cin'surgente: o livro - léo pimentel e sandra nascimento (2012)

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Coletânea de textos que analisam os filmes assistidos no cineclube “cin’surgente” (no lounge nômade “Perfume do Deserto” – http://perfumedodeserto.blogspot.com) entre os anos de 2009 e 2010. Com posfácio (transcrito de uma conversa informa) de Julio Cabrera (http://filosofojuliocabrera.blogspot.com)

Transcript of cin'surgente: o livro - léo pimentel e sandra nascimento (2012)

Léo Pimentel Souto, Sandra M. Nascimento

http://amantedaheresia.blogspot.com / http://institutoautonomia.org.br

cin’surgente em O Livro

Com um posfácio de Julio Cabrera – Filósofo do Cinema

http://filosofojuliocabrera.blogspot.com.

– Brasília: Instituto Autonomia, 2012

Coletânea de textos que analisam os filmes assistidos no cineclube “cin’surgente” (no lounge nômade

“Perfume do Deserto” – http://perfumedodeserto.blogspot.com) entre os anos de 2009 e 2010

[2012]

As imagens que ilustram cada texto e sua versão ampliada, que estão em anexo, são colagens que serviram

como convite às sessões do cineclube.

Organização, textos e projeto gráfico: Léo Pimentel Souto

Revisão e textos: Sandra M. Nascimento

“Não sou um

profissional

de cinema,

mas um

militante

dele.”

Cacá Diegues

– Cineasta –

Índice

Insurge o SubverCine! terça-feira, 30 de junho de 2009 ... p. 07

Se...

sexta-feira, 3 de julho de 2009 ... p. 08 Zero pela conduta - Jean Vigo e nós! Suas crianças

segunda-feira, 10 de agosto de 2009 ... p. 08 A origem do SubverCine Sci-Fi

quinta-feira, 8 de outubro de 2009 ... p. 09 SubverCine Bunbu Itchi

segunda-feira, 26 de outubro de 2009 ... p. 11 2010, maio - O Retorno

quarta-feira, 5 de maio de 2010 ... p. 14 Latcho Drom (de Tony Gatlif) e a superação do urbano

quinta-feira, 13 de maio de 2010 ... p. 15 Waking Life: um ensaio sobre a cegueira cotidiana

quarta-feira, 19 de maio de 2010 ... p. 16 Sweet Movie - contra todos os regimes!

quinta-feira, 10 de junho de 2010 ... p. 17 A Vida dos Outros - ou o que fazemos com a nossa finitude?

domingo, 27 de junho de 2010 ... p. 19 Valsa com Bashir - dançando com a dor dos outros

terça-feira, 6 de julho de 2010 ... p. 21 I love you - ou, Podemos amar qualquer coisa, inclusive pessoas

segunda-feira, 19 de julho de 2010 ... p. 23 A Montanha Sagrada - ou a teologia materialista do Real

domingo, 8 de agosto de 2010 ... p. 25 Veludo Azul - ou nada decidiu a forma de existência que observamos

quinta-feira, 12 de agosto de 2010 ... p. 27 Senhor das Moscas - ou, a arte tribal das crianças da realidade suficiente.

domingo, 22 de agosto de 2010 ... p. 29

Sociedade do Espetáculo - ou, a narração da Ontologia do Vazio

domingo, 5 de setembro de 2010 ... p. 31 Lucio, o anarquista - ou, quem tem medo do anarquismo?

quarta-feira, 8 de setembro de 2010 ... p. 33 Virada Movies - 2010

quarta-feira, 15 de setembro de 2010 ... p. 35 Vida Cigana - ou adesão à existência sem remorso nem segundas intenções

quarta-feira, 29 de setembro de 2010 ... p. 37 Wood & Stock - ou o futuro de uma ilusão

sexta-feira, 1 de outubro de 2010 ... p. 39 Solaris - matando a Coisa e mostrando o ... a coisa mesma.

domingo, 17 de outubro de 2010 ... p. 41 Stalker - ou a transvaloração do turismo

domingo, 7 de novembro de 2010 ... p. 43 Outubro - ou a partir do modelo Chinês

terça-feira, 16 de novembro de 2010 ... p. 45 Surplus - ou o Arcaismo Revolucionário

domingo, 21 de novembro de 2010 ... p. 47 Queimada - ou Brincando com fogo

quarta-feira, 24 de novembro de 2010 ... p. 50 Lilian M. - ou Liberdade: só a Libertinagem vos Libertará

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010 ... p. 52 El Topo - ou, Por uma Mística do Trágico

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010 ... p. 55 Libertárias - ou Um exército disposto a desaparecer

terça-feira, 14 de dezembro de 2010 ... p. 57 Tetsuo, the Iron Man & Save the Green Planet - A Experiência Final

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010 ... p. 59 Por um Posfácio Nada Difícil,

– Sobre Politizar Conceitos-Imagens - Julio Cabrera ... p.61

Anexo: Convites para as sessões do cin’surgente ... p. 61

Introito: o Cin‟surgente nasceu de duas necessidades de ver

cinema: deseducação imagética e cinema-limite.

A deseducação imagética é necessária, pois, desde que nascemos, somos inseridos em um universo

de imagens que nos condiciona a uma específica interpretação: imagens são substitutos de realidades. A

propaganda, cujo objetivo é vender algo, encharca as imagens de consumo rápido; educa nossa sensibilidade

de modo que cada imagem torna-se um objeto de desejo para ser consumido de imediato. A televisão, cujo

aparelho tornou-se objeto impossível de ser dispensado em cada lar, encharca as imagens com interesses e

compromissos dos donos e associados das estações de TV; educa nossa sensibilidade de modo que cada

imagem torna-se tanto duplo do real, com pretensão de substituí-lo enquanto tal, quanto informação de

assimilação imediata, sem silêncio algum para ser pensada, avaliada, , medida, comparada. O cinema, cujo

status de representação foi logo substituído pelo de entretenimento, encharca as imagens de linearidade e

grandiosidade; educa nossa sensibilidade de modo que cada imagem torna-se começo, meio e fim formador

de pensamentos unidimensionais. Portanto, esta tríade mínima de criação e reprodução de imagens, cria uma

educação unilateral que naturaliza a imagem ocultando seus artifícios naturais: desejo (consumo rápido),

interesse (apreensão imediata) e narrativa (entertainer).

No entanto, há uma fenda nessa educação: o cinema-limite. Este não deixa de ser desejo, interesse e

narrativa, no entanto, não faz a opção pela unidimensionalidade e pela exegese imagética de fácil absorção.

Não está comprometido em vender, propagar interesses em massa ou entreter. A fenda cinema-limite é

propriamente a criação e a reprodução da imagem cujo processo opera como necessidade deseducadora

para se reeducar. Deseducação necessária tanto aos conteúdos quanto às formas. Reeducação necessária

tanto aos conteúdos quanto às formas. O cinema-limite é beira do abismo; o horizonte de eventos de um

buraco-negro; a revolução permanente; é a impossibilidade da quietude e a irreversibilidade da volta. É

ferramenta para ao mesmo tempo destruir e construir.

Pois bem, em 2009, o lounge nômade Perfume do Deserto abre-se como espaço para essa

deseducação (abre semanalmente para realização de um cineclube); os livros sobre cinema de Julio Cabrera

tornam-se inspirações deseducantes, já que muitos daqueles e daquelas frequentadoras eram leitores de

seus livros; e o cinema-limite: um horizonte (assistir, pensar e realizar). Assim surge o Cin‟surgente: onde

fizemos exibições públicas de filmes; reunimos convidados e convidadas; discutimos, após a exibição, sobre

as situações limites que os filmes propunham, ora em seus conteúdos, ora em suas formas e ora em ambos;

e a cada sessão produzimos um texto cujo conteúdo não era resumo da discussão, mas sim apropriação livre

de seus tópicos mais interessantes. E que hoje, em 2012, reunidos , tornam-se e-livro e manifesto para “outro

cinema é possível”. Esse e-livro é, na sua forma original, a historicidade dos encontros que resultaram na

elaboração dos textos, como expressão atemporal. É assim, um diário selado.

Intermezzo: No Cin‟surgente a presença mais ausente e ao

mesmo tempo a ausência mais presente foi a de Julio Cabrera.

Filósofo desenvolvedor da interpretação original do cinema como sendo um modo de pensar ao mesmo

tempo em que este pensa: o cinema como pensamento e algo pensante, simultaneamente; como produto de

criação, representação e composição simultâneo à polissemia que o faz escapar das mãos e das cabeças de

seus próprios realizadores e realizadoras. O cinema como dependência e autonomia.

Julio Cabrera, espécie de Obi Wan Kenobi e Darth Vader do Cin‟surgente, deve tornar-se presente. Ecce

Homo!

1. Julio, antes de tudo, como é saber que suas ideias sobre cinema podem abrir estranhos horizontes,

como, por exemplo, o Cin‟surgente sendo um espaço para a deseducação imagética através de

filmes-limite? (a influência antecedente)

2. Julio, como você vê entende essa ideia de deseducação imagética? (perspectiva negativa da

educação – desobediência hermenêutica). (sobre ausência-presença)

3. Como você entende o que venha a ser filmes-limites, já que inclusive você mesmo sugeriu alguma

para nosso cineclube, como “i love you” e “senhor das moscas”? (as bordas e beiras do fazer filmes)

(sobre presença-ausência)

4. Julio! Comente e complete a seguinte frase: “Os crítico, os teóricos, os filósofos e intelectuais de toda

sorte têm apenas interpretado o cinema de maneiras diferentes; a questão, porém, é...”.

(a influência subsequente)

Mas... antes das respostas de Julio Cabrera ...

O lounge nômade Perfume do Deserto tem o orgulho de apresentar!

Antes, porém:

Insurge o SubverCine! terça-feira, 30 de junho de 2009

Enquanto o 'ser' conformista se transveste em 'ser'

realista... enquanto a juventude se torna prudente e carreirista...

enquanto a futilidade da opulência se torna meta... enquanto o

conceito de liberdade se transforma no conceito de

responsabilidade... o sonho não dorme. O sonho conspira.

Subverte a vigília. Avalia nossa condição consciente e

compreende libidinalmente nossas aspirações. Um sonho jamais

pode ser forçado. No entanto pode ser invocado. Não por

encomenda. Mas podemos maximizar a possibilidade de seu

florescimento. A conspiração do sonho é claramente sensível ao

ritual e à magia da sugestão. E o cinema é um tipo de máquina

onírica que se deixa infiltrar, dentre seu contraponto - o silêncio

de quem o assiste -, a realidade que desejamos viver: a grande

conspiração do sonho!

Assim o SubverCine insurge. Aparece para mover a si

mesmo. Libertar ou criar as condições do florescimento de outra

realidade. Mais viva e pulsante. Nada mais pode ser o que era

antes. Se bem deliciada inverte a ordem das coisas - que sabemos não é nada abstrata, e sim a tradução

concreta da dominação. E já estava anunciada nos muros de uma velha Paris: "A sociedade da alienação

deve ser varrida da história. Nós estamos inventando um mundo novo e original. A imaginação está tomando

o poder!". Que o cinema, a conversa, a magia, o sonho e até as estrelas sejam guias de tudo o que

desejamos.

Se... sexta-feira, 3 de julho de 2009

Uma das frases orientais mais célebre e usada em uma infinidade de contextos – já apareceu até

mesmo em um episódio da série “Os Simpsons” – pode ilustrar o que aconteceu ontem em nosso lounge

nômade. Vamos lá:

Qual é o som de uma árvore,

que cai no meio de uma floresta,

mas não tem ninguém para ouvi-lo?

Enquanto vocês pensam a resposta, farei algumas considerações sobre o filme 'If...'. Um dos mais

interessantes filmes da história do cinema. Primeiro por que vai muito além de uma experiência estética.

Devem-se ter olhos e ouvidos nada apressados. Deve-se ter força e delicadeza aguçadas. Deve-se estar

prestes a celebrar uma insurreição. Depois, por que é um acordar-se ao nascer do sol, totalmente desperto,

revigorado! Pois quem ainda se atreve a realizar uma mitopoese

para si mesmo/a? A responder três vezes que não se acredita em

deuses, ídolos e celebridades? E assim, realizar milagres através

de seus próprios poderes e forças?!

Esse filme evita a necessidade de um professor - e até

mesmo de seu diretor, Lindsay Anderson. Transborda em

inspirações e sintomas oníricos. Possíveis, até mesmo, aos

espíritos distantes de quem não vivenciou a contracultura dos anos

1960. É caos, nos moldes do pensamento chinês: está cheio de

potencial. Como a experiência da água em um vaso que, aos

poucos, transborda e, assim, cada gota acha seu caminho, fertiliza

a terra e traz tudo à vida. Mick Traveis (Malcom Mcdowell) encontra

seu significado, mas se potencializa ao dançar com o 'super-id' nos

porões escuros, porém amplamente visível, de nossa libido.

Ah, sim ... e então encontraram a resposta? Se não .... então, nos vemos em nosso próximo

SubverCine.

Zero pela conduta - Jean Vigo e nós!, suas crianças segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Não é de se excitar a kundaline? Ler essa frase do poeta Raoul Vaneigem: "Tudo aquilo que pode ser

destruído, deve ser destruído para que as crianças possam ser salvas da escravidão". Ah, ela nos reconecta

às questões mais fundamentais de nossa existência: o que fazemos com aquilo que fizeram de nós?

Lembram de Jean Paul Sartre em seu Ser e o Nada?

Os dias na escola - do ensino fundamental à universidade - devem ser algo mais do que a soma de

coações, humilhação, isolamento, sofrimento e decadência. Deve haver algo mais do que uma estrutura

pedagógica voltada à ideia de que devemos aprender a sobreviver e não aprender a viver. Professoras e

professoras devem estar empenhados/as em fazer muito mais do que nos educar para que pensemos que

existe apenas uma forma certa de viver.

Pensemos na tragédia e do patético de estudantes,

professores e professoras por todo o planeta: quantos/as

estudantes já se suicidaram ou assassinaram e ainda se

suicidarão e assassinarão devido a anos de conscientização

cega estimulada e cultivada nas escolas? Abro aqui um

parêntese curioso: o modo de a psicologia interpretar o

suicídio (devo lembrar aqui que não estou tratando do

suicídio como boa-morte1) como um modo que revela as

condições as quais se viveu: os/as culpados/as enforcam-se;

os/as que se sentem sacrificados/as cortam suas gargantas;

quem se atira de prédios e de pontes são os/as

rejeitados/as; já os/as que têm mentes atormentadas se dão

um tiro na cabeça. Mas, voltando, e os/as estudantes os/as

que não fazem a opção por esse tipo pandêmico de suicídio

mas optam pelo assassinato, e assim se tornam

assassinos/as luciferinos/as revoltosos/as ? Como o ocorrido

em 1999, na Columbine High School, por exemplo. E o

patético professores e professoras que morrem de medo, por

se considerarem não responsáveis pela educação como um

todo, em entrar em sala de aula, pois podem ser espancados

por seus estudantes, sejam escolas públicas ou particulares? Aqui mesmo no Distrito Federal há outro tipo de

tragicomédia pedagógica: adultos/as frustrados/as em carteiras de faculdades particulares exigindo de

seus/suas professores/as que façam de tudo para entretê-los/las, que lhes deem ocupações anti-estresse ou

1 Tipo de suicídio que potencializa o modo como se viveu. Como por exemplo, aquelas pessoas que se suicidam exatamente por estarem em uma fase muito boa da vida, ou aquelas que querem sim viver, mas rejeitam, de boa-vontade, a forma de vida em que se vive.

que os façam correr atrás de coisas que não precisam. Que tipo de subjetividade se está construindo nas

escolas?

Eis que entra em cena "Zéro de Conduite" (Zero pela Conduta), de Jean Vigo, que assistimos no

SubverCine passado para lançar luzes à nossa questão sartreana fundamental: o que fazemos com aquilo

que fizeram de nós? O filme é de 1933, sem dúvida alguma, atemporal! Tranquilamente faz parte de uma

corrente subversiva que ainda não disse tudo – a qual o próprio diretor do filme anterior, “If...”, Lindsay

Anderson, abertamente dizer ter se inspirado em “zero de Conduite” para fazer o seu. Portanto, também nos

inspiremos na perspectiva dessas crianças que tiram zero pela conduta: que a garantia de não morrer de

fome não se troque pelo risco de morrer de tédio! Assim, orientalmente falando, esse filme também excita a

kundaline.

Em Zero pela Conduta, a opção por viver é, antes de tudo uma opção política. Esta que está nos

limites entre a antiga luta de classes e as atuais ações afirmativas. Ah, essas crianças bagunceiras... É um

mergulho em nossos sonhos. É uma fuga bem sucedida do lugar-comum cunhado a ferro e fogo. O mundo

está aí para ser refeito, o quanto for necessário. Especialista algum conseguirá impedir vontades que não

estão fadigadas pelo cotidiano. Não há álibi nenhum para a resignação. A inocência é lúcida e se organiza

por uma exuberância libidinal própria de uma insurreição bem sucedida contra a violência de um mundo

repressivo e tecnocrata. Crianças nos lembrando de que se esquecermos das misérias da militância, do

desespero do terrorismo e do voyerismo ao "bom selvagem", teremos "um mundo de prazeres a ganhar, e

nada além do tédio a perder".

A origem do SubverCine Sci-Fi quinta-feira, 8 de outubro de 2009

"Essa é a exploração que espera por você. Não mapear estrelas e o estudo de nebulosas, mas

catalogar as possibilidades da existência."

- Q para o Capitão Jean-Luc Picard, em "All Good Things..."

Às margens de um horizonte de eventos da fusão entre dois buracos-negros, galáxia NGC 6240,

Aviñoká resolveu reunir todo seu povo, mansos e bravos, para distribuir poderes. O primeiro foi Kuikúru. Este

tomou o arco de gravitação quântica. Feito isto seus parentes todos passaram a usar esse tipo de arco.

Depois, outro apareceu. Escolheu pegar um arco de relatividade geral. Finalmente, outro pegou o arco de

supercordas. Logo, Aviñoká com uma mão apontou em direção à constelação de Ophiuchus, com a outra,

apontou para o centro da fusão. Mandou que escolhessem. Escolhido, que por lá se distribuíssem. Como

essa constelação tem muitos bandeirantes, mercenários, latifundiários planetários e businessmen

intergalácticos, os nativos ficaram tentados. Aviñoká ficou zangado. Os nativos, então, energizaram só as

mãos e correram para desenergizar num punhado de antimatéria. Esse punhado tornou-se matéria escura -

prenúncio de um micro universo bebê. Um menos medroso aproximou de Aviñoká, tocou sua testa, em sinal

de entendimento, e seguiu. Nesse instante, do meio da fusão dos dois buracos-negros, um grito de guerra.

Os nativos estremeceram. Aviñoká disse: "Todo o universo morrerá um dia, também todos nós!". Novo grito

foi ouvido, desta vez, vindo do centro de Ophiuchus. Era o grito de pavor dos civilizadores. Então Aviñoká

predisse: "Buracos-negros nunca morrerão e, portanto, de lá nunca desapareceremos". Todos vislumbraram

que lá no meio da fusão entre os dois buracos-negros, há uma grande aldeia com bonitas roças e, portanto,

munidos de tais maravilhosos arcos, terão que protegê-las de novos civilizadores. Custe o que custar.

SubverCine Bunbu Itchi segunda-feira, 26 de outubro de 2009

De um modo geral, qualquer cidadão letrado, aqui pelas bandas do ocidente, imagina que a pena (a

palavra) é mais poderosa que a espada. Porém, lá pelas ilhas japonesas, imaginam bunbu itchi, ou "a pena e

a espada juntas". Estes modos de imaginação têm consequências vitais. O primeiro modo, nos torna, ou

pessoas falastronas, ou pessoas que acreditam demasiado que, apenas conversando, tudo se resolve.

Superestimamos, de tal maneira, o poder da palavra que nos esquecemos da espada. Desta seguimos ao

segundo modo. Espada não significa resolver a situação na porrada. Ela significa ação. Bunbu itchi é o

princípio o qual nos traz a sabedoria de que agir sem pensar é tão inútil quanto pensar sem ação. Es te modo

nos torna pessoas, ao mesmo tempo, mais corajosas e mais sábias. Ah, que belíssima estrela errante para

nos servir de guia. No entanto, SubverCine! Além da palavra, imagens em movimento - ideografia dinâmica.

Aqui imaginamos que tal movimento seja o de um exímio espadachim. Assim como o de escrever

ideogramas. Nenhuma tensão no corpo. Tudo é flexível, mesmo diante de uma morte trágica. Como um

bambu ao vento na beira de um precipício. Imagens sem a espada é tão inútil quanto espada sem imagens.

Talvez os povos que escrevem por ideogramas tenham mais algo a diz que os povos que escrevem por

fonemas e sílabas.

“Com que então pertenço aos céus?

Não fosse assim, por que é que os céus

Me olhariam assim com seu eterno olhar azul,

Me chamando, e à minha mente, mais alto,

Sempre mais alto, sempre mais acima,

Me chamando sempre para o máximo,

Para alturas que homem algum imagina?

Por que, estudado o equilíbrio

E o vôo planejado até a última minúcia,

Até não haver margem para o infortúnio,

Por que, até aí, deve a ânsia de subir

Ser associada à insânia?

Nada nesta terra vai me ver satisfeito;

Novidades do mundo, logo monótonas;

Algo me chama lá em cima, para cima,

Cada vez mais perto da faísca do sol.

Por que me queimam estes raios da razão.

Por que me destroem estes raios?”

Trecho do poema "Ícaro" de Yukio Mishima, traduzido por Paulo Leminski

2010, maio - O Retorno quarta-feira, 5 de maio de 2010

Após seis meses, o retorno. Novamente liberamos um espaço-tempo. O tornamos livre. No continuum

dos lugares retos de Niemayer, uma curva, uma esquina, uma sinuosidade. Na margem do centro do círculo

perfeito da Asa Sul, uma espiral, um fractal, um estranho atrator. Na ditadura civil do IPHAN, um reino

anarquista, uma ilha pirata, uma zona autônoma temporária, um quilombo virtual. Sintam o aroma. Sintam o

sabor. Sim, é o Perfume do Deserto.

Estará aberto todos os dias, de acordo com a lógica do desejo do/a visitante. É só entrar em contato.

É interativo. É recíproco.

O Subvercine muda de nome e torna-se Cin'Surgente. Todas as terças-feiras às 21hs nosso

cineclube tem sua vez. Cada terça-feira é um tema: Sci-Fi, Documentário, Arte, Político e Outro. Sempre um

filme seguido de debates. No entanto, uma orientação para as conversas: deseducação imagética – esvaziar

para voltar a preencher. Devidamente documentados para a composição de nossa revisita ao modo de

produzir, criar e difundir o cinema enquanto tratamento de imagens.

A Filodramaturgia urge aos sábados. A partir das 19hs. É a filosofia dramatizada pelas nossas

experiências cotidianas. São filósofos e filósofas convidadas para um café dramático. São os temas f ilosóficos

intimados a responder pelas suas origens mais banais e corriqueiras.

A Feirinha Subversiva aos domingos. Às 17hs. Tudo posto à troca. Vendas também são possíveis.

Semanalmente postaremos uma lista de coisas e serviços que se disponibilizarão. Pessoas interessadas,

entrem em contato conosco.

Nos demais dias da semana, a programação é livremente discutida com amigos e amigas que

desejam realizar seus anseios. O espaço foi liberado. Não está sujeito ao rolo compressor do dia a dia. Não

há motivos para sermos iguais. Muito menos para nos igualar por baixo. A exuberância é nosso estado de

espírito. Nosso humor mais refinado. Não se acanhem. Junte-se a nós. Estamos lhe esperando.

Consagraremos nosso retorno na próxima terça-feira (11 de maio, 2010) às 21hs com a abertura do

Cin‟surgente. Com a exibição do filme Latcho Drom (1993) de Tony Gatlif. Venham, venham todas/os! Somos

todo/as convidadas/os e anfitriões/as.

Latcho Drom (de Tony Gatlif) e a superação do urbano quinta-feira, 13 de maio de 2010

Nós, que num estranho e ambíguo sentimento

nos orgulhamos de sermos urbanóides, deixemos de

lado o apego à terrinha; deixemos de lado o amor à

arquitetura e ao urbanismo; tornemo-nos

estrangeiros/as em nossas próprias cidades; sejamos

imigrantes em nossa própria terra; ousemos jamais

pensar em sermos turistas; abdiquemos da condição

moderna de caçadores e caçadoras de suvenirs;

esqueçamos que o horizonte de viagem esteja

condenado ao consumo de cultura. Depois de tudo

isso nos perguntemos: o que nos resta? Nós

mesmos/as! Sem mediações. Vagando e

vagabundeando pelo mundo. Se com boa arte, vaga-

se à vontade; perde-se nas curvas e reentrâncias de

onde se está. Se com boa arte de abandonar-se,

atribui-se ao coração uma qualidade mais relaxada,

um tipo de amor: amante desterrado e desterrada do

ecocapitalismo urbano e turístico. Desse modo Tony

Gatlif emitiu seu próprio visto de viagem e ciganizou-

se: Latcho Drom.

Em língua cigana, Latcho Drom significa "estrada segura". No entanto é preciso construí-la. É preciso

abrir caminho. Estrada que se faz simultaneamente com o caminhar. No caso, Tony Gatlif usa uma câmera

para abrir caminho e caminhar. Ele parte da Índia – “aproximadamente mil anos atrás, por razões ainda

desconhecidas, os ciganos andaram pelas estradas de...” –, passa pelo Egito, Romênia, Turquia, República

Tcheca, Hungria, Alemanha, França e, por fim, chega à Espanha – “Para viver em liberdade”. Uma jornada

que dura um ano – “Deus nos condenou a ser errante”. Experimenta-se um ciclo completo da natureza:

primavera, verão, outono e inverno. O extraordinário é que quase dá para sentir os aromas e sabores dessa

viagem fílmica. Um documentário musical colorido com tintas fortes e vibrantes. Um antídoto contra a pureza -

esta forma perigosa de totalitarismo – “Fugimos da miséria e do ódio”.

“Cresça, melhore, evolua, você ainda é humano. E, um dia, quem sabe, poderá até chegar a ser

cigano. Viverá com nossa ciência. Sorrirá com nossa alegria. Saberá viver antes do sol e fará seu

próprio dia”.

Trecho do Sungrê de Ariel Magnovitch

"A terra é minha pátria, o céu, o meu teto; a liberdade, a minha religião" – lema cigano. Aqui, no

caminho que se abre à medida que se anda, não há medo da liberdade. Aqui, os meus que são mais meus

são outros “eus”. Ninguém é unidimensional. Nenhuma consciência é mercadoria. A experiência mais

significativa é a de que ainda há vida sem a indulgência fútil do romantismo.

“Nossa liberdade é a natureza, nela não existem muralhas para tirar nossa visão do campo aberto,

podemos ter contato com o solo, respirar o verde, sentir a brisa do vento, receber a força dos raios

solares, contemplar a Lua, o brilho das estrelas e tudo o mais que ela possa nos oferecer.”

Jordana Aristicth, no livro Ciganos – Verdade Sobre Nossas Tradições.

Traz-nos, à memória genética, de que jamais nos foi destruído a percepção transglobal e o senso de

vastidão e completude do nomadismo. Estas podem até estarem enfraquecidas, mas são como as plantas

do cerrado. Uma pequena chuva e estão lá elas com sua exuberância reconstituída. Ah, como é linda uma

flor de pequi. O mundo em branco e preto não tem sentido no imaginário cigano. Somente as cores fazem

sentido. É uma linguagem profunda; uma filosofia; uma cosmovisão muito sofisticada. Pois cada uma tem

aroma, sabor e música. Metafísica cromática. Metafísica perfumada. Metafísica às papilas gustativas.

Metafísica para se dançar.

Certo filósofo alemão, certa vez disse que jamais acreditaria em um deus que não soubesse dançar.

“Que semelhança temos com o vaso de rosa que treme apenas porque o oprime uma gota de

orvalho?

Sempre há alguma loucura no amor. Mas sempre há algum método na loucura.

Eu só acredito em um Deus que saiba como dançar.

E quando eu vi meu demônio, eu o encontrei sério, completo, profundo e solene: ele era o espírito

da seriedade (gravidade), através do qual todas as coisas caem.

Nós o derrotaremos não com ódio, mas com gargalhadas. Venha, vamos destruir o espírito da

seriedade!

Agora eu sou luz, agora eu posso voar; agora eu me vejo por trás de mim mesmo. Agora dançou

um Deus em mim.”

Assim falou Zaratustra.

Após assistirmos Lacho Drom, passamos a ciganizar tudo, até mesmo esse tal filósofo alemão, cujo

nome é Nietzsche, a assim saímos por aí dizendo: Eu só assisto um filme que saiba dançar. Sim! De agora

em diante, a dança é prova de nossas verdades!

Waking Life: um ensaio sobre a cegueira cotidiana quarta-feira, 19 de maio de 2010

Nas décadas de 1960 e 1970, por toda parte a

imaginação estava no poder, na verdade estavam

negando o poder, e assim as ideias tentavam destruir

e construir mundos – barricadas, pichações e

colagens. "O que queremos, de fato, é que as ideias

voltem a ser perigosas" - Guy Debord. Pois aquilo que

se queria que o mundo fosse estava a um passo de se

tornar real: revoluções permanentes por todo o

planeta. Havia desejo por mudanças radicais ou então

nada. Tudo deveria ser experimentado com muito

„tesão‟, ou então nada valeria apenas em ser

realizado. Da data do nascimento à data da morte era

tudo o que se tinha tanto a vida quanto a morte não

eram fins em si mesmos e sim meios. Quedas de

governos, revoluções culturais, sexo, drogas e rock'n

roll. Estas eram expressões diretas e inocentes de

uma radical adesão ao viver. Cada momento dessas

experiências bastava-se a si mesma em seu modo

cru. Podiam-se celebrar os aspectos efêmeros da vida

sem pretensões com a eternidade. Podia-se brindar ao momento e à finitude.

Foi na década de 1980, que as pessoas começam a sentir uma espécie de ressaca daquele tamanho

gozo incondicional das décadas anteriores. A grande depressão da vontade. O grande cansaço da liberdade

e das possibilidades. Preconiza-se o afastamento da existência fugidia e o caráter cambiante da vida – por

aqui no Brasil até mesmo conseguimos apontar a pessoas que compunham uma geração pós-abertura

política; uma geração que abre mão da invenção e que abraça o niilismo de estado. Inicia-se a cristalização

das vias de acesso às alegrias momentâneas rumo a uma busca abstrata pela felicidade duradoura e pelo

conforto na inação. Assim, o desejo de imobilidade brota em sua força maior. Dá seus primeiros frutos:

artefatos eletrônicos e tecnologias da informação. A alegria de estar por aí livre e em terminalidade eminente

são trocados pela força dos desejos por autopreservação, eternidade, imortalidade e permanência. Salvo,

apenas o movimento punk!

Eis que chega a década de 1990. A aceitação integral dos aspectos perigosos, problemáticos e

enigmáticos da existência foi esquecida há muito tempo. A imaginação estava morta. Tudo é desejo de

ordem. O futuro da ilusão, como Freud dizia, torna-se ordenamento em ilusão. A imaginação é trocada pela

literalidade. No poder, o establishment. Nele estão depositadas as esperanças por estabilidade, conforto e

segurança. A crueza do real torna-se incômoda, indigesta. Cresce o desejo de livrar-se dele. Os ambientes

tornam-se climatizados – shoppings centers, condomínios habitacionais, apartamentos personalizados. A

tolerância é zero. Toca-se fogo em quem mora nas ruas e em indígenas que aguardam na parada de ônibus

o nascer do próximo dia. A criminalidade deixa de ser uma questão social e torna-se questão de índole

individual. Assim prepara-se a entrada do século XXI: remédios, escapatórias, consolos, prisões e violência. A

crueza do real é soterrada pelas mais diversas realidades edificantes e cheias de alegrias obrigatórias por

meio de proibições.

Porém, Wakin Life, um filme de 2001 de Richard Linklater, que junto aos aviões lançados contra as

torres gêmeas nos EUA abrem o século XXI. Abertura melhor que a imaginada via a inteligência artificial HAL

de 2001: Uma Odisseia pelo Espaço, de Stanley Kubrick, cuja antecipação negativa podemos encontrar na

pergunta de Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep? Também melhor abertura que a preparada

pela estabilidade, o conforto e a segurança prometidas na década de 1990 pelos/as ativistas do capital –

lembremo-nos do colapso do Comunismo e do fim da chamada Guerra Fria como parâmetros de hegemonia.

Wakin Life abre a primeira década do século XXI nos intimando e assim nos instigando a estabelecer um

novo solo fértil para se ultrapassar os limites do até então pensado: não é mais a imaginação, o niilismo de

estado e o consumismo que é fonte do estar no mundo, mas sim um tipo especial de pensar e agir, a reflexão

crítica onírica e o sonho iniciático para insurgir junto ao real. Denso e leve. – como sonhar correndo junto a

lobos ou com jaguatiricas, ou ainda, nadar com as ariranhas. Afeito à criação – não ser formiga:

Eu não quero ser uma formiga. Passamos pela vida, esbarrando uns nos outros... sempre no piloto

automático, como formigas... não sendo solicitados a fazer nada de verdadeiramente humano.

"Pare". "Siga". "Ande aqui". "Dirija ali". Ações voltadas apenas à sobrevivência. Toda comunicação

servindo para manter ativa a colônia de formigas... de um modo eficiente e civilizado.

"O seu troco". "Papel ou plástico?" "Crédito ou débito?" "Aceita ketchup?"

Não quero um canudo. Quero momentos humanos verdadeiros. Quero ver você. Quero que você

me veja. Não quero abrir mão disso. Não quero ser uma formiga, entende?"

Identifica questões mal colocadas – como a do fim do existencialismo.

“A razão pela qual eu me recuso a encarar o existencialismo como outra moda francesa ou

curiosidade histórica é que eu penso que ele tem algo muito importante a nos oferecer, para o

novo século. Temo que estamos perdendo as verdadeiras virtudes de viver a vida

apaixonadamente no sentido de termos responsabilidade por quem somos, a habilidade de fazer

algo de si mesmo e se sentir bem em relação a vida. Existencialismo geralmente é discutido como

uma filosofia do desespero, mas eu penso que a verdade é realmente o oposto disso. Sartre, uma

vez entrevistado disse que ele nunca sentiu um dia de desespero na vida dele. Uma coisa que

aparece de ler esses caras não é tanto um senso de angústia sobre vida, mas um tipo verdadeiro

de exuberância de se sentir no topo dela, é como se a vida fosse sua para criá-la. Eu li os pós-

modernistas com algum interesse, até admiração, mas quando eu os lia eu sempre tinha esse

sentimento irritante horroroso que algo absolutamente essencial estava sendo deixado de lado.

Quanto mais você fala sobre uma pessoa como uma construção social ou como uma confluência

de forças ou como sendo fragmentada ou marginalizada, o que você faz é abrir um novo mundo

inteiro de desculpas. E quando Sartre fala de responsabilidade, ele não está falando de algo

abstrato. Ele não está falando sobre o tipo de “eu” ou “almas” que os teólogos falam. Ele está

falando de você e eu, conversando, fazendo decisões, fazendo coisas, e recebendo as

consequências. Pode ser verdade que existem seis bilhões de pessoas nesse mundo, e

aumentando, entretanto – o que você faz, faz a diferença. Faz a diferença, primeiramente, em

termos materiais, para outras pessoas e dispõe um exemplo. Resumindo, eu penso que a

mensagem aqui é que nós nunca deveríamos nos subestimar ou nos vermos como vítimas de

várias forças. A decisão por sermos quem somos é sempre nossa.“

Identifica falsos problemas – como a questão do "eu".

"A criação vem da imperfeição. Parece ter vindo de um anseio e de uma frustração. É daí, eu

acho, que veio a linguagem. Quero dizer, veio do nosso desejo de transcender o nosso isolamento

e de estabelecer ligações uns com os outros. Devia ser fácil quando era só uma questão de mera

sobrevivência. "Água". Criamos um som para isso. "Tigre atrás de você!" Criamos um som para

isso. Mas fica realmente interessante, eu acho, quando usamos esse mesmo sistema de símbolos

para comunicar tudo de abstrato e intangível que vivenciamos. O que é "frustração"? Ou o que é

"raiva" ou "amor"? Quando eu digo "amor" o som sai da minha boca e atinge o ouvido de outra

pessoa, viaja através de um canal labiríntico em seu cérebro através das memórias de amor ou de

falta de amor. O outro diz que compreende, mas como sei disso? As palavras são inertes. São

apenas símbolos. Estão mortas. Sabe? E tanto da nossa experiência é intangível. E, ainda assim,

quando nos comunicamos uns com os outros e sentimos ter feito uma ligação, e termos sido

compreendidos, acho que temos uma sensação quase como uma comunhão espiritual. Essa

sensação pode ser transitória, mas é para isso que vivemos."

Waking Life aposta na perda de parâmetro de uma racionalidade que oculta, como um bom

ilusionista, seus componentes irracionais. Aposta numa belíssima reivindicação da potência de estar vivo que

escapa de qualquer argumentação. O sonho transborda para tudo o que é lado. São antessala e sala do real.

Outro real para se engajar, não uma realidade ocultadora. Não é simulacro de simulação alguma. Não cria

fantasma algum do real. É espaço limítrofe. É lugar de modéstia e grandeza. Lugar de produção de verdades

incertas em que o universal é apenas um subconjunto das partes. Onde jamais dá para ser a mesma pessoa

nem no mesmo instante. É preciso que o sonhar seja uma luta. Não a luta mesquinha pelo poder como o

fazem quem quer reivindicar para si a sobreposição entre sonho e esperança. Sonhar é estar sem esperança,

sem âncoras. É sim uma exuberante e poderosa luta anti-poder. Talvez desse modo, não nossas ideias e

desejos voltem a ser perigosos, mas sim nossos sonhos. A quem quer manter privilégios, toda a crueza de

nossos sonhos! Wakin life!

Com dez anos de defasagem, assistimos Wakin Life. Interessante atraso, como um eco pela

infindável trama de cavernas que jamais se consegue sair para superfície alguma. Ressonância que nos

alerta aos investimentos psicológico-libidinais-coletivo feitos no passado e no agora. Ressonância nada fácil,

pois não se torna ruído-branco, torna-se sim alerta contra a autossatisfação autoilusória da cegueira

cotidiana.

Sweet Movie - contra todos os regimes! quinta-feira, 10 de junho de 2010

Quanto de liberdade somos

capazes de suportar? Liberdade

política, de imprensa e religiosa são a

minha liberdade? Liberdade do

indivíduo, da figura jurídica, cidadã são

a minha liberdade? Livre arbítrio,

liberdade de pensamento, de vontade,

de desejo são a minha liberdade? Livre

concorrência, ir e vir, escolher entre a

marca “a”, “b” ou “c” é a minha

liberdade? Preferimos a realidade

conformista (essa máquina de

ocultamento do real – legalidade,

direitos informais, moralidade,

cidadania, consumo...) ou a imaginação libertária (táticas de guerrilha contra a máquina ocultante –

singularidade, insurgência, rebeldia, personalidade...)? Ou mal deixamos de lado uma idiotice (sentimento de

vacuidade), uma crença (sapiência divinizada), uma irreflexão (viver para uma ideia) e prontamente nos

apressamos a substituí-la por outra?

E se, de repente, não mais que de repente, algo inesperado do implodisse os fundamentos

teológicos, tanto do capitalismo quanto do comunismo? Ou mesmo, implodisse os fundamentos tanto da

religião quanto da ciência? Onde e como ficaríamos? Esses defuntos serviriam minimamente para, ao menos

adubar um solo para outros frutos? Que implodisse o íntimo do capitalismo, suporte da ciência atual, que tem

em seu coração a utopia de nos transformar todos/as em supra-consumidores/as, no qual, a cada mercadoria

comprada compra-se um pedaço do paraíso. Que implodisse o íntimo do comunismo, suporte da religião

atual, que das entranhas prometeu a felicidade para todos/as, mas... faliu. Esse algo inesperado implosivo

apenas nos mostraria as ruinas de que ambos, acima mencionados, são incapazes de cumprir suas

promessas mesmo estando em suas mais plenas exuberâncias em edificação. De que ambos nos trazem um

gigantesco saldo de misérias, desgraças e obsessões: num a desigualdade abertamente é quem faz a

máquina funcionar, e na outra é propriamente a desigualdade ocultada. E agora? Cinismo? Mau-caratismo?

Irreflexão acomodada? Como encarar essa tragicomédia e seguir adiante? Como ir para além dessa falsa

dicotomia? Por onde começar? Açúcar, chocolate, ou...?

Pois bem, daremos uma dica. Para além dos sentimentos impostos que nos insuflam desde a

infância, comecemos assistindo Sweet Movie (1974), um filme de Dusan Makavejev. Como o fizemos no dia

08 de junho de 2010 em nosso cineclube. Cuja mensagem primitiva foi a de que, para início de conversa, é

através da carne que quebramos a tirania do espírito! Sweet Movie é um filme rapadura. Como assim? Tal

qual diz a sabedoria popular diz: "rapadura é doce mais não é mole, não". Saboroso, porém, incômodo,

desconcertante, intimista, um "mais que" doce e necessário soco no estômago. Logo nas primeiras cenas,

fica fácil de entender o motivo pelo qual o filme foi proibido à época em muitos países e ainda o é em alguns

deles até os dias de hoje: é muita liberdade! A carne e os ossos de cada indivíduo é inimigo irreconciliável de

toda a universalidade. É de corpo que podemos nos colocar contra qualquer regime – tanto no sentido de tipo

de governo quanto no sentido gastronômico. É perigoso ao "realismo" que sejamos livres demais, sem

pecado, nem culpa, nem vergonha, “ni dios, ni patróns, ni maridos” – tudo o que é realismo é um laço, um

grilhão. Na liberdade que vivemos sob os autoflagelos da moral e os hetero-castigos da lei, tudo está sob

controle, sob responsabilidade, sob limite preciso “que termina onde a do/a outro/a começa”, etc. Nela

qualquer crença é fortalecida para sempre – torna-se causa ora divina, ora humana. E sabemos que todos os

crimes legais e teológicos nascem dessas duas grandes ideias fixas: crença no divino, crença no humano.

Fortaleza impenetrável em si e por si, onde a pessoa que crê se dispõe a se sacrificar pela crença (por deus

ou pela humanidade); onde a pessoa que diz crer finge que nada quer saber de sacrifícios. No entanto, para a

pessoa indiferente ao controle, às responsabilidades, aos limites entre “eu e tu”, às causas universais, as

questões de crença e não crença são irrisórias. Não há universais, há apenas eu e tu: irracional, amoral e

antipatriótico – consciência própria sem ideias, representações, crenças, apenas consciência única, tal como

eu, sem me deixar reduzir ao “regime celular isolacionista”.

Não é dessa espécie de liberdade vigiada e punida a cinematizada por Sweet Movie, mas sim uma

que é levada para além de suas fronteiras comuns, para um terceiro que não é excluído (lógica

paraconsistente) além de: (1) o corpo como celebração e sacrifício – pênis de ouro, vulva achocolatada,

assassinatos documentados e sublimados; (2) as crianças não estão desprovidas de libido – pirulitos e Anna

Planeta; (3) o sexo nem sagrado nem profano – prêmio à virgem mais virgem e a virgindade é prêmio, orgias

escatológicas, sublimações e pacto de amor selado; no entanto, (4) a sedução como perigo e aspiração

universal. Esta é a doçura do poder: açúcar e chocolate – assepsia paranoica do capitalismo e a sujeira

neurótica do comunismo. Para nós, rapadura: ferramenta impura que joga com os desejos das pessoas e o

ato puro de se deixar levar pelo gosto; tática que desoculta a irracionalidade que compõe a razão da

humanização do capitalismo e a tática desoculta a irracionalidade que compõe a razão do progresso do

comunismo. Porém, açúcar e chocolate: ambos que nos seduzem só para nos trair, em seguida. Regimes de

morte – obesidade mórbida. Ambos adoçam nosso paladar, fazendo com que nos esqueçamos da amarga

marcha até a morte. Mata-se por ansiedade. Mata-se lentamente. Fora dos regimes de morte, também se

morre, porém sem excessos paranoicos de racionalidade. Na liberdade não há a curiosa aptidão de

imediatamente substituir uma bobagem por outra. Nela a tolice e o vazio não são indispensáveis ao

psiquismo. Nela o fora de moda, a desilusão e o fadado ao fracasso são nada e somente se manifestam,

quando são escolhidos como objeto de desejo, um desejo de coisa nenhuma, o niilismo, no qual os

sindicatos, as eleições representativas, o mercado de trabalho e o sistema financeiro de créditos, tentam nos

deixar apáticos/as diante do mundo. Sweet Movie é um filme para retirar as camadas de realidade do real,

que é, antes de tudo, singular, intrinsecamente doloroso, libidinal e trágico. Não há consolo ou escapatória.

Não há remédios nem doces. E como diz o filósofo francês Sartre: "Não importa o que as condições fazem

conosco. Importa o que fazemos com essas condições. O ser humano está condenado à liberdade".

A Vida dos Outros - ou o que fazemos com a nossa finitude? domingo, 27 de junho de 2010

Filme controvérsias. Filme decisões. Filme paixões. Filme mito. Dizem que a origem de todo

pensamento metafísico é a frustração de um músico fracassado enquanto tal. Em "A vida dos outros" tal

afirmativa está presente, porém de modo um tanto peculiar e invertido: um pensamento metafísico cuja

origem é uma bem sucedida música de um compositor nada frustrado, porém que frustra: sonate vom guthem

menschen - "sonata para um homem bom". Música cujo ritornelo é a reconstrução do Holocausto. Pois bem,

que metafísica originada é esta? A mais vil delas, a metafísica dos valores, já chamada de metafísica dos

costumes. Primeiro inicia-se com a velha discussão sobre o que é bem e o que é mal – antes revigorar do

que por questões ao mito fundador. Depois, a questão que movimenta a velha discussão: pode alguém

mudar? Onde o Humanismo é aquele em que uma pessoa se torna humana historicamente, e assim deixa em

aberto a possibilidade de que uma pessoa pode não ser considerada humana – sendo inumana uma pessoa

torna-se propriedade para a soberania ilimitada de quem é “humano”. E por fim, em terceiro, a resposta bélica

dos valores: garantir, a qualquer custo, que o uso e a valorização das ideias de um indivíduo de carne e osso

somente podem ser comunicadas apenas enquanto tais forem as de uma religião, de um estado, de uma

sociedade.

Vamos por parte, no início do filme, como já

anunciado, a velha discussão binária: o bem e mal. Ambos

cinematizados e ilustrados como a divisão da Alemanha

entre Oriental e Ocidental, vivenciada antes da queda do

muro de Berlim (ocorrida na noite de 09 de novembro de

1989). No caso o governo socialista, convertido em Estado

do hipercontrole – este último um sonho, prestes a ser

realizado, pelas grandes "democracias" atuais pós 11 de

setembro de 2001 – ilustrando o mal. Já o bem,

exaustivamente simbolizado pelos intelectuais – supostos

livres-pensadores; suposta vanguarda da humanidade

liberal. Estado opressor, o mal; indivíduo liberal, o bem.

Mocinhos intelectuais contra os bandidos políticos e no

meio desse tiroteio, uma vital artista e um ambíguo espião.

Curiosa ponta que aparece para tornar o que é binário em

um triângulo, cuja condição de terceiro é desaparecer para

que se restabeleça a eterna valsa do bem com o mal. A

arte (representada por Christa-Maria Sieland) surge como

elemento desestabilizador: seduz todos que cruzam seu

caminho – expressão de vitalidade, exuberância e

celebração da vida, cujo ato mais vivo é se apropriar

vorazmente de si mesma, mesmo que isso signifique seu

próprio fim. A polícia (na figura de Ulrich Müher) ao mesmo

tempo cega cumpridora de ordens superiores e voyer realizadora arbitrária de ordens inferiores – pura ironia;

puro talvez; puro "será?"; na pureza de qualquer torturador há uma boa pessoa (!?). É possível morrer em

vida para nascer uma pessoa completamente diferente?

No movimentar da questão: Acreditamos na mudança? Ou a desejamos? Pensamos como o mundo

se realiza ou como gostaríamos que ele se realizasse? Mudar é questão de crença ou da falta dede travestido

em desejo? Não importa a resposta, pois elas dão na mesma: a impossibilidade da realização do objeto –

realização tanto como objeto de crença quanto objeto de satisfação. Se acreditarmos, há a possibilidade de

deixarmos de acreditar. Se desejarmos, há a possibilidade de jamais termos o desejo saciado. No filme tal

impossibilidade é evidente até demais. Vejamos apenas três evidências:

(1) Um espião que conhece o conteúdo de todas as informações tornado carteiro, um

mero desconhecedor de qualquer conteúdo que ele mesmo entrega;

(2) Suicídio: artifício incentivado para que o assassino não suje suas mãos tornado,

artifício maior da afirmação da vida: "É claro que quero viver! Porém, não deste modo";

(3) Comprar um livro da livraria Karl Marx e poder escolher qual cartão de crédito que se

pode fazer o pagamento;

E a resposta? Poetizar a condição humana? Mudar enquanto pessoa é sempre para algo positivo? O

partido é propriamente cada um de seus membros? Toda forma de governo não socialista é neutra?

Romantizar as necessidades de sobrevivência? "A grama do/a vizinho/a é sempre mais verde"? Estetizar as

contradições e as misérias humanas? O mais alto valor do humanismo é que tudo é relativo? Pois bem, ao

menos há uma resposta sincera no filme A responda de que tudo é relativo... a algo absoluto: a finitude!

Valsa com Bashir - dançando com a dor dos outros terça-feira, 6 de julho de 2010

Outra porrada onírica (a primeira que

experienciamos nessa trajetória foi Walkin Lige) de

desfecho genial: o real. A escolha de seus realizadores

por contar a história via animação, amacia a carne, tal

qual um martelo para bife. No entanto, a náusea é

inevitável. O estômago tem seus próprios limites. À ele é

impossível a indiferença. Soco no estômago.

Desamparo. Desespero. Pequenez. Um indivíduo não é

nada. Ao menos o é algo se sempre reduzido.

Desprotegido. Um monstro lhe observa. Prestes a dar o

bote. Pessoa-presa. Impessoal-predador. Haveria algo

mais inumano que defender no olho por olho e dente por

dente qualquer Estado? É o que um soldado se pergunta

ao receber sua licença para matar. Mas um Estado não

tem olho, porém tudo vê. Mas um Estado não tem

dentes, porém tudo come, digere e defeca. Mas um

Estado só quer uma coisa: durar sobre os indivíduos.

Pois ele tem apenas um único interesse: o de ser rico ao

mesmo tempo em que se põe indiferente se eu ou tu é

rico ou pobre. Para isso não importa os meios. Pede-nos que cortemos nossas próprias cabeças e pomo-las

aos seus pés. No entanto, haveria algo mais humano que defender a dignidade da vida pelo cometimento do

suicídio? Manifestação radical da possibilidade de se autovalorizar – definir o próprio preço da vida se se

sublevando por meio da própria morte. Talvez o mais alto grau da dignidade humana seja suicidar-se para se

abster de matar. Lembremos que se isto for o caso podemos dizer que de modo indireto Mahatma Gandhi

cometeu suicídio. Não há ética possível para além do direito de legítima defesa? O que sabemos é que toda

ética vigente justifica o legítimo ataque: aniquilar a diferença, pois já sendo diferente, tal constitui de princípio,

uma ameaça à certeza de que “existe apenas uma forma de viver a vida”.

Ah, não venha com a bobagem de que é a condição humana cruel em sentido moral. O cru amoral é

anterior à crueldade moral/imoral. Nem mesmo que a alma é boa por essência. Tanto a alma quanto a

qualificação de boa por essência são um ideal, um espectro com pretensões a ser triunfo sobre a vida da

carne. A humanidade não é natural. É tal qual a natureza: engenhosa, artificial, limitada e em estado de

terminalidade. Qualquer humano defende, justifica e explica qualquer que seja a bobagem que o

interesse. Se há humanidade, há interesse. Se há sujeito, há interesse. Se há pessoa, há interesse. Se há

indivíduo, há interesse. Se há..., há artifício. O que seriam dos exércitos, se não fosse o exercício continuado

do interesse sádico? Matar do modo mais asséptico possível. Matar sem risco de morte. Matar a própria

morte.

E se virarmos o tabuleiro dos jogos de guerra? Óbvio que não. Guerra é tudo, menos jogo.

Burocracias da guerra. Eis o Direito Internacional. As regras básicas de como matar. Guerra justa. Guerra

santa. Não adianta a qualificação, a maquiagem, o ilusionismo. Guerra é profissionalização, industrialização e

especialização do ato de matar. E só! Reduzida à sua barbárie mais bárbara – industrializada.

Valsa com Bashir é um sonho, uma embriaguez, um transe, um privilégio de um ex-soldado, diretor.

Memória crua. Animação que anima a alma, o “anima". Confronto. Limiar. Memória. Escolha. Culpa.

Vergonha. Confronto fatal: humanidade vs. ideal; humanidade enquanto ideal; moral. Ou, Estado X indivíduo;

indivíduo-Estado (patriotada); Estado-indivíduo (exército). Quem é o inimigo? Quem está no limiar? A

memória? Sua dinâmica? Ser fantasma enquanto passado vivo? Ou seria a dor? Minha dor, sua dor? O que

faço a mim com a dor que vejo nos outros? E o medo? Quando e como morrerei? Quando e como matarei? o

medo me leva ao terror? De que tipo? Terrorismo de Estado? É possível vida para além do terror? É possível

viver em algum lugar nem pré nem pós-traumático? Na escolha? Na culpa? Na vergonha? Ou quem sabe,

fosse possível viver no centro de algum buraco-negro sem que se tenha que aceitar um lugar na hierarquia?

Onde o cotidiano não fosse um compromisso doutrinário? Onde não haja crianças lhe apontando uma RPG,

ou que sejamos esta mesma criança? O que seria a maturidade dessa infância? Ser cachorro? Ser soldado?

Depois ter o privilégio do esquecimento? Estar nu no mar... ou ser acalantado por uma mulher-mãe-azul-

gigante?

Dancem, dancem seres agonistas! Uma pessoa jamais pode ser reduzida à humanidade!

I love you - ou, Podemos amar qualquer coisa, inclusive

pessoas segunda-feira, 19 de julho de 2010

Quando o pensamento se colocar em movimento,

nossa atenção logo se volta ao que propriamente o

movimenta: a libido... Neste sentido, seria esta uma

energia originária, tal qual um combustível para que

máquinas funcionem? Será? Ou, quando a libido se

colocar em movimento, nossa atenção se volta ao que

propriamente a movimenta: o pensamento... Aqui, é objeto

pensado que se torna energia originária. Desse modo,

uma via de mão dupla ou um círculo, onde não se sabe

quando este se inicia ou tem seu término? Mão dupla ou

círculo a situação é que estamos numa questão

fundamental: seríamos seres tão especiais que, até

mesmo, nossas condições mais baixas e indizíveis

seríamos sublimes, ou seríamos seres tão desprezíveis

em baixeza que nos é necessário um esforço descomunal

para nos sentirmos o mínimo de sublime em nós?

Alto lá! Como assim? Sublimação para cima,

sublimação para baixo ou nada?

Ok, façamos a opção pelo nada e sugamos a um interessante experimento: I Love You (1986) – filme

de Marco Ferreri. Ah, o amor! Todo mundo fala dele. Todo mundo o reivindica. Para si, para os outros, para o

quê? Pois bem, que coisa é essa? Uma energia cega que nos arrasta pela vida? O ato mais sublime do

cálculo de uma divindade qualquer? O ato mais sacana do cálculo de um demoniozinho qualquer? Seria o

amor algo para se pensar? Algo para se sentir? Se isso, como pensá-lo? Como senti-lo? Afinal, e se tudo isso

não passou de um engano? O amor realmente existe? Ou seria mais uma antiga invenção que com o tempo

de uso tornou-se obsoleta? Pois bem, I Love You é resposta a todas essas questões. Resposta absurda, a

única possível para que salvemos nossas vidas... absurdas! Salvação, vida e amor: absurdos, impropérios,

imposturas.

Neste filme de Ferreri, as relações amorosas são todas singulares, portanto, cruas, reais. Sem

elaborações barrocas, românticas ou pós-modernas. Se arquitetônicas, poderiam ser chamadas de relações

amorosas Bauhaus? Como são as de Brasília e se amor arquitetônico. Garotos amam porcos e

computadores. Homens amam tudo o que passa na TV, ama uns aos outros e amam chaveiros. Mulheres

simplesmente amam – indiscriminadamente. Todo objeto de amor é ideal, portanto, passíveis de superação –

nós, os hiperobjetos a um passo de sermos superados/as, descartados/as. Todo objeto é ideal, portanto,

fantasmático. Fora disso o dinâmico: a libido. Esta é infantil. É inocente de qualquer culpa. Quer brincar. Sua

relação com os brinquedos jamais é banal. É crua e visceral. Amam com uma boa dose de crueldade,

apropriação e ciúmes. Niilismo e liberdade em si mesmo. Uma bifurcação fluida. Cujo único sinal é um

artifício, uma ferramenta, uma coisa útil humana demasiado humana: o amor. Neste tudo é cópula à dois,

casamento entre: máscaras e rostos, masturbação e TV, orgasmo e apatia, sarcasmo e identidade, bananas

e assobio, phalo e fala, excesso e falta, tempo psicológico de Michel (personagem central) e tempo de

direção de Ferreri. Também, no amor, tudo é único: atração pelo vazio; superficialidade como tudo o que

temos; todo o imaginário é autofágico; toda persona é nada mais que suas próprias fantasias; a única

realidade possível de ser experimentada é o fetiche.

I Love You é uma relação simbólica com resultados

diabólicos. É uma ideografia iconoclasta. Lá o mar está presente,

clássico símbolo do inconsciente, porém, junto ao seu duplo

marítimo: a TV. O assobio como a não linguagem do desejo que

busca satisfação – como os que fazemos para chamar cães,

estes parasitas afetivos que com tal parasitismo garantiram sua

sobrevivência quanto espécie. Mas não qualquer satisfação. Esta,

como algo inanimado. Passível de apropriação. "I love you", o

objeto de desejo. Dito em outra língua. Portanto, mais sedutor.

Michel símbolo do macho ocidental: bonito, independente, sem

esforço tem as mulheres todas atraídas por ele, e desse modo,

ambíguo com sua própria masculinidade. Pela banana e pelo

pênis ele se faz presente. Pelas entradas e pelas saídas tanto

pela porta quanto pela janela, se faz presente com todos os

nossos orifícios de entrada e saída – estes nossos múltiplos

modos de sentir prazer.

E assim... assobiemos à todo pulmão, para que

respondamos uns aos outros e as outras em um eterno retorno do

mesmo do parasitismo e das barganhas afetivas: I Love You! Por

favor, de novo, de novo e de novo...

A Montanha Sagrada - ou a teologia materialista do Real domingo, 8 de agosto de 2010

O filósofo alemão F. Nietzshe dizia que seu livro "Assim falou Zaratustra" era, nada mais nada menos,

que a versão alegórica de seu livro "Para além do bem e do mal". Como assim? Simples, os temas são os

mesmo. Só o tratamento que é diferenciado. Então, isso quer dizer que dá para falarmos sobre uma mesma

coisa de maneiras diferentes? Sim, é exatamente isso. Mas... o que isso tem a ver com "A Montanha

Sagrada" de A. Jodorowsky? Bem, diríamos que esse filme seria a versão alegórica do seguinte tema: a

alienação constitutiva do sujeito dentro da lógica simbólica. A Montanha Sagrada é um discurso logicamente

impecável, porém operando dentro de uma lógica diabólica. O símbolo une. O diábolo separa.

Jodorowsky não pretende estruturar uma realidade para nós. Através de um mimetismo distorcido de

rituais religiosos (por exemplo, um homem travestido é Maria, mãe de Jesus, e este um mero ladrão) ele

evidencia políticas estruturais (outro exemplo, a invasão espanhol-cristã ao México representada por sapos e

lagartos). A subida do Monte Carmelo (mística de João da Cruz) equivale à degenerescência de tudo o que é

sensual. (O atentado religioso contra tudo é o que é significante para nós). A civilização, (bem representada

pelos "escolhidos") em toda a sua pompa, glória, arte, tecnologia e poder, puxa as cordinhas, e fala por todos

os indivíduos. Estes apenas deliram. Cada um em sua singularidade delirante. O delírio é o que une cada

sujeito à sociedade e não a racionalidade. Sem ele não há experiência social possível. O delírio só pode

operar pela lógica simbólica. É o conectivo necessário para a ordem "natural" das coisas. Assim, tudo é

passível de desalienação é tudo aquilo que pode ser sublimado. O caos do mercado, os valores morais

decaídos e a manipulação asséptica do prazer, etc, não servem como culpados para a decadência social.

Apenas servem como aquilo que faz durar a sociedade. Pois o todo deve persistir sobre suas partes. É o

próprio sujeito em seu delírio o responsável pela duração da sociedade. Pois as partes devem se sacrificar

pelo todo. Em sua megalomania de hiper-vítima:

das circunstâncias, de outros sujeitos, da ordem

simbólica, etc. No entanto, Jodorowvsky pretende

estruturar o real em múltiplas realidades libertas da

ideia de moralidade – já que para as hiper-vítimas,

vez ou outra, se libertam de um costume moral

aqui, outro acolá, mas sem abrir mão da

moralidade mesma.

Até mesmo a revelação final de que o

filme é apenas um filme. Não é suficiente para

restabelecer um real diante da enorme trama entre

fantasia, ilusão e sedução – incapacidade de

reconstituir as dimensões abstraídas. O olho não

seletivo da câmera enquadra por mediação: o

olhar do fotógrafo e do diretor – transcodificação em conceitos das suas intenções para só depois filmar

(imagem transcodificada duplamente). O olhar do espectador já está condenado – o filmado é o real e o filme

é o pretexto. Em cada mediação, tudo é excesso, tudo é exuberante, tudo é pintado com as cores mais fortes

– colorir e jogar contra a luz e a sobra, contra o iluminismo que cega e a ignorância que tudo vê. Porém,

jamais sendo suficiente para ocultar o imenso deserto que é a realidade – trama de visões mágico-religiosas

e moderno-morais. Tanto o real quanto a ilusão são superficiais e regidas por regras estereotipadas de

exorcismo. Qualquer que seja a imperfeição, a miséria e o sofrimento, tanto no filme, quanto no mundo real

revelado ao fim, é ao mesmo tempo ilusão e realidade. Uma não se sustenta sem a outra. Uma apenas

aponta a outra, e assim a deixa intocável. Imperturbável. Real e ilusão como desprezíveis até o momento em

que cada uma delas transmite uma informação. Toda informação traga pela ilusão é transgressão inerente –

torna tolerável o real. Ao mesmo tempo em que se distorce sobre si mesma. Escondida por trás da textura

social explícita onde não há nada além de outra ficção simbólica consensual. O inverso também vale. Toda

informação traga pelo real é transgressão inerente – torna tolerável a ilusão. Ao mesmo tempo em que se

distorce sobre si mesmo. Escondido por trás da textura social explícita onde não nada além de outra

realidade diabólica consensual. Mais do que a alegoria simbólica narrativa de A Montanha Sagrada (uma

ficção com potência liberadora), é a sua lógica diabólica, que pode nos ajudar a sair da alienação das ficções

e da alienação das realidades. A lógica diabólica desse filme de Jodorowsky não nos revela o que está

escondido por de trás de todo ilusionismo, mas sim multiplica realidades transparentes frágeis como um copo

de cristal.

Veludo Azul - ou nada decidiu a forma de exsitência que

observamos quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Comecemos com duas recusas

fundamentais: (1) Lynch enquanto crítica à

superficialidade e regras estereotipadas da vida

social, e (2) a sanidade para Lynch é deixar-se

submeter ao fluxo subconsciente da energia vital.

Essas recusas são fundamentais para mudar a

direção das interpretações comuns sobre Veludo

Azul. Portanto, desde já recusemos o comum. Assim

como David Lynch o faz.

Veludo Azul é um manifesto contra a

obediência (dever de) ontológica (ou metafísica) ao

grande, ora estimulante, ora anestesia ancestral que

nos parece inextirpável: a ideia de felicidade. Porque

manifesto contra a felicidade? Pois esta é a mais

sinistra e absurda disciplina para se divinizar algo. E

divinizar é o mais alto grau de cumplicidade

ideológica com a servidão à instância supranatural que acompanha qualquer aparição do real. Eis alguns

exemplos dessa cumplicidade: espírito, liberdade e natureza humana. Por que obediência ancestral? Pois

quanto mais antigo o imaginário, mais este se desdobra e se reforça em ordem moral, uma culpabilidade.

Assim, a ideia ancestral é sempre infalivelmente orientada por temas morais. Mais exemplos: primitividade,

autenticidade e pureza. E, porque inextirpável? Porque a realidade parece se sustentar em fantasias geradas

por uma unidade psicológica infalível chamada indivíduo (ou sujeito se preferir). Esta unidade infalível adquire

uma forma geral de crença de que os seres devem a realização de sua existência a um princípio não alheio

dele mesmo (interioridade/subjetividade) proporcional à imprecisão do mesmo. Um tanto confuso? Não, pois

quanto mais imprecisa essa unidade, mais se contribui para a crença em sua invulnerabilidade fundamental.

Assim o indivíduo torna-se invencível, pois o princípio que lhe dá consistência é vago, impreciso. Nada é tão

invencível quanto aquilo que não existe. Pois se sabe sempre dizer por que se crê nisso ou naquilo, porém

nunca se sabe dizer sobre aquilo em que precisamente se crê. Exemplos: muitos falam sobre como e porque

crer ou não crer em Deus-Pai, na Mãe-Natureza e na Felicidade, mas poucos falam sobre o que vem a ser

Deus-Pai, Mãe-Natureza e Felicidade. Claro, pois silenciar sobre tais coisas, os tornam impenetráveis à

críticas e à necessidade de demonstrações e até de descrições. Tudo se torna, portanto, normativo.

David Lynch substitui a demonstração impossível da obediência ontológica à felicidade pela

“mostração” do acaso imprevisível, singular e insoluvelmente contraditório dos gestos humanos – a dimensão

da impossibilidade do ordenamento pelas normatividades, sejam elas em sentido de norma ou de normal. O

grande inimigo dessa obediência não é a verdade a ser revelada, mas sim a precisão em que algo se mostra.

David Lynch é preciso. Sua ilusão e delírio é imagem precisa. Pois o diretor não se deixa mostrar nem como

ideológico (imagem imprecisa e prolixa) nem como cético (imagem silenciosa e moderada). Suas imagens

podem até serem imagens-erradas, mas jamais imagens-miragem. Pois Lynch aposta. Não há outra coisa,

escondida por trás do outro social que se explicita na perversão. Há sim uma multiplicidade de perversões

impossível de serem traduzidas umas às outras por serem elas mesmas positivadas por ocultamento. Todas

as perversões acontecem horizontalmente. É violência (diferente de violenta) tanto a relação de Frank e

Dorothy, quanto às relações de Jeffrey e Dorothy e de Jeffrey e Sandy. Nelas o desejo basta em si mesmo,

não como um fim em si mesmo, mas como meio entre dois nadas. Não se espera nenhuma confirmação da

experiência. Pois não existe nem mesmo uma ideia que possa confirmá-la. O desejo é um delírio simbólico

consensual. Não se pode acordar com quem já está acordado. É o mesmo que encontramos cotidianamente

tanto na instituição policial quanto na sociedade do crime – mal sabemos o que distingue mesmo um do outro.

E a produção desse limite escorregadio é tão mecânica e apressada que Lumberton é um mito formador de

nossa sociedade dita civilizada. Com seus jardins e flores bem cuidadas, essa cidade mitológica é o lugar

ideal para todo o tipo de violência e ocultamento. É somente nela que se representa um princípio original a

partir do qual a repetição (rito) somente é considerada por ter se começado a repetir. Mais aí vem a vertigem:

Lumberton é simultaneamente da ordem mitológica quanto na ordem ontológica. Pois é também lugar ideal

para besouros se bem alimentarem, para que em seguida, gordinhos, sirvam de alimento para pintarroxos.

Como também é lugar ideal para se morrer. Sua única função é negativa. Sinaliza sua presença e realidade

como tal, somente em oposição a sua ausência: que seria propriamente o caos pré-civilização.

Veludo Azul não é conivente nem com a ideologia realista (não faz pactos com a racionalidade

moderna que oculta uma violência irracional que lhe é própria) quanto com a ideologia ilusionista (não faz

pactos com a irracionalidade pós-moderna que multiplica uma violência racional que lhe é própria). Neste

filme é a inércia e o arbitrário quem permite conceber a passagem de uma perversão a outra, de uma

realidade a outra. A multiplicação de perversões/realidades nos mostra que o mundo (em suas dimensões

ôntica e ontológica) não é uma geração de uma Mãe-Natureza, muito menos um produto fabricado por um

Deus-Pai, mas sim algo fortuito e sem sentido. Sua impressionante narrativa não se reduz a nenhuma

promessa de explicação, muito menos uma representação surreal. É a expressão de um atentado a

desejosos e desejosas, ansiosos/as por ter uma realidade mínima que se possa interpretar, seja como

religião, superstição e ideologia.

Senhor das Moscas - ou, a arte tribal das crianças da

realidade suficiente. domingo, 22 de agosto de 2010

Comecemos este comentário com a belíssima mensagem de Raoul Vaneigem, para nós adultos/as:

"Tudo aquilo que pode ser destruído deve ser destruído para que as crianças possam ser salvas da

escravidão". Ahá! Que deliciosa tarefa. Imaginem só! Deixar como herança um mundo de prazeres e infernos

totalmente sem tédio. Deixarmos como herança algo além do realismo conformista e da paz perpétua. Se

achas penosa tal tarefa ou se achas arriscado demais! Então pensemos na hipótese de que tal empreitada

seja realizada pelas próprias crianças. Pensemos na hipótese de que as crianças é que devem experimentar

tal delícia – como as crianças que brincam com Barbarella. Sem nenhuma mediação – como as crianças no

episódio “Miri” de Jornada nas Estralas. Auto-herança! O que restaria para nós? Adultos/as obsoletos/as?

Adultos/as de uma última geração de adultos/as. Eis o experimento que nos convida às mais belas ideias

perigosas de um mundo sem adultos/as: Senhor das Moscas (Lord of the Flies, 1963, Peter Brook).

O título já incomoda: "Senhor das Moscas",

tradução do nome hebraico Ba'al Zebud. Sim, ele

mesmo! O sinônimo do diabo: Belzebu! O filme é uma

cinematização do homônimo clássico da literatura

inglêsa pós-guerra. A ideia central, de ambos, livro e

filme, é nas palavras da Wikpédia: "a regressão à

selvageria de um grupo de crianças inglesas de um

colégio interno, presos em uma ilha deserta sem a

supervisão de adultos, após a queda do avião que as

transportava para longe da guerra". E claro que esta

descrição é uma visão muito pobre do que ai se realiza.

Pois é muito difícil admitir que o real se constitua para

além de qualquer princípio exterior criado e endereçado

a fundá-lo, explicá-lo e claro, a justificá-lo. Daremos um

passo ao lado e numa esquiva contra esse olhar

miserável e arrisquemos uma visão mais rica,

exuberante e, portanto, perigosa: Senhor das Moscas é

a beleza crua da indiferença necessária pela esperança

e a certeza do nada constituinte do real. E assim o real inteiro celebra! Já que seu princípio é desprovido de

qualquer suprarealidade. Basta a si mesmo, enquanto dor, desamparo, tragédia, insignificância, efemeridade,

caráter único, crueza. Esta última, "crudus", cru, não digerido, indigesto. No entanto, sem tautologias abusivas

como: "verdade verdadeira" ou "realidade real". Sim, um protesto, como dizia Cioran, contra A Verdade. Ou

como dizia Nietzsche que a necessidade de uma fé forte é sim o seu próprio contrário.

Aos olhares empobrecidos é desagradável perceber que a tribo recém formada pelas crianças não

tem nenhum gosto pela certeza, portanto, não tem nenhum gosto pela servidão. Abolição de tudo o que é

adulto. São incapazes de se deixarem confiar em depositários da verdade. Abolição de todo amadurecimento.

São incapazes de trocar suas liberdades pela ilusão de que existe alguém que pensa por elas. Abolição da

Religião, do Estado e da Ciência. Tais não existem sem que eu tenha de fazer nada por isso. Agem

diretamente sem procuração. Não são funções nem ferramenta útil da humanidade. Crepúsculo dos símbolos

– não se quer nem mesmo ser escravizados pelas próprias máximas. Autonomia auto-revogável. O êxtase é

garantido por qualquer que seja a brincadeira selvagem. Ter condições de ser é o mesmo que atualmente

ser. Toda brincadeira é artifício. Toda história é suprimível a qualquer momento. Nada possui objeto concreto.

São paixões cujo centro está vazio. São lassidões banais. Desmistificações da crença (é desligião), do direito

(é anomia entrópica) e do futuro (é algo que está à espreita). A civilização é fantasia perdida, há muito deixou

de ser destinação. É preciso seguir – viver a vida até o fim sem se preocupar com o que é bom ou mal pra a

humanidade. É preciso restabelecer a sensualidade primordial e estérea – toda criação é mortal e perecível.

É preciso deixar para trás o ilusionismo que vincula um sujeito incerto a um objeto indeterminado – nenhum

pensamento existe, pois para existir precisa de corporeidade. É preciso uma arte em que a realidade seja

suficiente sem nostalgia alguma. É preciso um artifício que se veja enquanto tal, para somente aí, o natural

celebrar-se, em volta da fogueira, toda a sua natureza. É preciso um monstro! Em seu significado primordial:

aquele que mostra. Caprichoso e mutável – inconciliável tanto com o real quanto com o ideal. Mostrador de

que, qualquer que seja aquilo que se ocupe enquanto objeto de crença, nada mais é do que uma provisória

compensação da incapacidade fundamental de crer. O monstro é aquele que mostra a condição humana

mais crua e infernal: o eterno saltitar de um objeto de crença a outro, no qual todo crédulo está condenado

por sua fundamental incapacidade de crer verdadeiramente. Eis a arte tribal das crianças da realidade

suficiente do Senhor das Moscas: suas causas são as causa que se auto-consomem.

Sociedade do Espetáculo - ou, a narração da Ontologia do

Vazio domingo, 5 de setembro de 2010

Guy Debord, filósofo, cineasta e realizador da Internacional Situacionista, na França da década de

1960. Sociedade do Espetáculo, livro e filme, palavra e imagem. Enquanto livro, palavras, no entanto

invertidas. Palavras desatadas ao seu respectivo significado – em contra exercício do poder que assegura o

domínio da palavra. Tomada de poder é também aquisição de palavra. Mas as palavras de Debord é

destruição do poder e não luta por ele. Para tal o livro é composto como aforismos paráfrases, em

deturpação revolucionária – é palavra-líder guerrilheiro que nos indica o lugar real do poder. Seu tipo de

escrita incita quem lê a decifrar a visibilidade de suas ideias. Alastramento. Ação de vaguear. Ato errante.

Aventurar-se. Propagação. No livro, Guy Debrod mergulha seu pensamento nos diálogos das ilusões que

alienam e recusam o real. Recusa que está a meio caminho da cegueira voluntária de Édipo Rei e a estranha

aptidão humana de substituir uma besteira por outra como se fosse algo indispensável ao psiquismo.

Diálogos entre ilusões: o abuso público e individual cotidiano de uma visão de mundo dialogando com o

produto das técnicas de difusão massiva de uma visão de mundo. Cínica simbiose entre emissor e receptor.

No livro, a palavra critica a imagem quanto direto do poder; quanto única fonte de representação legítima.

Esta cujo poder é magistralmente conduzir nossa natureza irracional. Pois a palavra é tardia. É razão. É quem

tem a necessidade de precisar a imagem. É quem tem a necessidade de configurá-la em discurso. Uma só

imagem é um discurso em si. Mas o encadeamento de várias delas é estruturalmente intencional. Assim, eis

que surge a necessidade de Guy Debord em voltar a

um estágio relacional primário da imagem: o cinema!

Guy Debord faz do livro um filme. Inverte a

condição do poder e seu exercício e domínio das

imagens. Nada filma para compor a cinematização de

Sociedade do Espetáculo. As imagens são filtradas

pela montagem e não pela filmagem. Filtragem

apropriada. Ressignificada. Deturpada em dupla

ausência irremediável dos corpos representados. Um

jogo de espelhos da liquidação mágica de qualquer

realidade. Um jogo de espelhos que reflete muito

mais do que o reflexo. Um jogo de espelhos que

provoca o imaginário. Um jogo de espelhos que intima

a interpretação às situações patentes e latentes de

quem ali é refletido. O discurso da palavra-líder

guerrilheiro torna-se imagem-líder guerrilheiro.

Discurso vazio justamente por ser discurso contra-poder, pois nenhuma ordem pode mais ser dada.

O/a espectador/a é colocado/a como o extremo oposto da violência – esta essência do poder. Vê-se

em primeira e terceira pessoa ao mesmo tempo – garantia que impede que alguém se torne alguém de

poder. Desse modo, espectador e espectador não se vêm enquanto indivíduo (enquanto algo impossível de

divisão) se vê como a própria percepção do vazio do eu (adesão de certo eu a de certo algo). Na imagem

duplamente refletida do filme, Narciso não se vê. Não se encanta por si, nem pelo espelho. Narciso se vê

enquanto pura consciência impessoal do social. Seu reflexo é propriamente um imaginário espetacular. Aí se

encanta. Só se é único enquanto mímeses de seu meio coletivo. Um sujeito incerto ligado a um objeto

indeterminado. Uma atenção exagerada ao outro.

O filme é um meta-filme de um cineasta que nada filma, é apenas narrador – nada normatiza.

Narração sem paixões – paixões sem objeto concreto, como qualquer paixão; sem comando nem obediência.

Pois é narrador do filme narra uma ontologia do vazio – quem tem poder da palavra e da imagem e quer

usufruir de ambos, deve ser abandonado/a. Tudo o que está aí é propriamente transcodificado como imagem,

próprio não-estar-aí em presença é o núcleo vazio de todo dever-ser desobediente. Tudo o que está aí

desimaginado é propriamente coisa que pode vir a existir num horizonte anárquico e inquieto em recusar o

poder que o fascina. O estado natural do estar-aí: nada e tempo (terminalidade) – nenhum destino despótico,

nenhuma falta de instituições. Imagem e palavra como órgãos que não podem ser removidos do corpo pelo

princípio de reciprocidade entre tais. No entanto o conflito é aberto. Tudo o que está no filme Sociedade do

Espetáculo é um desejo de coisa nenhuma – abandono de autoridade da chefia. Uma inspiração por coisas

vagas – neutralização da virulência do poder político. Uma arquitetura mediadora para ocultar a angústia face

à existência – não-estar-aí é um mal menor, pois tem-se a garantia que ao menos foi imagem. Um precipitar

de acontecimento. Porém, precipitação de fortaleza inexpugnável. O espetáculo capaz de frustrar qualquer

possibilidade de ataque. Espetáculo que tem uma sociedade inteira que lhe permite afrontar, qualquer

questão e crítica, de modo sereno. Sociedade do espetáculo, o filme, a narração do excesso paranoico de

racionalidade da própria sociedade do espetáculo.

Lucio, o anarquista - Ou, quem tem medo do anarquismo? quarta-feira, 8 de setembro de 2010

No dia 31 de agosto de 2010, o Perfume do

Deserto em seu Cin‟surgente apresentou o filme

"Lucio, o anarquista" (2007) dos diretores Jose Mari

Goenaga e Aitor Arregi. Daí aconteceu um daqueles

acasos felizes: apenas uma única pessoa veio à

exibição e, esta, um brasileiro que imigrou para a

Espanha, já há alguns anos como imigrante ilegal,

hoje faz parte ativa do movimento anarquista local

frequentando o espaço cultural "Louise Michelle"

aberto pelo próprio Lucio (biografado pelo

documentário)!!!

Resultado: a conversa após filme foi ao

mesmo tempo diálogo de coisas solenes e fazer rir e

caçoar dos nossos próprios temores e misérias.

Tanto foi que, em um dado momento, resolvemos

fazer um experimento, tal qual o proposto pela

ativista e jornalista canadense, Naomi Klein em sua

tentativa de refundar o pensamento socialista no

mundo, decidimos que era hora de escrevermos um

texto inicial tentando também restituir forças originárias do socialismo, porém em sua forma que mais nos

agrada: o anarquismo. E assim, nos tornarmos anarquia e não anarquistas, ou nos termos de Edson Passetti,

explodir o anarquismo histórico em heterotopias anarquistas geográficas. Eis o resultado desse acaso feliz

irrepetível:

A anarquia sob as considerações quânticas de fisiologias desviantes

I

Nós, de instinto anarquista, sim! Espécie ilimitada de forças (em escala molecular) voltadas para a agitação

alquímica da sociedade. Espécie ilimitada de forças – com capacidades de produção e reprodução autônoma

– de um gênio químico e genético que transforma as qualidades íntimas da civilização átomo por átomo, gene

por gene. Nossa perspectiva é a da reação combustiva de forças em escala microscópica que auto-organiza

grupos de afinidades moleculares. Sendo assim, não nos é suficiente apenas libertar-nos de composições

macromoleculares – seja ela um governo ou mesmo um movimento que carrega a antimatéria “ismo”.

Libertemo-nos de nós mesmos enquanto indivíduos, enquanto pessoa! Nem altruísmos, nem solidarismos.

“Liberdade” em implosões micromoleculares utilizando todos os recursos das tecnologias finas das nano-

inteligências que compõem nosso corpo – tudo o que é vivo e tem sua consciência voltada para um viver

exuberante, sejam partículas atômicas, sejam células. Sem as hipóteses dos séculos XIX e XX que visavam a

organização de grupos por líderes, instituições ou mesmo causas. Hipóteses que não mais tocam o valor de

um ser humano de pulsões anarquistas. Valores até então baseados na história, no progresso, na

democracia, na verdade e em Darwin.

II

Nós, de instinto anarquista, sim! Precisamos de hipóteses mais ousadas para o nosso tempo que é agora!

Um tempo que não está regido por relógios ou calendários. Um tempo regido apenas por qualidades de ser. A

agitação e a velocidade em nossos corpos acontecem já em níveis quânticos, cujo processo é o das

mutações aleatórias (radioatividade: quebra espontânea de núcleos) em graus de complexidade (vide o

Princípio da incerteza de Heisenberg) que aumentam de acordo às suas respectivas precipitações. Níveis de

espaços livres que se auto-organizam e se autodeterminam sem liberdade de movimento (singularidades),

apenas jogos e configurações aleatórias de forças (eletromagnética, forte, fraca e gravitacional). Assim que

as mutações aleatórias passam para níveis não mais quânticos e, portanto, menos vibrantes da matéria –

nossas realizações socioeconômicas e culturais –, elas acabam por compor nosso conjunto de inteligências.

Tal conjunto não perde sua perspectiva da catástrofe e, ainda, ocupa pontos estratégicos para a

manifestação da vida. Não há como domesticar, controlar ou mesmo reapropriar tais formas de vida. Pois

suas identidades são nômades. Identidades quânticas! Nós, de instinto anarquista, sim!

III

A tragédia? É não conseguirmos subsistir por muito tempo. Tudo o que não é extremo é tudo aquilo que

mantém uma imortalidade aparente. Nossa realidade é extrema, portanto, impermanente. Temos um encontro

marcado inadiável com a morte. Somos propriamente morte. Nossa constituição corporal é frívola. É inocente.

Nela não há moralidades, apenas instabilidade. Somos leves, furtivos, portanto, sedutores. Um dia,

certamente, morreremos. Hoje, incertamente, vivemos. Em nós a morte potencializa a vida! Dos níveis

quânticos aos níveis menos vibrantes da matéria, é a destruição que cria. Toda partícula possui sua

antipartícula – sua mais própria possibilidade de aniquilação. O próprio cosmo é uma agitação e movimentos

realizados entre seu Big-bang e seu Big-crunch. Como a do cosmo, eis a nossa singular condição extrema:

* Nós, de instinto anarquista, sim! Não renunciamos a guerra – somos guerrilheiros (as)

entrópicos (as). Sim, desprezamos lutas entre nacionalismos, lutas entre dinastias

capitalistas, lutas entre a patriotada, e lutas entre ídolos.

* Nós, de instinto anarquista, sim! Renunciamos o “livre-arbítrio”, exaltando nossos

contrassensos fisiológicos. Basta nossa pulsão desgovernada agir para o extravio da

política de gabinete, para a recusa ofensiva do povo, da raça, do gênero, do trabalho e da

formação escolar, da classe, e enfim, basta nossa pulsão desgovernada agir para a

emancipação da civilização social e democrática de direito aparecer.

IV

Eis a vibração quântica reverberando em nossa fisiologia: a radioatividade quebrando espontaneamente os

núcleos de nossas crenças; a entropia medindo a desordem de nossos sistemas de pensamentos; a

singularidade dando cenários possíveis para o fim das metas até hoje existentes. É a anarquia acontecendo

em todos os níveis de nossa existência. É a anarquia quântica servindo como motivo condutor do instinto.

Breve, em sua realização. Plena, em sua energia. Bela, em seu acontecimento. Sublime, em sua destinação:

hipóteses com forças mais violentas de criação e autodestruição!

V

Nós, de instinto anarquista, sim! Uma reação contra todo não dizer e não fazer! Ou, uma cura para o dizer

excessivo e o fazer sem consequências!

Virada Movies - 2010 Quarta-feira, 15 de setembro de 2010.

Ah, o acaso... pleno de sentido epidérmico e de vantagens de entranhas... por vezes nos levando ao

momento oportuno... neste setembro de 2010, o acaso nos levou a uma comunidade intencional muito

interessante – de temporada curta, mas alegre. 12 horas de existência fílmica! Das 21hs da noite de 06 de

setembro às 09hs do dia 07. Uma singularidade de eventos efêmeros e libertários em conjunção dissimulada

de gai savoir indígena e cigano. Nela escolhemos cinco filmes que nos ajudariam em nosso auto

encaminhamento dos pontos de ruptura escolhidos por nós mesmo/as – somente para irmos para além de

nossos ideais, pois convém inverter as origens de nós mesmos/as. Foram eles os escolhidos: Blade Runner

(1982 – EUA – Ridley Scott), Persepolis (2007 – França – Marjane Satrapi), Nós que aqui estamos por vós

esperamos (1998 – Brasil – Marcelo Masagão), Zatoichi (2003 – Japão – Takeshi Kitano), e Zero pela

Conduta (1933 – França – Jean Vigo). E ao final dessa viagem fílmica, um delicioso café da manhã.

Com Blade Runner (1982 - EUA - Ridley Scott) aprendemos duas formas diferentes e opostas do desejo de

permanência: uma de gratidão e amor e outra de lei e coação. A primeira forma – Roy Batty consagrado pela

invisibilidade de suas lágrimas na chuva – representa a vontade de permanência enquanto insistência em um

tipo especial de amor: gratidão por estar-no-cosmos como paradoxo da existência – ser muito para ser

considerado nada e ser pouco para ser desprezado em relação a tudo. Roy não quer simplesmente

permanecer no mundo. Ele quer agradecer o devir, sua natu-mortalidade, com a morte de seu criador –

sacrificar seu criador em honra a si mesmo: consagrar os privilégios do ser com os privilégios do nada. Roy

basta a si mesmo e a única coisa que lhe falta é tempo. A segunda forma do desejo de permanecer é

Deckard consagrado com sua memória de um unicórnio. Ele sofre. É insignificância intrínseca: como mero

caçador, mercenário, não pode se sentir como necessidade alguma. É um torturado pela culpa. É

insignificância extrínseca: é também caça, não ocupa lugar imperceptível. Isso o faz querer que seu

sofrimento torne-se lei obrigatória – que sua crença em si mesmo se nutra do horror de sua própria lucidez.

Ele quer permanecer no mundo enquanto ingratidão do que se é – sacrificar a si mesmo em honra ao seu

criador. Ser de bom grado oprimido e opressor.

Em Persepolis (2007 – França – Marjane Satrapi), pudemos transitar por uma geo-autonomia muito peculiar:

um "retorno" ao mesmo tempo em que se dá um passo adiante – memória e história como um projeto de

autodenominação numa narrativa mnemônica de mesma grandeza que um conhecimento histórico. Marjane

Satrapi, uma estrangeira em sua própria terra (produz conhecimento local, no entanto está sem lugar de

intervir) que recusa ser um sujeito universal (abandono de qualquer macronarrativa) sob o horizonte do ser

englobante (recusa de que um discurso acadêmico, portanto letrado, seja por si só uma crítica cultural). Sua

trajetória geo-autônoma lhe dá a percepção de que o Ocidente não é algo para ser imitado (homogeneidade).

A nacionalidade não é algo para ser reencontrado (dominação). A personagem nos aponta para o risco mais

que necessário, para nossa boa saúde, de respondermos afirmativamente a seguinte questão: como

estaríamos sem a religião, o Estado e os trabalhos forçados?

Ah... e a maratona fílmica segue pela madrugada... em Aqui estamos por vós esperamos (1998 - Brasil -

Marcelo Masagão) tivemos acesso a um só tempo ao pensamento de vida (a busca por uma causa ou

pretexto externo que seja responsável por nossa terminalidade) e ao pensamento de morte (o profundo

respeito pelo outro tão desvalido, frágil e efêmero como eu). Provação e prova. A cinematização e da história

do século XX. Esta nos é apresentada como certeza do detalhe ao mesmo tempo em que é incerteza do

conjunto: o mesmo princípio que nos é próprio também nos é alheio. Nada mais justo para nós: tudo é único,

irremediável e inapelável, menos a narrativa sobre tais. O reino do cemitério é soberano, mas o do berçário

se pretende inviolável. Cada pessoa morta é um constrangimento para nosso estar-no-mundo atual.

Contando-nos suas histórias, mortos e mortas revividos por uma narrativa alheia, se apresentam como um

"poderia-ter-sido". Para nós uma mensagem do além, sem ser fantasmagórica: sejamos mestres da dança

(como as caveiras do Día de Los Muertos no México), incitadoras à aventura (como os piratas que sabem que

sua vida será encurtada pela própria pirataria), sedutor e tentadora (como as atrizes astecas que ao

representar suas divindades se sacrificavam assim como tais), educadores/as do por vir a ser (como políticas

negativas cabrerianas onde o pessimismo, a tristeza, o niilismo e o suicídio são formas de tomar posição

diante da exigência inevitável da existência) – tudo isso, enquanto há tempo!

Nossa quarta parada foi em Zatoichi (2003 - Japão - Takeshi Kitano), um ronin cego, massagista e jogador

de dados. Com ele aprendemos que a ética da servidão samurai a seu daimyo (senhor feudal), como a

descrita no Hagakure por Yamamoto Tsunetomo no século XVIII no Japão, pode ser pervertida em uma

estética de um samurai sem amo. Zatoichi é espadachim autonomista entrópico. Seus ensinamentos dizemo

seguinte: vivemos no mundo onde todo viver é um desviver; reagimos às coisas que nos rodeiam de modo

sempre difuso, indeterminado, informulado, impossível e absurdo; só que tais reações são orientadas pela

intuição de justeza entre a morte como condição da vida e a impossibilidade de uma vida não mortal. Justeza

enquanto esquecimento, inocência, jogo, afirmação, criação, abertura, possibilidade, início. Com sua espada-

bengala ou bengala-espada, Zatoichi nos ensina que é preciso seguir os instintos da cegueira que pode até

ser voluntária, caso contrário, somos persuadidos/as que o mundo é tão terrível que nem mesmo nos permite

ignorar o binômio comando-obediência.

Por fim, com o sol já alto, o último mirante dessa jornada-maratona de 12 horas seguidas de filmes: Zero pela

conduta (1933 - França - Jean Vigo). Rever este filme nos abriu uma perspectiva latente: Caussat e Bruel

como tutores-condutores: revolta infantil que nos abre o mais belo espaço de abrir mão daquilo que impede

nossa livre personalidade: ser livre sem garantias e preocupações com o futuro! Crianças cujas causas são

elas mesmas. Causas que não se sustentam mais sobre nada. Indeterminadas no que virão a ser. Novidade,

transgressão, invenções. Começo absoluto fora do tempo e da história. Após as férias e de volta às aulas que

Caussat e Bruel sejam kairós (momento oportuno) e aión (guardião do passado e do futuro) contra chronos (o

tempo sequencial). Luta contra o princípio de nossa educação: a inveja adulta para com a coragem e o vigor

da infância sem sofrer os danos da infantilização.

Após tão instrutiva caminhada... nada com um delicioso café da manhã ao estilo beduíno: todos e todas em

um único círculo em volta de uma farta mesa à altura do chão, compartilhando com a mão pães, homus,

frutas e chá preto. Ingredientes frescos e pães recém-saídos do forno. Quem sabe você não esteja na

próxima Virada Movies? Desde já, sinta-se convidado/a.

Vida Cigana - ou adesão à existência sem remorso nem

segundas intenções quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Não é Deus quem organiza a

providência geral, mas sim, o acaso. Para sentir

tamanha felicidade é preciso uma vontade de se

desiludir e de se desrrealizar. Uma paixão que

não necessite da caução divina para disfarçar os

múltiplos inconvenientes ligados ao viver.

Provação e prova simultaneadas. Nenhum

lugar há para filosofias-Prozacs. Mas, sim, todo

espaço possível para a evidência da morte, do

efêmero e do sofrimento. Belíssima aliança

secreta entre o trágico e o jubiloso. Ocasião

muitas vezes vista como mórbida, mas

ao contrário tal aliança é sinal da maior saúde.

Eis "Vida Cigana", filme do diretor sérvio cirílico

Emir Kusturica. Com toda a certeza um dos

melhores filmes já passados pelo Cin‟surgente.

Desde o refinamento de seus elementos técnicos

passando pela delicadeza do delirado, até a

rudeza da afirmação do real que basta a si

mesmo.

Antes de tudo, é válido lembrar que, sem

música e dança, não haveria Kusturica. Não pelo

fato de Kusturica ser um cineasta músico, mas pelo fato de sua constituição cigana: vive-se com o olfato e

com o gosto, com o ouvido e com o tato, com o ventre e com a festa – não há hierarquia dos sentidos como a

imposta pela tradição metafísica dos olhos. Isto o leva a uma peculiar cinematização: o amplíssimo júbilo

sensorial cigano – como o já visto por aqui em Latcho Drom de Tony Gatlif. Cinema como consequência da

música e da dança: imagens fazem ver, comunicam uma visão, transmite perspectivas, recorta e fornece

distâncias, distribui formas e cores; no entanto, é preciso assisti-las com olhos múltiplos e interessados –

olho-olfato, olho-paladar, olho-tato, olho-audição. Um filme assim realizado, de olhos múltiplos de um júbilo

cigano, é relegado por muitos como vulgar, como pontos de vista de segunda ordem, pois a alegria cigana,

afirmação jubilosa mesmo no trágico, não é considerada digna de interesse para além do exotismo bufo. É

preciso cheirar as imagens. É preciso dançar com elas. Rir junto. Assim Kusturica ri, e ri alto, ao mesmo

tempo em que ouve as harmonias mais delicadas da música que são os ciganos e as ciganas. Kusturica faz

uma caricatura despreocupada de uma família da antiga Iugoslávia, se opondo radicalmente, tanto ao

romantismo e sua atmosfera carregada, quanto às vulgaridades interpretativas de sedentários, de

movimentos cansados e quase enfartando, e de outros coveiros e seus passinhos engenhosos pelas tumbas

do pensamento.

As personagens de A Vida Cigana são todas experiências imediatas à realidade sensível e empírica

de uma grande comemoração – casamentos e funerais. Sempre entre festas e festejos estão absolutamente

à vontade em suas existências – sua jovialidade e leveza são resultados da rara arte de dançar e fazer

dançar. Não sentem vergonha nem culpa – pois são ágeis e flexíveis. São expressões de certas forças vitais

que bailam com as forças mortais, que nada tem a ver com dissimulações, que estão mais para um ética da

crueldade (como diria o filósofo francês Clément Rosset) do que para as éticas europeias que os tornam

estúpidos e estúpidas: o lúcido louco, o noivo bêbado, os bastardos, o viciado em jogo – causas de si

mesmos, nenhuma resistência, toda valentia, flexibilidade, astúcia, portanto, nenhuma consciência obstinada

perante objeções – ciganos e ciganas sublimes e cruéis (não em sentido moral) que possuem todas as

qualidades do/a aventureiro/a que rejeitam os caminhos seguros e conhecidos da civilização e atrevem-se a ir

a lugares nos quais nenhum caminho está traçado. As crianças vendidas, as exploradas pela mendicância

semi-profissionalizada, a prostituição, a máfia, múltiplos coloridos selvagens. Danira, Pehran, sua avó, seu

peru de estimação, sua pretendente, todos/as preparados/as para um Carnaval em grande estilo: condição

radicalmente inversa a da Europa desanimada, desiludida e quase desfalecida. Todas as personagens

afinadas para a mais espiritual das gargalhadas: a liberdade libertada. Todos/as prontos/as para a exuberante

e carnavalesca sabedoria aristofântica: profunda sabedoria ambígua tragicômica que às vezes aparece

revestida de ingenuidade e exaltação. Nobres traidores/as de todas as coisas que podem ser traídas – os

ideais da velha tradição platônico-judaico-cristã-europeia! Pura expressão da alegria da mudança e da

passagem, do presente inatual, intempestiva.

A cosmologia da "Vida Cigana" é: jamais se render à violência da vítima, ou seja, ao deixar-se vítima,

a vitimização. Não há um externo eternamente culpável – a predação é generalizada e horizontal. Dessa

negação, a maravilhosa sabedoria trágica do povo cigano: a liberdade jamais deve ser substancializada – não

é uma relação entre “eu quero” e “tu deves”. Ou ainda: de que todo nacionalismo é nostálgico e teme o futuro

– viver em cigania nada tem a ver com o progresso e tampouco com a repetição. Não é pontuação do tempo

em direção ao passado, nostalgia de uma era de ouro, nem em direção ao futuro, nostalgia de um paraíso

inalcançável. Neste sentido, viver em cigania é, nem máximo, nem mínimo de nação possível. Nenhum leito

de enfermo para a política, como são impostas as vontades da maioria que, na falha do diálogo e da

negociação, votam e elegem. É bom lembrar que não lhes interessam o direito de ir e vir, pois querem apenas

passar, desse modo não são culturas glaciais, como são as que geração instituições como Ministérios e

Secretarias da Cultura. Também que não lhes interessam um humanismo que tenta imprimir com brasa uma

regularidade ao mundo e uma qualificação de inumanidade a quem lhe é diferente. Sim, a pessoa genial, no

filme de Kusturica, é a antítese mais radical de qualquer que seja o Estado, a Igreja e/ou o Trabalho forçado.

Wood & Stock - ou o futuro de uma ilusão sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O maior, e talvez o único, problema humano é o tempo. A religião, a filosofia e a ciência já tentaram

defini-lo das mais variadas formas. Definições independentes e até em combinação entre si. No entanto, a

humanidade vive seu tempo como terminalidade, sem conseguir apreciar seus variados conteúdos de fins e

finalidades. Parecem precisar de se distanciar; de tornar o passado e o futuro presentes. Necessidade vã,

pois o tempo, sempre imperioso, se coloca virtualmente como o maior inimigo tanto desse distanciamento

quanto da própria humanidade. Isto, pois, necessariamente, sempre esteve identificado com a morte, ou

melhor, com a mortalidade sem levar em conta que cada minuto de desviver é um idêntico minuto de viver.

Estar no tempo é, irreversivelmente, estar vivendo/morrendo. A humanidade não está, espontaneamente,

inclinada a essa consciência simultânea. Pensa que há antídoto para a terminalidade: conforto,

entretenimento, metas sociais e profissões. Tudo isso para ocultar... o tempo.

E, é sobre as formas de ocultamento do tempo que trata esta terceira deliciosa alucinação animada

intitulada “Wood & Stock - sexo, orégano e Rock'n'roll” (2006), da Otto Animações, cinematizada a partir dos

cartoons de Angeli. Seu enredo é sobre dois velhos hippies que, supostamente, “pararam no tempo”; que

supostamente “ainda vivem no início deste século XXI do mesmo modo que viviam nos anos 70 do século

passado”. Digo supostamente, pois aos nossos olhos (apressados pelo oásis da velocidade técnica e pela

ilusão de progresso) temos a miragem de que nós, sim, seguimos no tempo – avançamos, progredimos.

Porém, o contraditório flash back de cogumelo que

lança Wood ao seu futuro mostra exatamente o

inverso. A liberação sexual, o uso de

potencializadores de prazer e a sempre saudável

aversão ao trabalho e ao sacrifício das paixões

perderam para a frustração dos desejos

impulsionais, para a proibição das liberalidades e

para a privação do patrimônio psíquico individual

tornando cada vez mais raras as opiniões próprias.

O futuro para Wood e o presente para nós, é a mais

alta potência da juventude mumificada. Em outras

palavras: é a potência de que cada visão individual

de mundo não brota da plenitude da natureza jovem,

e sim, de um eco daquilo que já foi pensado, falado,

censurado e elogiado à nossa volta. A arte de viver

em rejectivos liberadores, ensinada pelas velhas

gerações, foi trocada pela democracia de

supermercado, pela autonomia de self-service e pelo

hedonismo em que os prazeres são pagos para serem higienizados, pasteurizados e esterilizados.

Wood, Stock, e toda a "velha-guarda" (que se resume apenas ao amigo Paranormal) reunida no

banheiro de casa, não têm a menor necessidade de tornar suportável o desamparo humano frente ao tempo.

Não usam mais drogas pesadas, fumam orégano! E, encaram isso apenas como um ritual de lembrança

relativo ao desamparo da própria infância hippie, pois quem julga ser qualquer tipo de dono de uma verdade

fundamental, se sente no dever de promover inquisições. Apesar de parecerem estacionários, suas paixões

vagam livremente. E aqui surge a expressão máxima da animação: Sunshine! O porco musicista. Ele é a

própria exuberância libidinal não substituída pelo ciclo da mercadoria que o ser humano produz e reproduz. O

porco, e sua sujeira metafórica, surgem para fixa-se nos objetos apenas para garantir a impura satisfação de

desejos fundamentais, cujo neocapitalismo ecológico tenta, a todo custo, higienizar usando as liberdades

modeladas pela liberdade de comércio. Sunshine não é nenhum "como se". Sunshine, simplesmente é. Ou

seja, é o próprio real que basta a si mesmo. É nenhum esforço para criar ilusões. É irreligioso, por excelência.

Nele não há nenhuma insinceridade nem maus hábitos intelectuais. É manifestação de uma maior saúde que

significa o maior perigo para a cultura dominante do carreirismo e do realismo conformista. Sua postura e sua

expressão no exato momento anterior a seus vocais são de uma impressionante nobreza insurgente.

O futuro de uma ilusão – subtítulo escancaradamente roubado de um livro de mesmo nome de Freud

– é a mensagem de Wood para todas as pessoas sem imaginação que começam a desconfiar do lugar de

destaque conferido ao conforto, à cultura, aos lazeres que destruíram sua imaginação: é possível mudar de

monotonia, mudar de ilusão? Nesta espécie de último suspiro contracultural, um alerta é dado às futuras

gerações:

"... Cuidado crazy people! As instituições, as leis e as prescrições culturais serão a neurose

obsessiva da humanidade! Elas serão um sistema de ilusões que nega à realidade que a

imaginação esteja no poder! Cuidado crazy people! A humanidade só dará um passo adiante

rumo à evolução, quando nós soubermos que dependemos apenas de nossas próprias forças.

Apesar de minha imaginação ter um caráter delirante ela é corrigível..."

_______________________

Curiosidade: Wood, Stock e Sunshine nos pregaram uma peça engraçadíssima. Numa espécie de piada

metafísica. Assistimos toda a animação numa velocidade, quase imperceptível, mais lenta que o normal.

Somente em seu final, estranhamos que os 81 minutos da animação aconteceram em um tempo de 120

minutos! É que o VLC Media Player estava com o tempo de reprodução lento marcado. Desse modo

pudemos sentir na pele os efeitos, em tempo real e sincronizado aos personagens, de fumar orégano.

Solaris - matando a Coisa e mostrando o ... a coisa mesma. domingo, 17 de outubro de 2010

Não existe filme de ficção-científica que não seja projeção de nós mesmos/as – representação

amplificada daquilo que já conhecemos ou realização exagerada daquilo que possuímos virtualmente. Por

exemplo, todo alienígena é uma "coisa-alheia" que vem do espaço exterior cheio de intensões inumanas, no

entanto sempre acabam como "subjetividade" que imerge de nossas entranhas humanas demasiada humana

– pelos gregos esses alienígenas foram nomeados pelo termo genérico de Psique. Uma contradição bastante

interessante, pois o que está de fora não vem de fora, vem de dentro. A "coisa-alheia" é revelada como nós

mesmos/as! Assim, falar sobre essa questão seria propriamente tecer teorias psicológicas de alto nível, fazer

um ensaio tradicional sem escândalos interpretativos, sem realismo fantástico ou até mesmo sem iconoclastia

filosófica. Querem um exemplo de tratados desse tipo? Leiam o que foi escrito pelo filósofo Slavoj Zizek. No

entanto (!), a situação do filme Solaris, do cineasta russo Andrei Tarkovsky, exige algo além de rótulos

óbvios. Exige uma interpretação à altura do gênio de Fitzcarraldo. Sendo assim, utilizarei a pornografia (como

uma grafia pornô antes de qualquer coisa) como recurso metodológico para uma análise refinada desse

magnífico filme.

O que há de mais tranquilo, regular e monótono do que o percurso de uma estação espacial orbitando

um planeta qualquer? Os horários são precisos. A vida estudiosa monótona, sem aventura

espantosa! Porém, a "coisa-alheia" ronda como uma única perturbação possível: a hipocondria –

enfermidade da imaginação. Quanto mais se quer evitar a "coisa-alheia", mais ela é alimentada como não

alheio. Pulsão imaginativa. Força que age nas zonas mais nobres do psiquismo. Ação impura e louca! Desejo

amoroso! Orgias psíquicas! Assim é preciso curar o cientista. É preciso purgar-se desses amores proibidos. O

superego científico está de vigília, pois quer estar pronto

contra qualquer pulsão insurgente; contra qualquer

demônio artesão de devaneios – fantasmas sexuais.

Esses que se agitam em momentos delicados do dia: o

reino da noite. Os devaneios noturnos são os mais

perigosos. Pois, abrem espaço para a vagabundagem

dos desejos – o reino da masturbação! É preciso

escolher cientificamente: uma prostituta ou uma

masturbada?

Quem se masturba, deliberadamente, constrói

narrativa, evoca imagens. No entanto, seria Solaris uma

espécie de planeta cafetão? Um planeta que liberta a

ciência dos artifícios da fantasmagoria? Hari é

apresentada à Kelvin. Antes uma prostituta do que se

masturbar! – eis o escolhido. Também é evidente o pânico da masturbação de Gibarian. Teme que a

ejaculação seja nociva à saúde. Antes a morte que o desperdício de esperma! Sartórios esconde um anão:

devemos supor uma experiência íntima que transformou sua vida. Já Snaut está fascinado. Ele experimenta

algum tipo de sublime. Humano, talvez. Se isto, fascina-se por um sublime sexual: o ver a genitália. Talvez o

sexo feminino: a visão da vulva. E isso pode ser devastador! Pois, é a verdade sem véus, a verdade sem

calcinha. Olhar sob as saias da Realidade é a obsessão de todo cientista. Um desejo voyer: pode-se ver a

"coisa-alhiea", mas somente ver, pois se está, metodologicamente, proibido de tocá-la. E Solaris é o cúmulo

desse erotismo. Não só permite, mas obriga mulheres-fetiches no laboratório. Nada de verdade, nada, a não

ser sexo. Em Solaris ninguém se retira desse planeta, apenas o penetra. Porém, o nome da penetração é

trocado por melancolia – doença da solidão.

Kelvin está melancólico, portanto intoxicado, devastado, impregnado pela angústia pós-coito. Não

suporta mais depilar a "coisa-alheia" de Solaris, pois ela sempre volta mais e mais peluda. A vulva lhe

aparece sempre viva, em prontidão e lubrificada, jamais dorme. Impossível um cientista fazer experiências e

especulações entre as pernas de uma mulher. É melhor outra "coisa-alheia" para manter a sobriedade. Algo

mais viril, mais ereto: a Razão. Kelvin faz a opção, anti-Édipo e anti-Eléctramente, pela razão – esta um tanto

flácida, enrugada, cabisbaixa e já adormecida há algum tempo – de seu pai. Kelvin troca a vulva noturna

eternamente renovável e flexível de Hari pelo pênis diurno eternamente perecível e duro de seu pai, tudo pela

necessidade de ...

"Quem prometer à humanidade libertá-la das provações do sexo será acolhido como herói."

(Freud, em Carta a Ernest Jones)

Stalker - ou a transvaloração do turismo domingo, 7 de novembro de 2010

No século XIX, o inventaram. A forma mais

miserável e desprezível já vista percorrendo a face da

Terra. A assombração de monumentos. A grande

caçada de culturas. A grande coleta de imagens. O

grande consumo de diferenças. O grande corpo sem

órgãos que persegui souvenirs desvairadamente. Sim,

ele mesmo... o TURISTA!

Pois é... neste rincão do universo... neste

planetinha de quinta grandeza... inventaram o Turismo!

Esse compromisso com tudo o que é inautêntico.

Estrutura psíquica, filha do Imperialismo (ocupação,

estupro e pilhagem) com a Mercadoria (Sociedade do

Espetáculo e Empresas de Cartões de Crédito) que se

destaca como visitante de uma nova geografia sem

paixões. Fruto desse casamento também conhecido

como capitalismo pós-colonial de experiências vividas em tempos mortos. Turismo, a filha fetiche cujo único

propósito histórico é impedir que se faça história. Já maquiada e vestidinha com roupinhas insinuantes desde

a mais tenra idade. A quem quer seduzir? Quantos catálogos e filminhos promocionais já não fizeram com

ela? Ou... com ele?

Os valores gerados por essa forma desprezível de viajante são destruidores dos significados originais

dos lugares visitados – paraísos artificiais de mediações controladas. Tudo é avaliado como objeto de troca:

nada se sabe daquilo enquanto lugar, mas se sabe quanto é o seu preço. Não há nenhuma reciprocidade:

tudo se perde, nada se cria. Pois a valoração é mediada pelas Agências de Viagens: chantagem permanente,

mundo empobrecido, falsificação oficial. Muito menos são valores da abundância: a sobrevivência dos lugares

é garantida ao preço de uma nova alienação de quem os habita – pelourinho da submissão. Não há nenhuma

gratuidade em se dar presentes aos/às anfitriões/as: masoquismo do “o freguês tem sempre a razão”. Já que

não são hóspedes de ninguém, são fregueses de agentes de viagem. Estes que nada têm de anfitriãos/ãs.

Alguém deve estar pensando: "Nossa! Quanta virulência contra a figura do Turista! Quem escreve

estas palavras amargas deve ser um terrorista, que não quer estrangeiros em suas terras". Para evitar que

esse tipo de pensamento se alimente mais, coloquemos em cena Stalker (1979), maravilhoso filme-textura

com encantadores contrastes de luz, sombra e cores, fantástica fotografia e sublimes silêncios, maestrado

pelo cineasta russo Andrei Tarkovsky.

"Mas... o quê tem a ver Stalker contra o/a turista?". Ahá! Boa pergunta. Esse filme de ficção-científica

é um cuidadoso tratado de Transvaloração do Turismo. É um poderoso discurso que instaura outra motivação

para se viajar. Não é a guerra – para o/a imperialista. Não é a troca – para o/a antigo/a comerciante. Não é

peregrinação – para o/a religioso/a. Nem é a mediação predatória – para o/a turista. A motivação que Stalker

instaura é a árdua, mas edificante. É a fusão entre o objeto de desejo e o próprio desejo. Para quê viajar?

Simples, para se fundir ao lugar para qual se viaja.

A Zona é um espaço de flutuação, puro movimento e vida. Nela não há estações, rodoviárias e

aeroportos. Consequentemente não há carros, ônibus ou aviões. Não há hotéis, restaurantes, lojas de

souvenires e monumentos para serem fotografados ou filmados. Muito menos há catálogos, livretos ou

panfletos preparados por alguma mumificante Agência de Viajem. O espaço-tempo da Zona é a própria

viagem. É certo que ela, também, é uma invenção – como qualquer lugar que se pretende ir. Mas isso não é

problema, nem solução. Isso apenas nos sugere que podemos inventar o que quisermos sobre o lugar para o

qual queremos viajar. Invenção cujo propósito é a nossa fusão com o espaço e tempo. A introdução da quinta

dimensão, que é o desejo, como mais uma coordenada.

Stalker é um tipo de guia jamais pensado até então. Pois até então não existia esse tipo de viagem.

Não é um terapeuta, um pastor, nem mesmo um guia turístico. É apenas um guia-buscador também

interessado na fusão e na introdução da quinta coordenada. Tal qual quem se põe a visitar a Zona. Ambíguo,

duplo e sobreposto. Carrega tanto o desencantamento, por necessidade, da Ciência, quanto o encantamento,

por inutilidade da Religião. Um Stalker não tem nome em particular. Já é indivíduo fundido. Já é quinta

dimensão introduzida. Não é sujeito, é propriamente conjugação de verbo em um espaço de flutuação, de

puro movimento e de vida liberada. Assim como o cachorro – simbólico guia do retorno, pois não é possuidor

da quinta coordenada, é ela propriamente (instinto) – que dá o sinal de que a transvaloração foi realizada.

Pois apenas se pode desejar de modo incondicional irracionalmente. E esta, só se é garantida por boas

razões impensáveis. Assim, Stalker transvalora o turismo nos apontando uma sabedoria: recusar o apelo do

turismo ao auto sacrifício voluntário de desejos próprios em nome de um humanismo automutilado que nada

deseja propriamente.

Outubro - ou A partir do modelo Chinês terça-feira, 16 de novembro de 2010

Lendo o título deste post, alguém pode

muito bem estar se perguntando: Como assim,

Outubro a partir do modelo chinês? A revolução

russa não aconteceu antes da revolução cultural

chinesa? Pois bem, vamos esclarecer: o que trata

nosso assunto aqui pervertido da ordem histórica

é antes uma questão de forma do que de

conteúdo. É uma questão entre formas poéticas.

Primeiramente, o modelo chinês é a poesia

baseada em pictogramas. Em seguida, afirmamos

que a montagem fílmica de Eisenstein é desse

mesmo tipo de poesia só que colocada em

movimento.

No entanto, não deixarei de fazer a

seguinte provocação quanto ao seu conteúdo:

"Outubro" é um filme realizado em 1927, a pedido

do Estado Russo em comemoração aos 10 anos

da Revolução Bolchevique. Pois bem, seria esse tipo de filme-propaganda, diferente do "O nascimento de

uma nação" (1915) de David W. Griffith, ou de alguns dos filmes-propaganda de Leni Riefenstahl? Aqui se

abre mais um espaço para o "Como assim?". Bom, o que sustenta esta provocação é simples: o Estado, seja

qual for sua origem, sempre emerge de uma divisão política anterior da sociedade e não de uma divisão

econômica da mesma; assim, tanto um Estado governado pela Ku-Klux-Khan, quanto outro governado pelos

Bolcheviques, ou mesmo outro governado por judeus é ainda uma sociedade de classes, por simplesmente

não visar a superação das estruturas estatais que, desde seus fundamentos, são impossíveis de se realizar

numa sociedade sem hierarquias! Um Estado somente persiste pela manutenção policial-militar-judiciária de

que o bem do todo só é conseguido pelo sacrifício das partes. E que, o todo é propriamente um grupo

extrema e descaradamente pequeno em relação à multidão obrigada a se sacrificar. Qualquer Estado teve ou

teria uma classe de privilégios, por vezes uma burguesia não menos feroz que a mais feroz burguesia da

outrora Europa do século XIX. A indiferenciação provocativa é que, o conteúdo de todos esses filmes-

propaganda citados acima é uma comemoração elogiosa, historicamente efetivada (Russia), ou hipotética

(EUA e Alemanha), à irredutibilidade de uma sociedade com Estado para uma sociedade sem Estado - como

diria Pierre Clastres em seus textos de antropologia política.

Se ainda continuas aí após tal heresia radical, sem teologias e catecismos, sigamos ao tema central

deste post: a forma. Como na música ocidental, segundo Ernest Fenoloosa (filósofo norte-americano), há na

poesia chinesa "harmônicos". Tais transitam de ideograma para ideograma. Esse trânsito é o que transforma

um verso em algo pictórico. Os "harmônicos" da poesia chinesa formam rimas visuais. São harmônicos

imagéticos. No entanto, estariam mais para uma pintura ou mesmo para uma fotografia. Porém, esse

modelo, bem estudado por Eisenstein, é insuficiente, pois criam conceitos abstratos estáticos. Eisenstein

pretende atribuir dinâmica, atribuir teatralidade aos harmônicos imagéticos. Essa atribuição seria possível da

mesma maneira que se pinta um poema visual chinês, porém, seu ritmo gestual se daria mediante a

montagem fílmica. Onde dois objetos concretos dispostos sequencialmente (tais quais os harmônicos

imagéticos da poesia chinesa) criariam conceitos abstratos. Duas imagens colocadas em sequência criam um

terceiro significado. A montagem seria um instrumento intelectivo próximo a criação de conceitos até então

somente realizada pela linguagem escrita: frases de montagem.

A mensagem formal de Outubro é poética. Há seleção, combinação e ritmo entre metáforas visuais e

simbologias. Como exemplo, lembremo-nos apenas de quatro frases montagem de Eisenstein que já nos

seria suficiente para ilustrar nossa afirmação:

1) a Estátua de Alexandre III e o povo sobre ela = morte à monarquia;

2) burguesas histéricas e o linchamento do jovem manifestante = sublimação do gozo sexual;

3) Kerenski e o pavão = soberba própria tanto à monarquia quanto à burguesia;

4) Kerenski e os cavalos = vá à merda Governo Provisório!

Ironicamente tais metáforas-iconográficas e conceitos-imagens encontrados em Outubro não

conseguiram em sua época e, ainda não conseguem atingir a sensibilidade de todas as classes, pois há

certamente um processo intelectivo anterior necessário para absorver a mensagem proposta pela ideográfica

dinâmica de Eisenstein. A força que sua montagem intelectual tem é muito sutil, e refinadamente elaborada. E

a compreensão de uma poesia não se dá de primeira vez. Sua leitura exige audácia à sensibilidade comum

de objetivos pequenininhos, limitados e já dados de antemão. Audácia contra a olhada superficial do explícito.

É necessário dedicação, no entanto, dedicação indômita que se move para além dos limites do convencional

e do permitido. É preciso pensar, cuidadosamente, sem métodos seguros e bem delimitados. Também é

preciso uma boa dose de embriaguez. De leitura sem prazeres sensatos. De amor a labirintos; nada

pragmáticos nem trabalhador. Talvez seja nesse momento, um tanto aristocrático, que esse filme-propaganda

vá – como os outros filmes de Eisenstein – além do elogio às estruturas estatais e à efetiva superação da

sociedade de classes: se pôr a pensar e se envolver com inteligência nessa disposição, independe de

classificações coletivas, pois raras são as pessoas habilitadas a tal empreitada. Nitimur in vetitum!

(“Lançamonos em direção ao proibido!” – Ovídio, poeta romano da passagem do século 1 a.C. para 1 d.C.)

Surplus - ou O Arcaismo Revolucionário domingo, 21 de novembro de 2010

Surplus – Terrorized Into Being Consumers (Suécia – 2003) de Erik Gandini. Supérfluo, excedente,

superávit – aterrorizados para consumir; aterrorizados até o consumo. Eis o título. Genial como a montagem.

Na verdade, composição. Johan Söderberg, percussionista foi quem o montou. Filme-documentário-vídeo-

clipe-percussão. Falando em linhas grosseiras e gerais, o filme é uma crítica a dois estilos de vida: ao que

visa ser modelo do mais elevado modo de ser humano: consumidor (consumistas como espécie de

imperialista, e imperialistas como espécie de consumista); e ao estilo de vida militarizado (como o vivido em

Cuba): ambos alheamentos que articulam um sentimento falsamente romântico que se torna porta-voz de

uma solução inautêntica e forçosamente permanente. A voz que insurge contra tais modos de ser no mundo é

a de John Zerzan. Responsabilizado pelos progressistas de plantão de ser uma espécie de ghost-maker

(fantasma realizador) dos fantásticos distúrbios de rua contra o G8 em 2001. Onde as ideias de John Zerzan

são rotuladas com a estampa de anarco-primitivista. Destas linhas grosseiras e gerais sigamos a linhas mais

delicadas e, portanto, deliciosamente perigosas.

Surplus é uma análise dos

hábitos e costumes das

sociedades europeia e

estadunidense em contraponto

com os hábitos e costumes da

sociedade pós-revolucionária

cubana. A sociedade europeia é

colocada como dona de uma velha

cultura. A estadunidense, dona da

grande inveja e vingança contra a

velha cultura, e que não consegue

escapar do dever de justificar sua

existência perante a primeira. E a

terceira sociedade, a cubana, é

apresentada como dona de uma

ruptura anticolonial via a militarização e a aceitação da escassez como forma de vida: distribuição igualitária

da pobreza. Europa, soberba mãe da filosofia, das artes, da ciência e da história. Estados Unidos, soberba

mãe da tecnologia, do pragmatismo, do dinheiro e da guerra em série contra tudo o que não é judaico-

ocidental. Cuba, soberba mãe insurgente que sucumbiu sobre as próprias penas revolucionárias. A crítica

endereça a esses três tipos de mães pode ser endereça às elites econômicas e intelectuais do mundo inteiro

– como as elites mestiças de toda América Latina e as Teocracias Islâmicas Liberais. Pois são elas que,

virtualmente, participam da cultura europeia e usufruem da tecnologia estadunidense. Mesmo que ambas as

situações são experimentadas de modo defasado. É aqui que o filme se torna mais interessante para nós,

brasileiros/os (pretensa identidade determinada pelo acaso de se ter nascido/a em um território pluriétnico)

não participantes dessa pretensa elite ligada às comunicações globais e à imensa rede de trocas; aberta às

mensagens e à comunicação de experiências que incluem o mundo. Pois a crítica de Surplus toca onde nos é

experiência diária, acerta bem em cheio sobre nossa cotidianidade, na maioria das vezes experiência

cotidiana irrefletida: a miséria existencial do “ir levando a vida” e o alheamento (hegemonização) ao nosso

estilo de vida único e transvalorador – vivemos em um território que, só de indígenas são 225 etnias falantes

de 180 línguas diferentes.

Chamarei, somente pedagogicamente, esse estilo de vida como 'brasileiro', apenas para apontar uma

extensão territorial específica onde se pode viver uma multiplicidade gigantesca de formas de vida. Vivência

somente possível fora das vividas pela 'nossa' elite pretensamente global. Vivência tão radical que a nomeio

de Arcaísmo Revolucionário. Surplus nos mostra que a ideia de progresso é vivida, ao mesmo tempo, como

um espaço de grandes expectativas e de doces sonhos, como também um espaço que provoca insônia

povoada de pesadelos, "ser deixado para trás". Essa dupla vivência do progresso somente é possível apenas

para a minoria de pessoas não sobrantes do planeta. Possível á apenas aquelas pessoas que constroem

suas cidades como trincheiras e bunkers destinadas a separar e a manter distância daqueles que trazem

consigo o horror da fome (“por não terem supermercados 24 horas à sua disposição”), da escassez (“por não

terem uma infinidade de pessoas subalternas a elas”) e da precariedade da condição humana (“por não terem

acesso às soluções tecnológicas da monótona vida moderna”) – todas correspondentes à vivência do

progresso pelas elites econômicas, religiosas e intelectuais – e também para manter distância (por exemplo, a

relação entre a FUNAI e as etnias indígenas) daquelas pessoas que trazem consigo a condição de que

podemos muito bem viver das mais variadas formas indiferentes às obsessões causadas pelo progresso –

correspondência com a vivência de um Arcaísmo Revolucionário que nega a ideia de progresso desde suas

raízes mais profundas em nosso cotidiano.

Se o discurso de John Zerzan, para a superação desse modelo aterrorizador para o consumo, é por

via de um primitivismo revolucionário, é uma reação válida contra a miséria causada pelo excesso de

civilização, geograficamente localizada. Um discurso possível apenas nesse lugar chamado EUA, cuja razão

de ser é a pretensa superabundância de coisas propiciada pela tecnologia, o pragmatismo e o protestantismo.

Zerzan vê essa abundância excessiva como uma espécie de madrasta má: mãe e inimiga ao mesmo tempo.

Enquanto mãe ela nos mostra que podemos fazer qualquer coisa com o menor esforço possível, menos

fadiga e menores custos (automação). Enquanto inimiga ela nos mostra que é preciso estar definitivamente

dentro do sistema (ser peça substituível da automação). Contra isso não há alternativa. Apenas nesta

aceitação incondicional se está seguro/a. No entanto, viver em segurança não é viver a beatitude da

tranquilidade, e sim é viver a maldição do tédio. É ter empregos que odiamos e somos obrigados/as a amá-lo

incondicionalmente ao mesmo tempo em que abrimos mão de toda espontaneidade, flexibilidade, capacidade

de surpreender-se e de nos colocarmos em possíveis aventuras. Zerzan sugere que a superação é assumir

um risco. Risco este que é o de não mais viver obrigado a consumir objetos (e aqui também se inclui o

urbanismo) criados para descarregar os excessos de medo. É o risco de que nossos medos não tenha vida

própria. E como todos/as sabem que, quem não arrisca não petisca, assim é a mensagem primitivista de

Zerzan. Exemplo do modo como algumas pessoas, lá na Europa e EUA, aceitaram esse risco, é a onda de

destruição de propriedades privadas corporativas:

“Por que as pessoas vão pras ruas e tentam protestar ou fazer alguma coisa? Isso não é

violência idiota e sem sentido. Idiota e sem sentido é ficar sentado, usando drogas, assistindo a

MTV. E então você arranja um emprego e se arrasta. Para mim isso é violência. Destruição ou

dano a propriedades é necessário. Ela quebra a demarcação de política como "política do

mesmo". O que nós conseguimos segurando um cartaz fazendo os "protestos de sempre"? Vi

décadas disso. Isso nunca resolveu nada. As pessoas não prestam atenção. Por que deveriam?

Não vale a pena. Mas quando as pessoas lutam, isso é alguma coisa. Isso chama atenção e,

deveria, porque é real. Não é apenas o jogo de: "Eu me sinto bem. Tenho meu cartaz" Bem, (...)

Eu prefiro ser pacífico... pois, ninguém é posto em perigo... Ninguém se machuca ou é preso.

Ninguém é atingido por um policial na cabeça. Nenhuma janela é quebrada. Idealmente. O

problema é que não funciona desse jeito. Estou pedindo por uma nova ética. Propriedade

corporativa é o alvo mais óbvio e legítimo no meu ponto de vista. Bancos, lojas caras, e cadeias

como Starbucks e outras. As pessoas entendem isso como parte do sistema global, dessa...

...abusiva, massificaste, destrutiva forma... ...que esta exterminando todas as diferenças, toda a

liberdade.”

John Zerzan

Ahá! E o discurso de Zerzan não cabe a nós também? Claro... que sim... e não! O sim, dizemos à

destruição da propriedade privada ameaçadora... e o não, é que não precisamos voltar a algum estágio

anterior à revolução industrial. Pois não vivenciamos tal como revolução. Não por que nos faltou algo,

histórico ou materialmente, e sim porque a recusamos de modo fundamental. Por abundância. Esta gerada

pela nossa experiência dialética entre a síntese e mistura. Pois de modo vívido e aberto, nosso cotidiano é a

constante recordação de que a qualquer momento os muros podem ser derrubados - somos indígenas,

quilombolas e ciganos/as. Pois de modo vívido e aberto, nosso cotidiano é a constante recordação de que a

qualquer momento as fronteiras podem ser canceladas - somos refugiados/as e imigrantes provindos/as de

todos os cantos da terra. Vivenciamos diariamente os meios os quais aniquilam as misteriosas e

incontroláveis forças globalizantes: por exemplo, vivemos o comércio espontâneo, trocamos mercadorias

entre iguais. Existimos enquanto classe perigosa por sermos incapazes de integração - por vivermos as

múltiplas justiças, religiosidades e línguas indígenas. Existimos enquanto classe perigosa por sermos

incapazes de assimilação - por vivermos as múltiplas morais afrodescendentes e o movimentar-se constante

cigano. Existimos enquanto classe perigosa por sermos inaptos/as para sermos socialmente reciclados - por

vivermos as múltiplas esperanças (o lugar recebe o impacto do/a estrangeiro/a) e aberturas ao novo (o/a

estrangeiro/a recebe o impacto do lugar) de imigrantes e refugiados/as. Devido a esse perigo somos vistos/as

como supérfluos/as, ou seja, arcaicos/as, antiprogressista: por querermos aldeias e quilombos demarcados,

ou seja, ancestralidade assumida; por queremos certas experiências estrangeiras libertárias. Devido a esse

perigo somos vistos/as como excluídos/as de modo permanente, ou seja, revolucionário/as que precisam ser

impedidos/as de criar problemas e assim mantidos/as à distância da comunidade respeitosa das leis do

progresso e da globalização.

Assim, o Arcaísmo Revolucionário é a nossa forma natural de crítica e solução à tensão entre as

pressões globalizantes e o modo como nossas identidades são debatidas, modeladas e remodeladas. Nem

EUA, nem Europa... nem Cuba.

Queimada - ou Brincando com fogo quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Queimada (1969 - Itália/França) de Gillo

Pontecorvo. Um filme força. Potência inebriante.

Inspirador. Filme que faz tudo o que é vivo em meu

corpo se rebelar contra a tirania do conforto. Mas se

retiro toda a sua força ele se resume no seguinte:

Século XIX. Uma ilha do Caribe sob domínio

português. É enviado para lá um representante da

coroa britânica. Sua missão: incentivar uma revolta e

promover a independência da ilha chamada

Queimada. Esta é assim nomeada, pois, os

portugueses atearam fogo nela para conter uma

insurgência indígena. No entanto, dez anos depois, o

representante inglês retornar à Queimada. Desta vez,

não como representante da coroa inglesa, mas sim

como mercenário contratado pela Companhia

Açucareira. Nova missão: desfazer as consequências

da missão anterior. Pois o momento econômico exige

um novo ordenamento político.

Agora, restituindo a força do filme, dá-se o seguinte:

Queimada nos coloca uma belíssima reviravolta de pensamento: não tem sentido falarmos em

história da civilização, e sim tem sentido falarmos em geografia da civilização – expansão territorial colonial. O

pensar histórico fez com que o tempo deixasse de ser uma dimensão do vivido e o tornasse um modo de

ordenar manifestações culturais em hierarquia. Queimada é anti-pensamento histórico. É localização

geográfica de um conhecimento. O filme propõe a ruptura com a pretensa hierarquia nítida do tempo; com a

pretensão do pensamento histórico ser algo universal, irreversível e último – abstrata e des-localizada. O filme

de Pontecorvo propõe uma importantíssima e inédita revolução: articular o sentido da vida humana com o

sentido espacial (geográfico) da vivência. Os portugueses importaram, à ferro e fogo, para a ilha, a identidade

cultural luso-cristã (ignorando que as histórias mundiais são muitas) e a memória de modelos como

"progresso" ocidental (esquecimento voluntário de que a história é um disciplinamento historiográfico).

O intuito dessa importação significava a continuidade histórica da civilização por sujeitos desencarnados da

história. Continuidade como forma colonial de domesticação do passado. Queimaram toda a ilha em nome

dessa continuidade: em nome dessa falácia desenvolvimentista que é o holocausto cultural da modernidade.

No entanto, mal sabiam que, com isso, estavam mesmo era brincando com fogo. Mal sabiam que, aqueles

que foram levados à força, os/as escravos/as negros/as, e que lá chegaram de mãos vazias (sem "civilização"

e tecnologia), chegaram com a potência de um novo modo de pensar tão radical que se tornaria

incompreensível para qualquer civilizado ou pretenso civilizado: o pensar concreto e espacial de uma

verdadeira cultura por construir. Apesar da miséria material na qual os/as africanos/as desterrados/as foram

aí lançados/as, seus gestos cotidianos se mostraram o que eles e elas tinham de mais rico e sofisticado: jogo,

festa e revolta.

O representante da coroa britânica, importador de progresso, chegou a Queimada trazendo em suas

malas, fases esgotadas da cultura ocidental, como se estas falências fossem esperanças para um futuro

promissor. Repetição do esgotamento vinda de navio (tempo da distância) e impressa em papel ( tempo da

comunicação como um olhar distante em direção a Europa; como um espiar do modelo a ser copiado). No

entanto, o futuro promissor trago pelo inglês foi ocupado territorialmente por Jose Dolores (convidado que se

tornou anfitrião). Tornou-se futuro imprevisível, pois se tornou geografia promissora. Deixou de ser mero

tempo – espaço da utopia. Tornou-se lugar. Atitude de violento insulto. Jose Dolores ocupou o tempo, como

se fosse um espaço; com isso trocou seu ritmo europeu histórico por um ritmo africano que o suspende das

trilhas da história. A revolução de ex-escravos/as em Queimada troca a técnica civilizada europeia pela arte

africana além da civilização. Troca o simbolismo "universalmente" convencionado por pensamentos concretos

mais vivos. Provoca a descoberta de si enquanto pensador e agente próprio – são guerreiros dançarinos por

um marco zero. Troca a restrição às verdades humanísticas pelo grande acordar – despertam do alheamento.

Não há mais sonho dogmático – cuja duração segue às custas da pena de morte. A guerrilha procura,

apenas, assumir-se autentica e honestamente para si e para o seu ambiente. No entanto, enquanto a revolta

se levanta rumo a uma nova situação, há uma pseudocultura nascendo: a república. Situação cômica de seus

participantes. Pois a tragédia pertence apenas a Jose Dolores.

Tragicomédia, portanto. Pois, por um lado, são escolhidos alguns dos "piores" elementos de cultura

para transformarem a cultura mesma: imitadores, sempre decadentes temporalmente, para manifestarem por

si espíritos alheios: imitação defasada da Europa. E por outro, são escolhidos os mais interessantes

elementos só para serem descartados: a guerrilha por progresso, só que ela mesma estando para além do

progresso. Resultado: incompetência. A república nasciente de Queimada é filha da civilização sempre

incompetente e ilusionista da mesma. Pois é uma debandada desesperada da realidade concreta e próxima

que lhe é insuportável: os/as escravos tornaram-se senhores/as de si, do ambiente, do futuro enquanto

presente e da cultura bela a ser cultivada. Tal pseudocultura-tragicômica-republicana é logo deposta por uma

junta militar aliada ao capital estrangeiro. Pois foi incapaz enquanto filha de amar sua mãe: "é para o seu

próprio bem". Portanto, horizonte fechado, mas ocupado por outra filha decadente a Ditadura Militar. Mas o

ritmo africano é incompreensível para ambas as decadências. Ele insiste e não se cala. É horizonte aberto. É

carnaval revolucionário ou revolução carnavalesca em seu sentido mais superior, algo tão refinado que

também é incompreensível a qualquer esquerda festiva. Pois o ritmo que toma conta de Queimada é

esperança utópica para além da história, para além das condições materiais - sem cair em nenhum tipo de

"euforia" religiosa além-mundo. É esperança inesperada, ou seja, é esperança cuja única função é

desaparecer.

Lilian M. - ou Liberdade: só a Libertinagem vos Libertará quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Lilian M: Relatório Confidencial, filme

brasileiríssimo, pois nele não há as defasagens

intelectuais que se costuma importar da Europa e dos

EUA. É uma inovadora "tragicomédia de aventura" de

1974, dirigida pelo herói marginal Carlos Reichenbach,

cujo roteiro e fotografia também estiveram sob seus

cuidados. Obra de arte que ainda hoje não encontrou

sua devida reverberação. Talvez por ainda continuar

sem encontrar seu devido público, pois não é a

romantização de nada, muito menos a condenação

moral de algo. É um filme libertário que se liberta de si

mesmo. No entanto Lilian M., a personagem, é um

modelo fantástico e, portanto, mítico da singularidade

do agir que dessacraliza o pensar. Lilian M. coloca a

liberdade de pensamento em seu justo lugar: a

liberdade do corpo. O pressuposto de qualquer

pensamento é a própria pele. O pensar nada mais é do

que pura diversão e capricho amoroso. Nada de se

entregar à razão para cumprir o sacro dever de

sacrificar aquilo que mais se ama: a arbitrariedade descarada da aceitação de que sou apenas o eu próprio.

Não há pressupostos. Lilian M. apenas se põe. É posta. Ah, mas antes de continuarmos essa ideia mítica

dessacralizada, bisbilhotemos a sinopse do filme.

"Maria abandona o marido lavrador e os dois filhos pequenos. Foge com um mascate falador.

Após um acidente de carro, segue sozinha para São Paulo. Imigrante perdida é presa e

encaminhada a uma assistente social. Esta lhe arruma um emprego na casa de Braga, um

industrial filósofo. Tornam-se amantes. Maria é rebatizada de Lilian (nome da mãe de Braga). Isto

é só o começo. Ao longo de sua trajetória Lilian se envolve com todo o tipo de personalidades

singulares: o filho de Braga (artista autodestrutivo), um industrial alemão (financiador da repressão

militar), um grileiro de terras narcisista, um detetive infantil, uma dançarina e cafetina, um

marginal tuberculoso com cara Jesus Cristo e, por fim, um funcionário público submisso e sem

ambições e sua irmã, aparentemente apática. A trajetória de Lilian M., da roça à metrópole,

do casamento à prostituição, da estabilidade financeira à marginalidade instável, retorna, como na

música se retorna a um ritornelo, às origens: mulher humilde casada e mãe de duas crianças

pequenas. Mas como eu disse: ritornelo!"

Lilian M. é ao mesmo tempo criador e criatura. É dissolução que só interessa a ela mesma.

Dissolução da imensa noite do pensar e da fé. Abandona o reconhecimento de que qualquer coisa está acima

dela. Não tem vocação alguma, não está atrás de nenhuma, nem mesmo a de ser alguém livre. Pois, qual a

medida de sua liberdade? Já que não sente nenhuma limitação que a possa afligir. É causa de si mesma.

Não é causa de nada, de que alguém espere que ela trabalhe se sacrifique ou se entusiasme. Nenhuma

causa é superior senão ela mesma. Lilian M. é um nada grávido de tudo. Nela não há espaços vazios. Não há

nenhum sentimento de vacuidade. Não se esconde por detrás de coisa alguma. Está acima de tudo, porém

isso não significa que ela é superior. Lilian M. simplesmente é. Não está reduzida ao seu espírito, é mais que

isso. Não está reduzida ao seu corpo, é mais que isso. Não está reduzida a seu egoísmo, é mais que isso.

Ela não se prende, não se descobre, não está amedrontada pelas coisas do mundo e, muito menos tem

planos de salvação ou melhoramento da sociedade. É a insurreição aqui e agora sem deixar brechas para

niilismo algum. Não lhe cabe qualquer tipo de resignação hipócrita ou mesmo aceitação hipócrita. Aquilo que

assombra cada pessoa que assiste ao filme nada tem efeito sobre sua protagonista: o amor, o bem, a

verdade, etc. Lilian M. nada tem de vítima da renúncia de si mesma. É quebra da tirania do espírito através de

sua carne e ossos. "Liberdade de espírito" seria a pior injúria que alguém poderia cometer contra ela.

A liberdade não lhe é um sentimento imposto, não lhe é estranho e não lhe é sagrada. Não lhe é um

sentimento desperto por outrem. Não vem de fora, nem de dentro. É permeação completa. A liberdade só

pode ser toda a liberdade. Uma parte da liberdade (como amam dizer por aí "liberdade, mas sem

libertinagem") não é a liberdade. De que coisa você quer se libertar? De que serve uma liberdade que não lhe

dá nada? De que serve ser livre apenas de partes e do todo? De que serve uma liberdade que estabelece

uma nova dominação? De que serve uma liberdade ordenada pelo sentimento moral, pela consciência, pelo

sentido do dever, ou mesmo pelo "o que as pessoas pensarão"? De que serve uma liberdade na qual nos

assustamos com a nossa própria nudez e naturalidade? De que serve uma liberdade fundamentada no

desprezo de si e na veneração de ideias? Para melhor entendermos essa dimensão libertária de Lilian M. que

liberta até mesmo a liberdade, voltemos ao tempo dos dez anos passados após realização do filme: o fim da

ditadura militar brasileira em 1984. A abertura política triunfou, no entanto, em seu triunfo, destruiu aquilo que

pretendia realizar, a liberdade. Pois, ao invés de agir liberta de qualquer tipo de tutela, acharam outros meios

de colocar correntes em si mesmos. Civilização falida. Falência que se agrava até os dias de hoje (2010) e

continuará indefinidamente enquanto se tratar a liberdade como posse e não como relação. Relacionar-se

com a liberdade somente é possível na libertação. É no libertar-se a si mesmo – processo – que a liberdade

vai se dando, em partes rumo ao todo liberto. Apenas em um primeiro momento do processo faz-se livre,

depois é preciso seguir em frente, assim como Lilian M. o faz: esquecimento, inocência, jogo, afirmação,

criação, abertura, possibilidade, início. Ser livre não é a interiorização de lei alguma, é processo de abertura

do espaço da liberdade total sem garantias; é processo que não se sustenta sobre nada; é processo não

determinado pelo que somos, e sim que se determina pelo que viremos a ser; é processo da novidade, das

invenções e das transgressões; é começo absoluto fora do tempo e da história. É o próprio conselho da

libertinagem: tornar-se centro e essência da liberdade.

El Topo - ou, Por uma Mística do Trágico segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Superfície. Antes de cavar: Oeste dos Estados Unidos da América. Antessala da Guerra Civil

Americana. Ocupação de terras, criação de gado, luta com indígenas, segregação. Cowboy solitário,

pistoleiros, aventureiros, jogadores, vagabundos errantes, xerifes, garimpeiros. Roupa do corpo, revólver,

cavalo. Cavando um pouquinho: Jogatina, álcool, prostituição. Futuro glorioso a ferro e fogo, ideais

patrióticos, presença militar dos colonizadores. História linear, enredos vazios, moral imperiosa. Civilização

como um bem a ser alcançado. Ahá encontrei algo. Ei, isso é o Western, um tipo de cinema estadunidense

por excelência!

Bem, me deixa cavar um pouco mais e

entrar mais a fundo no Western. Estimulante e

anestesia ancestral inextirpável do judaico-

cristianismo-europeu: o ser humano pode agir

sobre seu destino; ele não é mais um joguete dos

deuses pagãos; sob a insígnia do Deus único o ser

humano age sobre si mesmo, bastando apenas,

lutar ferozmente contra os três grandes demônios

que exercem domínio cruel sobre sua existência: o

artifício, a natureza e o acaso. O primeiro grande

demônio, o artifício (tudo o que é múltiplo - no caso,

materializado como diversas sabedorias

indígenas), deve ser moralizado. Pois o artifício,

não tem regras; é um capricho arbitrário; é filho da

faculdade de resolver e decidir e, portanto, uma

injustiça. O segundo, a natureza deve ser domada.

Pois a natureza sempre foi considerada como uma

forma eficaz contra toda forma de superstição e de

crença religiosa. A natureza é filha de nenhum

princípio gerador - perigo absoluto para qualquer

cristão. Desse modo, domada a natureza é apenas

demanda das terras prometidas aos mórmons e

demanda destinada à reforma agrária europeia

além mar. O terceiro grande demônio é o pior de

todos! E assim, deve ser aniquilado sem dó nem

piedade. É o acaso. Risco perigosíssimo, pois nele tudo foge do controle. É a própria insignificância radical de

todo acontecimento, de todo pensamento e de toda existência. Fonte invisível de tudo o que nos desagradam,

pois pode se admitir tudo, menos o acaso. Neste a civilização chegada ao novo mundo é, nada mais nada

menos, do que um destino lamentável. (Ah, lembremos: esse fundo a que cheguei não é privilégio somente

dos Estados Unidos, muito menos do Western.)

E agora? Já estou bem fundo... Opa, acho que alguém está se aproximando... Parece que está vindo

por baixo... Ah! É uma toupeira! Helo my friend!

- Hola mi amico! Yo soy el Topo!

- El Topo? Español? Entonces tu no habla inglês?

- Inglês? No. Pero, infelizmente, hablo la lengua de otro colonizador.

- Ah, entiendo. Eu também falo a de outro... mas el Topo, o que te trazes até aqui?

- Si, esta es una longa história. Pero yo hablaré a ti em tu lengua también no originária.

Minha história é a seguinte:

Minha trajetória é dupla. A primeira se situa no real, porém na forma de um manifesto (não surreal)

contra o homoreligious, esta absurda disciplina de viver à sombra de Deus; esta grande segunda chance que

ocultou a crueza do trágico irreversível de nossa existência. A segunda é o duplo da primeira: uma espécie de

ilusão oracular. O ardil e a ironia dos efeitos do real: o homonaturalis, esta absurda disciplina de viver às

sombras da promessa de explicação, que supera o homoreligious abandonando o heterocídio em prol do

suicídio: o nada que decidiu a forma de existência que observamos.

Meu manifesto, minha primeira trajetória é indiferente à própria ideia de causa; a existência não tem

nenhuma essência que a fundamente: nenhuma dissimulação nem mistério. O deserto é minha paisagem

mais própria. Minha indiferença é meu tipo na certeza de que a única causa possível é o acaso: o único apto

a trilhar mil caminhos possíveis. É preciso enterrar a mãe. Desse modo, sem mesmo a imagem da mãe, o

acaso é a melhor arma contra o desejo de elevação típico do absurdo homoreligious. Este desejo danoso que

recusa a admitir que nossa existência seja um produto sem causa nem desígnio, ou seja, toda dor ou tédio

que sentimos são apenas dor e tédio. Troco a convivência com meu filho pela convivência com uma estranha.

A partir daí a possibilidade de ficar cego, ao chegar à superfície, é somente um das possibilidades. No

entanto, há o dever de obediência, ou seja, o querer cegar-se, o estranho desejo de ficar cego. Pois este

dever/desejo seria a própria crença de que o melhor modo de ver as coisas é a cegueira: ambição obsessiva

de dar conta do conjunto das coisas conhecidas e desconhecidas ao mesmo tempo. O ver mais geral. O ver

acima. É contra esse tipo de ver sobre a natureza (visão sobrenatural) do homoreligious, que eu, el Topo, se

insurge. Foi preciso matar seus mestres. Superá-los até a indiferença. Insurgência trágica contra o credo

comum de toda denegação filosófica, científica ou religiosa da realidade. Denegação que oculta o caráter

único da vida, mantendo-a à distância de sua falta irremediável de recursos de conforto exterior a ela.

Denegação que visa atenuar o rigor de existir. Trágica, pois sua realidade é suficiente e tem a plena certeza

de seu nada constitutivo. Não é um mal terrível nenhum, ver as coisas tal como elas se apresentam:

heterocídio.

A segunda trajetória, como Dionísio ou Renato, ambos nascidos novamente: acordo em uma caverna

como algum tipo de salvador. Venerado, cuidado e esperado como alguém detentor de uma grande resposta.

No entanto, esta "segunda chance" me é o próprio ato de evitar o destino coincidindo como a sua própria

realização: suicídio – tentativa de extirpar o inextirpável, a morte. Um e mesmo gesto: o fatal (a caverna) e o

da esquiva (a cidade da superfície). A tentativa de se eliminar o acontecimento (a morte) elimina apenas uma

de suas versões (velhice, doença, acidente, heterocídio, suicídio). A frustração do acontecimento (preconceito

naturalista) é a mesma da expectativa do acontecimento (preconceito divinizador e divinista). A pedagogia

moral (processo) é a mesma consciência moral (resultado). Ao mesmo tempo em que exponho o criminoso,

me exponho como o criminoso. Coincidência rigorosa. Círculo tautológico. Renascido a força natural nem é

inércia material nem é o poder humano de intervenção, tampouco é alguma coisa pensada e definida. O filho

ressurge em seu desejo de matar o pai. Mas sua morte pode ser adiada até que seu trabalho platônico

termine. No entanto o privilégio de não existir já foi negado a todos/as. À necessidade da morte é impossível

de se escapar. Não há disfarces. Nada acrescentará algo à vida. Não é possível ter mais vida. A vida

somente se torna vida se disfarçada de morte: travestida. A eficácia da ideia de se ter mais vida, ou outra

vida, é proporcional a seu travestimento, em outras palavras, à sua imprecisão. Somente travestida, ou seja,

somente imprecisa a ideia de "mais vida" torna-se invulnerável. Essa minha segunda trajetória, torno-me, el

Topo, o grande inimigo da crença. Não enquanto verdade, e sim, enquanto precisão: somente é invencível

aquilo que não existe.

Libertárias - ou Um exército disposto a desaparecer terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O registro da Guerra Civil Espanhola de 1936, desencadeada por um golpe militar, no filme as

Libertárias cumpre duas finalidades primordiais. Uma, preservar na memória a luta de dimensão ideológica e

a potência revolucionária de um povo que, organizado em frentes de resistência contra o fascismo, contra o

autoritarismo e contra a moralidade católica. A outra trazer o legado da luta de milícias de mulheres que não

apenas lutaram contra o autoritarismo, mas potencialmente contra a opressão feminina, tanto dos nacionais

quanto dos republicanos.

O que é expressivo no filme é a dimensão de que as mulheres reivindicam e exigem o a equivalência

aos homens.

“Somos equivalentes”! Essa a expressão mais simbólica das reivindicações das mulheres que

organizadas em uma frente armada, com mais de 20.000 filiadas, travaram a trajetória para educar e libertar

as mulheres da prisão da submissão, da escravidão e da maternidade reprodutiva.

A película nada tem de hiper-realidade, nem tampouco romantiza as personagens ou mesmo as

idealiza. A representação provoca a compreensão das motivações ideológicas e sociais pelas quais lutavam.

As mulheres foram vencidas e a dimensão da exclusão e da opressão se transforma na marca de uma cultura

masculina de raiz católica e fascista.

O Estado, o exército,

o latifúndio, a igreja e o

capitalismo se preservam

enquanto expressões

máximas da opressão de

gênero.

Mais do que um

registro histórico, o filme

produz os sentidos de uma

concepção ainda presente da

categorização de gênero que

desqualifica e exclui as

mulheres do espaço de vida

pública e reafirma os modelos de aprisionamento ao espaço domestico não político.

Como pensar essa dimensão dissociada da idealização sócio-política da igualdade de gênero? Em

práticas cotidianas de ódio ao sistema, ao autoritarismo masculino e à desumanidade de políticas e educação

que impõe a acomodação, a apatia e a insensibilidade.

“Mujeres Libres” desafiaram o modelo e se negaram a reproduzir a dinâmica burguesa da submissão,

da servidão e da moralidade católica que lhe impôs ô ônus da reprodução.

O registro do assassinato das mulheres que ainda resistiram no front de batalha foi registrado com a

sutil dimensão da “equivalência”:

As mulheres livres não têm medo... Não são poupadas... Não são vitimizadas... Não fogem e não se

salvam, porque não são cristãs, não preferem a vida a qualquer preço. Preferem a morte a viver como

escravas ou submissas.

O que se revela a partir da luta das “Mujeres Libres” é a memória para todas as gerações de

mulheres que decidiram entrar para a história pela luta e derrota pela morte, mas recompensadas por nunca

terem se curvado ante aos opressores.

Que nos inspire, pois a realidade do passado está impregnada em nosso presente, pois também

somos filhos e filhas da mesma e nefasta moralidade cristã, do autoritarismo político e do poder masculino

hoje dissimulado em discursos educativos de que “juntos (sic) tudo é possível”!.

Tetsuo, the Iron Man & Save the Green Planet - A Experiência

Final sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O Cin‟surgente chega ao fim. Morte em grande estilo. Extreme experience. Asian cyberpunk! Futuro

proibido. Cybiose primitiva. Dois filmes que se insurgem contra a Ficção-Científica otimista e excessivamente

feliz e progressista do legado de Star Trek. Nenhum progresso. Nenhum happy end. No future. Enfim,

nenhum conformismo ególatra do desenvolvimentismo tecnológico vitoriano. A esperança triunfante da

Ficção-Científica é uma muleta para quem tem medo de trilhar caminhos à beira de abismos. Ao quebrar

esses parâmetros mentais da prudência conformista chega-se a lugares que ambos os filmes, "Tetsuo - the

Iron Man" (1989 – Japão) e "Save the Green Planet" (2003 – Coréia do Sul), chegaram: o zen do princípio da

crueldade (crudus – indigesto). A estrutura cartesiana reduz-se às cinzas. O princípio de causalidade, tão

caro à ciência, é desprezado. A separação entre sujeito e objeto, completamente ignorada. O tédio...

ridicularizado! Experiência direta, imediata, não filtrada com a tecnologia e com alienígenas. E sim, como diz

um provérbio zen: "só encontrará a sua vida aquele que a perdeu"! Voi lá!

Tetsuo - the Iron Man, ou a arte cruel de um cybionte primitivo zen - este filme de Shinya Tsukamoto é um

magnífico tratado cinematográfico. Primeiro por ser cinema em sua mais intensa experiência: libertação da

literatura. E, em segundo, por ser uma inquietante tese sobre a relação entre nós humanos e nossos

artefatos: somos um círculo vicioso, ou fita de Möebius entre ser vivo e ser máquina. É por esta segunda via

que trilharemos. Na interface humano/máquina, somos realidade última: não há objetivos, resultados práticos,

evolução ética ou mesmo aprimoramento estético. Nela qualquer domínio técnico é insuficiente. É uma

téchne sem téchne, arte sem arte. É um duplo desprendimento de si próprio: se o nada é o próprio infinito, o

infinito é propriamente nada. Esse duplo desprendimento é a relação estreita entre intuição (no entanto, uma

intuição especial, pois está mais próxima possível da sexualidade – intuição sexual que simultaneamente

capta a totalidade e a individualidade das coisas) e a consciência cotidiana (o cálculo que inspira e sustenta

toda a "luta" diária). Ser humano/máquina não é uma simples especulação, mas experiência única que o

intelecto não pode conceber.

Somente é possível conhecer quem

profundamente o ignorar. Pois deixa

de ser uma perseguição por um

resultado exterior ou interior, e torna-

se uma experiência onde ambas as

esferas se confundem. Desse modo

tudo o que é anterior é constituído a

posteriori. Tudo o que é histórico é

constituído não historicamente. São

as condições para a formação de

instintos - o filho nasce antes da

mãe. Insólita noção de sucesso: é

preciso que se afunde ao máximo

nos próprios fracassos - superar os

pensamentos. A techné genuína de Tetsuo não conhece nem fim nem intenção. Tetsuo é um deixar para trás

tudo o que se tem e o que se é lançando-os ao futuro. É expectativa livre de intenções. Tudo o que se faz

está feito antes que se saiba. Adaptação ao acontecer. Nenhum significado de imitação. Apenas absorto na

sua ação. O terror é sua criação autêntica. Sentimento terrorista desprendido de si mesmo. O/a criador/a não

está presente enquanto criador/a, mas sim apenas enquanto criação. A morte como forma de vida. Não

existindo qualquer distância entre o gesto de se esquivar e o de atacar. Não existindo qualquer distância entre

o vivo e o autômato. Tudo é um mesmo vazio. Um reencontro da segurança ingênua do/a principiante

absorvida como traço dominante de personalidade. Indiferença a tudo o que pode amedrontar. Assim, Tetsuo

é um viver no mundo sempre preparado a abandoná-lo. A ideia da morte não lhe é mais perturbadora. Tetsuo

domina a vida e a morte, o humano e a máquina, portanto está livre de todo temor. É mestre zen de uma arte

cruel. Apenas revela o que tiver de revelar com atitudes, jamais com palavras. Tetsuo a extrema expressão

de um cybionte primitivo zen.

Save the Green Planet, ou a Próxima Grande Aventura Póstuma da Humanidade – a visão de Jun-Huan

Jeong, com este seu filme, é diabolicamente inteligente e inspiradora. Sua questão norteadora é terrível: do

que estamos falando quando dizemos em salvar o mundo? É do planeta Terra em si? É do mundo animal,

vegetal e mineral? É preservar as culturas, como elas se encontram neste exato momento? Ou seria

simplesmente salvar o lugar onde habitam os humanos? Mas... salvar? De quê e/ou de quem? Da morte? Da

dor? Do tédio? Da conquista? De outra pessoa? De mim mesmo/a? Save the Green Planet dá algumas dicas:

absolutamente nenhum programa; a melhor maneira de não viver; anti-padrões de vida; a única forma certa

de vida é incerta; corresponsabilidade de minhas misérias; cuidado com os bons selvagens; aversões e

medos civilizados; nova história para velhas tragédias. Mas que tipo de dicas são essas que não ajuda em

nada para respondermos a questão norteadora? Simples, o filme é um sistema complexo tal qual o tratado

pela Teoria do Caos e suas ideias são meros estranhos atratores. Estes são pontos para os quais toda órbita

que passar perto é atraído por eles. Nos sistemas caóticos esses pontos são denominados "estranhos",

devido ao elevado grau de incerteza dos resultados desses sistemas. Ainda assim, não é possível entendê-lo.

Pois bem, mais uma chance. O filme visa contrabalancear com estranhezas aquilo que desde já supomos

como certa: é preciso salvar o mundo. Seu enredo é uma espécie de anarcopsicanálise antiedipiana,

polissexualidade, esquizocultura e pânico diante a possibilidade do fim. A cada momento surge uma

estranheza para aterrorizar nossas certezas que supostamente gosta da liberdade de expressão. Save the

Green Planet não recalca desvios de comportamento nem reprime os ataques a sua própria consciência. É

uma resposta poderosa sem os clássicos niilismos sorrateiros do ocidente: drogas free, surrealismo, New

Wave, Nova Ordem Mundial, Terrorismo eco-capitalista, Turismo sustentável. Resposta poderosa por ser

belamente ultrajante; não há nenhum novo paradigma social; não confirma nenhuma visão quântica ou

existencialista; nenhum vazio budista; nenhum abismo nietzscheano; nenhum vazio da incerteza de Joyce;

nenhum tipo de iluminação pela Relatividade Especial de Einstein; enfim, nenhum Produto Interno Bruto. Hã,

não há milagres? Como assim? E agora, o que vamos fazer? Abandonar o barco? Tão próximo da margem...

BUM!!! Um final maravilhoso? Não, obrigado.

Por um Posfácio Nada Difícil – Politizando os

Conceitos-Imagens – Julio Cabrera

Em transcrição....

“Eu acho que vocês politizaram os conceitos-imagem. Vocês politizaram meu livro. Isto é mérito de

vocês por que não é o que eu fiz; eu não pensava isso quando bolei esse livro na década de 1990. Esse livro

saiu na Espanha; lembra? No final da década de 1990, então eu devo ter estado pensando nesse livro nos

anos 1995, 1996 e ele saiu em 1999. O Cinema Pensa, você sabe, é uma tradução tardia de 2006 do livro

que saiu na Espanha no final do século. E essa politização não estava...

Eu estive fazendo uma autocrítica nesse meu livro novo De Hitchcock a Greenaway e em outros

artigos, enfim, que eu publiquei. Mas não no sentido político. Então, é, enfim, mérito de vocês ter feito isso.

Então eu posso me posicionar a respeito do que você diz, de uma maneira ou outra... é o seguinte:

Talvez eu tenha uma discordância com vocês, os do cinema insurgente, uma coisa: eu acho que

vocês ainda se mantêm no plano semântico da análise, no sentido de pensar ainda, mais ou menos como

pensa... digamos... a intelectualidade bem pensante esquerdosa brasileira de que há um cinema comercial,

um cinema alienado, um cinema destruidor da sensibilidade, e há um cinema contestador, limite, culto,

artístico, crítico, etc. Eu tendo a não acreditar nessa dicotomia, tanto que, no livro de 1999, O Cinema Pensa,

e o que foi depois do Cinema Pensa, de 2006, eu analiso filmes comerciais. Por exemplo, Steven Spielberg,

Clint Eastwood e vários outros, misturados com Antonioni, com... enfim, com filmes que se diriam que são

filmes artísticos. Por quê? Por que a mim, me parece que o olhar crítico, analítico, político, etc., etc., não está

tanto na semântica do filme. Se não, nisso em que você chamou a pouco de... “o que você faz com o filme”,

tanto como espectador como a pessoa que faz o filme. Por exemplo, eu, para te dizer algo escandaloso, não

acho que a “Lista de Schinder” seja um filme mais crítico de Spielberg que “Tubarão”. Para mim Tubarão... eu

o leio como um filme crítico... é um filme absolutamente 100% comercial ou 100% hollywoodiano. Ele não é

crítico na forma, pois tem uma forma completamente tradicional, apesar de que tem uns achados

interessantes, mas é modesto do ponto de vista da forma, enquanto Schindler é um filme ambicioso no ponto

de vista formal. Mas não é mais crítico por que seja um filme contra o nazismo, ou por que seja um filme

sobre um tubarão assassino que ataca uma praia... Percebe? Não sei se você tem algo a dizer sobre isso...

ou seja, a mim me parece que vocês ainda pensam que o crítico, o alienado, etc., está no filme. E eu cheguei

a pensar, ao longo do tempo, que os filmes são ultrapassados sempre; são transcendidos pela tua visão.

Então... você sabe... a mim me interessa, fundamentalmente, como forma de pensar, como forma de fazer

filosofia. Então eu acho que é você que faz filosofia; é você que vai transcender a Spielberg, ou a Bergman...

ou a Fellini, ou a Clint Eastwood... ou a Buster Keaton... ou a quem você quiser. Você vai transcender o filme,

pragmaticamente, em direção a alguma coisa que lhe interessa. Então... se você adota esse viés interativo do

filme, que é uma coisa que eu não assumia na época do livro, que eu assumo, fundamentalmente, em um

artigo que eu acho muito importante... que é esse artigo... que está por aí... sobre David Lynch. Que foi

publicado na Venezuela, na revista Enlaces, que se chama “Para uma descompreensão filosófica do cinema

– o caso Inland Empire de David Lynch”. Nesse artigo que foi publicado em 2009, eu, realmente, me entrego

assim a... interatividade do filme. Eu supero todo o intuito hermenêutico que eu tinha ainda em “O Cinema

Pensa”. Acho que o cinema é sempre interativo, mesmo o cinema de Hollywood, mesmo o cinema mais

comercial. Não sei o que você acha disso. Ou seja, eu acho que é politicamente mais interessante, você

conseguir... implantar a crítica no coração mesmo do cinema comercial, do que você criar um olimpo de

cinema esclarecido. “Vamos escolher cinemas que desafiam o sistema Hollywood. Então são esses os filmes

que vão nos deseducar”. Talvez aqui aja uma discordância nossa. Parece que, você pode se alienar em um

filme de Bergman; você pode se conscientizar em um filme comercial; você pode ser crítico com uma

animação; você pode ser um pateta com Tarkovski; não são os filmes... é um pouco a interação com o filme.

É aquilo que os existencialistas chamam de a “Trancendance”; é o estar sempre além do que o filme te

propõe. Outro dia, por exemplo, estávamos comentando sobre o filme “Um conto chinês”, aquele filme

argentino, e você se decepcionou por ele, por que parece um filme instranscendente, porque... é um filme de

uma fábula... inclusive parece moralista... por que... enfim... como se um homem amargurado e egoísta se

reencontrasse o sentido da vida e o amor... através da experiência com o chinês... etc., etc., e aí tudo parece

uma balela, uma coisa estúpida. Mas aí, como eu te falei, me ocorreu ver esse chinês na vida daquele

pequeno capitalista argentino, que tem uma vida perfeitamente regrada, onde esse chinês não cabe. Parece

o objeto de desejo que não consegue ser colocado na sexualidade standard daquele cara... daquele indivíduo

automatizado que dorme, inclusive... numa hora determinada... aquele chinês quebra essa estrutura

capitalista, burguesa, ambiciosa, egoísta, mesquinha... etc., etc., ele não sabe onde coloca-lo. E, isso me

parece crítico; me parece interessante, dentro de um filme cuja proposta é de uma fábula... meio estúpida...

meio ridícula... etc., etc. Então não são os filme que vão... é claro, você tem razão de que os filmes tem um

intuito, uma comédia... da década de 1940... com Spencer Tracy... com Katharine Hepburn... enfim... tem o

intuito de divertir, de passar um momento, etc., etc., mas o que o filósofo vai ver nesses filmes... é outra coisa.

O Zizek no seu filme, aquele... sobre... Perverts... e o Godard em “História do Cinema”, que você está

assistindo agora e eu também, você vê eles analisam todo tipo de filme: comedietas americanas

hollywoodianas... Tarkovski... aí está tudo. Eu estou um pouco nessa... via também. Então, estou de acordo e

me parece interessante essa politização dos conceitos-imagem. Mas, me parece que a politização é um

processo mais abstrato do que vocês pensam. É uma espécie de exercício de imaginação política que pode

surgir em qualquer caso, em qualquer momento, com qualquer filme, etc., etc... sem se deixar amedrontar

pelos objetivos explícitos da peça cinematográfica que vocês estejam vendo. Se não você pode cair nessa

situação daquele personagem tão penoso e tão bem construído da “La Chinoise” de Godard... “A Chinesa”. ..

aquele maoísta que se sentia culpado por que tinha costado de “Johnny Guitar”. Johnny Guitar é um bang -

bang, um clássico norte-americano da década de 1950, e o maoísta ficava meio com culpa por que tinha

gostado do filme, tinha achado um grande filme; ele não tinha gostar, por que ele era maoísta, ele era anti-

norte-americano. Uma coisa que Godard, por exemplo, debocha muito disso. Eu gostaria de saber o que você

pensa disso também... agora ou em algum momento, etc. Você não acha que vocês estão concretizando,

corporizando demais a politização do cinema? E fazendo dicotomias muito... talvez... simples?

Tem uma revista de cinema na Argentina que se chama “La Ventana Indiscreta”, que é o título do

filme de Hitchcock em espanhol, e um pouco eles colocaram esse título por causa do meu livro também. Eu

analiso aí esse filme. Eles entraram em contato comigo, e eu fui lá... eles estão em La Plata, que é uma

cidade ao lado de Buenos Aires... bom, dai eu acabei publicano vários textos em La Ventana Indiscreta... não

sei se essa revista ainda sai... e um deles, um dos rapazes argentinos tinha escrito uma matéria sobre alguns

filmes alemães recentes... não sei de já te contei isso... eles escreveram sobre aquele filme... “A Queda” que

é sobre os últimos dias, e dois filmes alemães que pareciam brincadeiras. Um deles se chama “Corra, Lola,

corra” e o outro “Adeus Lenin”. Bom, e aí o artigo dizia: “Corra, Lola, corra e Adeus Lenin são filmes bem

feitos, porém, intranscendentes. Enquanto que a Queda é um filme importante, por que analisa um momento

histórico grave... da Alemanha, como o Nazismo, e que tenta humanizar a figura de Hitler de uma maneira

controversa e...” Eu escrevi um artigo contra – e, acho que o autor não gostou muito, por que quando eu fui à

Argentina, ele não estava... não apareceu para falar comigo... – contestando totalmente isso. A mim me

parece, por exemplo, que “Corra, Lola, corra” é um filme extremamente subversivo, extremamente político; é

um filme de uma moça que sai... umas quinhentas vezes... a história dela se conta de três formas diferentes

e... corre para salvar o namorado que está sendo acuado por uma gangue... um grupo de gangster, etc., uma

coisa bem intranscendente, parece até um quadrinho, o filme utiliza, inclusive, personagens de quadrinho,

que parece completamente uma... porém, eu acho esse filme como uma espécie de conceito-imagem da

temporalidade da internet, da temporalidade moderna, e faz uma observação amável e cordial, porém, crítica

a respeito dessa temporalidade. Ou seja, quantos fatos relevantes da vida das pessoas você pode colocar em

um lapso de tempo estreito? Me pareceu muito profundo esse filme. Enquanto que “A Queda” é mais um filme

sobre nazismo, muito interessante, muito bem feito, com algumas coisas realmente duvidosas, mas eu não

sei se... a reflexão sobre nazismo... talvez esteja um pouco mais fatigada, mais exaurida, mais esgotada, do

que uma reflexão travessa, aparentemente frívola sobre a temporalidade moderna. Então, eu inverti

completamente os cânones dele, que achava que aqueles filmes eram intranscendentes, enquanto que o

filme importante era o filme sobre o nazismo. Aí, como em tantas coisas que me assim no mundo... a filosofia,

eu acho que você tem que ir contra os clichês. Por exemplo, o cinema como dentro da indústria cultural, junto

com a filmografia de consumo e as propagandas, etc., enquanto que nas livrarias e nas bibliotecas você tem

o esclarecimento. Eu acho que... enfim, portanto... na visão de Godard quanto na visão de Zizek... por

exemplo, dois caras que conhecem toda a história do cinema, você não encontra essas dicotomias. O caso,

do último filme de Stanley Kubrick, que se chamou “De olhos bem fechados”. Todo mundo caiu em cima

desse filme, dizendo que era um filme menor de Kubrick, de que era uma pena de que ele não tivesse feito

uma grande obra para despedir, etc. Quando você lê Zizek falando desse filme, ele encontra uma série de

coisas importantes nesse filme, mas em nenhum momento Zizek se refere a esse filme como uma obra

menor. Em nenhum momento lhe ocorre avaliar a obra. Ele entra dentro da estrutura de pensamento... da

estrutura estética desse filme, e não lhe ocorre dizer: “Ah sim, é uma obra menor”. Ou seja, essas avaliações

dicotômicas, “‟2001‟ é uma obra prima.” e “De olhos bem fechados uma obra menor”. Então, eu um pouco

estou dentro tendência e me dando mal, por que as pessoas gostam dessas dicotomias e... se sentem melhor

começar quando sabem aonde é que está o espírito crítico, aonde é que está o alienável, que não deve ser

consumido, etc., etc. Só que tudo isso é dialético. Eu vejo o sentido de criar esse cineclube para ver, por

exemplo, formas cinematográficas duvidosas e que quebram a temporalidade linear, etc. etc. O que estou

dizendo é que tudo isso você pode fazer na sua cabeça com o filme mais tradicional do mundo. Você pode

subverter um filme tradicional... na sua cabeça, na sua imaginação, nos seus livros... nas coisas que você

escrever. Talvez um sério filme de Bergman pode paralisar tua função crítica. Você entende? ... Não sei... é

um pouco por aí...

Mas você tem razão que a maioria das pessoas simplesmente consome essa filmografia, e vai

educando sua sensibilidade nisso. Então, se você quer dizer que a maioria das pessoas que vêm filmes,

inclusive grande parte dos estudantes, das pessoas mais cultas, etc., estão sendo doutrinadas de alguma

maneira para ver filmes... você tem razão. Só que eu acho que, quando você se liberou disso, não há nada

que possa lhe mostrar que vai te levar a uma mecanização, a uma aceitação das imagens. Possivelmente a

gente tenha que pensar nos outros, em pessoas que a gente tem que tentar de mostrar alternativas. Nisso

vocês estão certos. É bom mostrar filmes, por exemplo, não lineares. Mas, por exemplo, os Estados Unidos

começaram a fazer filmes não lineares já há um tempo. O caso emblemático foi nos anos 1990 com o “Pulp

Fiction”, que é um típico filme americano, eu acho, não hollywoodiano, mas norte-americano, com tempos

invertidos... Estávamos falando, outro dia na aula, acerca das éticas particularistas e você estava... digamos,

criticando o universalismo... e dizendo... que há conveniência de ver as situações concretas e particulares,

em lugar de descarregar grandes universais em cima da cabeça das pessoas, mas é isto o que os norte-

americanos estão fazendo agora. A ética norte-americana se tornou extremamente particularista e anti-

universalista, caso típico é o Rorty, que é um dos mais importantes pensadores norte-americanos dos últimos

anos, e ele é um ético particularista, e não acredita em universais. Então, é complicado isso... eu acho que o

mal não está concentrado em um lugar, nunca. Ele é muito sutil, para falar metafisicamente, eu não acredito

no mal. Digamos, os alvos, os inimigos, etc., não estão concentrados num lugar só. É uma coisa ambígua,

então, por isso, a forma nossa de ver cinema também tem que ser ambígua. Tem que ser uma forma

transcendente, ambígua, travessa, traiçoeira... sem regras restritas. A mim, parece que no Brasil, tem uma

espécie de intelectualidade crítica standard, frankfurtiana... estes indivíduos que leem Adorno, Benjamin, etc.,

são críticos... então, parece que há uma espécie de establishment do criticismo. Me parece que, com

categorias muito padronizadas, muito fixas. Acho que o cinema pode mostrar uma maneira de criticar,

extremamente, sensível. De criticar mostrando. E ai está um pouco do que você dizia da forma e do

conteúdo. Por exemplo, “Corra, Lola, corra” me parece que é um filme crítico na forma e não no que conta.

Que o que conta é uma banalidade, mas... “Corra, Lola, corra” é uma espécie de experimento de pensamento

de dizer: “Em quantos minutos se pode salvar a vida de um homem?”. E isso é venenoso do ponto de vista

ético... é muito interessante, e, enfim, trabalha com essa temporalidade vulgar imageticamente. Eu faria essa

reflexão...

Só faltou comentar o que você disse sobre “fazer filmes”... Em decorrência do que lhe disse antes...

eu que você, ao fazer um filme, você não deveria ter uma preocupação de fugir de certa forma tradicional, e

tentar a qualquer custo de inserir formas novas e contemporâneas em narrar, etc., para você se sentir

moderno. Eu acho que você teria que ter uma sensibilidade perversa, no sentido freudiano... uma

sensibilidade multiforme, cética... ou cínica... etc., de tomar as funções da estética de Frank Capra, por

exemplo, que é o diretor de “A Felicidade não de compra”, com Spielberg, com Tarantino, mas também com

Wong Kar-Wai, e com Nanni Moretti, e fazer uma mistura de estilos, sem obrigações morais, sem grandes

bandeiras. Me parece que... talvez, a diversidade de estilos e de estéticas é o que melhor acompanha essa

cultura fragmentada, essa cultura toda aberta, etc., que caracteriza um pouco o cinema de hoje. Mas, me

parece que momentos escandalosos de classicismo e de cinema bem comportado, podem ser um choque

interessante, também. Outro dia eu li a respeito desse filme que saiu agora... “O espião que sabia demais”,

que é um filme muito transgressor do ponto de vista formal. Isto significa que você não entende nada, não

entende coisa nenhuma... pelo menos os primeiros quarenta minutos são quase ininteligíveis. Então, eu li

um... em algum lugar... numa revistinha que dizia: “Bom, não importa não entender, estamos diante de

cinema contemporâneo. Não se trata de perder tempo contando uma historinha”. Isso me parece uma atitude

um pouco estéreo, ou seja, você tem que se situar dentro do que se está fazendo agora, que é inversão de

tempo... experimentos formais. Mesmo que isso seja vazio. Este filme é muito vazio. Realmente eu não gostei

nada deste filme, por que o conteúdo dele não é nada instigante. E a forma, precisamente pelo seu

hermetismo, acaba sendo uma coisa mais... puramente estética do que conceitual, digamos. Então eu diria

isso: fazer filmes com as partes mais perversas, ou seja, com estéticas e formas de crítica múltiplas.”

Anexo: Convites para os filmes:

Latcho Drom (de Tony Gatlif) e a superação do urbano

Waking Life: um ensaio sobre a cegueira cotidiana

Sweet Movie - contra todos os regimes!

A Vida dos Outros - ou o que fazemos com a nossa finitude?

Valsa com Bashir - dançando com a dor dos outros

I love you - ou, Podemos amar qualquer coisa, inclusive pessoas

A Montanha Sagrada - ou a teologia materialista do Real

Veludo Azul - ou nada decidiu a forma de exsitência que observamos

Senhor das Moscas - ou, a arte tribal das crianças da realidade suficiente.

Sociedade do Espetáculo - ou, a narração da Ontologia do Vazio

Lucio, o anarquista - Ou, quem tem medo do anarquismo?

Virada Movies - 2010

Vida Cigana - ou adesão à existência sem remorso nem segundas intenções

Wood & Stock - ou o futuro de uma ilusão

Solaris - matando a Coisa e mostrando o ... a coisa mesma.

Stalker - ou a transvaloração do turismo

Outubro - ou A partir do modelo Chinês

Surplus - ou O Arcaismo Revolucionário

Queimada - ou Brincando com fogo

Lilian M. - ou Liberdade: só a Libertinagem vos Libertará

El Topo - ou, Por uma Mística do Trágico

Libertárias - ou Um exército disposto a desaparecer

Tetsuo, the Iron Man & Save the Green Planet - A Experiência Final