Cinema e Arte Contemporânea_Arlindo Machado

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Cinema e arte contemporânea | de Arlindo Machado De tempos em tempos acontece uma problematização do chamado dispositivo cinema. Esse dispositivo foi magnificamente descrito por Jean-Louis Baudry em dois textos antológicos: Cinéma: effets idéologiques produits par l’appareil de base (1970) e Le dispositif: approches métapsychologiques de l’impression de realité (1975). Conforme a descrição de Baudry, o dispositivo cinema compreende a sala escura que remete à caverna de Platão, o projetor ocultado às costas dos espectadores, as imagens projetadas numa tela branca à frente, as caixas de som também ocultadas etc. Ao longo de mais de cem anos de história, os cineastas sempre quiserem dominar esse dispositivo, fazer filmes para ele e ainda hoje o sonho de todo jovem cineasta é fazer um longa-metragem para entrar em cartaz numa sala de cinema. Mas por que o cinema é como ele é? Não poderia ser diferente? Na verdade, quando o cinema começa, no final do século 19, ele ainda não havia cristalizado um modelo industrial único; em outras palavras, ele ainda não tinha constituído o seu dispositivo e, portanto, o primeiro cinema se caracteriza por uma certa anarquia produtiva. De fato, na virada do século 19 para o 20, não existia ainda nenhuma forma padronizada de produzir e exibir filmes. O cinema de Thomas Edison, por exemplo, chamado de quinetoscópio, era exibido em visores individuais, num aparelho parecido com a atual televisão, com o filme rodando emloop dentro da máquina e projetado por trás da pequena tela. Talvez tenham sido os irmãos Lumière que tiveram a ideia de associar o cinema à sala de teatro como forma de ganhar dinheiro com a arrecadação das bilheterias, os que introduzem a projeção frontal e a sala escura coletiva. Mas, em 1895, quando os franceses supõem estar inventando o cinema com as projeções dos irmãos Lumière no Grand Café de Paris, William Dickson, funcionário de Thomas Edison, responsável pela primeira invenção do cinema, já estava publicando nos EUA o primeiro livro de história do cinema (Dickson, 1895). Ou seja, o cinema já era tão velho que até já tinha uma história para ser contada. Durante as primeiras décadas de existência do cinema, a projeção podia ser realizada em várias telas em vez de em uma só, ou então vários projetores diferentes podiam ser apontados para a mesma tela, em front projection e back projection, de modo a possibilitar efeitos de fusão, superposição, janelas simultâneas e inserção de uma imagem dentro de outra. Os filmes eram mais frequentemente exibidos nos vaudevilles ou cafés concerts, que eram ambientes mistos e iluminados para onde as pessoas iam com a intenção de beber, ouvir música ao vivo e dançar. Várias telas podiam ser estendidas ao longo

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De tempos em tempos acontece uma problematização do chamado dispositivo cinema. Esse dispositivo foi magnificamente descrito por Jean-Louis Baudry em dois textos antológicos: Cinéma: effets idéologiques produits par l’appareil de base (1970) e Le dispositif: approches métapsychologiques de l’impression de realité (1975). Conforme a descrição de Baudry, o dispositivo cinema compreende a sala escura que remete à caverna de Platão, o projetor ocultado às costas dos espectadores, as imagens projetadas numa tela branca à frente, as caixas de som também ocultadas etc. Ao longo de mais de cem anos de história, os cineastas sempre quiserem dominar esse dispositivo, fazer filmes para ele e ainda hoje o sonho de todo jovem cineasta é fazer um longa-metragem para entrar em cartaz numa sala de cinema. Mas por que o cinema é como ele é? Não poderia ser diferente?

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Cinema e arte contempornea | de Arlindo MachadoDe tempos em tempos acontece uma problematizao do chamado dispositivo cinema. Esse dispositivo foi magnificamente descrito por Jean-Louis Baudry em dois textos antolgicos:Cinma: effets idologiques produits par lappareil de base(1970) eLe dispositif: approches mtapsychologiques de limpression de realit(1975). Conforme a descrio de Baudry, o dispositivo cinema compreende a sala escura que remete caverna de Plato, o projetor ocultado s costas dos espectadores, as imagens projetadas numa tela branca frente, as caixas de som tambm ocultadas etc. Ao longo de mais de cem anos de histria, os cineastas sempre quiserem dominar esse dispositivo, fazer filmes para ele e ainda hoje o sonho de todo jovem cineasta fazer um longa-metragem para entrar em cartaz numa sala de cinema. Mas por que o cinema como ele ? No poderia ser diferente?Na verdade, quando o cinema comea, no final do sculo 19, ele ainda no havia cristalizado um modelo industrial nico; em outras palavras, ele ainda no tinha constitudo o seudispositivoe, portanto, o primeiro cinema se caracteriza por uma certa anarquia produtiva. De fato, na virada do sculo 19 para o 20, no existia ainda nenhuma forma padronizada de produzir e exibir filmes. O cinema de Thomas Edison, por exemplo, chamado de quinetoscpio, era exibido em visores individuais, num aparelho parecido com a atual televiso, com o filme rodando emloopdentro da mquina e projetado por trs da pequena tela. Talvez tenham sido os irmos Lumire que tiveram a ideia de associar o cinema sala de teatro como forma de ganhar dinheiro com a arrecadao das bilheterias, os que introduzem a projeo frontal e a sala escura coletiva. Mas, em 1895, quando os franceses supem estar inventando o cinema com as projees dos irmos Lumire no Grand Caf de Paris, William Dickson, funcionrio de Thomas Edison, responsvel pela primeira inveno do cinema, j estava publicando nos EUA o primeiro livro de histria do cinema (Dickson, 1895). Ou seja, o cinema j era to velho que at j tinha uma histria para ser contada.Durante as primeiras dcadas de existncia do cinema, a projeo podia ser realizada em vrias telas em vez de em uma s, ou ento vrios projetores diferentes podiam ser apontados para a mesma tela, emfront projectioneback projection, de modo a possibilitar efeitos de fuso, superposio, janelas simultneas e insero de uma imagem dentro de outra. Os filmes eram mais frequentemente exibidos nosvaudevillesoucafs concerts, que eram ambientes mistos e iluminados para onde as pessoas iam com a inteno de beber, ouvir msica ao vivo e danar. Vrias telas podiam ser estendidas ao longo desses ambientes para possibilitar projees simultneas, sincronizadas ou no com as msicas executadas ao vivo. Nada muito diferente dos atuais espetculos deVjyingoulive images, com a nica diferena de que naquela poca as imagens no eram ao vivo, s a msica.Os filmes dos primeiros tempos no vinham ainda fechados numa montagem definitiva e o exibidor tinha tanto poder quanto o produtor de interferir na montagem. Era comum que os planos de um filme viessem em rolos separados: o exibidor comprava quantos rolos quisesse e montava o seu filme na ordem que bem entendesse. O modo de projeo tambm no estava definido: cada exibidor podia inventar o seu prprio cinema, projetando por detrs da tela (back projection), em telas paralelas, ou fundindo duas ou mais imagens simultneas na mesma tela (efeito de fuso decidido pelo projecionista e no pelo produtor). Essas imagens deslocadas, sem lugar definido na contiguidade da projeo, sempre foram um enigma na historiografia do cinema e somente agora se est comeando a entend-las como sintomas dessa fundamental heterogeneidade dos primeiros filmes.O cinema, tal como o conhecemos hoje, uma instalao que se cristalizou numa forma nica: umspotde luz situado atrs da plateia, ao atravessar uma pelcula, projeta as imagens ampliadas da pelcula numa nica tela frente dos espectadores mergulhados numa sala escura. Essa instalao foi planejada pela primeira vez quase quatrocentos anos antes de Cristo por Plato, em seu livroA Repblica, mais especificamente na sua famosa alegoria da caverna, mas foi generalizada no sculo 17 por Athanasius Kircher, com o seu modelo de espetculo de lanterna mgica. O cinema petrificou esse modelo durante mais de cem anos e constitui mesmo um fato surpreendente que durante esse tempo todo pessoas de todo o mundo tenham sado de casa todos os dias para ver sempre a mesma instalao, ainda que com imagens diferentes.O modelo de cinema que hoje conhecemos comea a se consolidar na primeira metade do sculo 20 com o surgimento dosnickelodeons, as primeiras salas dedicadas exclusivamente exibio de filmes, mas alcana o seu apogeu na dcada de 1910 com o surgimento dos confortveis (e caros)palcios do cinemae dosfeature films(filmes de longa-metragem). Os filmes passam a ser alugados e no vendidos como antes, o que impede a interveno do exibidor na pelcula. O tipo de filmes produzido a partir de ento (basicamente narrativo e de longa durao), associado ao efeito ilusionista buscado, praticamente exigiam o dispositivo elementar baseado no efeito mimtico da fotografia, na iluso de movimento produzida pela cmera, na sala escura e vedada acusticamente, na projeo numa tela grande e nica, e no ocultamento do projetor e das caixas de som.A primeira problematizao desse dispositivo se d na vanguarda cinematogrfica dos anos 1920. Abel Gance faz um filme (Napolon, de 1927) que, na sua forma original, j no pode mais ser exibido numa sala tradicional de cinema, pois exige trs telas colocadas uma ao lado da outra. Nessas trs telas so projetadas trs imagens sincronizadas que, ora repetem trs vezes a mesma figura, ora formam uma nica figura extraordinariamente larga, e ora exibem trs figuras diferentes. Recordemo-nos, por outro lado, de que o filme mais clebre da vanguarda francesa,Entracte(1924) de Ren Clair, foi feito para ser exibido no intervalo entre os dois atos do balRelche, de Francis Picabia, com msica de Erik Satie. E o primeiro filme de Serguei Eisenstein Dnevnik Glumova(O Dirio de Glumov/1923) foi feito para ser inserido dentro de uma pea teatral remotamente baseada em Aleksandr Ostrvski e dirigida pelo mesmo Eisenstein. Este ltimo cineasta, alis, muito frequentemente se indispunha contra o dispositivostandarddo cinema, inclusive contra o prprio formato retangular da tela, em posio horizontal, dita de paisagem, e contra as cadeiras confortveis, que convidavam ao sono (talvez seja por isso que Flix Guattari chamava o cinema dediv dos pobres). No entender de Eisenstein, um cinema de agitao poltica, um cinema militante, como o que ele fazia, devia ser exibido nas praas pblicas, numa tela vertical, para um pblico em p e que pudesse reagir com indignao, fazer gestos polticos e entoar palavras de ordem durante a projeo.Essa preocupao volta a se manifestar novamente no seio do cinema experimental, sobretudo o norte-americano, nos anos 1960. Um dos primeiros a evidenciar essa nova mentalidade foi o crtico Gene Youngblood, num livro fundamental, publicado em 1970, chamadoExpanded cinema. Observando o que estava acontecendo ao seu redor, principalmente no mbito do cinema experimentalunderground, Youngblood percebe que o conceito tradicional de cinema havia explodido. Alguns cineastas faziam filmes para serem projetados no mais em telas, mas nas roupas brancas de bailarinas em situaes performticas; Stam Brakhage realiza filmes simplesmente colando asas de borboletas sobre uma pelcula virgem; Ken Jacobs prope um filme (Tom Tom, the pipers son/ 1969) em que parte dele deveria ser projetado com a pelcula fora da grifa e, portanto, sem exibio dos fotogramas; Andy Warhol concebe o seuChelsea girlspara duas telas paralelas e simultneas, resgatando a famosa experincia de Abel Gance com seuNapolon; alguns filmes j no eram mais feitos com cmeras, mas diretamente modelados e animados em computadores (como toda a obra dos irmos John e James Whitney), enquanto outros (os de Nam June Paik, por exemplo) no usavam mais pelculas, mas fitas eletromagnticas e eram exibidos em aparelhos de tev. No entender de Youngblood, o cinema experimental esboava uma espcie de retorno anarquia inicial do primeiro cinema, quando ainda no havia sido cristalizado um modelo industrial nico.O salto para fora do modelo cannico e platnico de projeo cinematogrfica comea a acontecer com asinstalaes cinematogrficas, uma das derivaes do conceito mais genrico deinstalaoque nasce nas artes visuais. A rigor, a histria da arte contempornea registra poucas cineinstalaes, pelo menos se compararmos com as videoinstalaes e as instalaes propriamente ditas e as poucas que existem so iniciativas que partem de gente das artes visuais, raramente de gente do prprio cinema (excees: Agns Varda, Eija-Liisa Ahtila, Chantal Akerman, Peter Greenaway e mais alguns).Duas exposies particularmente me chamaram a ateno para esse filo menos conhecido das instalaes. A primeira Scream and scream again (Film in art) foi montada no Museum of Modern Art de Oxford em 1996 e inclua trabalhos de, entre outros, Sadie Benning, Douglas Gordon, Tony Oursler e Liisa Roberts. A cineinstalao mais surpreendente foi a da holandesa Marijke van Warmerdam, chamadaKring(Crculo) e compreendia um projetor de 16 mm colocado no centro de uma sala de exibio circular. Esse projetor, colocado sobre uma plataforma mvel, girava em torno de seu prprio eixo fazendo um movimento de 360, projetando um filme de trs minutos, emloop, que se movia ao longo da parede, na sala escura. A impresso que tinha o espectador era a de uma noite escura em que algum, com uma lanterna na mo, fazendo um movimento circular, iluminava e tornava visvel partes sucessivas do cenrio ao redor. E o cenrio era um mercado em Marrakech onde uma multido predominantemente masculina olhava estupefato para uma mulher sozinha que se colocava no centro da cena e os encarava com sua cmera (comportamento proibido pelos setores mais ortodoxos do islamismo).Outra exposio importante foiProjections, les transports de limage, que ocorreu no Le Fresnoy, Studio National des Arts Contemporains, em Tourcoing, Frana, entre 1997 e 1998, com cineinstalaes de Atom Egoyan, Bill Seaman, Alain Fleischer, entre outros, com destaque para uma obra histrica de Michel Snow,Two sides to every story(1974), na qual uma tela transparente colocada no centro de uma sala permitia ver no apenas as combinaes de duas imagens em movimento projetadas nos lados opostos do tecido, mas tambm a paisagem real (incluindo os espectadores) filtrada pela tela e pela luz projetada. No dizer do prprio Snow (apudPani, 1997: 196), o objetivo era trabalhar a natureza ao mesmo tempo opaca e transparente do material flmico em uma srie de variaes sobre a realidade e a iluso de um espao representado. Vale lembrar ainda a contribuio de alguns brasileiros ao campo da cineinstalao, notadamente Hlio Oiticica, em suas experincias com o quase cinema (projetoCosmococa), mas tambm Rosangela Renn, Paula Trope, Andr Parente, Ktia Maciel, entre outros.Recentemente, com o surgimento do digital e da internet, essa ideia de sair para fora do cubo negro (equivalente cinematogrfico do cubo branco das artes visuais) ganhou nova fora. Em 2008, tivemos em So Paulo um grande evento dedicado a um cinema de tipo instalativo, que exigia novos espaos de exibio. Essa mostra, chamadaCinema sime com curadoria de Roberto Cruz, contou tambm com um seminrio e um livro coordenados por Ktia Maciel (2009), de que participaram pensadores, realizadores e curadores de vrias partes do mundo.Entre os vrios trabalhos exibidos na mostra, destacou-se uma vertiginosa instalao de Julian Rosefeldt, chamadaStunned man(2004). Esse trabalho, filmado em Super-16 mm e transferido para DVD, era projetado em duas telas colocadas lado a lado. O efeito das duas telas estonteante. Ora as duas imagens so especulares, ou seja, uma a inverso simtrica da outra, ora elas so diametralmente opostas: uma mostra um homem destruindo a sua casa num acesso da fria e a outra mostra o mesmo homem a reconstruindo calmamente. Chega um momento em que o homem da tela esquerda atravessa o quadro e entra na tela da direita, enquanto o outro faz o percurso inverso. Ento, a casa que estava reconstruda comea a ser demolida, enquanto a outra volta a ser reconstruda. Uma vez que o trabalho est emloop, isso vai se repetir infinitamente: o personagem enfurecido vai sempre destruir a casa e o seu duplo pacfico vai sempre reconstru-la, apenas invertendo os lados. O resultado uma estranha forma de caleidoscpio, em que as imagens especulares fundem de forma paradoxal a simultaneidade e a sucesso.Um outro trabalho visceral mostrado na mesma exposio de So Paulo foiLapeau(A pele/ 2007), de Thierry Kuntzel. Um projetor especial, chamado Photomobile, exibe ininterruptamente, emloop, uma pelcula de 70 mm que , na verdade, uma montagem de fotos de peles das mais variadas pessoas. Como os corpos no so identificados, o que vemos na tela umtravelinginfinito sobre um corpo que se confunde com uma pelcula cinematogrfica em contnuo movimento. Em um texto escrito em 1973, Kuntzel faz uma distino entre o filme-pelcula, ou seja, a sucesso de fotogramas fixos, as fotografias que constituem a base fsica do filme e, de outro lado, o filme-projeo, aquela imagem contnua em movimento que projetada na tela e que , por sua vez, resultado de um efeito psicolgico (chamadophiem psicologia) da fuso de todos os fotogramas.O cinema normalmente entendido como o efeito de projeo, mas o conhecimento do cinema, a sua anlise e a sua interpretao so resultados de um jogo entre o filme-pelcula (o cinema entendido com uma fisicalidade constituda de fotogramas e planos) e o filme-projeo (o efeito de realidade produzido pela projeo na sala escura).O flmico que estar em jogo na anlise flmica no se encontrar nem do lado da mobilidade nem do da fixidez, mas entre os dois, no engendrar do filme projeo pelo filme-pelcula, na negao desse filme-pelcula pelo filme-projeo (Kuntzel, 1973: 110). somente dentro dessa perspectiva que se pode compreender um projeto comoThe Tulse Luper suitcases(2003), de Peter Greenaway, que umwork in progress, compreendendo (pelo menos no projeto original) trs longas-metragens de cinema realizados com tecnologia digital e mais DVDs, livros,blogs,websites,VJperfomances, games de computador, peras, sries de tev, exposies de arte e instalaes. A base do projeto um conjunto de 92 maletas (da 92 instalaes e 92 DVDs) que Luper foi espalhando pelo mundo desde 1928 at 2003. No dizer de Maria Esther Maciel (em conferncia de 2007):so maletas de contedo variado e extravagante, que funcionam como arquivos nmades de uma vida e de um tempo, mas que se do a ver como colees arbitrrias, subjetivas e heterclitas, que desafiam os sistemas de classificao legitimados pela lgica burocrtica dos arquivos institucionais.Tudo isso para demonstrar a impossibilidade de se traar inteira e coerentemente a biografia imaginria de um homem que se confunde com a histria do sculo 20, fazendo multiplicarem-se objetos, arquivos e colees anrquicas, em estado de disperso. como se Greenaway quisesse substituir a ideia de uma sntese de todas as artes (conforme Wagner, a propsito da pera) pela ideia mais contempornea de dissoluo de todas as artes pela obra ps-miditica.Mas essa fuga do cinema para fora da sala tradicional de exibio e a migrao de alguns cineastas ao espao expositivo do museu, alm de tambm a migrao dos prprios artistas visuais tecnologia e linguagem do cinema e do audiovisual, apresentam os seus problemas. No podemos nos esquecer de que assim como o cinema se cristalizou num modelo nico de exibio, as artes visuais tambm acabaram se cristalizando no modelo cannico e hegemnico da instalao. Fazer arte contempornea hoje fazer uma instalao. Uma Bienal uma grande coleo de instalaes, cada uma delas ocupando uma sala especfica. Se podemos criticar os cineastas por no conseguirem se livrar do modelo hegemnico do filme de longa-metragem de 35 mm para ser exibido numa sala de cinema, tambm podemos criticar os artistas visuais por no conseguirem se livrar do modelo hegemnico da instalao.O problema que nem todo trabalho audiovisual adequado ao ambiente instalativo. De um lado porque, muitas vezes, so longos demais e portanto exigem um espao de recepo mais adequado, com cadeiras para sentar-se. Assistir a uma obra audiovisual de longa durao em p e com um monte de cabeas na frente, gente entrando e saindo a todo tempo um pouco torturador. Alm disso, com a predominncia cada vez maior de obras audiovisuais, produz-se, num ambiente como o das bienais, um problema srio de vazamento de sons. Em cada sala ouve-se os sons de todas as outras instalaes. Claro que h soluo tcnica para isso, mas a soluo cara e em geral restringe a audio a poucos espectadores. O problema maior que muitos trabalhos audiovisuais exibidos (em geral documentrios) so trabalhos argumentativos, discursivos, tm comeo, meio e fim e s podem ser devidamente apreciados se vistos por inteiro. Mas nas condies do espao instalativo isso quase impossvel. No se sabe quando comeam os programas, sempre chegamos no meio da exibio e precisamos depois ficar esperando recomear para ver a parte que perdemos. A maioria das pessoas no v os trabalhos inteiros, at porque as bienais so muito grandes e no d para dedicar meia hora ou uma hora de ateno para cada trabalho. Uma boa parte desses trabalhos poderiam ser muito melhor apreciados e entendidos numa sala de cinema tradicional, com cadeiras confortveis e com encosto, com horrio para comear e acabar. No vejo porque eles precisam ser exibidos em forma de instalao se eles no exigem nenhum tipo de interao com o espectador. Para funcionar num espao instalativo a obra precisa ser curta, de preferncia sem desenvolvimento linear (podendo portanto comear a ser vista a partir de qualquer ponto e ser interrompida tambm em qualquer ponto) e estruturada em forma deloop.Uma pessoa no pode ver oCitizen Kane(Cidado Kane/ 1941) entrando na sala de cinema em qualquer momento e vendo apenas uma parte. Se fizer isso, ela no ter visto o filme de Orson Welles. preciso estar no comeo para ver o plano de Kane morrendo depois de dizer a clebre palavra Rosebud. preciso acompanhar os reprteres que vo ouvir os amigos e familiares de Kane para tentar descobrir o significado de Rosebud. E, finalmente, preciso estar presente no final, quando os empregados jogam todos os bens de Kane numa fornalha e a cmera d um close num tren infantil onde est escrita a palavra Rosebud. O filme tem uma estrutura completa, tem um desenvolvimento planejado para ser frudo ao longo de um tempo e, portanto, no possvel v-lo num espao instalativo.Em 2010, vi em Barcelona duas exposies que estavam acontecendo ao mesmo tempo em dois lugares diferentes e por acaso tinham o mesmo tema: a relao entre televiso e a arte contempornea. O tema era o mesmo, mas as concepes curatoriais eram diametralmente opostas. A exposio do Centro Cultural Santa Mnica, com curadoria da italiana Valentina Valentini, focalizava os artistas visuais que incorporaram a televiso em suas obras, seja a televiso enquanto aparato ou dispositivo, seja a televiso enquanto iconografia, ou seja, os seus programas. Todas as obras foram concebidas para um espao instalativo e a televiso era apenas uma presena ali, ligada ou desligada, no ar ou for do ar. Ali tnhamos, por exemplo, o famoso Cadillac de Wolf Vostell, cheio de aparelhos televisores cravados em seu casco, ou os robs de Nam June Paik construdos apenas com aparelhos de tev sintonizados em canais quaisquer. A exposio funcionou muito bem porque todos os trabalhos foram feitos para o ambiente de um museu.J a outra exposio, montada no Museu de Arte Contempornea de Barcelona (Macba), com curadoria de Chus Martnez, foi um fracasso. Por qu? A concepo era diferente: no se tratava mais de pr foco nos artistas que trouxeram a televiso para o museu, mas ao contrrio, destacar os artistas visuais que foram televiso, que foram fazer a sua arte na televiso, para ser exibida na televiso e no mais no museu. Ora, trazer essas obras para o espao do museu e ainda por cima exibi-las em forma instalativa significava matar as obras, pois elas no haviam sido concebidas para esse modo de exibio. A seleo dos trabalhos era muito boa e bastante abrangente, incluindo tambm alguns trabalhos brasileiros (por exemplo, ossketchesde Glauber Rocha para o programaAbertura, da TV Bandeirantes), mas esses trabalhos no funcionavam projetados num telo numa sala escura sem cadeiras e ainda mais com vazamento sonoro em todas as salas. A maioria dos programas era de longa durao, chegando a at duas horas e ningum conseguia ficar todo esse tempo de p numa sala cheia de gente em movimento apenas para ver televiso, mesmo que de boa qualidade. Cada sala tinha um tratamento temtico e se dedicava a um assunto, com uma lista de programas para serem exibidos, mas o visitante nunca podia saber quando seria exibida especificamente alguma coisa que ele quisesse ver. Ou seja, esse um tipo de programao que deveria estar endereado a uma sala de exibio, com horrios marcados para cada sesso e para cada programa. Ali pude entender melhor o meu desconforto com relao a boa parte dos materiais audiovisuais exibidos em bienais. Nem todos os artistas esto sabendo lidar com um espao instalativo, muitos deles trazem vcios que vm do cinema ou do audiovisual tradicionais na maneira de narrar ou de estruturar as ideias.De qualquer forma, o que se v hoje no cinema um movimento no sentido de romper com o dispositivo que imperou ditatorialmente por mais de cem anos e buscar inspirao para mudanas no campo das artes visuais. Por outro lado, contraditoriamente, percebemos, no campo das artes visuais, um movimento inverso, no sentido de buscar formas e contedos do cinema, como a narrao e o documentrio, a projeo em sala escura e assim por diante. Se o cinema e a arte contempornea puderem se encontrar em algum lugar no meio do caminho para trocar experincias, talvez esse encontro seja produtivo para os dois, no sentido de superar os atuais impasses.* Professor do Programa de Ps-graduao em Comunicao e Semitica da Pontifcia Universidade Catlica (PUC-SP) e do Departamento de Cinema, Rdio e Televiso da Universidade de So Paulo (USP). Seu campo de pesquisas abrange o universo das chamadas imagens tcnicas, as imagens produzidas por mediaes tecnolgicas diversas, tais como a fotografia, o cinema, o vdeo e as atuais mdias digitais e telemticas. Autor, entre outros, dos livrosEisenstein: geometria do xtase(Brasiliense) eMquina e imaginrio: o desafio das poticas tecnolgicas(Edusp).

Referncias:BAUDRY, Jean-Louis (1970). Cinma: effets idologiques produits par lappareil de base.Cinthique, 7/8.BAUDRY, Jean-Louis (1975). Le dispositif: approches mtapsychologiques de limpression de realit.Communications, 23.DICKSON, William & Dickson, Antonia (1895).History of the Kinematograph, Kinetoscope and Kineto-phonograph. New York: The Museum of Modern Art (facsimile edition).KUNTZEL, Thierry (1973). Le dfilement.Cinma: thorie, lectures. Dominique Noguez, ed. Paris: Klincksieck.MACIEL, Ktia(org.)(2009).Cinema sim. Narrativas e projees. So Paulo: Ita cultural.MACIEL, Maria Esther (2007). Cinema as a cross-media project: the experimental archives of Peter Greenaway. Trabalho apresentado noUbiquitous Media TCS 25thAnniversary Conference. The University of Tokyo, Theory, Culture & Society Centre.PANI, Dominique (1997). Faut-il en finir avec la projection?Projections, les transports de limage. Tourcoing: Le Fresnoy.YOUNGBLOOD, Gene (1970).Expanded cinema. New York: Dutton.

Acesso: 15/05/2015 http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/cinema-e-arte-contemporanea-de-arlindo-machado/