Clastres e Arendt

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 Prelúdios, Salvador, v. 3, n. 3, p. 37-52, mar./ago. 2014  / 37 Claudivan Silva Soares PODER E VIOLÊNCIA: UM PARALELO ENTRE PIERRE CLASTRES E HANNAH ARENDT RESUMO Este artigo propõe verificar as proximidades e as possíveis diferenças entre as ideias encontradas nos estudos do antropólogo Pierre Clastres e da filósofa Hannah Arendt, haja vista que os respectivos estudiosos criticam o tradicional conceito de poder, e fazer uma leitura da situação de poder descrita na etnografia do antropólogo, em seu artigo intitulado “Troca e poder: filosofia da chefia indígena” a partir dos conceitos desenvol-  vidos por Arendt em seu livro Da violência. Para tanto, será necessário, primeiramente,  verificar a noção de poder que a teoria políti ca moderna e a teori a de Ma x Weber estabe- lecem, para então compreender como os dois estudiosos oferecem um novo ângulo de percepção sobre o poder, política, relações autoritárias e pacíficas, comando e obediên- cia. Será feito no presente texto uma breve revisão bibliográfica de alguns teóricos da filosofia política e da teoria weberiana, para poder entender como se construiu a noção de poder político e Estado moderno, e como em todo este período, eles foram pensados em correlação com a violência, visto que esta revisão vai oferecer o baluarte necessário para o entendimento de que a noção de Hannah Arendt e Pierre Clastres acerca do po- der não necessariamente está correlacionado com a violência. Palavras-chave: Hannah Arendt. Pierre Clastres. Poder. Violência. PODER E VIOLÊNCIA  As teorias políticas modernas foram sendo criadas à medida e à urgên- cia de uma sociedade que se modificava e de Estados-nações que se desenhavam no final da Baixa Idade Média. Pensar violência como parte essencial do poder ou, como afirma Hannah Arendt, simplesmente não pensá-la, acabou fazendo parte, durante um bom tempo, não só das ciências políticas como de diversas áreas de investigação científica, inclusive a antropologia, como constata o an- tropólogo estruturalista Pierre Clastres. Hannah Arendt, através da sua obra Da violência, rompe com todo o pen- samento que se formou, afirma ela, a partir de Platão, e se concretizou durante

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teoria política. antropologia e filosofia. poder

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    Claudivan Silva Soares

    PODER E VIOLNCIA: UM PARALELO ENTRE PIERRE CLASTRES E HANNAH ARENDT

    RESUMO

    Este artigo prope verificar as proximidades e as possveis diferenas entre as ideias encontradas nos estudos do antroplogo Pierre Clastres e da filsofa Hannah Arendt, haja vista que os respectivos estudiosos criticam o tradicional conceito de poder, e fazer uma leitura da situao de poder descrita na etnografia do antroplogo, em seu artigo intitulado Troca e poder: filosofia da chefia indgena a partir dos conceitos desenvol-vidos por Arendt em seu livro Da violncia. Para tanto, ser necessrio, primeiramente, verificar a noo de poder que a teoria poltica moderna e a teoria de Max Weber estabe-lecem, para ento compreender como os dois estudiosos oferecem um novo ngulo de percepo sobre o poder, poltica, relaes autoritrias e pacficas, comando e obedin-cia. Ser feito no presente texto uma breve reviso bibliogrfica de alguns tericos da filosofia poltica e da teoria weberiana, para poder entender como se construiu a noo de poder poltico e Estado moderno, e como em todo este perodo, eles foram pensados em correlao com a violncia, visto que esta reviso vai oferecer o baluarte necessrio para o entendimento de que a noo de Hannah Arendt e Pierre Clastres acerca do po-der no necessariamente est correlacionado com a violncia.

    Palavras-chave: Hannah Arendt. Pierre Clastres. Poder. Violncia.

    PODER E VIOLNCIA

    As teorias polticas modernas foram sendo criadas medida e urgn-cia de uma sociedade que se modificava e de Estados-naes que se desenhavam no final da Baixa Idade Mdia. Pensar violncia como parte essencial do poder ou, como afirma Hannah Arendt, simplesmente no pens-la, acabou fazendo parte, durante um bom tempo, no s das cincias polticas como de diversas reas de investigao cientfica, inclusive a antropologia, como constata o an-troplogo estruturalista Pierre Clastres.

    Hannah Arendt, atravs da sua obra Da violncia, rompe com todo o pen-samento que se formou, afirma ela, a partir de Plato, e se concretizou durante

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    a elaborao das ideias da filosofia poltica moderna e ganha nitidez em con-ceitos bsicos do socilogo e pensador poltico Max Weber. Este rompimento proposto pela pensadora alem vem com a distino entre o conceito de poder e de violncia que ela vai buscar em uma tradio bem mais profunda, isto , na tradio greco-romana, na maneira como se estruturava o poder poltico das polis da Antiguidade Clssica, na ideia pr-platnica de poder. Desse modo, ao invs de conceber poltica como uma relao de domnio, baseada no comando e na obedincia, em que o modelo Estado-nao corporifica um tipo de comando atravs do monoplio legtimo da violncia, Arendt afirma que poder est em uma relao inversamente proporcional violncia, ou seja, quanto mais o po-der estabelecido, menos intermediado pela violncia:

    [...] politicamente falando, insuficiente dizer no serem o poder e a vio-lncia a mesma coisa. O poder e a violncia se opem: onde um domina de forma absoluta, o outro est ausente. A violncia aparece onde o poder esteja em perigo, mas se se deixar que percorra o seu curso natural, o re-sultado ser o desaparecimento do poder [...] falar do poder no-violento realmente uma redundncia. A violncia pode destruir o poder, mas incapaz de cri-lo. (ARENDT, 2004, p. 35)

    O antroplogo Pierre Clastres, em seu livro intitulado A sociedade contra o Estado, de uma forma diferente de Arendt, e por motivos diferentes, tambm caminha em direo oposta noo de poder e poltica como monoplio da vio-lncia. Clastres parte de uma crtica ao etnocentrismo, tendo como questo cen-tral o poder nas sociedades arcaicas, e aprofunda a teoria questionando alguns conceitos como o de poder, sociedade arcaica e economia de subsistncia, entendidos como gerados dentro uma ideologia eurocntrica, o que acaba im-pedindo o aprofundamento analtico no campo da antropologia poltica.

    Clastres questiona a possibilidade de existncia de sociedades sem po-der e a ideia de Estado-nao como modelo mais sofisticado de organizao po-ltica, colocando o etnocentrismo como elemento que baliza tais pensamentos. O problema do etnocentrismo, segundo o antroplogo, no reside no senso co-mum, pois todas as sociedades seriam etnocntricas, sendo ento normal um indivduo achar que seu modo de vida o mais adequado. O problema principal do etnocentrismo quando ele mediatiza um estudo que pretende se legitimar como objetivo e, neste caso, acaba sendo causa principal da pobreza conceitual da antropologia poltica, o que impede um avano e aprofundamento da rea.

    Assim, a ideia ocidental de poder na qual o chefe poltico (ou instituio poltica) aquele que monopoliza a violncia no pode servir como referencial

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    para antropologia poltica. Com esta linha de raciocnio, Clastres prope uma forma no ocidental de se pensar a poltica e o poder:

    Neste caso, a condio seria por fim levar a srio o homem das sociedades primitivas, em todos os seus aspectos e dimenses, incluindo o ngulo do poltico, mesmo, e sobretudo, se este se realiza nas sociedades arcai-cas como negao do que no mundo ocidental. preciso aceitar a ideia de que negao no significa um nada, e que quando o espelho no nos mostra mossa imagem, no prova de que l no haja nada observvel. (CLASTRES, 2010, p. 31)1

    Na tentativa de responder algumas perguntas, no presente texto, ser ob-servado que pode haver interseo de ideias entre subreas das cincias sociais que poucas vezes se tocam, geralmente consideradas dois extremos da trade antropologia, sociologia, cincia poltica. Enquanto que para a cincia poltica, os problemas dignos de estudos so formulados a partir de sistemas polticos modernos, as referncias esto baseadas em uma cultura ocidental, para a an-tropologia, o debruar-se sobre as sociedades no ocidentais, no modernas, foi fundamental para a construo de seu mtodo de pesquisa e pensamento. Ao re-lacionar Clastres e Arendt, ter-se- uma situao na qual a antropologia e a cin-cia poltica podem sustentar, juntas, a mesma ideia (ou ideias prximas) acerca do poder poltico.

    PODER E VIOLNCIA NA FILOSOFIA POLTICA E NA TEORIA WEBERIANA

    Existe um entendimento abrangente em cincia poltica de que o poder poltico est atrelado violncia, na possibilidade de monopoliz-la e acion-la. Ensina-se, como exemplo, em Max Weber, que o poder visto como a possibili-dade que A tem de impor sua vontade sobre B, mesmo que este no legitime a vontade daquele e disso resulte o uso da violncia. (WEBER, 2002, p. 97) O Estado moderno ou qualquer outra forma de associao poltica, entendido como uma forma de domnio, cuja especificidade se encontra no monoplio da violncia:

    1 En este caso, la condicin sera tomar por fin en serio al hombre de las sociedades primitivas, en todos sus aspectos y dimensiones, incluyendo el ngulo de lo poltico, incluso, y sobre todo, si ste se realiza en las sociedades arcaicas como negacin de lo que es en el mundo occidental. Es preciso acep tar la idea de que negacin no significa la nada y que cuando el espejo no nos muestre nuestra imagen, no es prueba de que ah no haya nada observable.

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    Evidentemente, a coao no o meio normal ou o nico do Estado no se cogita disso , mas seu meio especfico. No passado, as associaes mais diversas comeando pelo cl conheciam a coao fsica como meio perfeitamente normal. Hoje, o Estado aquela comunidade huma-na que, dentro de determinado territrio este, o territrio, faz parte da qualidade caracterstica , reclama para si (com xito) o monoplio da coao fsica legtima [...] (WEBER, 1999, p. 525)

    Segundo Hannah Arendt, pensar poder da forma como descrita acima, resultado de uma tradio oriunda da Antiguidade Clssica que foi arraiga-da de forma contundente nas teorias modernas. (ARENDT, 2004,) Jean Bodin, por exemplo, a partir da sua teoria do poder soberano na qual o soberano caracterizado pela perpetuidade e capacidade de criar e revogar leis das quais est isento (CHEVALLIER, 1999) que foi resultado da preocupao com os con-flitos religiosos do sculo XVI, faz uma intensa defesa da monarquia desptica, sua severidade no exerccio do poder e da legitimidade dos monarcas despticos na subjugao de povos conquistados. Assim, A monarquia desptica aquela em que o prncipe se assenhoreou de fato dos bens e das prprias pessoas dos sditos, pelo direito das armas e da guerra justa, governando-os como um chefe de famlia governa seus escravos. (BOBBIO, 2001, p. 102) Famlia, na teoria bo-diniana, tem uma caracterstica essencial, pois, segundo ela, toda comunidade poltica , na verdade, uma extenso da famlia. Por esse motivo, Bodin elege a monarquia como sua forma preferida de repblica: [...] a de ser a Monarquia o regime mais conforme natureza [...] A famlia, modelo de repblica, tem um s chefe. O cu tem apenas um sol. O mundo tem apenas um s Deus soberano (CHEVALLIER, 1999, p. 59), isto porque [...] o lar, a famlia, ocupa lugar de honra: o ponto de partida, a clula-me, a imagem e modelo da comunidade poltica bem ordenada. (CHEVALLIER, 1999, p. 55) Percebe-se que a violncia/situaes de guerra, aparecem em Bodin como algo natural em uma situao de poder.

    Outro exemplo caracterstico na filosofia poltica moderna a teoria de Thomas Hobbes. A capa da sua mais famosa obra, O Leviat, traz uma alegoria que resume a relao entre poltica e violncia: um homem gigante, com uma coroa na cabea, cujo corpo formado por um aglomerado de indivduos, es-tende na mo direita, sobre o campo e a cidade, uma espada. Esta relao, como elemento presente na teoria poltica, o que se pretende enfatizar no presente texto. Hobbes, em sua teoria, parte de uma situao hipottica: os homens cria-ram o Estado a partir de um pacto em que se permitiu passar de uma situao de liberdade para uma situao de obedincia. Esse pacto, no qual os indivduos tornam-se impotentes por vontade prpria, s possvel se junto a ele for criado um poder coercitivo, poder este que faa os homens terem temor ( espada).

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    [...] esse grande Leviat que se denomina coisa pblica ou Estado (Com-monwealth), [...] no mais do que um homem artificial, embora de esta-tura muito mais elevada e de fora muito maior que a do homem natural, para cuja proteo e defesa foi imaginado. Nele [...] A recompensa e o cas-tigo... so os seus nervos. (HOBBES, 1940 apud CHEVALLIER, 1999, p. 66, grifos dos autor)

    A situao de liberdade em Hobbes uma situao de insegurana cons-tante, uma luta de todos contra todos, por isso, no pacto hobbesiano, o Estado institudo. Os homens abdicam de seu poder individual para ter a garantia da segurana pblica, atravs da criao desse corpo artificial que se impe sobre o coletivo atravs do terror que incita. (HOBBES, 1940 apud CHEVALLIER, 1999)

    vendo tambm o poder poltico como coero, como uso legtimo da violncia e vendo o Estado como uma criao que tem como uma das principais funes punir, que pensadores como John Locke e Montesquieu, preocupados em garantir a liberdade dentro do Estado, vo montar, cada um a seu modo, suas teorias. Como Hobbes, Locke tambm foi um terico contratualista, porm, e isso essencial no estabelecimento de suas diferenas com Hobbes, sua ideia de estado natural suporta indivduos racionais, munidos de direitos naturais que os acompanham inclusive no estado de sociedade, o que permite a proteo individual contra os abusos de poder. (HOBBES, 1940 apud CHEVALLIER, 1999) Se no estado de natureza os homens j possuem direitos naturais, faltam neste estado leis consensualmente estabelecidas, juzes imparciais e um [...] poder coercitivo, capaz de assegurar a execuo dos juzos proferidos. (HOBBES, 1940 apud CHEVALLIER, 1999, p. 110) Assim, quando os indivduos se juntam para formar o estado de sociedade ou a comunidade poltica, eles o fazem, con-sensualmente, no intuito de salvaguardar, atravs de um poder coercitivo, os seus direitos naturais. (HOBBES, 1940 apud CHEVALLIER, 1999) Montesquieu tambm mostra preocupao com o abuso de poder, por isso, sua preferncia pela monarquia, com seus corpos intermedirios2 que evitam a concentrao de poder e, consequentemente, impedem que a monarquia se desdobre em um governo desptico. (BOBBIO, 2001) Sua teoria dos trs poderes tambm resulta dessa preocupao com o excesso de poder nas mos de apenas um indivduo. Pode-se interpretar que quando o pensador expe o interesse em evitar que um governo caia em despotismo ou tirania, o faz partindo do princpio que o poder implica, tambm, na possibilidade do uso da violncia. Ou seja, os pensadores

    2 Os corpos intermedirios em Montesquieu remetem a uma faixa de poder entre os sditos e os soberanos, que controlando o poder monarca, impede o abuso de autoridade, torna o Estado mais resistente e a pessoa do governante mais segura. Os corpos intermedirios seriam parte do Estado resultante de uma diviso horizontal do poder. (BOBBIO, 2001)

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    polticos modernos no problematizam a violncia, porque j a entendem como fazendo parte, naturalmente, de uma situao de poder.

    Entre o sculo XIX e o sculo XX, o terico da clssica sociologia, Max Weber, oferece ao pensamento poltico caractersticas de objetividade cientfi-ca. O terico alemo se debruou em pesquisas histrico documentais e empri-cas, estabelecendo mtodo e realizando sistematizaes conceituais no estudo do Estado e da sociedade que o distingue dos pensadores polticos dos sculos anteriores. Porm, Weber deu continuidade ideia de que o poder poltico im-plica necessariamente na possibilidade de uso da violncia instrumental.

    Em Max Weber, encontramos uma teoria sofisticada e bem esplanada so-bre o Estado moderno ou Estado burocrtico, na qual est claramente definido o papel que a violncia exerce sobre uma situao de poder. A relao de comando e obedincia (e resistncia) perpassa tanto o conceito weberiano de poder quanto o conceito de dominao e suas subsequentes tipologias. Weber define a associa-o poltica como aquela que existe dentro de um limite territorial, onde, para que suas leis possam ser garantidas, h o uso e ameaa contnua da fora fsica (WEBER, 2002), e faz uma sutil distino entre poder e dominao: o poder seria simplesmente a probabilidade de um indivduo ou grupo impor sua vontade so-bre outro indivduo ou grupo, mesmo com resistncia alheia. A diferena em re-lao dominao que esta necessariamente legitimada, ou seja, a obedincia assentada na probabilidade de reconhecimento, por parte dos que obedecem, das ordens que lhes so dadas. (WEBER, 2002)

    O Estado moderno/burocrtico como forma de dominao, se diferen-cia de outras associaes polticas por se basear na validade de estatutos legais, fundamentados em regras racionalmente criadas, sendo assim, uma associao de dominao institucional, que monopoliza a coao fsica e tem um quadro de funcionrios treinados, racionalmente escolhidos e subordinados a estatu-tos legais. (WEBER, 1999, p. 525-529) Deste modo, o Estado moderno comporta o funcionalismo burocrtico, ao qual Hannah Arendt e Pierre Clastres fazem duras crticas ao decorrer das suas obras j citadas.

    Percebe-se que entre os mais importantes autores da filosofia poltica mo-derna, o poder se exerce a partir da possibilidade de coero, da concentrao de violncia em posse do Estado. A violncia inerente ao poder e, por isso, para al-guns pensadores, esse poder deve ser limitado e distribudo. Na sociologia poltica de Weber, delineada de forma ntida a relao entre poder, poltica e possibilida-de de acionamento da violncia. contra essa tradio terica (presente no pen-samento antigo, desenvolvido na sociologia clssica e no pensamento filosfico

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    moderno), que Arendt em Da violncia e Clastres em A sociedade contra o Estado desenvolvem seus estudos.

    PODER E VIOLNCIA EM CLASTRES E ARENDT

    Da violncia foi publicado originalmente entre 1969 e 1970. Alm da pre-ocupao terica com a definio de poder, o pequeno livro est relacionado com um conjunto de fatos ocorridos no contexto da sua produo. Hannah Arendt evidencia o carter violento das rebelies estudantis de 1968 ocorridas tanto na Europa quanto nos Estados Unidos; o aparecimento dos Black Powers no movimento dos estudantes norte-americanos que, autoproclamando a re-presentao da comunidade negra, eram caracterizados em suas manifestaes pela violncia verbal ou real. Arendt afirma que a glorificao da violncia, na-quele momento, era um trao novo do movimento estudantil, e relaciona este trao com as falhas prprias e inerentes ao Estado burocrtico. Dentro de um contexto de Guerra Fria, as possibilidades de confrontos fatais geradas pelo pro-gresso tecnolgico e pelas relaes internacionais entre potncias, marcadas por uma corrida industrial-armamentista, fazem parte tambm das preocupa-es da autora na obra. Em alguns pontos do livro, a pensadora cita a Guerra do Vietn, seja para afirmar como a corrida armamentista dos Estados Unidos ajudaram a abastecer os combatentes vietnamitas guerrilheiros com armas, seja para lembrar o desprestgio crescente de uma nova esquerda pacfica:

    A paixo e o lan da Nova Esquerda, sua credibilidade, encontram-se estreitamente ligados ao estranho desenvolvimento suicida das armas modernas [...] A sua primeira reao foi de repulsa a todas as formas de violncia, uma adoo quase que automtica de uma poltica de no-vio-lncia. s grandes vitrias desse movimento, especialmente no campo dos direitos civis, seguiu-se o movimento de resistncia guerra do Viet-nam, o qual se manteve como fator importante na determinao do clima de opinio neste pas (os EUA). Mas no segredo que as coisas mudaram desde ento, que os adeptos da no-violncia esto na defensiva, e seria frivolidade dizer que apenas os extremistas esto se rendendo glorifi-cao da violncia. (ARENDT, 2004, p. 11)

    A sociedade contra o Estado de Pierre Clastres uma coletnea de onze textos do antroplogo. Estudar o poder nas sociedades indgenas, em Clastres, significa tambm um meio de aprofundar o pensamento sobre o Estado ocidental, institui-o onde reside a desigualdade e a dominao. (MARTNEZ, 2010) Nos textos de A

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    sociedade contra o Estado, o autor demonstra como os povos indgenas da Amrica do Sul conseguiram desenvolver sistemas polticos nos quais o poder no implica coero, poder no est separado da sociedade, ao contrrio, a sociedade conse-gue ter controle sobre o poder. Essa verificao permite o antroplogo perceber como nas sociedades estatais, nos Estados ocidentais democrticos, totalitrios ou despticos, a sociedade civil no consegue ter alcance sobre as esferas de poder:

    A marca principal desta diviso, seu lugar privilegiado de desenvolvimen-to, o fato massivo, irredutvel, irreversvel de um poder separado da so-ciedade global, uma vez que apenas alguns membros o possuem, de um poder que, separado da sociedade, exercido sobre ela e, se necessrio, contra. O que aqui se tem assinalado, o conjunto das sociedades com es-tado, dos depotismos mais arcaico at os Estados totalitrios modernos, passando pelas sociedades democrticas, cujo aparelho de Estado, sendo liberal, no deixa de constituir-se no dono encoberto da violncia legtima. (CLASTRES, 2010, p. 163, grifo do autor)3

    As pesquisas do antroplogo nas quais foram baseados os textos da refe-rida obra, foram realizadas em temporadas no perodo de 1963 a 1974, a partir de observaes de campo entre os ndios guayaquis, chulupis, yanomamis e guara-nis, situados no Paraguai, Venezuela e Brasil. (MARTNEZ, 2010)

    No texto Coprnico e os selvagens, primeiro captulo de A sociedade contra o Estado, ao discorrer sobre a etnografia de um estudioso chamado J. W. Laspierre e suas possveis concluses acerca do poder nas sociedades arcaicas, Pierre Clastres j inicia de forma categrica sua posio acerca do conceito de poder e das tipologias weberianas:

    O poder se exerce em uma relao social caracterstica: comando-obe-dincia. Disso conclui-se que nas sociedades onde no se observa esta relao essencial so sociedades sem poder [...] De modo que sobre este ponto, entre Nietzsche, Max Weber (o poder do Estado como monoplio do uso legtimo da violncia) ou a etnologia contempornea, a afinidade muito maior do que parece [...] a verdade do ser do poder consiste na violncia e impossvel pensar o poder sem seu predicado, a violncia. (CLASTRES, 2010, p. 21-22)4

    3 La marca primordial de esta divisin, su lugar privilegiado de desarrollo, es el hecho masivo, irreductible, irreversible, de un poder separado de la sociedad global puesto que solamente algunos miembros lo poseen, de un poder que, separado de la sociedad, se ejerce sobre ella y, en caso necesario, contra ella. Lo que aqu se ha senalado, es el conjunto de las sociedades con Estado, desde los despotismos mas arcaicos hasta los Estados totalitarios mas modernos, pasando por las sociedades democrticas, cuyo aparato de Estado, no por liberal deja de constituirse en el dueo encubierto de la violencia legitima.

    4 El poder se ejerce en una relacin social caracterstica: mando-obediencia. De donde se desprende en conjunto que las sociedades en las que no se observa esta relacin esencial son sociedades sin poder [...] De modo que sobre este punto, entre Nietzsche, Max Weber (el poder del Estado como monopolio del uso le gitimo de la violencia) o la etnologa contempornea, la afini dad es mucho mayor de lo que parece

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    Ento, o antroplogo questiona a aceitao pela etnologia dos conceitos da cincia poltica, claramente fundamentados em um referencial ocidental e baseados na experincia poltica das sociedades europeias:

    [...] a etnologia no culpada de aceitar sem discusso o que o Ocidente tem sempre pensado. Porm, precisamente por isso, necessrio assegu-rar-se e verificar em seu prprio terreno o das sociedades arcaicas se, quando a coero e a violncia esto ausentes no podemos falar de poder. (CLASTRES, 2010, p. 22)5

    A inteno de Clastres neste trecho desbancar o etnocentrismo reinante na etnologia do contexto no qual se inscreve seu texto. Prope ento que se pense o poder de outra forma que no apenas a encontrada nas sociedades ocidentais, j que, segundo ele, o poder poltico universal e inerente a todas as sociedades:

    [...] para ns no em absoluto evidente que coero e subordinao cons-tituam a essncia do poder poltico sempre e em todas partes. De modo que nos abre um disjuntivo: ou bem o conceito clssico de poder adequado realidade sobre qual se reflete, em cujo o caso necessrio que se explique o poder l onde se revele; ou bem inadequado, sendo preciso abandon--lo ou transform-lo. (CLASTRES, 2010, p. 24, grifo do autor)6

    Como pensadora de outra rea do conhecimento que no a de Clastres, Arendt, ao criticar o conceito de poder, no tem em vista, evidentemente, des-bancar o etnocentrismo. Ela, de alguma forma, mais categrica que o antrop-logo ao criticar a forma tradicional de se pensar o poder poltico. Arendt no s afirma que tem de se pensar o poder poltico de outra forma que no a partir da coero, como para ela, este, independente do contexto que esteja relacionado, no pode ter a violncia como essncia. O poder em Hannah Arendt no tem ligao alguma com violncia, por isso, ela trata de distinguir os dois termos no incio do segundo captulo de Da violncia:

    Certamente, uma das mais bvias distines entre o poder e a violncia que o poder tem a necessidade de nmeros, enquanto que a violncia pode, at um certo ponto, passar sem eles por basear-se em instrumentos [...]

    [...] la verdad del ser del poder consiste en la violencia y es impo sible pensar el poder sin su predicado, la violencia.

    5 [...] la etnologa no es culpa ble de aceptar sin discusin lo que piensa Occidente desde siempre. Pero, precisamente por ello, es necesario asegurarse y verificar en su propio terreno el de las sociedades arcai cas si, cuando la coercin y la violencia estn ausentes, no podemos hablar de poder.

    6 [...] para nosotros no es en absoluto evidente que coercin y subordinacin constituyan la esencia del poder poltico siempre y en todas partes. De modo que se nos abre una disyuntiva: o bien el concepto clsico del poder es adecuado a la realidad sobre la que se reflexiona, en cuyo caso es necesa rio que explique el no poder all donde se descubra; o bien es inadecuado y se precisa abandonarlo o transformarlo.

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    A forma extrema do poder resume-se em Todos contra Um, e a extrema forma de violncia Um contra Todos. E esta ltima jamais possvel sem instrumentos. (ARENDT, 2004, p. 26)

    Arendt volta a sua ateno para o que ela afirma serem palavras-chave. A pensadora tem uma importante preocupao de cuidar das terminologias no distinguidas ou descuidadamente despercebidas pela cincia poltica, tratando-as como [...] fenmenos distintos e diferentes (ARENDT, 2004, p. 27), e que dificil-mente existiriam se assim no fosse. Assim, cinco termos devem ser distinguidos: poder, vigor, fora, autoridade e violncia, distines que para ela, at ento, ti-nham sido tratadas com pouca importncia:

    Us-las como sinnimos no apenas indica uma certa cegueira para as diferenas lingusticas [...] mas j tem por vezes resultado em uma certa ignorncia daquilo que a correspondem [...] Por trs da confuso aparente e a cuja luz todas as distines seriam, na melhor das hipteses, de pe-quena importncia, a convico de que a questo poltica mais crucial , e sempre foi, a questo de: Quem governa Quem? Poder, fora, autoridade, violncia nada mais so do que palavras a indicar os meios pelos quais o homem governa o homem. (ARENDT, 2004, p. 27)

    So, ento, as seguintes as terminologias propostas: o poder seria a ca-pacidade do homem de agir em concerto, acontecendo apenas atravs da posse que um grupo atribui a outrem para agir em nome de todos. O vigor pertence ao carter pessoal, uma caracterstica naturalmente individual que tende a ser sobrepujada pelo grupo; fora seria a energia liberada por movimentos fsicos ou sociais; a autoridade seria o reconhecimento inquestionvel por aqueles a quem se pede que obedeam, sendo que o desprezo seria seu maior opositor; violncia aproxima-se do vigor, mas distingue-se pelo seu carter instrumen-tal, usado, atravs de instrumentos, para multiplicar o vigor natural e em um estgio superior substitu-lo. Observa-se assim, que poder se distingue de todos os outros, de uma forma que nenhum deles pode servir de essncia ou explicar uma situao de poder. Seria correto ento afirmar que onde h po-der no h vigor, fora, autoridade ou violncia? No. Como nos tipos ideais weberianos, Arendt explica que na realidade concreta esses elementos no se configuram descolados como na teoria:

    [...] embora no sejam de modo algum arbitrrias, dificilmente correspon-dem ao mundo real, de onde so, entretanto, retiradas. Assim o poder ins-titucionalizado nas comunidades organizadas aparece frequentemente sob a feio de autoridade, a exigir imediato e indiscutido reconhecimento; so-ciedade alguma poderia funcionar sem ela. (ARENDT, 2004, p. 29)

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    Partindo das terminologias da pensadora, pode-se fazer a seguinte per-gunta: ser que a etnografia construda por Pierre Clastres, na qual constatada situao de poder no coercitivo, condiz com as terminologias de Arendt? Ou melhor, ser que as terminologias da pensadora do conta da realidade poltica constatada na etnografia do antroplogo?

    Para Pierre Clastres, como j foi salientado, a ausncia da relao coman-do-obedincia em determinado contexto, no significa ausncia de poder, ou seja, para ele, o poder pode ser coercitivo e no coercitivo, diferente da forma como Arendt pensa, j que para ela poder no est relacionado, teoricamente, com coero. Clastres, em sua pesquisa antropolgica, trata de entender como se reali-za a situao de poder em determinadas sociedades indgenas da Amrica do Sul e deixa claro que so encontrados nestas sociedades um poder quase impotente, uma funo que funciona sem contedo e uma chefia sem autoridade.

    Os chefes destas sociedades so, na maioria dos casos, dotados de trs ca-ractersticas principais: so generosos com seus bens, no podendo negar a um alheio o pedido de um bem que lhe pertence; so mantenedores da paz, tendo assim de tentar evitar brigas entre os moradores da tribo; so bons oradores.

    Dois exemplos so fundamentais para mostrar que o que se v uma chefia carente de autoridade. O primeiro em relao generosidade:

    [...] esta obrigao de dar, a qual o chefe se v submetido, vivida de fato pelos indgenas como quase um direito para infligir-lhe uma pilhagem per-manente. E se o dedicado chefe busca frear esta fuga de presentes, lhe negado imediatamente todo poder, todo prestgio. (CLASTRES, 2010, p. 41)7

    O segundo diz respeito ao desprezo pelos de envolvidos em desaven-as, quanto ao pedido do chefe para que se evite uma briga, pois no o pedido do mesmo que vai dar a deciso final sobre o futuro de uma desavena. Desse modo, uma das funes principais do chefe, manter a paz, no necessariamente se concretiza:

    [...] as funes do chefe so sempre controladas pela opinio pblica. Como planejador das atividades econmicas e cerimoniais do grupo, o lder no possui nenhum poder de deciso; ele nunca est seguro de que suas ordens sero executadas; esta fragilidade permanente de um poder incessantemente questionado [...] (CLASTRES, 2010, p. 48)8

    7 [...] esta obligacin de dar, a la cual el jefe se ve sometido, es vivida de hecho por los indgenas como casi un derecho para aplicarle un pillaje permanente. Y si el desdichado jefe busca frenar esta fuga de regalos, le son inmediatamente negados todo poder, todo prestigio.

    8 [...] las funciones del jefe son siempre controladas por la opinin publica. Como planificador de las actividades econmicas y ceremoniales del grupo, el lder no posee ningn poder de decisin; el nunca esta seguro que sus rdenes sern ejecutadas; esta fragilidad permanente de un poder incesantemente cuestionado [...]

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    O poder do chefe, ento, est sempre em dependncia da boa vontade do grupo. Um ponto fundamental que se deve notar no trecho acima a impor-tncia da opinio pblica sobre as funes da chefia, j que a sociedade exerce um importante papel diante da instncia de poder, no deixando que o chefe estabelea um controle sobre seus membros. Tambm temos uma situao de poder em tais sociedades que nasce da mesma opinio pblica, ou seja, de um consenso entre os membros sociais, tendo assim o grupo uma importante fun-o diante do status de chefia, como afirma Clastres: El poder normal, civil, basado en el consensus omnium y no en la coercin, es de naturaleza profundamente pacifica. (CLASTRES, 2010, p. 41, grifo do autor)

    Ora, temos, ento, na etnografia de Pierre Clastres, situaes que cor-respondem s ideias de Hannah Arendt, nas quais o poder no tem relao al-guma com o vigor, com a fora, a autoridade ou com a violncia.

    Pode-se afirmar, a partir de uma leitura de Hannah Arendt, que o que se encontra na etnografia construda por Clastres so situaes de poder? Obser-va-se que a resposta pode ser afirmativa. Como foi descrito acima, para a pen-sadora, o poder no propriedade de um indivduo, mas do grupo. Dizer que algum est no poder afirmar que este algum foi empossado por um certo nmeros de pessoas para agir em seu nome. exatamente o que acontece nas sociedades pesquisadas na Amrica do Sul, como pode ser verificado na descri-o feita por Clastres sobre os tupinambs:

    [...] O Conselho ao qual o chefe deveria submeter todas suas decises estava precisamente composto em parte pelos guerreiros mais brilhan-tes, e entre eles a assembleia escolhia, em geral, o novo chefe, quando o filho do lder morto era considerado inapto para o exerccio desta funo. (CLASTRES, 2010, p. 46)9

    Poder-se-ia contradizer esta similaridade entre a teoria de Arendt e a situ-ao descrita por Clastres, afirmando que tanto os chefes quanto os membros do conselho devem ser bons caadores ou guerreiros. Isto , o vigor tem uma gran-de importncia diante das instncias do poder, diferente do que Arendt afirma diante da relao poder/vigor. parte dos critrios de escolha que cada sociedade detm para a situao de chefia, o importante aqui, que est de acordo com o pen-samento da filsofa, que, quando empossado, o vigor do chefe nestas sociedades indgenas desaparece atravs da ao do grupo sobre ele, tornando-o um indiv-duo generoso e sem autoridade que se configura na etnografia. Segundo Arendt

    9 El Consejo al que el jefe deba someter todas sus decisiones estaba precisamente compuesto en parte por los guerreros mas brillantes, y entre ellos la asamblea escoga, en general, al nuevo jefe, cuando el hijo del lder muerto era considerado inepto para el ejercicio de esta funcin.

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    (2004), o vigor do indivduo mais forte sempre pode ser sobrepujado por muitos, que no raro entraro em acordo para nenhum outro propsito seno o de arrui-nar o vigor. Neste sentido, da natureza de um grupo e de seu poder voltar-se contra a independncia, propriedade do vigor individual.

    Outro ponto importante est na diferenciao entre poder e autorida-de. Em todo o decorrer da etnografia descrita por Clastres, nos deparamos com alguns termos que caracterizam a chefia indgena. Assim, comum, durante o texto, o antroplogo afirmar que o que se apresenta um poder quase impoten-te, um poder esvaziado de autoridade, que as ordens dos chefes nem sempre so executadas. Temos, ento, um caso bem representativo do que Hannah Arendt escreve em sua teoria: poder no implica em autoridade. Os dois termos so coisas distintas, apesar de ser comum na realidade concreta deparar-se com um poder revestido de autoridade.

    Observa-se-se, ento, que as formas como Arendt e Clastres pensam o poder esto de algum modo bem prximas. Ver-se- tambm que as suas ideias se aproximam quanto aos problemas que entendem ter a configurao do atual Estado moderno/burocrtico.

    Clastres escreve que a forma como se funda o status de chefia nas socieda-des indgenas pesquisadas est fora daquilo que fundamenta a prpria sociedade e suas relaes: a troca. O cargo de chefia neste caso no resultante de intercm-bio, , na verdade, uma doao do grupo ao chefe sem a necessidade de contra-partida. Por no ser fundado na troca, a chefia est fora do grupo, uma funo esvaziada, sem autoridade, sem capacidade de regular e coagir os membros da sociedade. Assim, esta realidade observada pelo antroplogo no abre nenhuma exceo para o contratualismo de Hobbes, Locke ou Rosseau. Pierre Clastres ar-gumenta que a atividade inconsciente da sociedade que vai elaborar [...] el mo-delo estructural de la relacin del grupo social con el poder poltico (CLASTRES, 2010, p. 53, grifo do autor) do qual se analisa. Por isso, estas sociedades apresentam um modelo poltico, aparentemente, extremamente eficaz, inconscientemente ela-borado por essas ditas sociedades primitivas. difcil medir o quanto a posio poltica do antroplogo, nitidamente de orientao anrquica, influenciou no resultado do seu trabalho. O certo que temos nas suas entrelinhas uma crti-ca sutil maneira como se configura o Estado burocrtico atual, caracterizado pela incapacidade de resolver algumas questes, como de que modo a sociedade pode controlar o poder. Foi neste sentido que pensadores da filosofia poltica moderna elaboraram teorias que buscaram amenizar o problema do controle do poder, a exemplo de Locke, Montesquieu, Tocqueville entre outros. Os dois autores aqui tratados compartilham, cada um a seu modo, que o que se encontra

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    hoje um abismo entre sociedade e poder, causado pela extrema burocratizao do mundo, e esta burocratizao que, segundo Arendt, estimula a violncia por parte de alguns segmentos contestadores do seu momento, j que estes no tm a quem reclamar ou como influir em decises tomadas nas esferas de po-der. Por isso, sua nfase na crtica ao governo burocrtico:

    Em uma burocracia plenamente desenvolvida, no h como discutir, a quem apresentar reclamaes, sobre quem exercer as presses do poder. A burocracia a forma de poder onde todos so privados de liberdade po-ltica, do poder de agir; j que o governo de Ningum no a ausncia de governo, e onde todos so igualmente destitudos de poder temos uma tirania sem tirano. A caracterstica crucial das rebelies estudantis em todo o mundo a de que esto elas dirigidas em todos os lugares contra a burocracia dominante. (ARENDT, 2004, p. 51)

    Em Clastres, temos entre as sociedades indgenas pesquisadas um mo-delo poltico sofisticado e eficiente, que fez com que a sociedade controlasse o poder e se impusesse sobre a chefia. exatamente esta sutil eficcia entre as sociedades primitivas que o etnocentrismo reinante impede que se perceba.

    Observa-se tambm pontos de concordncia quando os dois estudiosos descrevem sobre a situao de guerra. Enquanto para Hannah Arendt a guerra falncia de poder, anulao da poltica; na etnografia de Clastres, os tempos de guerra entre os povos primitivos, tempo no qual possvel ditar ordens, indica uma verdadeira anulao da configurao de poder encontrada em tempos de paz entre estes povos. Essa relao acaba sendo mais um indicador da grande proximidade entre a noo de poder da pensadora e a forma como o poder se estabelece entre as sociedades amerndias estudadas por Pierre Clastres.

    CONSIDERAES FINAIS

    O ponto mais importante de diferenciao acerca da noo de poder en-tre os dois estudiosos advm da radicalidade de Arendt. Enquanto para o an-troplogo, o tipo de poder estabelecido nas sociedades ocidentais modernas o coercitivo, atravs do qual se detm o monoplio legtimo da violncia, sendo, por isso, que situaes de coero e uso da violncia seriam tpicas e normais de um poder que se estabelece atravs da relao comando-obedincia; para Arendt, a violncia no um problema de um tipo de poder, mas de falncia de poder, e nos casos que analisa, um problema de falncia de poder causado pela burocracia. Por isso, ela afirma que quanto mais se burocratiza a vida pblica, mais forte ser a atrao pela violncia, j que em uma burocracia no h a quem

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    se possa inquirir, a quem se possa prestar queixas, sobre quem exercer as pres-ses do poder, sendo assim, o domnio de Ningum, para a pensadora o mais tirnico de todos, um domnio que glorifica a violncia e frustra a faculdade de ao, importantssima pea para insero na vida poltica.

    As similaridades entre os dois estudiosos advm do fato de que suas for-mas de pensar o poder os levam em outra direo que no a pregada pela tradio da teoria poltica. Isso pode implicar em algumas questes interessantes, em um olhar ps-moderno tanto da antropologia quanto da cincia poltica em relao aos fenmenos que j estavam acontecendo no momento que Hannah Arendt es-creveu Sobre a violncia, e ainda acontecem hoje, principalmente no Brasil. Seriam estes o novo nacionalismo, as afirmaes tnicas e as exploses de grupos que vm se identificando como indgenas ou quilombolas, fenmenos que vo de en-contro maneira como se formaram os diversos Estados-nao modernos e seus arcabouos tericos, ou seja, com a reivindicao de lngua, territrio ou religio comum em detrimento do respeito s diversidades, um processo que implicou a sublimao das diferenas contidas em um dado territrio, que esto agora, devido a diversos fatores, emergindo. Ter-se-ia ento, junto a uma nova forma de se pensar o poder, uma nova forma de se pensar o nacionalismo e a nao.

    POWER AND VIOLENCE: A PARALLEL BETWEEN PIERRE CLASTRES AND HANNAH ARENDT

    ABSTRACT

    This article proposes to verify the proximity and the possible differences between the ideas found in the studies of the anthropologist Pierre Clastres and of the philosopher Hannah Arendt, considering that their studies criticize the traditional concept of power, and analyze the power situation described in the ethnography of the anthropologist in his article titled Exchange and power: philosophy of indigenous leadership from the concepts developed by Arendt in her book On violence. Thus, it will be necessary, first, to verify the notion of power that modern political theory and the theory of Max Weber establishes, and then understand how the two scholars offer a new angle on the percep-tion of power, politics, authoritarian and peaceful relations , command and obedience. Will be made in this text, a brief literature review of some theorists of political philo-sophy and Weberian theory in order to understand how the notion of political power and modern state have been developed, and, through this period, as these terms were correlated with violence, considering that this review will provide the necessary support to understanding that the notion of Hannah Arendt and Pierre Clastres on power is not necessarily correlated with violence.

    Keywords: Hannah Arendt. Pierre Clastres. Power. Violence.

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