),
h o registro analisado da pesquisa de campo realizada atravs de entrevistas com os
principais atores da Orquestra Sinfonia do Cerrado. Essas entrevistas foram realizadas
em cinco Rodas de Conversa, num formato metodolgico muito coerente com as aes
coletivas do projeto cultural em foco.
No Captulo 5. Consideraes finais esto as concluses e as possveis
contribuies.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
20/190
20
2 Rudos, descompassos e desafinaes
A experincia educacional de vinte e cinco anos, no ensino de instrumento musical
para pr-adolescentes e adolescentes, mostrou necessidades e apresentou desafios
para pesquisar, dominar e aplicar saberes que vo muito alm dos aspectos inerentes
ao contedo especfico, da prtica e da teoria musical.
Percebeu-se desde as primeiras aes de ensino que surgiam situaes, na
prtica das aulas, onde a msica tocada e os estudos dos alunos eram influenciados
por outros fatores, tais como: a amizade, o aprendizado com o outro, as experinciasextra-aula trazidas por cada um, o mpeto de conseguir fazer cada vez melhor para o
professor e para a classe, a vontade de ser reconhecido por algo belo que conseguiu
fazer por conta prpria, a conquista e a alegria de conseguir fazer, a paixo pelo violo,
o exemplo do professor.
As escolhas dos repertrios tambm revelaram influncias significativas nessas
inter-retroaes pedaggicas, principalmente manifestadas pelo encantamento e
motivao, nas dimenses do querer fazer e do conseguir fazer. comum o alunodeclarar: eu gosto desta msica, porque esta eu sei! Ou ainda quando uma aluna sai da
aula cantarolando e danando aquela melodia pelos corredores.
No desempenho da profisso de professor de msica, a primeira experincia
ocorreu dentro de um trabalho social, gratuito e instalado no anfiteatro de uma escola
pblica municipal3, onde foi possvel vivenciar e constatar, desde o incio, a imensa
fora qualitativa do ensino coletivo, contradizendo o paradigma tradicional que institui a
aula individual de instrumento musical como a nica possibilidade de pleno domnio
tcnico-musical.
A concluso inicial foi de que essas situaes, que podem-se chamar situaes
humanas, surgiam no cotidiano dos trabalhos com a msica, pois se lidava diretamente
com a sensibilidade, o mstico e a cultura no seu aspecto mais direto: pessoal, familiar,
religioso, da coletividade mais prxima e da mais distante. Ou seja, num certo momento
3Escola Municipal de Primeiro e Segundo Graus 1 de Maio: Guaruj, So Paulo, 1984.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
21/190
21
cabia a suposio de que a msica, em si, teria este poder intrnseco. Swanwick (2003)
atribui este poder caracterstica metafrica da msica.
Existe uma mudana metafrica que caminha para alm dos materiaisescutados como se tivessem forma expressiva e dos gestosrealinhados como se tivessem uma existncia independente. Estatransmutao desperta o forte sentido de significncia, tofreqentemente notado por aqueles que valoram a msica [...] mediantetais experincias ideais, desenvolvemos sensibilidade para aprender oser de outras pessoas, a excelncia da forma, o estilo de perodoshistricos distantes, e a essncia de outras civilizaes (p.32).
Gainza (1988) tambm chama a ateno para este conceito fundamental dapedagogia musical.
Tanto a receptividade como a capacidade projetiva mediante e atravsda msica supe a existncia de vnculos positivos entre um indivduo eos fenmenos musicais. [...] Uma vez assegurado o vnculo, a msicafar por si s grande parte do trabalho de musicalizao, penetrando nohomem, rompendo barreiras de todo tipo, abrindo canais de expresso ecomunicao em nvel psicofsico, induzindo atravs de suas prpriasestruturas internas, modificaes significativas (p.101).
A participao ativa do sujeito no ato da musicalizao no mobilizaapenas aspectos mentais conscientes que conduzem a uma apreciaoobjetiva da msica, mas tambm uma gama ampla e difusa desentimentos e tendncias pessoais. Por esse motivo a msica , para aspessoas, alm do objeto sonoro, concreto, especfico e autnomo,tambm aquilo que simboliza, representa ou evoca (p.34).
Notou-se, num segundo momento e depois de decorridos dez anos iniciais, que o
aproveitamento e a dinamizao das situaes humanas resultavam em um
engajamento maior dos alunos com as propostas do curso, e tambm interferiam de
forma altamente positiva nos aspectos de qualidade, quantidade, tempo de
permanncia ou menor desistncia, projees de futuro referentes busca de
universidades e do profissionalismo na rea da msica.
Apesar de a prtica pedaggica citada poder ser considerada bem sucedida e
gerar expressivos resultados, havia uma problemtica nas instituies e escolas que
abrigavam os cursos: as teorias e planejamentos no conseguiam identificar e
responder dentro dos objetivos, contedos, estratgias e avaliaes s muitas
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
22/190
22
situaes de carter humano e pessoal dos alunos, dos professores e do ambiente de
ensino-aprendizagem enquanto meio criativo de novas propostas.Dentro da dinmica das aulas surgiam iniciativas inesperadas que no estavam
previstas no planejamento. Por exemplo: a idia de formar uma orquestra de violes,
tocar uma msica sugerida pelos alunos ou por um pai, ou ainda por um funcionrio,
incluir um flautista que irmo de um aluno.
Essas situaes de ensino surgem tanto dos desafios propostos, quanto pelas
interaes nos processos de aprendizagem musical que se dimensionam, para alm
dos contedos especficos do ensino musical. No processo da aprendizagem
evidenciou-se tambm que cada aluno aprende de uma maneira e evolui por diferentes
caminhos, trazendo diferentes experincias. Uns aprendem com os outros e o grupo
forma um sistema auto-regulado com identidade prpria e nica.
Foi exatamente a que surgiram os primeiros impasses. Como lidar com estas
questes inovadoras do trabalho pedaggico que surgem naqueles momentos
inesperados e como planejar o ensino musical de forma a valorizar o que nos mais
caro: a criatividade?
H um entendimento equivocado nas instituies de ensino musical conhecidas, eacredita-se que isto deva ocorrer em muitas outras, pois j h tempo o ensino do
instrumento musical tratado, planejado e avaliado sob a ptica do virtuosismo, do
talento inato, dos mtodos cognitivistas designativos e nas aulas individuais, ainda
alheios a muitos avanos e contribuies cientficas, educacionais sociolgicas e
comunicacionais correlatos, desenvolvidos no sculo vinte, ignorando necessidades
epistemolgicas mais prementes da nossa poca.
Gainza (1988) mostra que a viso da pedagogia musical tradicional contradiz oprprio sentido da educao que, por princpio, acredita na evoluo de todos.
[...] a pedagogia tradicional da msica contribuiu para a difuso , emface da aptido musical, de uma posio indefinida que dificulta econfunde ainda mais o panorama real da relao do indivduo com amsica. Em certos meios ainda se aceita, sem questionar, que osmsicos nascem, no se fazem e que, portanto, a aptido musicalrestringe-se a alguns seres privilegiados. Ento seria apenas porrevelao, e no por um ato de vontade, que se acederia msica, oque parece confirmar-se com a funo mgica destinada msica nas
comunidades primitivas (GAINZA, 1988, p.36).
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
23/190
23
As conseqncias do primitivismo e desatualizao dos muitos profissionais e
instituies de educao musical levam a profundas distores nos nveis: terico-conceitual que seguem o mtodo e a linearidade, filosfico que no leva em conta as
questes humanas, pois direcionado para o individualismo, no sentido de ter apenas
o indivduo como referncia de desenvolvimento pedaggico, e paradigmtico, pois no
reconhece o professor de msica como educador e sim como um msico que transmite
conhecimentos.
Estas distores disseminam conflitos organizativos e profissionais, pois no
permitem emergir novos planejamentose aes revitalizadoras atravs da cultura, com
sucessivas perdas para o indivduo, para a sociedade, para a escola e para o prprio
meio musical (MORIN, 2005, p.97).
Ficam ocultas tambm as prticas bem sucedidas de inmeros professores que
conseguem estabelecer relaes mais profundas com os alunos no que se refere s
escolhas do educando, influenciadas pela autoridade do conhecimento do educador,
pela afetividade, pelo exemplo de sua vida e principalmente por um projeto pedaggico
engajado, original ou audacioso.
Outro entrave a metodologia de ensino, pois o termo educao musical s aceito e pesquisado no mbito da musicalizao infantil, como se em outras idades no
fosse possvel uma aproximao da msica. A melhor idade, porm, para desenvolver
conscientizao e abstrao musical no a infncia e sim a adolescncia, pela prpria
capacidade de formular questionamentos e auto-organizao, o pr-adolescente sente
e pensa globalmente, apesar de no ter ainda conscincia das transformaes que j
comearam a se operar no seu interior (GAINZA,1988, p. 23).
Permanece tambm uma limitao que incide nos materiais didticos eplanejamentos lineares, focados apenas nos contedos aditivos do conhecimento
especfico; so pouco atraentes e estimulantes para os alunos. Os livros de partituras
ou solfejo no passam de releituras requentadas de segunda mo de coisas antigas,
eurocntricas e afastadas da nossa cultura. Alm disso, so compartimentados e
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
24/190
24
reducionistas4, isto , no dialogam com outras reas do conhecimento, mesmo em
relao cultura musical brasileira que reconhecidamente to rica.
O livro didtico deveria ser desafiador, vivo e estimulante para o aluno,conduzir investigao e pesquisa, rico na apresentao deexperincias jovens e no uma verso dessecada da experincia adulta,vibrar com o choque de idias e fazer os contedos irem ao encontrodas mentes das crianas e jovens (LIPMAN, 1995, p.333).
A nfase conteudista dos planejamentos das escolas de msica tambm no
permite que ocorra uma real capacitao profissional do aluno para o mercado de
trabalho atual, que se abre em trs grandes reas: pedagogia, terceiro setor e novas
tecnologias de informao e comunicao. Nessas reas exigemse saberes
diversificados, atuais, pedagogias dinmicas, expressividade e capacidade de trabalhar
em equipes heterogneas, com grande oportunidade de emprego para os futuros
profissionais da msica.
Como se no bastasse esta problemtica, h um outro cenrio alm das escolas
de msica onde surgiu a questo da qualidade do ensino: a msica nas escolas formais
e nos trabalhos sociais. No s a escola de msica que se fecha para uma amplitudeeducativa, mas as entidades educacionais tambm desprezam a qualidade musical.
notrio tambm que uma no dialogue com a outra.
H viso superficial dentro das instituies educacionais e entidades sociais de
que a educao musical serve de complemento educao formal. Faz-se comum a
confuso da rea musical com entretenimento, festejos ou atividade ocupacional, um
passatempo, uma subcultura5para a qual a escola messianicamente se oferece a abrir
um espao, ou pior, institui-se uma atividade para acalmar as crianas ou tir-las das
ruas, como bradam alguns projetos sociais.
A educao musical das escolas pode tornar-se um sistema fechadoquando deixa para trs ou pega os restos de idias e eventos do mundomais amplo.[...]...a contribuio da educao institucional para aeducao musical pessoal poder ser negligente e, inclusive, negativa.
4Morin define os contedos reducionistas como aqueles descontextualizados em relao s suas origens e a suaspossibilidades, onde o todo est separado da parte e a parte est separada do todo. Reducionismo o oposto deComplexidade (MORIN, 2005, p.13).5O conceito de subcultura para Swanwick (2003) de uma reduo das reais dimenses da cultura e no deve serentendido como a existncia de uma cultura que seja superior outra.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
25/190
25
[...] Uma conseqncia disto que os estudantes podem ter muito poucointeresse para a msica da escola, vendo-a como uma curiosa
subcultura musical (SWANWICK, 2003, p.113).
Dada a capacidade que a msica tem de agregar saberes e aes complexas,
pode-se supor que a escola pode encontrar na msica as possibilidades
transdisciplinares dos conhecimentos, e esses caminhos no se abrem atravs de
atividades paliativas e mornas. Assim foram transformados os muitos cursos de msica,
informtica, artesanato e a aula de artes.
Continuam vigentes as infinitas lacunas de uma falida compartimentao dos
saberes que hoje busca caminhos para se reencontrar com o humano, agora, e mais do
que nunca, em carter de urgncia, mediante os problemas humanitrios e planetrios.
Morin (2005) aponta esta problemtica iniciando um de seus textos com a frase de
Rousseau no seu livro Emlio: Nosso verdadeiro estudo o da condio humana.
O estudo da condio humana no depende apenas do ponto de vistadas cincias humanas. No depende apenas da reflexo filosfica e dasdescries literrias. Depende tambm das cincias naturais renovadas
e reunidas [...]. O que estas cincias fazem apresentar um tipo deconhecimento que organiza um saber anteriormente disperso ecompartimentado. Ressuscitam o mundo, a Terra, a Natureza noesque nunca deixaram de provocar o questionamento e a reflexo nahistria de nossa cultura e, de uma nova maneira, despertam questesfundamentais: o que o mundo, o que a nossa Terra. Elas nospermitem situar a condio humana no cosmo, na Terra, na vida(MORIN, 2005, p.35).
A escola depara-se com um grande desafio que no consegue prover: a
interdisciplinaridade, que relaciona disciplinas umas com as outras atravs de temas
transversais, e a transdisciplinaridade, que extingue as disciplinas e pensa todas
agregadas a sistemas complexos e sua relao com a vida e com o mundo, como a
Ecologia e o Ecossistema, agregando sentidos intelectuais-perceptivos aos contedos.
Hoje a compartimentao do conhecimento e a hiperespecializao profissional
so considerados como o principal problema de formao da nossa cultura e dos
nossos ncleos educacionais em relao s solues de questes globais,
humanitrias e ecolgicas que so transdisciplinares (MORIN, 2005, p.13).
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
26/190
26
Verifica-se, dentro da vivncia no ambiente escolar e dos processos de ensino-
aprendizagem, que a msica estabelece dilogos diretos com a sensibilidade, a tcnica,a histria, a sociologia, a matemtica, a religio, as temticas, o humanismo e a
criatividade. Esse potencial do ensino musical ainda subutilizado, e at negado, por
muitos diretores de escolas e faculdades em funo de uma mentalidade ainda
vinculada ao Mtodo de Descartes (1596-1650) e anlise, que acreditavam na
eficincia absoluta do conhecimento produzido pela separao e linearidade de
aprendizado de cada saber.
Por sua vez, as escolas de msica permanecem totalmente alheias s
contribuies da educao, produzindo um tipo de ensino artesanal, individualista,
elitista, duro, sectrio, idolatra e avaliao traumtica. Parece que vivem num mundo
parte, tanto que a msica est legalmente voltando ao currculo escolar no presente
momento, e em determinadas escolas de msica e faculdades no h nenhuma
discusso organizada ou informal sobre este cabal e gigantesco assunto.
Conforme o que foi brevemente exposto guisa de apontamento, h a
necessidade de uma investigao mais atenta e criteriosa que permita enxergar que a
questo da educao musicalpode, e tem que, ser repensada e recontextualizada paraatender a desafios complexos, desenvolver o entendimento das duas linguagens
educao e msica - e gerar procedimentos renovadores. Mais uma vez, na expresso
educao musical, parece que a palavra musical anda para um lado e a palavra
educaopara o outro.
Nesta investigao sobre uma prtica musical numa ONG da cidade de
Niquelndia aparecem com muita nitidez os vrios elementos que se agregam ao
ensino musical com uma descrio dos fluxos multidimensionais do processo deensino-aprendizagem, dos planejamentos, das crenas e prticas, repertrios, das
vidas dos professores e dos alunos.
Espera-se que ao mostrar que as diversas teorias coadunam-se fluentemente
dentro do Projeto Sinfonia do Cerrado, esta pesquisa sirva aos jovens professores nos
seus trabalhos prticos e na construo de planejamentos que explorem, sem receio,
todas as belezas e a plenitude, da educao musical.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
27/190
27
2.1 A Harmonizao (e a humanizao) das teorias
Antes de pesquisar os processos de ensino-aprendizagem, cabe um exame
dentro de um panorama geral e apenas para constatao, os eixos dos contedos que
aparecem ou influenciam o aprendizado dos alunos e as decises diretas do professor
durante uma aula de msica. Isto pode nos dar uma orientao sobre a complexidade e
as mltiplas dimenses da nossa pesquisa, sem que se precise com isso aprofundar
em cada um dos assuntos neste texto. A tabela a seguir foi montada perguntando a
uma classe de futuros professores de msica quais os assuntos e preocupaes
pedaggicas que aparecem numa aula6, seguindo o modelo de Shulman (2004, p.92):
Quadro 17
6Cf. em Lista de Ilustraes a autoria deste levantamento.7 Ilustraes do quadro 1, da esquerda para a direita: desenho annimo da renascena mostrando a mesa deperspectiva antes do domnio da geometria, retratando uma forma primitiva de desenhar um alade / foto deFrancisco Trrega (1902) / foto de Frank Sinatra e Tom Jobim gravando Garota de Ipanema (1962) / foto daExortao Cvica de Canto Orfenico no estdio do Vasco da Gama (Rio de Janeiro,1942).
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
28/190
28
Shulman, em suas pesquisas a partir da dcada de 1980, realiza amplos estudos
que buscam saber o que bons professores fazem que os distinguem dos professorescomuns. Sua contribuio fundamental quando mostra perspectivas terico-
metodolgicas para a investigao do processo de ensino-aprendizagem que formam a
Base de Conhecimento onde o raciocnio pedaggico envolve vrios aspectos e
conhecimentos mltiplos, simultneos e no limitados apenas pelo conhecimento
especfico e imutvel da matria curricular.
A base de conhecimento para o ensino consiste de um corpo de
compreenses, conhecimentos, habilidades e disposies que sonecessrios para que o professor possa propiciar processos de ensinare de aprender, em diferentes reas de conhecimento, nveis, contextos emodalidades de ensino. Essa base envolve conhecimentos de diferentesnaturezas, todos necessrios e indispensveis para a atuaoprofissional. mais limitada em cursos de formao inicial, e se tornamais aprofundada, diversificada e flexvel a partir da experinciaprofissional refletida e objetivada. No fixa e imutvel. Implicaconstruo contnua, j que muito ainda est para ser descoberto,inventado, criado. Para Shulman (1986,1987), a base de conhecimentose refere a um repertrio profissional que contm categorias deconhecimento que subjazem compreenso que o professor necessita
para promover aprendizagens dos alunos. Trata-se de um modelo quefoi desenvolvido considerando o conceito de ensino como profisso,envolvendo delimitao de campo de conhecimento que pode sersistematizado e partilhado com outros: os profissionais do ensinonecessitam de um corpo de conhecimento profissional codificado ecodificvel que os guie em suas decises quanto ao contedo e formade trat-lo em seus cursos e que abranja tanto o conhecimentopedaggico quanto conhecimento da matria.Shulman (1987) explicita vrias categorias dessa base de conhecimento(conhecimento de contedo especfico, conhecimento pedaggico geral,conhecimento do currculo, conhecimento pedaggico do contedo,conhecimento dos alunos e de suas caractersticas, conhecimentos dos
contextos educacionais, conhecimento dos fins, propsitos e valoreseducacionais) que podem ser agrupadas em: conhecimento do contedoespecfico, conhecimento pedaggico geral e conhecimento pedaggicodo contedo (MIZUKAMI, 2004).
A assuno de que os mltiplos saberes esto presentes no cotidiano das aes
do ensino musical j seria um fator importante para se avanar, porm isto implicaria
em reconhecer que existem diversos fluxos tericos imbricados neste processo e que
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
29/190
29
muitos desses itens listados no quadro 1 ficariam do lado de fora das principais teorias
da educao musical.Examinando tambm alguns dos autores mais influentes da educao musical
atravs de uma panormica oferecida por Gainza (1988, p.102):
A fim de compreender e caracterizar os traos maus, tpicos do que se poderiadenominar de educao musical contempornea, pode-se retornar s primeiras dcadas dopresente sculo (sculo vinte), quando comearam a ocorrer no campo da pedagogia musicaluma srie de transformaes que constituem uma verdadeira revoluo no campo das idias eda prtica pedaggico-musical. Tratou-se ento de recuperar a educao musical das crianas,
atravs da atividade e da experincia, da vivncia musical, que se achava extraviada no maismecnico e estril dos intelectualismos.Do estudo e desencadeamento do processo encarregar-se-iam destacados pedagogos
musicais em diferentes pases de Europa e Amrica do Norte. Entre as personalidades maisrepresentativas que decidiram e orientaram a reforma educativa musical, pode-se citar, emprimeiro lugar, o pedagogo suo Emile Jaques-Dalcroze (1865-1950) que com suasdescobertas abalou as bases tradicionais do ensino e aprendizagem do ritmo musical e damsica em geral.
A partir de 1940 assistiu-se ao nascimento e rpida difuso de importantes mtodosque contriburam para enriquecer e estabelecer ainda mais exaustivamente o panorama daprtica pedaggica. Entre esses se encontra o mtodo Martenot, compositor francs, inventordo instrumento de ondas que leva o seu nome, o qual incorpora importantes recursos para oensino do canto e da iniciao musical, baseados na psicologia infantil e nas tcnicas deconcentrao e relaxamento corporal.
O compositor alemo Carl Orffrealiza, mais tarde, decisivas contribuies no campoda rtmica, da criatividade de instrumentos musicais didticos e da integrao das diferentesmanifestaes artsticas e expressivas. O compositor e pedagogo hngaro Zoltn Kodlytenta e consegue generalizar o ensino musical em seu pas, aplicando a extraordinriavitalidade e o poder educativo do folclore musical.
O japons Shinichi Suzuki pesquisa com xito o ensino coletivo de um dosinstrumentos considerados menos aptos para a iniciao musical: o violino. Atravs de umaprtica pedaggica intensiva, que desenvolve em seu pas natal e que logo se difunde pornumerosos pases europeus e americanos, confirma a vigncia de sua tese sobre aimportncia que tem para a educao musical da criana a qualidade de seu ambiente sonoro,que centralizar na figura da me- que segundo se afirma -deve participar ativamente com acriana nas experincias e na aquisio de conhecimentos musicais.
Entre as personalidades pedaggicas mais destacadas da primeira metade do sculo
vinte deve-se citar tambm o filsofo e psicopedagogo musical Edgar Willems, de origembelga, que desenvolveu na Sua - ptria do eminente psiclogo contemporneo Jean Piaget -suas bases psicolgicas da educao musical, hoje amplamente difundida no mundo e bemconhecida particularmente na Amrica Latina.
Quadro 2
Estudou-se as metodologias e as prticas destes grandes mestres em leituras e
contatos interdisciplinares com professores que assim trabalham com as crianas e
tambm atravs de cursos e vivncias adquiridas. So utilizados nas aulas inmeros
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
30/190
30
idias e exerccios inspirados nessas metodologias, que alm de contriburem para a
prtica, tambm oferecem nveis elevados de percepo do processo pedaggico.Ao participar de cursos, oficinas e palestras ministrados por alguns dos mais
influentes educadores musicais atuais, foi possvel ter o privilgio de conviver
brevemente com Swamwik, Koelhuter, Shaffer e Gainza, que estudam a linguagem
metafrica, expressiva, filosfica e reflexiva da msica nas vivncias de aprendizagem.
Koelhuter trouxe contribuies para a escuta sensvel, a universalidade por um
caminho espiritualista e transcendental da msica, mostrando que a arte ocidental
serviu inicialmente s religies e depois cincia. Hoje a arte deve encontrar um
caminho que sirva humanidade.
Gainza preocupou-se em libertar os msicos e alunos dos bloqueios sofridos
pela sensibilidade e pela criao durante o estudo e durante a vida profissional. Esses
bloqueios so gerados principalmente nos processos pedaggicos que, segundo
Gainza, precisam passar por uma total atualizao. uma das mais expressivas
fundadoras das novas reas da psicopedagogia musical e da musicoterapia.
Schafer publicou vrios trabalhos originais destinados aos professores, nos quais
resume suas interessantssimas experincias educativas com jovens e crianas. Talvezo ttulo dessas obras consiga transmitir a atmosfera de inovao e criatividade que
prima em sua obra pedaggica: O compositor na Aula, Limpeza dos Ouvidos, A nova
Paisagem Sonora, Quando as Palavras Cantam, O rinoceronte na Aula, O Ouvido
Pensante, A Afinao do Mundo.
Apresenta-se aqui um enunciado dos conceitos e contribuies que estes
autores produziram de forma revolucionria, que so obrigatrios nas nossas aes
de ensino e guiam muitos momentos desta pesquisa.Falta, porm, educao musical uma teoria que permita que todos estes
conceitos e teorias sejam utilizados simultaneamente, no em mtodos fechados, em
nfases especficas, mas que tambm considere que os outros itens enumerados no
quadro 1 possam penetrar metodologicamente nas aulas de forma inteligvel e no
casual ou marginal.
O quadro 1 tambm mostra que os conhecimentos musicais especficos so
apenas a metade da base de conhecimentonecessria pedagogia musical.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
31/190
31
Carr, no seu livro Por una teoria para la Educacion, nos guia na superao
dessa dificuldade ao definir o que uma teoria e quando ela surge:
Numa regra geral, os problemas tericos aparecem quando algo no oque se cr que . Em outras palavras, surgem quando ocorrem feitosinexplicveis em termos das crenas e dos conhecimentos em uso, e oobjetivo da investigao terica consiste em superar estas discrepnciaselaborando novas teorias que garantam que o que era problemticodeixe de ser. [...] Os problemas educativos surgem quando as prticasutilizadas resultam de algum modo inadequadas com respeito a seu fim(CARR, 1996, p.108, traduo nossa).
Carr tambm nos mostra que a educao no pode utilizar-se apenas de uma
nica corrente terica e que as teorias mais interessantes e apropriadas surgem nas
prprias situaes educativas, pois o fracasso de uma prtica mostra tambm o
fracasso de uma teoria que acreditava-se ser eficaz nesta prtica.
Os professores so os melhores transmutadores tericos e produzemteorias baseadas nas suas crenas, vivncias e percepes pessoais.Os professores possuem mais hipteses sobre as suas prticas do queaqueles que os investigam (ZEICHNER, 1993, p.20).
As idias expostas, sob a ptica de uma abordagem contempornea da
educao, abrem a possibilidade de uma investigao cientfica sobre a educao
musical que permite a entrada das questes humanas e dos mltiplos conhecimentos
nas nossas salas de aula. Novos viticos se abrem para os planejamentos e projetos,
com construes que valorizam o trabalho e as capacidades dos alunos e
principalmente dos professores. Ao investigar valores e os mltiplos conhecimentos dos
atores do projeto podem aparecer alguns dilemas do pensar:
De cima para baixo X pensar com projetos dos professores
Linearidade X multidirecionalidade
Pensamento crtico-reflexivo X mtodo
Criatividade pedaggica X cognitivismo pedaggico
Pesquisas culturais X hegemonias culturais
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
32/190
32
H de se aproximar o estudo em direo s dimenses do professor e do aluno,
na busca de um levantamento mais sutil dos mltiplos saberes necessrios, para terxito nas diversas situaes de ensino e que possam contribuir com o desenvolvimento
dos alunos, principalmente nos momentos em que eles realmente esto necessitando e
buscando sua evoluo de vida atravs da msica noutras referncias da vivncia
musical, ou fala, e no exemplo do professor.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
33/190
33
2.2 Afinando os discursos o msico e o professor de msica
Difcil e complicada a tarefa do pedagogo. Um duplo compromisso perante o homem e perante sua cultura exige que viva no presente,compartilhando e compreendendo o mundo exterior e as inquietaesespirituais dos seus alunos, sem descuidar da sua ancestral misso,aquela que consiste em preservar a cultura, rastreando no passado asessncias vivas e resgatveis desse mesmo homem que hoje opreocupa (Violeta Hemsy de Gainza, 1982)
Uma faceta curiosa, e s vezes tenebrosa, do ensino musical e a da convivncia
de duas foras apaixonantes: O mito arrebatador da arte e o humano presente epersistente da educao.
A importncia do virtuosismodos referenciais artsticos e estticos ou o carter
integral e sem concesses dos saberes musicais especficos no ensino de arte
inegvel, porm muitas questes esto ausentes do discurso pedaggico musical
referentes aos percursos possveis para a coexistncia qualificada entre a arte e a
educao.
Todos os educadores tiveram suas vises sobre a educao transformadas no
sculo vinte, numa contextualizao histrica que passou por duas grandes guerras.
Novas propostas artsticas e epistemolgicas, da psicologia da educao
transdisciplinaridade, das novas tecnologias sociedade do conhecimento, dos bens
intangveis s polticas sociais, da indstria cultural ao jogo de poder internacional, da
responsabilidade social s necessidades brasileiras perante esses desafios.
A educao musical tambm no poderia ficar nos moldes mestre-discpulo do
ateli renascentista ou dos conservatrios estruturados no treinamento aditivo-
cognitivo do sculo dezenove. Os educadores musicais deixaram suas contribuies,como j relatado.
H, porm, uma pergunta que os atuais jovens professores de msica ainda tm
muita dificuldade de responder: voc um professor ou um msico? Na maioria das
vezes a resposta imediata : sou msico, que tambm ensina.
notrio que, enquanto o professor de msica no se identificar orgulhosamente
com a sua profisso, permanecero problemas para ele evidenciar para si mesmo as
suas origens e identidades, e tambm a profisso permanecer desvalorizada
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
34/190
34
institucionalmente e, por conseqncia, socialmente; e isto interessa esta
investigao. Para lidar com as origens dos alunos, o professor precisa conhecer ereconhecer as suas prprias origens, pois:
[...]uma das tarefas mais importantes da prtica educativo-crtica propiciar as condies em que os educandos em suas relaes uns comos outros e todos com o professor ou a professora ensaiam aexperincia profunda de assumir-se. Assumir-se como um ser social ehistrico como ser pensante, comunicante, transformador, criador,realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar.Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A
assuno de ns mesmos no significa a excluso dos outros. aoutredade do no eu, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade domeu eu.A questo da identidade cultural, de que fazem parte a dimensoindividual e a de classe dos educandos, cujo respeito absolutamentefundamental na prtica educativa progressista, problema que no podeser desprezado. Tem que ver diretamente com a assuno de ns
por ns mesmos. isso que o puro treinamento do professor no faz,perdendo-se e perdendo-o na estreita e pragmtica viso do processo.[...] s vezes, mal se imagina o que pode passar a representar na vidade um aluno um simples gesto do professor (FREIRE, 1996, p.41-42,grifo nosso).
A linguagem artstica tratada no seu mais alto nvel de busca, criao e pesquisa,
bem como a referncia dos grandes artistas objetivo imutvel. H, porm, de existir
uma cincia que dialogue diretamente com a evoluo do ser humano, que atue e
interfira entre o caos referencial e de oportunidades artsticas na vida cotidiana de
jovens e crianas, e a mgica porta do universo artstico, um procedimento que no
apenas sirva como elemento intermedirio de iniciao musical, mas entendido como
uma rea do conhecimento, com produo conceitual e construo estimulante,
transformadora e de pensamento criativo prprio: A EDUCAO MUSICAL.
Os discursos, os referenciais e os paradigmas do virtuose e do educador so
completamente diferentes.
O virtuose pensa as questes do belo artstico, a subjetividade do indivduo e o
contato com a obra, a anlise, a arte enquanto possibilidade cientfica e acadmica
esttica, a experincia esttica do contato com a obra de arte, o belo enquanto fator
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
35/190
35
cultural. Seus referenciais so os grandes artistas, grandes compositores e grandes
intrpretes.O educador celebra o ser humano, suas evolues mentais, fsicas e espirituais,
percebe as idades e o desenvolvimento, as fases sensrias, as diferenas de
personalidade e o encontro com a natureza e a espiritualidade, a escola como a grande
fonte humanizadora para a sociedade, o contato direto com a realidade do aluno, o
ensino musical ativo, que interfere no individual e no coletivo do aluno.
Cabe aqui o cuidado com estas diferenciaes, pois os objetivos dos
planejamentos destas duas linhas de pensamento tambm so bem distintos.
O objetivo pela ptica do virtuose a obra, a performance, a perfeio, a
sublimao, a esttica, o conceito.
O objetivo da educao desenvolvimento pleno do aluno.
A arte do virtuose a sua obra, performance e criao.
A arte do professor de msica tambm uma pessoa, um ser humano. Sua obra
o aluno.
O professor aqui apresentado sabe como valorizar a msica e como valorizar o
aluno, e isto o diferencia e diferencia o projeto cultural dos outros que no funcionam
nem musicalmente, nem humanamente.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
36/190
36
2.3 O Dueto professor-aluno
Quando um msico entra na sala de aula, ele no mais um msico, um
professor de msica! Um professor que tambm toca muito bem um instrumento, um
Educador Musical e no um pseudomusico que ensina para sobreviver.
[...] uma das maiores diferenas entre a pedagogia antiga e a moderna a capacidade ativa e a sensao de poder que o professor sente dianteda msica. Professor no que teve condies de lidar de outramaneira com a msica, mas sim aquele que ensina ativamente, na
prtica, como se fazem as coisas. [...] No questo de proceder como,por exemplo nas aulas tradicionais de ditado musical, onde o professorse limita a repetir passivamente cinco vezes seguidas a mesma frase,sem dar aos alunos alguma ajuda concreta (GAINZA, 1988, p.54).
O posicionamento do professor importante, no apenas perante a msica, mas
tambm em relao ao aluno que estar sob os seus cuidados, pois esta relao
imediata inicialmente mais forte do que a relao do aluno com a msica, em cujo
trajeto, ele ainda dar o primeiro passo.
O primeiro contato do aluno, de qualquer idade,
com o instrumento lembra muito mais uma cena
infantil, at manifestada pela sua postura corporal
respirao e olhar, do que uma obra de arte.
Ns mesmos j passamos por inmeros
momentos na vida onde isto ocorreu. Quando
aprendemos a andar, tomar gua no copo, comer com
talheres. O primeiro contato com o instrumento nada tem a ver com a experincia
esttica.
uma experincia fisiolgica.
O primeiro contato com o professor tambm definitivo. O professor pode parecer
um gigante assustador e o mtodo algo muito aborrecido. O que ensinado
provavelmente importa menos que o esprito com que comunicado e recebido...
Figura 1 foto de aluno iniciante doProjeto Sinfonia do Cerrado
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
37/190
37
[...] No h mais professores; apenas uma comunidade de aprendizes.[...] naturalmente o professor diferente, mais velho, mais experiente,mais calcificado. o rinoceronte na sala de aula, mas isso no significaque ele deva estar coberto com uma couraa blindada. O professorprecisa permanecer uma criana (grande), sensvel, vulnervel e abertoa mudanas. A melhor coisa que um professor pode fazer colocar nacabea dos alunos a centelha de um tema que a faa crescer, mesmo
que este crescimento tome formas imprevisveis. [...] Muitofreqentemente, o ensino responde a questes que ningum faz(SCHAFER, 1991, p.282).
No trabalho com o ensino de msica, muitos outros aspectos ligados
sensibilidade entram em questo na formao do aluno. No h apenas resultados no
aprendizado dos contedos especficos e no so possveis avaliaes precisas em
curto prazo. Podemos perceber apenas alguns indicadores do momento futuro da
orquestra e dos seus alunos.
Ao lecionar principalmente para crianas e adolescentes, a avaliao tambm
evolutiva, se d por vrios critrios. Alguns alunos logo manifestam grande talento e
engajamento com o estudo e trabalho artstico almejando seguir o curso superior de
msica, mas os resultados vo muito alm disso. Muitas crianas mudaram
decisivamente sua viso de mundo e de si mesmas, manifestadas em atitudes e relatos
surpreendentes dos pais e educadores. Muitos caminhos se abriram. Isto o que vale!
O virtuose bem-vindo, mas ovirtuose conseqncia e no objetivo.
Figura 2 desenho de Semp
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
38/190
38
Uma vez descrita a importncia do posicionamento do professor e seus
objetivos, falta aqui estudar um outro aspecto pouco presente nas investigaeseducacionais: as responsabilidades dos alunos, pois s existe evoluo se os
compromissos gerados forem mtuos. A maior parte dos discursos educativos recentes
coloca as responsabilidades do aprendizado nos professores, nos planejamentos, nas
teorias e nos organizadores do ensino. Esquece-se da parte do aluno a da famlia.
Assim como o professor deve saber responder a pergunta por que que
fazemos o que fazemos na sala de aula? (ZEICHNER, 1993, P. 19 e NVOA, 1995,
p.16), o aluno deve ser formado, desde o incio, para a auto-reflexo, pois este aspecto
que no pertence ao conhecimento especfico da matria curricular, influenciar em
todas as decises do aluno e por conseqncia guiar todo o seu trajeto de
aprendizado. um acordo, um compromisso, uma aposta.
Uma estratgia traz em si a conscincia da incerteza que vai enfrentar e,por isso mesmo, encerra uma aposta. [...] A aposta a integrao daincerteza f ou esperana. A aposta no est limitada aos jogos deazar ou aos empreendimentos perigosos. Ela diz respeito aosenvolvimentos fundamentais de nossas vidas (MORIN, 2005, p.62).
Esta concepo geradora de compromissos e responsabilidades incide na
definio do que esperamos dos nossos alunos na msica e na aquisio de
autonomia e futura cidadania. Queremos um aluno curioso, participante, envolvido,
pesquisador, comprometido. Repleto de alegria, generosidade e esperana. Um dos
principais ensinamentos para o aluno, que h momentos em que tudo depende
tambm do seu esforo.
nesta sutileza dos compromissos, responsabilidades, apostas, exemplos dodueto professor-aluno que reside um dos aspectos mais belos do que Freire (1996)
chama de uma esttica para a educao. E por isso, ...
[...] que ensinar no transferir contedo a ningum, assim comoaprender no memorizar o perfil do contedo transferido no discursodo professor. Ensinar e aprender tm que ver com o esforometodicamente crtico do professor de desvelar a compreenso de algoe com empenhoigualmente crtico do aluno de ir entrandocomo sujeito
em aprendizagem, no processo de desvelamento que o professor ou
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
39/190
39
professora deve deflagrar. Isso no tem nada que ver com transfernciade contedo e fala da dificuldade mas, ao mesmo tempo, da boniteza da
docncia e da deiscncia (p.118, grifo nosso).
Uma vez identificados, o professor e o aluno desta pesquisa, segue uma
apreciao sobre a msica que se ensina e a msica que se aprende.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
40/190
40
2.4 Uma outra anlise musical
A escolha de uma pea musical como contedo ocorre mediante uma anlise
prvia da obra e a empatia com o grupo. Esta anlise, porm no apenas musical.
Provavelmente os desajustes das partituras usadas no ensino musical causem
muitos problemas, no s pelas exigncias de ordem gramatical, mas sim do que e
de como est escrito.
Os Estudos para Violo de Carulli (que viveu entre 1770 e 1841) mereceriam
uma investigao mais aprofundada neste sentido, pois suas obras revelam nitidamentea preocupao pedaggica focada no aluno iniciante e nas dificuldades. Percebe-se em
sua obra a clara preocupao metodolgica que o autor estabelece no grau de
dificuldade de leitura e do manuseio do violo, com objetivos bem especficos para
cada fase e cada avano.
Quadro 3
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
41/190
41
Suas obras so, ao mesmo tempo, desafiadoras e acessveis, didticas e
atraentes, muito bem construdas musicalmente, e ainda esto em afinao com aslinguagens renovadoras ou dialogando com formas musicais interessantes de sua
poca. Este pensamento nos mostra a presena de preocupaes pedaggicas em
interseco com a fluncia da arte musical, permitindo que seus alunos transitassem
em nveis de musicalizao e tcnicos, ambicionados numa determinada fase do
ensino, sem que fosse preciso abrir mo do prazer e da beleza musicais.
Neste trecho do belssimo Estudo em L menor8, hoje ainda utilizado na
pedagogia violonstica mais por tradio do que pela epistemologia proposta pelo autor.
Carulli limita metodologicamente o uso do violo na posio de casa 1, isto , utiliza
apenas as quatro primeiras casas do brao do violo e uma escrita musical, onde a
localizao das notas na pauta e no instrumento exigem apenas um conhecimento
inicial do aluno, sem entrar nas tessituras mais agudas e utilizando os graves sempre
com as cordas soltas na primeira parte da obra. Esto presentes as alternncias
tcnicas das escalas, acordes e arpejos, as quais encerram o principal objetivo
pedaggico deste estudo, sem perder a graa e a leveza meldica, rtmica e harmnica
da mais singela forma cano ternria A-B-Ado perodo clssico.
8Carulli F. Metodo Completo per Chitarra;G. RICORDI & C. Editori, Milano - p.18.
Figura 3 partitura do andante em Am de Carulli
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
42/190
42
As obras de Carulli sempre contribuem para o acrscimo de alguma tcnica ou
compreenso musical que o aluno ainda no tinha. Neste sentido, Carulli j incorporavao conceito de conhecimento pedaggico do contedo.
A referncia que Carulli nos oferece importante, pois mostra que o ato de
tornar um estudo acessvel no significa uma simplificao mutiladora dos aspectos
expressivos e culturais de uma msica em funo de enxergar o universo infantil com
uma reduo do universo adulto, ou pior ainda supor que para tocar uma msica
preciso superar metodicamente a leitura de cada nota, cada figura musical, cada
acidente para muito depois ter o direito de tocar uma msica. Este erro de pensamento
focado na linearidade e no reducionismo que leva o aluno, at hoje, a ter que fazer
exerccios repetitivos e inexpressivos. o principal caminho da frustrao e da
desistncia.
Carulli foi um grande compositor. No queria, com seus estudos, negar os
exerccios necessrios ao desenvolvimento tcnico-mecnico, mas diferente o mundo
do aluno que j est consciente desta importncia e daquele que ainda no est. H o
aluno que j se definiu, mas tambm h o brilhante talento do aluno que ainda est
experimentando ou o futuro melhor aluno da turma que ainda no superou algumadificuldade inicial.
Para um aluno que j possui uma percepo musical superior, os estudos de
Carulli podem parecer enfadonhos, porm para o aluno que tem dificuldades iniciais
mais acentuadas estes estudos conseguem gerar pontes para um futuro envolvimento
superior. No foram poucos os alunos com dificuldades iniciais que vi superarem
musicalmente os que tinham facilidades.
Neste sentido, Gainza nos mostra que a verdadeira pedagogia musical acreditano aluno inapto.
Um professor se dedica principalmente queles que tm problemas. [...]Os gnios, como bem sabemos so poucos; o problema residiria, entoem como proceder para dar vigor ao inexpressivo e maior rigor tcnicoao mais sensvel ou ao mais impulsivo. Nisto consiste o enfoque da atualpedagogia, que no permanece impassvel ou inativa diante darealidade do educando (GAINZA p.54 e p.72).
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
43/190
43
Na viso anrquica, sbia e bem humorada de Schafer, o aluno inapto merece
no apenas uma ateno especial na pedagogia, mas tambm os crditos de algunsdos momentos mais criativos do aprendizado e at da histria da msica ocidental
(SCHAFER p.280-281).
Talvez alguns dos mais excelentes recursos musicais possam serresultado da limitao da inteligncia humana e no da inspirao. Porexemplo, aceita-se geralmente que o organum medieval (cantado emquartas e quintas paralelas) tenha surgido quando alguns membros dogrupo de cantores enganaram-se quanto altura das notas docantocho. Da mesma forma, senso comum que o cnone nasceu
quando algumas vozes se atrasaram, ficando atrs das vozes principais.Se isso for verdade, poderamos concluir que o organum foi invenodos desafinados enquanto o cnonefoi a dos lerdos (SCHAFER p.280-281).
Esta observao de Schafer revela tambm o quanto pode ser criativa a ao
pedaggica na sala de aula se as situaes forem bem mediadas pelo professor. As
contextualizaes da sala de aula sero abordadas no captulo 3.
Na escolha e aplicao dos contedos reside grande parte do despertar detalentos e do gosto musical. A boa escolha das msicas no depende do gosto pessoal
do professor, ou seja, h um parmetro metodolgico para isto.
A boa obra no pode ser difcil de mais a ponto de no poder ser aprendida, nem
fcil demais a ponto de no gerar desafios, causar desinteresse, ou privar o aluno das
suas verdadeiras e futuras capacidades de evoluo. Quando a obra musical ensinada
sintetiza saberes, curiosidades e significantes, os alunos e alunas saem cantarolado-a e
danando pelos corredores.
Outro fator metodolgico, como j foi visto, o potencial metafrico da obra musical
escolhida para os estudos. Este potencial est ligado aos significados da msica em
relao histria cultural, que descortina a contextualizao temporal do aluno, na
curiosidade despertada pelos choques culturais que ocorrem no cotidiano, na poltica,
nos costumes, no hilrio ou dramtico de cada poca e local.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
44/190
44
As teorias dos principais educadores musicais esto focadas no aspecto do
desenvolvimento do aluno, num sentido psicolgico, cognitivo, sociabilizante, folclrico,perceptivo, afetivo, criativo e humanstico. Porm, h um esquecimento investigativo
da histria cultural que incide nos contedos, nas msicas, ou seja, no centro do
planejamento e das aes de ensino est a cultura. Parafraseando Caetano Veloso:
Alguma coisa acontece no meu corao, que s quando cruza a Bossa Nova, Bach e o
Rei do Baio (aluso nossa a Sampa, de Caetano Veloso).
Apesar da insero da cultura musical no repertrio parecer bvia, isto no
acontece na pedagogia musical. Um caso exemplar foi o projeto do Canto Orfenico
que direcionou a educao musical em toda as escolas do Brasil durante trinta e um
anos, no absorveu sequer uma msica tocada nas rdios9. H ainda muitos cursos de
instrumento e bacharelados em que a cultura musical brasileira no entra pela porta da
frente (WERNECK, 1983, p.100 - 101).
Os significantes esto latentes tambm na dimenso da memria afetiva ligada
ao folclore, o que Suzuki (1983) chamou de lngua materna. Por isso h um elo
terico no especial cuidado em valorizar a msica folclrica brasileira que o universo
lingstico imediato dos nossos alunos, mas no s isto, tambm a valorizao msicade outros povos como forma de conhec-los, reconhecer suas identidades e gerar
pontes para o reconhecimento das nossas prprias identidades10 tnicas, familiares,
sociais, brasileiras e planetrias.
A importncia de o conhecimento pedaggico estar diretamente ligado ao contedo
e elaborao dos repertrios musicais ser reforada no prximo captulo que mostra o
ambiente e o lcus da pesquisa onde ocorre o curso de formao instrumental e a
Orquestra Sinfonia do Cerrado.
9 Esta verificao pode ser feita no Manual do Canto Orfenico e no Guia Prtico de Heitor Villa Lobos. Aspublicaes oficiais foram distribudas para todas as escolas e encerravam o repertrio que deveria ser utilizadopelos professores em todo o territrio nacional (Ministrio da Educao e Desporto, ocupado durante o governo deGetlio Vargas por Gustavo Capanema).10obs.- a msica de outros povos tambm no penetrou, em nenhum momento, o programa do Canto Orfenico.Atualmente h utilizao das msicas de outros povos nas escolas que divulgam o mtodo Kodly, atravs dasdanas circulares.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
45/190
45
3 O Palco da pesquisa
Neste captulo sero mostrados
o trajeto, as circunstncias, o contexto
e o lcus da pesquisa e explicado o
que originou o projeto cultural, quais
as problemticas iniciais e as aes
de implantao, as influncias scio-
culturais e alguns dados pr-coletados
que indicam a forte presena de
resultados amplos do processo de ensino-aprendizagem, os quais interessam para
responder questo de pesquisa11.
Tambm ser mencionado o cuidado valorativo que o autor e toda a equipe
diretiva, administrativa e pedaggica, tiveram que tomar para o desenvolvimento
contnuo do projeto cultural. Para tal, sero utilizados dados do estudo exploratrio
realizado na cidade de Niquelndia e com o grupo de professores tutoriais queministram o curso de formao dos professores locais.
11Cf. RESUMO
Figura 4 Foto da Orquestra Sinfonia do Cerrado em concertona Igreja de Nossa Senhora da Abadia do Muqum
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
46/190
46
3.1 O Lcus e os Primeiros Passos
Esta investigao ocorrer no Projeto Sinfonia do Cerrado, implantado desde
outubro2002 na Associao Amigos da Cultura de Niquelndia [AACN].
Niquelndia situa-se no estado de Gois, a 250 Km de Braslia e 340 Gainza Km
de Goinia, o acesso por rodovias recentemente asfaltadas BR 414 e 153, GO 237 e
327.
Niquelndia foi fundada em 1735 com o nome de So Jos do Tocantins. Antes
da fundao a regio era habitada pelos ndios Avacanoeiros, que ocupavam uma
vasta regio desde o norte at o centro-sul de Gois. O potencial mineral da regio foi
descoberto na dcada de 1960 quando a cidade mudou o seu nome. Niquelndia tem
como principal fonte econmica a extrao de Nquel e Cobalto, possui 50.000
habitantes, no tem cinema nem teatro, conta com 6 escolas municipais, 6 escolas
estaduais e 5 particulares, 4 hospitais e 4 postos de sade.
Sinfonia do Cerrado12
um pseudnimo artstico dadopelos prprios dirigentes da
AACN para um projeto cultural
com a msica denominado
Orquestras Cidades
implantado, por iniciativa e
patrocnio de uma grande
empresa mineradora, em trscidades do interior de Gois,
nas quais a empresa possui
stios de extrao e
beneficiamento mineral.
12Cerrado umtipo de vegetao de mdio porte e ecossistema predominante na Regio Centro Oestedo Brasill.
Figura 5 Foto dos alunos e professores com uniforme na sala de aula e aofundo os logotipos da orquestra, do patrocinador e do Ministrio da Cultura
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
47/190
47
O autor foi convidado para elaborar e coordenar o projeto Orquestras Cidades
pela assessoria da presidncia da empresa na cidade de So Paulo em 2000. Nestaocasio a empresa detectava a problemtica da falta de atividades que mobilizassem
culturalmente e socialmente os jovens nas cidades de Gois onde esto instaladas as
usinas de extrao e beneficiamento mineral. De acordo com o presidente da empresa,
havia grandes problemas com o cio, envolvimento com drogas, criminalidade juvenil e
falta de perspectivas de auto-realizao na faixa etria dos 10 aos 18 anos (pr-
adolescncia e adolescncia).
A implementao do projeto Orquestras Cidades ocorreu inicialmente na
Fundao Esprita Nova Vida na cidade de Catalo em 2001 atravs dos benefcios da
Lei de Incentivos Cultura MINC, com trs metas operacionais gerais: a implantao
de um curso de formao instrumental gratuito para 120 adolescentes, um curso de
capacitao contnua para 4 professores da cidade e fazer a estria da orquestra
pedaggica de violes no prazo de um ano. Este mesmo modelo operacional foi
implementado em 2002 na cidade de Niquelndia e em 2004 na cidade de Barro Alto,
todos com a preocupao de atender s problemticas sociais sem abrir mo do
respeito, percepo, valorizao e utilizao pedaggica das culturas locais que sediferenciam nos trs stios do projeto.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
48/190
48
3.2 Fatores scio-culturais
A escolha de Niquelndia como recorte da pesquisa ocorreu devido
diversidade cultural local e tambm dificuldade de acesso e contato com as obras de
arte no locais, pela inexistncia de teatros, cinemas e centros culturais na cidade.
Niquelndia possui manifestaes culturais permanentes e de grande significado
tradicional, oriundo de diversas culturas tnico-histricas, e que nos revelam tambm as
origens do seu povo e seus costumes.
Das origens indgenas h a Festa do Divino e as Folias de Reis que ocorrem no
ms demaio. Das origens africanas e quilombolas ocorrem as congadas no ms julho e
a romaria do Muqum no ms de agosto, a qual considerada uma das maiores
romarias brasileiras com cerca de 80 mil fiis durante 15 dias. Nossa Senhora do
Muqum protetora do antigo quilombo situado no local do atual santurio erguido em
2003 com capacidade para acolher 27 milpessoas.
Este estudo exploratrio sobre a presena de fatores culturais que expressam as
origens tnico-histricas fundamental para abordar esta pesquisa, pois quando
lidamos com alunos oriundos de diferentesetnias, ndios, negros entram em questo
os valores e linguagens pertinentes ao
preparo cultural dos professores.
Isto interessa nossa pesquisa, para
mostrar uma questo do ensino musical que
no est inscrita nas metodologias de
ensino da msica, e que ainda no foisuficientemente aprofundada pelas teorias
dos educadores musicais e pelos trabalhos acadmicos, mesmo os mais recentes.
Algumas pesquisas atuais e os Parmetros Curriculares Nacionais [PCN] de Artes,
elaborados pelo Ministrio da Educao em 1997, chegam a propor repertrios de
origens tnicas e cuidados com as identidades de forma genrica, porm o nosso foco
o dilogo direto com os alunos e a comunidade enquanto sistemas organizativos e
valorativos nicos e indivisveis, com qualidades especficas de um todo contextual.
Figura 6 Foto da aluna do nvel intermedirio eintegrante da Orquestra Sinfonia do Cerrado
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
49/190
49
No h duas situaes com a mesma qualidade de penetrao (LIPMAN, 2001, p.333-
334).Valores e linguagens das chamadas minorias tnicas tambm influenciam um
grupo que est diretamente ligado ao ambiente desta pesquisa:
O aluno de famlia pobre.
Zeichner (1993, p.14-15) nos mostra a necessidade do aprofundamento
necessrio aos cuidados com a situao social da criana como ateno primordial do
professor, e tambm a inadequao das reformas educativas de cima para baixo, nas
quais os professores aplicam passivamente os planos desenvolvidos por outros atores
sociais, institucionais e/ou polticos.
Toda a minha experincia em escolas oficiais enquanto estudante,professor e formador de professores, teve lugar em escolas onde ascoisas s poderiam correr normalmente se houvesse muita reflexo porparte dos professores. [...] Tambm tenho desenvolvido esforos parapromover a causa da profissionalizao dos professores em paralelocom a construo de uma sociedade mais justa e descente. Na minha
opinio, os dois conceitos (a profissionalizao dos professores e umasociedade mais justa esto necessariamente ligados. Apesar de todosos progressos feitos na divulgao do uso de mtodos de ensino quebuscam a resposta do aluno, como a instruo da lngua, a abordagemdo processo de ensinar a escrita, o ensino da mudana conceitual eoutras verses atualmente em moda de uma prtica de ensino muitoesclarecida, no podemos ter a veleidade de dar o mesmo ensino dequalidade a toda a gente. Muitas crianas, sobretudo pobres e de cor,continuam a ser deixadas para trs pelas reformas educativas. Um dosgrandes temas do meu trabalho tem sido a minha tentativa de relacionaro desenvolvimento do professor com a luta pela justia social para todasas crianas.
Zeichner cita Hillard e Ellwood para denunciar o problema13, que ele chama de
ignorncia cultural dos educadores em relao s expresses lingsticas oriundas da
voz dos alunos. Esta questo extremamente relevante, no apenas por uma razo
13A pesquisa de Zeichner foi realizada nos Estados Unidos da Amrica, porm pertinentementetraduzvel e relevante num sentido amplo que aborde outros pases e grupos humanos minoritrios ouexcludos culturalmente. A leitura ampla da pesquisa de Zeichner atingiria, por exemplo, a linguagem dosrepentistas nordestinos ou dos afros-descendentes baianos, entre inmeras outras.
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
50/190
50
humana e tica, mas porque o saber da lingstica vai influenciar diretamente no
entendimento e nas escolhas dos contedos programticos e dos repertrios musicais.
Para que os professores tenham xito nos trabalhos a desenvolver comos alunos de culturas diferentes das suas, imprescindvel que oprograma de formao proporcione muito mais do que simplesmente aintelectualizao de questes interculturais. O desenvolvimento dosprofessores, nesta rea, s possvel se o seu prprio comportamentonum ambiente intercultural for alvo de avaliaes e experimentaes(HILLARD, 1974, pp. 49-50, apud. ZEICHNER, 1993, p.102).
Se os alunos mestres estudassem lingstica durante tempo suficiente
para perceberem que, por exemplo, um dialeto afro-americano temtantas regras e to lingisticamente sofisticado como o dialetoconhecido por anglo-americano padro, mostrar-se-iam menosinclinados a considerar seus alunos pouco inteligentes s porque falamum dialeto diferente. Se estudassem tambm a histria e a literaturaafro-americana, apreciando o imenso amor lngua que percorre acultura afro-americana, seriam capazes de reconhecer, nos seus alunosde cor, uma aptido e uma fora lingstica que poderiam seraproveitadas nas aulas...(ELLWOOD, 1990, p.3, apud. ZEICHNER,1993, p.103).
Vemos isso aparecer, por exemplo, na declarao de amor de Tiro ao lvaro
(Adoniran Barbosa, 1960) onde a sua maneira de se expressar reflete a voz popular e
do homem pobre. exatamente por isso que Adoniran, s vezes tratado apenas como
alegoria, passa a agregar um valor forte quando da escolha das suas obras enquanto
contedo pedaggico e repertrio dos alunos.
De tanto lev frexada do teu olh
Meu peito at
Parece sabe o qu?
Tauba de tiro ao lvaro
No tem mais onde fur, no tem mais......
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
51/190
51
Em Foi Boto Sinh (1933), Waldemar Henrique compe uma situao em que
um negro relata a dois brancos sobre a tragdia de uma ndia num mito amazonenseconhecido como a Lenda do Bto:
Tajapanema choro no terreiro
Tajapanema choro no terreiro
E a virgem morena
Sumiu no costeiro
Tajapanema vort a chor
Tajapanema vort a chor
Quem tem filha moa
bom vigi
fio bto sinh,
foi bto sinh
qui veio tente a moa lev
no tar danar
Aquele dout
era um bto sinh
era um bto sinh
-
7/23/2019 Claudio Weizmann
52/190
52
3.3 O Ensino coletivo investigativo - uma sinfonia afinadssima
O fato de estarmos atentos a estes valores e s origens tnicos-culturais e scio-
econmicas no significou a busca de um planejamento e metodologias de ensino
especficas para estas crianas e jovens, mesmo porque isto significaria a separao
enquanto grupo diferenciado esgotando grande parte das pontes de dilogo14 com
diversas culturas, o que tambm reforaria os preconceitos e designaes j existentes.
neste ponto que tivemos que entender o que significa incluso social, e as aes que
levam realmente realizao desta incluso e na maneira de investigar a comunidade
de aprendizagem, pois o projeto social acredita nos alunos e deve ter expectativas
elevadas (ZEICHENER, 1993, p.84, grifo nosso). A maior incluso cultural a da
valorizao humana e de todos os seres humanos.
O primeiro elemento comum de muitas opinies contemporneas, arespeito da eficincia dos professores junto aos alunos, o fato de osprofessores acreditarem que todos os alunos podem ser bem sucedidose comunicarem esta convico aos seus alunos (p.85).
Alguns cuidados foram tomados nas dimenses de seleo, metodologia
planejamento e principalmente na estruturao das classes e condutas de atividades as
quais chamamos de Ensino Coletivo, e Lipman (2001) chama de Comunidade d