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    ResumoEste artigo pretende refletir sobre a pesquisaqualitativa e seu uso na área da saúde. A partirde considerações sobre os “modos somáticos deatenção” e exemplos de pesquisas realizadas, pro-ponho, primeiramente, um questionamento sobredicotomias como teoria-metodologia, sujeito-objeto

    e racionalidade-técnica. Sugiro que essas dicotomiaspossam estar na base daquelas que são consideradasdificuldades na utilização da metodologia qualitati- va em projetos de pesquisa da área da saúde, como(1) o problema da escolha das técnicas de pesquisa;(2) o dilema do número de casos; (3) a participaçãodo contexto da pesquisa; e (4) os procedimentos deanálise ou interpretação dos dados. Num segundomomento, busco mostrar como essas dicotomiastambém podem estar implicadas na ética das pesqui-sas qualitativas. Finalmente, observo que esses ques-

    tionamentos, quando projetados para os Comitês deÉtica em Pesquisa, apresentam o grande desafio deavaliar a adequação metodológica em conjunto comos procedimentos éticos de cada projeto, respeitandoas especificidades da pesquisa qualitativa.Palavras-chave: Pesquisa Qualitativa em Saúde;Modos Somáticos de Atenção; Ética; Comitês deÉtica em Pesquisa.

    Ceres Gomes VíctoraPhD em Antropologia; Professora do Programa de Pós-Graduação

    em Antropologia Social e do Departamento de Antropologia da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    Endereço: Rua Landel de Moura, 880, CEP 91920-150, Porto Alegre,

    RS, Brasil.

    E-mail: [email protected]

    Uma Ciência Replicante: a ausência de umadiscussão sobre o método, a ética e o discursoA Replicating Science: the absence of a discussion about

    method, ethics and discourse

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    AbstractThis article approaches the use of qualitative metho-ds in health research. Following the concept of “so-matic modes of attention” and examples of previousethnographic research, I discuss the dichotomiestheory-methodology, subject-object, rationale-tech-

    niques to suggest that they may be responsible forwhat has been pointed out as important constraintsof qualitative research: (1) the problem of choosingthe right research techniques; (2) the dilemma ofthe number of cases to be studied; (3) the role of thecontext; and (4) data analysis/interpretation pro-cedures. I argue that these separations can affectresearch ethics. Ethics needs to be incorporated inmethodology as a whole and inform the choice of te-chniques, sampling procedures, the context and dataanalysis/interpretation. Finally, this paper points

    out that the specificity of qualitative research needsto be acknowledged by Research Ethics Committeesand suggests they should look, more than anything,at each project’s methodological adequacy togetherwith ethical procedures.Keywords:Qualitative Methods in Health Research;Somatic Modes of Attention; Ethics; Research EthicsCommittees.

    IntroduçãoTalvez um dos maiores desafios das Ciências Sociaise Humanas em Saúde esteja não apenas no estabele-cimento de uma metodologia de pesquisa apropriadapara projetos que se situam na interface entre duasáreas distintas – Ciências Sociais e Humanas e Ci-

    ências da Saúde –, mas em se aprender a pensar cri-ticamente uma série de aproximações e distinções.Nessa exposição vou abordar aspectos da difusãoda metodologia qualitativa de pesquisa na área dasaúde, inspirada em publicações que questionamsuas formas de utilização, e vou sugerir algumas im-plicações éticas que surgem nesse processo. Trata-sede uma reflexão em andamento e, por isso mesmo,sem pretensões de esgotar o assunto.

    Como um primeiro ponto, parece importanteobservar que os discursos de pesquisadores da Área

    da Saúde e de pesquisadores das Ciências Sociais eHumanas estão frequentemente perpassados pordicotomias como “nós” e “os outros”; “o conheci-mento” e “a crença”; a “teoria” e a “metodologia”; eas “técnicas” e a “racionalidade” das pesquisas. Isso,no meu entender, reflete uma ausência de discussãosobre método, ética e sobre os próprios discursosdos pesquisadores dessas áreas. Essas dicotomias,cujos polos nunca são neutros e sim carregados de valores, ultrapassam a ordem dos discursos e pene-

    tram as práticas de pesquisa qualitativa em saúderesultando em dificuldades de compreensão da sua metodo-lógica.

    Em outra ocasião tivemos a oportunidade deexplicitar com mais detalhes nosso ponto de vistasobre como a realidade é vista na pesquisa qualita-tiva.1 Naquela ocasião, referimos o fato de o mundoreal não se apresentar como uma totalidade e simcomo um recorte dado por um ponto de vista e pelospressupostos do pesquisador. Não há nesse caso,portanto, uma realidade objetiva a ser pesquisada eum pesquisador que se debruça sobre ela para com-preendê-la, mas há uma multiplicidade de processossociais que operam simultaneamente, a partir dosquais se constitui um problema de pesquisa, numainteração entre pressupostos teóricos, metodologiae técnicas de pesquisa. Esse processo inclui desde os

    1 Refiro-me aqui ao livro Pesquisa Qualitativa em Saúde  realizado em coautoria com Daniela Knauth e M. Nazaré Agra Hassem (Victora,C.; Knauth, D.; Hassem, M.N., 2000).

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    conceitos sobre a constituição dessa realidade, atétécnicas de pesquisa possíveis de serem utilizadas etodo um treinamento do pesquisador para a pesquisaqualitativa. Vai, portanto, muito além do manejoespecífico das técnicas, pois envolve a relação entreo fenômeno observado e o observador que, no casoda pesquisa com seres humanos, são da mesma na-

    tureza. Mas considerar seriamente pesquisadorese pesquisados como seres de uma mesma naturezaimplica em repensar a relação entre sujeito (pes-quisador) e objeto (pesquisado) na mesma linha dequestionamento sobre outras dicotomias referidasanteriormente.

     A partir de uma antropologia do corpo e de umalinha da fenomenologia explicitamente preocupa-da com a “corporificação”, Csordas tem sugerido a“corporeidade como um campo metodológico inde-

    terminado, definido pela experiência perceptiva epelo modo de presença e engajamento no mundo”(Csordas, 2008, p. 368). Definindo o conceito de“modos somáticos de atenção” como “maneirasculturalmente elaboradas de estar atento a e com ocorpo em ambientes que incluem a presença corpo-rificada do outro”, esse autor sugere que a dicotomiasujeito-objeto se dilui na experiência de pesquisa(Csordas, 2008, p. 372). Ele toma como referênciadois autores principais – Merleau-Ponty e Bourdieu– para questionar aquilo que denominou de “dualida-

    des incômodas”, argumentando que a corporeidade(embodiment ) é o “princípio metodológico invocadopor ambos” (Csordas, 2008, p. 105).

    Merleau-Ponty, ao formular o “primado da per-cepção” (Merleau-Ponty, 1962), descreve-a comopré-objetiva, no sentido de que ela termina ou seconclui no encontro com os objetos perceptíveis. Osujeito que percebe e o objeto que é percebido não sesituam em polos separados, portanto. Da mesma for-ma, a percepção, para ele, não pode ser considerada

    um ato puramente intelectual na medida em que osujeito que toma o ponto de vista é o próprio corpo. A relação mente-corpo passa a ser formulada emtermos de uma mente encarnada ou corporificada.Numa outra formulação sobre o mesmo processo,Scheper-Hughes e Lock assumem a centralidade docorpo e se referem a um mindful body, expressãopara a qual não consigo encontrar uma tradução emportuguês (Scheper Hughes e Lock,1987).

    No diálogo com Bourdieu, Csordas enfatiza tam-bém a relação não dicotômica, desta vez entre estru-tura e prática, recuperando o sentido corporificadodo habitus. Como “princípio gerador e unificador detodas as práticas, o sistema das inseparáveis estru-turas cognitivas e avaliativas de um determinadoestado do mundo social...” (Bordieu, 1995, p.124 – mi-

    nha tradução), o habitus encontra-se profundamenteenraizado no corpo. Nesse mesmo sentido, Jenkins(1992) salienta os três significados da corporificaçãono trabalho de Bourdieu: 1 – O habitus existe apenasporque está inculcado no corpo; 2 – O habitus existeem, através e por causa das práticas corporais e éparte do comportamento; 3 – As taxonomias práticas,tais como masculino/feminino, quente/frio, e asexperiências sensoriais estão enraizadas no corpo(Jenkins, 1992, p. 75 – minha tradução). Na “teoria

    da prática”, o colapso das dicotomias se apresentamarcadamente no habitus, definido como “incons-ciente e coletivamente inculcado para a geração eestruturação de práticas e representações” (Csordas,2008, p. 109).

    Embora as questões do processo de corporifi-cação (embodiment ) das práticas e do habitus não venham a ser aprofundadas na sequência desseartigo, a referência a eles é fundamental nesta parteinicial, pois é a partir daí que os argumentos dessaexposição se constroem. Refletindo sobre as relações

    sujeito-objeto e estrutura-prática na mesma dire-ção que Csordas, Merleau-Ponty e Bourdieu e suasconsiderações sobre as “dualidades incômodas”,observo que a falta de reflexão sobre dicotomias,como teoria-metodologia, racionalidade-técnica,entre outras, tem implicações importantes na pes-quisa qualitativa. A partir desse quadro de referên-cia, proponho que a frequente associação da teoriacom uma elaboração mental sobre os pressupostosda pesquisa e da metodologia com a aplicação de

    técnicas de investigação se apresentem como umareedição de outras dicotomias como mente-corpo,pensamento-ação, subjetivo-objetivo, e eu-outro.

    As Dicotomias na Experiência daPesquisa QualitativaEm um artigo sobre métodos qualitativos de coletade dados nas pesquisas em saúde, Lambert e Mc

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    Kevitt (2002) sugerem que sua popularização se devaa um entendimento de que eles alcançam os lugaresque outros métodos não alcançam. No meu entender,essa concepção, embora bastante popular, traz consi-go dois problemas importantes: um que diz respeitoao que vem a ser os métodos qualitativos, e o outroque se refere à própria constituição da realidade. No

    primeiro caso, parece identificar os métodos qualita-tivos com um conjunto de técnicas de pesquisa quepermitem ao pesquisador penetrar numa realidadee revelar suas formas escondidas ou dissimuladas.E, no segundo, parece conceber a realidade comoalgo estático, um objeto passivo a ser acessado. Aquestão que se coloca diante disso é se a falta dereflexão sobre a relação método-técnica e sobre arelação sujeito pesquisador-realidade pesquisadanão estaria produzindo, entre outras dificuldades,

    uma despolitização do processo de pesquisa.Na mesma linha argumentativa, os autorescitados reforçam o equívoco de se conceber os mé-

    todos qualitativos a partir da funcionalidade dastécnicas. A procura por técnicas de pesquisa – comoas entrevistas semiestruturadas e as discussões de

    grupos focais – para acessar as visões “das pessoascomuns” sobre um fenômeno biomedicamente defi-nido, embora possa ser útil em termos operacionais,

    raramente agrega novos insights.  Assim sendo,deixa de incorporar uma das possibilidades mais

    distintivas da pesquisa qualitativa que é a recon-figuração dos problemas de pesquisa (Lambert eMckevitt, 2002).

    Esses autores prosseguem sugerindo que a An-

    tropologia, por exemplo, aceita a possibilidade dereconfiguração a partir do foco na “classificação”e no “significado” e remontam ao desenvolvimentodessa disciplina associado ao estudo de outras cultu-

    ras, nas quais a natureza e os limites das categoriasbásicas não podiam ser presumidos, mas requeriam

    investigação empírica. Para eles, o importante nãoé apenas assumir um dado fenômeno e investigaras visões ou crenças sobre ele, mas adentrar na suaforma e conteúdo. Cito o exemplo de pesquisas na

    área da saúde, nas quais a natureza e o significado decategorias nos são aparentemente familiares – porexemplo: categorias clínicas, questões dos servi-

    ços de saúde, satisfação dos pacientes. Nesse casoimporta também investigar como e por que essas

    categorias são construídas e mantidas.O excessivo foco na funcionalidade do método

    levantado por esses autores reforça a importân-cia de colocar na pauta do debate as concepçõesdicotômicas de metodologia e teoria e de técnicase racionalidade. O que temos que perguntar é senão seria precisamente essa separação que produz

    aqueles que são considerados por pesquisadores quetrabalham na interface das ciências humanas e dasciências da saúde os maiores problemas na aproxi-mação com a pesquisa qualitativa. Por exemplo:

    O problema da escolha das técnicas de pesquisa

    Uma grande preocupação de pesquisadores que sesituam nessa interface e que se iniciam na pesquisaqualitativa é dirigida a quais técnicas de investi-gação poderiam ser usadas para responder certasperguntas de pesquisa. As técnicas preferenciaissão normalmente (1) as entrevistas semiestrutura-das, por serem passíveis de serem sistematizadas e,potencialmente, comparadas; e (2) os grupos focais,provavelmente por seu potencial de economizartempo e recursos e também por possibilitar a coletade informações de forma mais ou menos objetivae permitir o surgimento de uma diversidade deposições. Entretanto, partindo do questionamentodos autores referidos, entendo que a busca por umatécnica “certa” para a pesquisa, embora importante,

    pode causar uma falsa sensação de segurança casonão se considerem os pressupostos desses procedi-mentos e a interação dos sujeitos pesquisadores comos sujeitos pesquisados neles implicada. O risco dese ficar na superficialidade de jogo de perguntas erespostas pode comprometer, até mesmo, a intençãode alcançar os lugares que outros métodos não al-cançam, uma vez que não são apenas as técnicas queproduzem uma pesquisa qualitativa, mas os concei-tos sobre a realidade e o treinamento do pesquisadorpara compreender e conceber questões.

    O dilema do número de casos

    Uma vez que se tenha optado por uma técnica, comoa de entrevistas, por exemplo, observa-se uma ênfaseextremada na definição do número de casos a serempesquisados. Entretanto, na pesquisa qualitativaesse é um dilema que, muito provavelmente, decorrede uma má compreensão sobre a relação entre ossujeitos e o contexto que se está estudando e entre

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    quantidade e qualidade. Não se trata de com quantas pessoas se conversa, mas sobre o que  se conversa ecomo se conversa, principalmente porque a definiçãodos entrevistados, bem como o número de indiví-duos envolvidos, está diretamente relacionada aoproblema a ser estudado. Trata-se, muitas vezes, deuma seleção de entrevistados dentro daquilo que se

    convencionou chamar de universo de pesquisa. Nocaso da etnografia, por exemplo, é frequente só se tercerteza de qual a sua dimensão após a conclusão dapesquisa. Isso não quer dizer que não se possa esti-mar o tamanho de um universo nem que a pesquisaqualitativa não envolva também a quantificação dofenômeno estudado.2 Estou apenas observando que amatemática da pesquisa qualitativa está relacionadacom uma lógica de (ir)regularidades, não necessaria-mente com números de casos contabilizados.

    Outra reflexão sobre o número de entrevistas, oucasos a serem acompanhados, se refere ao fato deque, dependendo do tipo de pesquisa, nem sempreé possível, ou desejável, fazer essas definições commuita precisão antecipadamente. Referimo-nos,aqui, à possibilidade de realização daquilo queMays e Pope (1995) chamam de “amostragem teó-rica”. Os autores explicam que quando o objetivoé desenvolver uma explicação sobre determinadarealidade é o próprio desenvolvimento da teoriaque guia o processo de amostragem e de coleta de

    dados. O pesquisador parte de uma seleção inicialde informantes, junto aos quais coleta dados que sãocodificados, analisados e indicam uma explicação te-órica preliminar antes de decidir quais os próximosdados a serem coletados e de quem. Assim é a análisedos primeiros dados, que permite refinamentos nateoria, o que pode levar a novas amostragens e novascoletas de dados. Ou seja, como referem os autores, arelação entre amostragem e explicação é interativae direcionada pela teoria (Mays e Pope, 1995).

    A participação do contexto da pesquisa

    Também relacionado às formas dicotômicas depensar se apresenta o grave problema da falta decontextualização das entrevistas, dos depoimentos

    e dos próprios entrevistados em pesquisas qualitati- vas. Esse problema é verificado na forma de extratosde entrevistas, não raro frases soltas, para ilustrarcertas situações de pesquisa. Isso sugere uma faltade compreensão de que os sujeitos de pesquisa sãoinseridos num contexto, numa realidade social quese movimenta e que, assim sendo, não pode lhes

    ser desconectada. O sujeito está vivo em relaçãoa ele, assim como a sua fala está viva com relaçãoao fenômeno que ele está relatando. Mais do quenunca, a definição de Csordas de “modos somáticosde atenção” parece ser relevante. Parece-me que,particularmente no caso de encontros face a face emsituação de pesquisa, pesquisadores e pesquisadosestão em interação e em atenção mútua possibilita-das pela presença corporal/cultural de cada um e detodos os envolvidos. Creio ser a isso também que se

    refere Peirano quando ressalta “a possibilidade deque a pesquisa de campo possa revelar não ao pes-quisador, mas no pesquisador” no caso da etnografia(Peirano, 1995, p. 23). Não quero dizer com isso quea compreensão do outro como sujeito faça desapa-recer a hierarquia própria da pesquisa de campo. Apesquisa de campo, segundo Stocking Jr. (citado porPeirano, 1995), pressupõe hierarquias. Se, por umlado, em geral, o pesquisador propõe algo concebidopor ele para o universo de pesquisa, por outro, seele não for aceito pelos sujeitos pesquisados, não

    há pesquisa. De qualquer maneira, como relaçõessociais, as relações estabelecidas no trabalho depesquisa são relações de poder. O importante, nessecaso, é reconhecer e compreender as dimensões des-sas hierarquias e como elas impactam os resultadosda pesquisa.

    Os procedimentos de análise ou interpretaçãodos dados

    Estes também precisam ser problematizados uma

     vez que os dados não falam por si. É no diálogo darealidade com a teoria e desta com a metodologiaque se torna possível a construção de um problemade pesquisa e do próprio trabalho de campo. Nessesentido, recordo a passagem de Bourdieu na qual

    2 Vale aqui salientar que a maioria das etnografias, desde a clássica de Malinowski, comporta muitas quantificações. Procedimentos tradi-cionais e fundamentais da etnografia, como a realização de censo demográfico, genealogias e mapeamentos de atividades da populaçãoestudada são exemplos.

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    ele refere que “É somente em função de um corpode hipóteses derivado de um conjunto de pressu-posições teóricas que um dado empírico qualquerpode funcionar como evidência” (Bordieu, 1989, p,24). São os próprios caminhos da teoria e da meto-dologia que indicam os caminhos da interpretação.Na ausência de reflexão sobre o processo complexo

    de realização da pesquisa qualitativa é que se vê, deforma recorrente na área da pesquisa qualitativa emsaúde, o recurso à chamada “análise de conteúdo”,uma referência à internacionalmente reconhecidaobra de Laurence Bardin (1977). Nessas abordagens,há que se atentar para a possibilidade de ocorrer umempobrecimento do conteúdo precisamente porquecarece de contextualização. Além disso, a propostade análise de conteúdo de Bardin também precisa sercontextualizada e não deve ser apropriada como se

    fosse conjunto de técnicas de análise para qualquertipo de dado. A proposta da autora inclui tambémuma teoria específica sobre a realidade, bem comoformas e conteúdos que aceitem a lógica daqueletipo de análise.

    Ética na Pesquisa QualitativaOutra questão importante trata da relação entreética e pesquisa qualitativa. A falta de reflexão sobreo método ou o tipo de reflexão sobre o método tem

    implicações éticas importantes. É preciso que a éticaesteja incorporada na metodologia no seu sentidoamplo: que ela informe a escolha das técnicas depesquisa; a decisão sobre o tipo de amostra e sobreo número de sujeitos envolvidos na pesquisa, bemcomo a contextualização e a interpretação dos dados,já referidos anteriormente.

    O que estou sugerindo é que se pense o quantoa separação entre método e técnicas, por exemplo,pode trazer problemas de ética na pesquisa qualita-

    tiva. Para ilustrar essa reflexão, permito-me relataruma pesquisa realizada por nós no NUPACS3 numbairro da cidade de Porto Alegre, onde, em 1999, seconcentrava a maior prevalência da aids. Havia tam-bém naquele contexto elevado consumo e tráfico dedrogas injetáveis e uso compartilhado de seringas.

    Uma das hipóteses da pesquisa estava relacionada àsformas de sociabilidade, inclusive aquelas engendra-das pelo tráfico e uso de drogas, e suas implicaçõesna transmissão da aids. A melhor forma de estudar acirculação das pessoas, do vírus e das drogas naque-la realidade seria através de um estudo de “rede derelações”. A técnica de rede de relações naquele caso

    envolveria a realização de entrevistas com pessoainfectada pelo vírus HIV – não raro usuária de dro-gas injetáveis – a fim de reconstituir sua história de vida enfocando os vários elementos intercambiadosna sua rede de relação. O seguimento de uma rede,como se sabe, se dá a partir da indicação de novosparticipantes de maneira que o sujeito nº 1 indicaoutro membro da sua rede, o sujeito nº 2 indica o nº3, e assim por diante. O pesquisador, ao percorreruma rede, busca compreender não apenas sua es-

    trutura, mas o conteúdo dos vínculos estabelecidosentre os sujeitos, a densidade dos vínculos, a direçãodos vínculos, entre outras coisas. Procura-se com-preender, portanto, o que é trocado (drogas?; bensmateriais?; favores sexuais?; relações de amizade?;cumplicidades?; hostilidades?); com quem é trocado(são relações horizontais? verticais?); e o quanto étrocado (vínculos estreitos?; fluidos?; contínuos?;eventuais?). Todas essas informações seriam ex-tremamente importantes para a compreensão docontexto de transmissão do HIV. Entretanto, aquilo

    que se apresentava como a técnica ideal mostrou-seeticamente impróprio, precisamente por causa dashipóteses da pesquisa.

    Percorrer uma rede de relações, naquele caso,implicaria em colocar os sujeitos da pesquisa numasituação de indicar a condição sorológica de outrapessoa (portador do HIV) ou uma prática ilegal (con-sumo de drogas injetáveis). Avaliamos que a técnica,embora possível de ser aplicada naquele contexto,seria um procedimento eticamente impróprio. Opta-

    mos, então, por intensificar o estudo das histórias de vida individuais e avaliamos que, sendo um contextoetnográfico relativamente autocontido, as históriasse encontrariam em momentos diversos das vidasdessas pessoas, marcando pontos de contato emredes de relações.

    3 Trata-se da pesquisa “Aids e Pobreza” coordenada e desenvolvida em conjunto com Daniela Knauth, cujos resultados encontram-sepublicados em Knauth, D.; Victora, C.; Leal, O.F.,1998.

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    Nesse caso, a técnica de rede de relações pareciaser uma ferramenta ideal para responder as per-guntas iniciais, mas no contexto da transmissão daaids e do uso de drogas, ela comprometeria a éticada pesquisa.

     A questão da definição do número de entrevistas,ou do número de informantes, ou de histórias de

     vida, ou de grupos focais, tem também uma relaçãoimportante com a questão ética. Um tamanho deamostra maior ou menor não multiplica nem divideas questões éticas da pesquisa. Em outras palavras,não tem sentido realizar uma pesquisa com cincoou com cinquenta entrevistas, expor cinco ou cin-quenta pessoas a qualquer situação de pesquisa seisso não vai ser suficiente para chegar a conclusõesrelevantes na pesquisa qualitativa. O procedimentoeticamente adequado está em identificar grupos

    específicos de pessoas que ou possuem uma carac-terística, ou vivem em circunstâncias relevantespara o fenômeno social que está sendo estudado etrabalhar com essas pessoas a fim de chegar a al-guma conclusão. Como já referido, a matemática dapesquisa qualitativa não se refere apenas a números,mas a um conjunto de elaborações que vão desdeos conceitos mais abstratos até os procedimentosmais práticos do trabalho de campo. Finalmente,importa ressaltar que a escolha de pessoas a seremabordadas e o conteúdo das entrevistas (se for esse

    o caso) exigem intensa reflexão ética antes, durantee depois do procedimento.

     A participação do contexto da pesquisa é ab-solutamente fundamental para a manutenção daética na pesquisa. Um dado descontextualizadofica corrompido no seu significado e compromete a validade na pesquisa qualitativa, o que é eticamenteinaceitável. Nesse caso, o Termo de ConsentimentoLivre e Esclarecido (TCLE) na pesquisa qualitativa,mais do que repetir o modelo de riscos e benefícios

    próprio para pesquisas biomédicas, deveria compro-meter o pesquisador qualitativo a manter os dadosno seu contexto. Voltarei a referir o problema dacontextualização no processo de interpretação e ouso do TCLE mais adiante.

    Por fim, a questão da análise/interpretação. Oâmbito da análise/interpretação dos dados me pa-rece ser um dos âmbitos de maior concentração do

    poder do pesquisador e, por isso mesmo, creio serpreciso estar particularmente atento para garantir aintegralidade da informação e do seu contexto. Nes-se caso, aparece ainda outra “dualidade incômoda”na forma da coleta-análise/interpretação dos dados.Um banco de dados qualitativos é mais do que umconjunto de respostas a perguntas abertas coleta-

    das com a finalidade de expandir as possibilidadesoferecidas por questões fechadas. Desconsiderar aestreita relação entre coleta e análise/interpretaçãoseria, no meu entender, eticamente incorreto tendoem vista que a última é um produto dos pressupos-tos teóricos da pesquisa, está associada com astécnicas de pesquisa e não pode ser desvinculadada contextualização.

     A fim de exemplificar a relação da interpretaçãodos dados com o contexto da pesquisa, retorno ao

    estudo já referido sobre aids num bairro de Porto Alegre, no qual nós trabalhamos com entrevistas,histórias de vida e observação participante. A leituraexaustiva das entrevistas, das histórias e os dadosde observação sistematizados a partir de categoriasque foram sendo definidas no processo coleta eanálise dos dados possibilitaram o entendimento deque a presença significativa tanto da aids como dasdrogas no contexto não permitia nem que as drogasnem que aids, tampouco a combinação entre as duas,funcionassem como demarcadores de fronteiras

    entre os moradores. Suas elaborações sobre o temanas entrevistas, bem como suas práticas cotidianasde sociabilidade, mostravam, inclusive, que a própriadistinção entre usuários e não usuários de drogas nãose processava da maneira como podíamos imaginar.Foi recorrente a ideia de que em algum momento da vida ou as pessoas já haviam experimentado algumtipo de droga (inclusive o álcool), ou possuíam fami-liares usuários de substâncias psicoativas. Pode-sepensar que a lógica do “estar” usuário talvez fizesse

    mais sentido do que a do “ser” usuário. A própriarelativização sobre o que eram “drogas” e quais osseus riscos se apresentava como uma constante, demaneira que mesmo aqueles que não aprovavam o usode drogas estavam inseridos nas redes de relaçõeslocais e conviviam com usuários cotidianamente.

    Esse insight  foi fundamental para compreenderque, assim como o usuário de drogas não era um

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    outro, a aids também não era uma doença do outro.Esse entendimento fornecido pelos dados qualitati- vos e interpretado à luz da bibliografia já existentesobre o tema (Knauth, 1996) foi fundamental paraentender a quase naturalidade com que as pessoasencaravam a aids. Em artigo publicado sobre essapesquisa sugerimos, a partir da discussão dos dados,

    do contexto e da bibliografia de referência, que seprocessava um tipo de banalização da doença na-quele contexto em que a exposição à violência eraconstante e no qual a própria morte parecia inevi-tável e previsível (Knauth e col., 1998).

     A interpretação deve, portanto, ultrapassar aidentificação e exposição dos dados. Ela implicapropor explicações com responsabilidade e compro-metimento com os pesquisados e com a divulgaçãodos resultados. Acima de tudo, é necessário que os

    sujeitos de pesquisa sejam tratados como inter-locutores que compartilham do mesmo espaço etempo corporal/cultural que os pesquisadores. Issosignifica considerá-los em todas as suas capacida-des e produzir, de forma competente, no horizontefenomenológico, aquilo que Csordas refere como“uma consciência da nossa condição existencial,sem que isso se torne um pretexto para a imprecisãoanalítica” (Csordas, 2008, p. 393). Ressalto que essereconhecimento das capacidades não implica, neces-sariamente, em coautoria conforme aparece numa

     versão da chamada antropologia pós-moderna. ComoPeirano, compreendo que “a coautoria defendidaatualmente esconde a ingenuidade de pressupor queos nativos querem sempre  ser coautores ou antropó-logos de si mesmos” (Peirano, 1995, p. 38). Pode ser,portanto, pensada como possibilidade, porém não sepode assumi-la como a única.

     A respeito da relação pesquisador-pesquisado,Goldin (2002) relembra, com muita propriedade, asituação de pesquisadores que são “engolfados” pelo

    universo de pesquisa. Apontando, acima de tudo, acomplexidade das relações que podem se desenvol- ver num processo de pesquisa qualitativa, Oliveira(2002) e Kant de Lima (2002) avaliam diferentessituações nas quais pesquisar e ser pesquisadoremetem à ética complexa das relações interpesso-ais. Dentro dessa complexidade, compreendo que oconsentimento livre e esclarecido, nesse caso, deve

    ser construído no processo da pesquisa, indo além deum TCLE assinado burocraticamente antes do inícioda sua realização. O consentimento deve seguir umaforma culturalmente adequada, o que reforça a ideiade que a ética começa na elaboração do problemade pesquisa e só termina depois da divulgação dosresultados.

    Enquanto isso, pelo lado dos Comitês de Ética emPesquisa, o grande desafio me parece ser o de ava-liar a adequação metodológica em conjunto com osprocedimentos éticos de cada projeto, respeitando asespecificidades da pesquisa qualitativa. Às equipesmultidisciplinares que compõem os Comitês cabeatuarem, de fato, de forma multidisciplinar, ava-liando os projetos em diálogo com os princípios queregem as suas áreas de conhecimento. Não podemossupor que uma pesquisa qualitativa, por exemplo,

    contenha os mesmos itens de uma pesquisa quan-titativa, tampouco que as questões de ética sejamda mesma ordem em todas as pesquisas. Não há umúnico modelo metodológico a ser seguido e o tipo dequestão ética difere consideravelmente conforme aárea de conhecimento a qual a pesquisa se vincula.

     Ao finalizar essa exposição, creio que começo aentender o título proposto para ela pela organizaçãodo II Encontro de Ciências Sociais em Saúde: “Umaciência replicante: a ausência da discussão sobre ométodo, a ética e o discurso”. Aceitando o desafio

    da proposta, procurei mostrar que a construçãodo conhecimento responsável requer um debatepermanente sobre as formas de conceber e acessarproblemáticas científicas. Mais do que isso, que cabeaos próprios pesquisadores uma postura crítica com vistas a superar a falta de discussão que empobreceo potencial da metodologia qualitativa. A complexi-dade das relações dos métodos qualitativos com aética na pesquisa também só pode ser compreendidaa partir de um intenso debate a respeito de seus

    pressupostos.

    Agradecimentos Agradeço aos organizadores do II Encontro Paulistade Ciências Sociais e Humanas em Saúde (junho de2009) pelo título proposto para a exposição, quetomo para o presente artigo.

    Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.104-112, 2011 111 

  • 8/18/2019 ciência replicante - Victora

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    Recebido em: 20/09/2010

    Aprovado em: 20/10/2010

    112  Saúde Soc. São Paulo, v.20, n.1, p.104-112, 2011